Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 1, pp. 145-148, 2015. A mão trêmula do poeta Para Bi Renarde Freire Nobre Professor Departamento Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, email: [email protected] Quero aqui dizer do homem que se dizia um sujeito desprovido de atos e que desejou falar a partir de ninguém. 1 Quero dizer do homem que só se alcança por meio das libações imagéticas que ele nos presenteou. Quero dizer do homem que quis alargar-se com estilo. Do homem que possuía o seu aferidor de encantamentos e viveu de inventar, aumentar o não acontecido, contador de histórias surreais das coisas e das gentes. O que amo em Manoel? O ser incondicional (o que não tem nada a ver com perfeição ou felicidade. O que sabe um homem desses qualitativos?). O que melhor se vê com sua arte são fragmentos e alargamentos. Incondicionalidade embalada pelo vírus de uma grande paixão, centralidade por onde o poeta traça suas fugas, sem saber de sossegos, oportunismos ou responsabilidades. A grande paixão de Manoel é a composição de imagens às raias do delírio verbal. A grande paixão de Manoel é uma força centrífuga imagética, um ralo raiado por onde se esvai o ser biológico juntamente com as suas tripas. Poesia, pura desfaçatez de quem, de onde está, já foi embora. Livre das tripas, um ser desintegrado em imagens, ninguém. Porque o espaço que ele ocupa não oferece contornos, só chão. Manoel, o abrangido pela palavra, gozoso dos tropos do pantanal, bem diferente de uma mera verborragia pantaneira ou naturalista. Sua imaginação é que um pantanal de imagens. Não se trata de um poeta da natureza, mas naturalização da poesia, apreensão imagética dos seres de muitos mundos, animados e inanimados. Com suas imagens Manoel pôs a delirar coisas e fenômenos. Poesia que alcança “o apogeu do chão”, como grafou Millôr. 1 Os itálicos indicam passagens extraídas dos livros de Manoel de Barros. 145 Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 1, pp. 145-148, 2015. Manoel é um atormentado das imagens com o dom de verbalizá-las. No dorso indômito da sua escritura cavalga a plástica fúria das imagens. Poderia ter ficado lelé e prestável para hospícios, mas virou poeta prestável para afetos. Um atormentado das imagens, um fora da lei do Verbo, um deformador de concretudes, um andarilho de paisagens surreais, querente do hospício das paisagens, afeito às frases sem eira nem beira. As coisas distorcidas pela lente bamba das palavras. Palavras que, restituídas ao fluxo e ao delírio da linguagem, não dizem de nada, desdenham de significados instituídos. Imaginar é transver, desfazer-se do que se encontra aprisionado na retidão compreensiva. Num passe de mágica, quebrar o barro da realidade e moldar inexistências. Fazer poesia é mudar a perspectiva do mundo. A arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isso seja: Deus deu a forma. Os artistas deformam. É preciso deformar o mundo: tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio ai a deformar. À poesia de Manoel aplicam-se os versos de Quintana, extraídos de O Descobridor: “Os atônitos objetos que não sabem mais o que são, no terror delicioso, da transfiguração”. Poesia é a ocupação da palavra pela imagem e da imagem pelo ser. Língua de fogo é apenas uma imagem. Mas, pela dúvida, o menino retirou seu cachorro da imagem. Ao pensar por imagens a poesia se aproxima do primitivo, do primordial, do mitológico, terreno no qual, como nos diz Sônia Viegas, produz-se a “metáfora ontológica, ou seja, metáfora enraizada na substância daquilo que ela metaforiza”. Para ver as coisas com olhos de outras paragens e elevar as imagens à condição de coisas, magia maior do poeta, é preciso romper o pudor lógico interposto entre as palavras e o mundo. As palavras devem abusar, ousarem sair do casulo gramatical e lançarem-se a um vento que colore, enche de odor, rodopia e vira de ponta a cabeça. As palavras em relaxamento semântico para se substancializarem. Na poesia de Manoel, as palavras amam as imanências. O mínimo de poesia filosófica, subordinação das palavras ao significado, à ideia. 146 Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 1, pp. 145-148, 2015. É outra perspectiva. Produção de uma filosofia poética, filosofia em ação, onde a única ideia que realmente cabe é a da própria poesia. A palavra descascada, despalavra, sem pompa e seriedade, para voltar a estar em nudez léxica. Poesia é a arte de pôr as palavras para brincar, pisar o chão, sujar de chuva e queimar ao sol, mais ou menos como a lesma que carrega na alma um incêndio de girassóis. As peraltices da linguagem poupam à poesia o dizer sério. Manoel mata a metafísica sem dela falar. Para ser mais preciso, a ela se refere nos seguintes termos: achava que a partir de ser inseto o homem poderia entender melhor a metafísica (Quiçá a imagem lhe veio brincando ao lado de Kafka). Manoel não faz discursos sobre o mundo ou a existência humana. Ela deseja uma comunhão com o mundo e com a existência, por meio da fabulação. O primitivismo do poeta se assemelha ao primitivismo indígena. Um Nambiquara recebe o espírito do jaguar ao passo que o jaguar também pode os poderes dos homens. Algo semelhante Manoel faz com seres, coisas e fenômenos: ele mistura ângulos e transmuta propriedades. O poeta realiza uma operação alquímica e libertina: põe as palavras para cobrir, penetrar e amar as coisas, de sorte que não pensa as coisas, mas as projeta em exposição delirante. Poesia, rebento, ato obsceno, cópula das palavras com o mundo, a ponto de elas se encorparem, a ponto de se despirem, a ponto de tomarem vento e os seus sons coaxarem, voarem e se camuflarem em húmus. Manoel declarava usar as palavras para compor os seus silêncios. A sua poesia é iluminura imagética dos silêncios do ser. O silêncio exposto ao ser fotografado ou empedrado. O poeta encontra nas palavras companhia para excomungar os trambolhos da alma e, assim, poder as vicissitudes do silêncio e da contemplação. Pela vastidão das frases curtas Manoel devaneia silêncios. Silenciosamente profanar o verbo, extrair-lhe o primitivismo, fotografar-lhe sem flashes o grito inaugural, escutá-lo em estalos diafragmáticos, repô-lo em seu estado larvar. Como amante da despalavra, o poeta dispõe-se do verbo desavergonhadamente, em pele, sons, cores, cheiros, movimentos, dobras e tessituras. O poeta é por excelência um exímio errante, delirante do seu idioma. 147 Poiesis: Revista de Filosofia, v. 12, n. 1, pp. 145-148, 2015. Dessa desfeita, foi-se esticando as suas lonjuras, de modo que cada palavra escrita diz não só de língua e sentido, também de légua e ermo. Como poeta-bugre, homem das lonjuras, Manoel sempre se sentiu bem no ermo da distância. A solidão para o poeta é a opulência da alma imaginativa. Lonjura preciosa lhe dá a poesia. Profana, a imaginação não deixa de ser uma forma da oração. Com a benção da invenção, Manoel multiplica e distribui o seu pão. Seu fermento é feito de terra bruta e amassado por patas de passarinhos. Sua poesia é uma fornalha de imagens. A ponto de as rugas se transfundirem em fissuras de sentenças, a pele rude tostada pelo musgo poético, garranchos espalhados em cadernetas, o descer lesmal a escada do escritório apoiado no corrimão, o riso satisfeito do pecado letral. Era Manoel que copulava e gozava. Até que, no dezembramento de um dia, viu-se do ser biológico encerrada a errância, quase centenária. O homem se corporificou, espírito desfeito por órgãos falidos, incorporação mortal. Matéria inerte, sumiu pra sempre, nem fantasma de ser. Os seus silêncios não mais darão motivo à comunhão metafórica, não mais se revelarão em imagens. Calou-se a mão trêmula de Manoel, poeta de dedos pequenos. Os últimos suspiros do silêncio se depositaram na cegueira do incolor. Restou o alarido imagético proveniente das saliências verbais. Restou a poeira poética da implosão ontológica, dispersa até em páginas virtuais, que não se extinguem nem se amarelam. Restou um corrimão à espera de uma criança. E restou um toquinho de lápis largado sobre a mesa de madeira maciça onde o poeta se instalava para tremular alucinações verbais. O toquinho, utensílio agora derradeiramente inútil, é o resquício valioso de uma proximidade. 148