Fascículo 01 - TCM-CE

Propaganda
01
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ensino a distância®
nia
Fundamentos históricos e
filosóficos da transparência
e do controle popular
Oscar d´Alva e Souza Filho
ua
s
a
ç
r
xe
da
cida
E
io
li
eu
s
e
z
a
Fisc
íp
unic
m
A burguesia: classe dirigente da sociedade moderna
A modernidade e novas formas de conhecimento
A ética protestante e o espírito do capitalismo
O pensamento político autoritário
A superação do autoritarismo pelo contratualismo
O Contrato Social e a Constituição Republicana
O Estado burguês e a crise econômica e social
A experiência do socialismo soviético
O Estado Constitucional brasileiro
A democracia direta como aspiração
Contradições do sistema e do regime político no Brasil
www.controlesocial.fdr.com.br
Universidade Aberta do Nordeste e Ensino a Distância são marcas registradas da Fundação Demócrito Rocha.
É proibida a duplicação ou reprodução deste fascículo. Cópia não autorizada é Crime.
Objetivos
• Introduzir noções básicas sobre a emergência do estado moderno e suas dimensões política,
social e ética.
• Apresentar os principais pensadores que contribuíram para a estruturação do pensamento
político no mundo moderno.
• Destacar os elementos básicos que propiciaram o Estado Constitucional brasileiro.
Introdução
Entre os resultados
positivos temos a navegação
costeira da África e o seu
contorno sul, no Cabo das
Tormentas que possibilitou
a descoberta do Caminho
Marítimo para as Índias,
com Vasco da Gama; a
circunavegação do mundo
com Fernando Magalhães;
a descoberta da América
em 1492, pelo genovês
Cristóvão Colombo; o
descobrimento do Brasil,
por Pedro Álvares Cabral
em 1500; para citar os
acontecimentos principais.
10
O que significa viver num estado democrático de direito? Como
chegamos aos modelos que vigem no século XXI? Apresentar as noções básicas dos processos que forjaram as sociedades democráticas
deste século que vivemos é o objetivo deste fascículo. Para isso, retomaremos ao século XVI, momento em que o feudalismo se encontra
em sua fase final, com a emergência dos estados-nações e o surgimento de uma nova mentalidade, influenciada pelas descobertas de
novas terras, povos, fauna e flora, que abalam a visão eurocêntrica
do mundo.
Neste contexto de profundas mudanças sociais, econômicas e
políticas, novas concepções sobre o Estado abrem campo para a elaboração de doutrinas políticas como a de Maquiavel, Rousseau, Hobbes, Locke e Bacon. Não é possível ignorar as contribuições gregas
na definição da política, mas a idéia de contrato social e organização
dos poderes – executivo, legislativo e juridiciário – é eminentemente moderna. O ideário de igualdade, liberdade e fraternidade defendido pela Revolução Francesa representa um novo horizonte na
construção do Estado moderno.
A burguesia: classe dirigente da sociedade
moderna
A sociedade moderna pode ser apresentada por muitos aspectos que lhe são singulares. Primeiro por uma economia nova, o
mercantilismo, fato histórico que impulsionou os novos burgueses
para aventuras comerciais singrando mares “nunca d´antes navegados”, em “perigos e em guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, como registrou Luiz Vaz de Camões, na
epopéia dos Lusíadas.
O resultado desse esforço foi bastante positivo e deve-se frisar,
como novidade, a posição ativa de uma nova classe social, a burguesia.
A economia comercial desenvolvida pela classe burguesa possibilitou
o crescimento geográfico do mundo até então conhecido, em muitas
Curso Controle Social das Contas Públicas
dimensões. Pode-se dizer que a Geografia e a Cartografia ganharam
novo status, ante a realidade física e geopolítica que passaram a representar. A arte da navegação exigiu novos conhecimentos cartográficos
e astronômicos do mundo novo, tantas vezes maior e agora explorado
em todas as suas dimensões na África, na Ásia e nas Américas.
A modernidade e novas formas de conhecimento
Pode-se falar da emergência de uma nova ciência, graças aos
trabalhos de Isaac Newton (1642 - 1727) na Física, de René Descartes (1596 - 1650) na Matemática, e de Copérnico (1473 - 1543), Kepler (1571 - 1630) e Galileu (1564 - 1642) na astronomia. Uma nova
postura científica é elaborada por Francis Bacon (1561 - 1626), que
preconizava a necessidade de uma Instauratio Magna (uma grande
restauração) nas bases medievais do saber.
Essas mudanças operadas pelas grandes navegações e pelas descobertas burguesas (bússola e imprensa) propiciaram modificações
nas concepções relativas ao papel do homem na História e quanto
ao seu relacionamento com povos desconhecidos e com as autoridades de seu país.
Surgiram muitos problemas. A Igreja Católica, poderosa instituição
feudal na vida econômica e política, entrou em choque com alguns príncipes que insistiam em associações comerciais com os burgueses. Começou a reagir negando o seu apoio ideológico às monarquias que se
associassem com projetos burgueses de exploração de ouro e prata e de
povos colonizados e escravizados da África, da Ásia e das Américas.
Os burgueses trouxeram a pólvora da China e deram aos príncipes
a possibilidade de organizarem suas milícias particulares. O poder político passaria a ser uma expressão da força militar do rei, do seu poder
material e de sua vontade, independente da intervenção divina.
Nesse contexto de mudanças, com economia e classe social novas, com um mundo novo bem maior, agora descoberto e colonizado, e mais, com reis e príncipes poderosos que se aventuravam em
expedições colonizadoras em busca de riquezas e expansões territoriais, o conceito de poder político e de autoridade do soberano,
passou por uma mudança estrutural significativa.
A ética protestante e o espírito do capitalismo
Essa nova postura científica
marca o nascimento da
ciência moderna, que surge
como um conhecimento
com caráter público,
democrático e colaborativo,
ou seja, é constituída por
contribuições individuais
organizadas sob a forma de
um discurso sistemático,
oferecidas com vistas a
um resultado geral que
seja patrimônio de todos.
Isso contribui para uma
retração da magia, da
hermética, da cabala e da
alquimia, que estavam
embasadas no segredo, na
iniciação a mistérios e numa
indissociação do homem
com a natureza. A nova
maneira de pensar exige
um método padronizado,
universal, possível de
ser ensinado a quem se
interesse e propõe uma
separação radical entre
homem e a natureza.
Os protestantes Martinho Lutero (1483-1546), Calvino (1509-1564)
e Zwiglio (1484-1531) rompem com a Igreja romana de tradição católica e feudal que pregava uma atitude de renúncia à vida mundana e
prometia aos homens uma vida feliz após a morte. Ao contrário desta, os protestantes pregam a conquista do mundo terreno como forma
de qualificação do homem para merecer o Reino da glória divina.
11
Esse pensamento se
desenvolve especialmente
na Alemanha, na Bélgica, na
Holanda e na Suíça.
Tiranicídio: assassínio de
um tirano.
Regicídio: ato de assassinar
um rei ou uma rainha.
Gnosiológicas: referente
a gnosiologia. Teoria geral
do conhecimento humano,
voltada para uma reflexão
em torno da origem,
natureza e limites do ato
cognitivo. Gnoseologia,
teoria do conhecimento.
Frases de Maquiavel
Quando os homens não
são forçados a lutar por
necessidade, lutam por
ambição.
Não há nada mais difícil de
realizar nem mais perigoso de
controlar do que o início de
uma nova ordem de coisas.
É defeito comum dos homens
não levar em conta, na
prosperidade,
a adversidade.
Em política, os aliados de hoje
são os inimigos de amanhã.
Os homens ofendem mais
aos que amam do que ao que
temem.
12
Desse modo o pensamento protestante favorece o desenvolvimento das atividades da burguesia comercial e se caracteriza pela
defesa intransigente do direito do príncipe de submeter ao seu modo,
os povos colonizados, inclusive escravizando-os. Os protestantes não
admitem o direito de resistência ao tirano e dizem que o bom cristão
deve suportar os excessos do Príncipe ou se submeter à sua espada.
Os católicos participam também, ao seu modo, das empresas colonizadoras, mas desenvolvem uma ética cristã que dificulta a justificação da escravidão e do autoritarismo absolutista dos príncipes.
Nesse sentido os católicos são mais humanistas e assinalam pela
primeira vez, com o espanhol Francisco Suárez a pregação do “direito de resistência à lei injusta e ao tirano”, chegando a dizer que
qualquer do povo tem o direito de matar o tirano. Suárez contraria
assim, com sua obra Corpo Místico, a velha lição de Tomás de Aquino, que no século XIII aceitou o direito de resistência, desde que
autorizado pelo Bispo ou pelo Papa, mas não admitiu o tiranicídio
ou regicídio, que considerava um pecado inexpiável.
Enquanto a América do Norte foi colonizada pelos protestantes,
as Américas Central e do Sul foram colonizadas, prioritariamente,
pelos espanhóis. O Brasil, neste cenário, se coloca como um caso a
parte, sendo colonizado pelos portugueses, graças aos reis católicos
Fernando de Aragão e Isabel de Castela.
A época moderna é bastante rica em acontecimentos novos e desestruturantes das bases gnosiológicas do passado. Duas grandes
preocupações avultam a modernidade: a descoberta de um método
científico rigoroso (isso significa dizer não abstrato-dedutivo ou escolástico) e uma nova compreensão do fato político (relação entre o
homem e o seu governante). Questiona-se, pois, o poder, a autoridade, a lei e o fundamento destas. Seria Deus ou o Povo?
O pensamento político autoritário
As primeiras doutrinações políticas da modernidade estão presentes na obra O Príncipe (1513), do florentino Nicolau Maquiavel (1469 1527) escrita em louvor ao Príncipe Piero de Médici e que lança as bases
da Política para o novo mundo. Maquiavel escreve a partir do exame
dos fatos empíricos da história civil dos antigos e dos exemplos medievais. Observa que a política é uma técnica de persuasão utilizada pelos
partidos ou grupos visando à conquista do poder, e depois se converte
numa técnica de manutenção do aparelho do Estado.
Enquanto não conquista o poder o grupo político ou partido é generoso, humanitário e progressista, tudo promete e tudo admite. Quando
assume o poder, converte-se em governo, e assim passa a ser reacionário às mudanças, conservador em seus atos e cruel com seus oponentes.
Curso Controle Social das Contas Públicas
Maquiavel postula pela separação entre as atitudes éticas, religiosas e
políticas. A primeira buscaria o bem, a segunda preocupar-se-ia com o
mundo sagrado ou metafísico, enquanto que a política trataria objetiva e
rigorosamente das relações com o poder, entre governantes e súditos.
O escritor florentino narra as lições que apreendeu da história
concreta ou empírica e assim mostra como os homens, chefes de Estado, papas, generais e comandantes militares têm agido. Descreve
o modo de ser dos políticos de forma realista e não o dever-ser.
Por não tratar do homem político ideal (que deveria agir sempre
preocupado com o bem da comunidade humana, como preconizou
Aristóteles) e sim com o homem político real, Maquiavel, adotou o chamado “realismo político” em que postulou pela utilização de todos os
meios possíveis para que o príncipe mantivesse sempre em suas mãos
o controle do poder político.
Para isso, tudo é válido e justo. Vale mentir, prometer, comprometer,
corromper, roubar e aniquilar vidas, contanto que o poder seja mantido. O fim é o poder, e para tal finalidade, todos os meios empregados
serão tidos como justos. “Os fins justificam os meios”. Essa é a síntese
do pensamento de Maquiavel.
O italiano tem a vantagem de falar com clareza sobre os objetivos do príncipe. Ensina que é melhor ser temido e odiado, do que
amado e respeitado. Diz que o príncipe odiado e temido será bem
aceito com o pouco que realizar, pois o povo não espera muito de
um tirano. Já um príncipe querido e respeitado, por mais que realize
deixará no seio do povo a esperança de que realize mais e mais.
Maquiavel considerava o Direito Positivo como um instrumento
de ordenação da sociedade, conforme os interesses do príncipe. A lei
é um decreto da vontade política do soberano. A autoridade legal resulta da força militar do príncipe. Ao povo deve ser dado “pão e circo”, conforme faziam os imperadores romanos. Um pouco de pão e
diversão. Assim o povo se manterá cativo e submisso à autoridade.
Outro pensamento político moderno, de grande repercussão foi
o do francês Jean Bodin (1530 - 1596), autor de uma obra denominada De la Republique.
Também fiel a uma vertente autoritária, tal qual a seguida por
Maquiavel, Bodin ensinava que o Direito Positivo é uma expressão
política do poder e da vontade do soberano. Admitia que o rei é
o feitor da lei, mas que a dirige aos súditos que lhe deveriam total obediência. Ensina Bodin que a lei obriga apenas aos súditos e
nunca ao rei, pois sendo ela uma expressão de seu humor e de sua
vontade, pode ser modificada, alterada e revogada por ele, quando
assim o desejar.
As doutrinas de Maquiavel e de Bodin consagram o que se denominou de autoritarismo político, em que o poder do governante
Direito positivo é o conjunto de
princípios e regras que regem
a vida social de determinado
povo em determinada época.
Diretamente ligado ao conceito
de vigência, o direito positivo,
em vigor para um povo
determinado, abrange toda a
disciplina da conduta humana e
inclui as leis votadas pelo poder
competente, os regulamentos
e as demais disposições
normativas, qualquer que seja
a sua espécie. Por definir-se
em torno de um lugar e de um
tempo, é variável, por oposição
ao que os jusnaturalistas
entendem ser o direito natural.
13
se justifica pela própria personalidade do príncipe. O poder autoritário se justifica e se limita pela força efetiva do mandante. Essa
doutrina se revelou falha por lhe faltar elementos morais, no seio
da comunidade governada, capazes de justificar a necessidade da
manutenção da autoridade política. Sendo o rei a única fonte de sua
força e autoridade, a tendência seria o seu distanciamento do corpo
político e o seu isolamento ou aniquilamento.
A superação do autoritarismo pelo
contratualismo
No livro Leviathan, Hobbes
coloca as condições de dissolução
do Estado. Para ele, somente
a concentração de autoridade
garante a unidade e a paz social.
Suas idéias políticas apoiaram
o absolutismo do século XVII.
Partidário do absolutismo
político, defende-o sem recorrer
à noção de “direito divino”.
Segundo o filósofo, a primeira lei
natural do homem é a da autopreservação, que o induz a imporse sobre os demais - “guerra de
todos contra todos”.
14
Foi o inglês Thommas Hobbes (1588 - 1679) quem melhor percebeu
a fraqueza doutrinária e ideológica do autoritarismo como doutrina
política capaz de persuadir o povo sobre a necessidade da permanência do Governo Civil na comunidade política. Hobbes escreveu várias
obras, tais como De Cive, De homine, De Corpore e Leviathan, nas quais
tratou das questões relacionadas à cidadania, aos deveres e obrigações
políticas do cidadão e de suas relações com o Soberano.
Defendeu a existência anterior ao Governo Civil ou Estado de Direito Positivo, de um Estado primitivo de Direito Natural onde não
haveria governo formal, lei escrita ou qualquer instância de autoridade. Nesse Estado de Natureza predominavam as vontades sem freios,
os instintos e a força física dos indivíduos. Tudo seria permitido, pois
o limite das ações era a própria força daquele que a praticava.
Por isso, segundo Hobbes, esse estado primitivo se transformou
em um Estado de Guerra, onde todos disputavam entre si, com
violência e egoísmo os melhores lugares sociais e os melhores bens
úteis. Havia, pois, uma “guerra de todos contra todos” e isso gerava insegurança e intranqüilidade geral. O homem se converteu no
maior inimigo, o lobo do próprio homem.
Foi para sair dessa condição de guerra e de insegurança que os
homens, diz Hobbes em Leviathan, resolveram fazer um “pacto social”, mediante o qual renunciaram à liberdade absoluta e aos seus
direitos naturais e outorgaram ao Soberano, a quem caberia a responsabilidade de gerir politicamente tais direitos individuais (antes
incontroláveis) sob forma civilizada de direito positivo.
Hobbes escreve sob a influência da monarquia absoluta inglesa e
se converte no seu maior defensor. O poder do soberano é absoluto
porque é absoluta a sua responsabilidade. Sua autoridade é legítima, não em razão de sua força econômica ou militar, mas em razão
da anuência da sociedade civil. O rei é a fonte do direito que regula
a vida dos cidadãos, é administrador e juiz, além de legislador. Mas,
mesmo assim, diz que seu poder é legítimo porque tem o consentimento do povo.
Curso Controle Social das Contas Públicas
A idéia de que o povo é a fonte do poder político já havia sido exaltada em Santo Tomás de Aquino (1225 - 1274), que, todavia, não dispensava a interferência da Igreja católica na condução do corpo político místico (o povo de Deus).
A idéia hobbesiana de que o Estado Civil e o Governo Cível
advieram de um pacto social recebeu o nome de Contratualismo
e foi desenvolvida por diversos pensadores europeus como o holandês Hugo Grotius (1542 - 1645), o alemão Samuel Puffendorf
(1632 - 1694), o judeu holandês Baruch Spinoza (1632 - 1677), o alemão Christian Tommasius (1655 - 1728), o inglês John Locke (1632 1704), o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778) e o alemão Emanuel Kant (1724 - 1804).
Todos esses filósofos do Estado e do Direito, partem da premissa
de que “o poder político é legítimo porque nasceu de um consenso, de um pacto hipotético celebrado entre os homens”. Fica assim
evidente a compreensão de que toda autoridade política exerce seu
múnus em virtude do consentimento do corpo político. A finalidade do Estado e do Governo instituídos pelo Contrato é a paz e a
segurança de todos, como asseverava Puffendorf.
Destacaremos, porém, quanto aos posicionamentos contratualistas, as versões de Locke, nas obras Tratado do Governo Civil, Segundo
Tratado do Governo Civil, Tratado de Direito Natural e Cartas Sobre a Tolerância, e por fim, de Rousseau, autor de obras notáveis e influentes
em sua época como Tratado sobre a origem das desigualdades dos homens,
Emílio ou da Educação e Contrato Social.
Locke produziu suas idéias na época da expansão da sociedade burguesa na Inglaterra. Defendeu o parlamento burguês, o voto representativo por mandato certo e a responsabilidade política dos governantes
para com os representados, ou seja, o povo. Sua idéia de “pacto ou
contrato” sugere que os indivíduos elegeram como seus governantes,
não o Rei, mas uma assembléia legisladora representativa de todas as
categorias da sociedade existente.
Para ele, o Estado de Natureza, antes existente, era diferente do que
concebera Hobbes, não era um estado de guerra e sim um estado de
razão e de paz naturais. Todavia esse estado de paz desequilibrou-se
ecologicamente em razão da ação impensada e egoísta de alguns
homens que devastaram a fauna e a flora. Daí resultou a escassez, a
fome e a luta de todos pelos poucos bens de subsistência.
O Estado natural de paz se converteu, num segundo instante,
em um estado de guerra. Por tal motivo os homens, racionalmente resolveram criar um governo civil republicano, representativo e
temporário (com mandatos eletivos) cuja finalidade é garantir a paz
social e os direitos naturais dos indivíduos, que ele enumera como o
direito à vida, à liberdade e à propriedade privada burguesa.
Múnus: Funções que um
indivíduo tem que exercer;
encargos, empregos.
Múnus público: O que
procede de autoridade
pública ou de lei, e obriga o
indivíduo a certos encargos
em benefício da coletividade
ou da ordem social.
Fonte: Dicionário Aurélio
Frases de John Locke
A liberdade de um indivíduo
na sociedade não deve estar
subordinada a qualquer poder
legislativo que não aquele
estabelecido pelo consentimento
na comunidade nem sob o
domínio de qualquer vontade ou
restrição de qualquer lei, a não
ser aquele promulgado por tal
legislativo conforme o crédito que
lhe foi confiado.
Ler fornece conhecimento à
mente. Pensar incorpora
o que lemos.
Uma coisa é demonstrar a um
homem que ele está errado, outra
é colocá-lo de posse da verdade.
As ações dos homens são as
melho-res intérpretes de
seus pensamentos.
15
Locke considera que o Governo Civil pode ser derrogado e substituído por outro, caso perca a sua legitimidade, ou seja, deixe de representar
os interesses da comunidade governada, fonte original do poder político.
Pela primeira vez Locke falou das funções executivas, legislativas e judiciárias do Governo Civil, antes, portanto, de Montesquieu (1689 - 1755).
Se é verdade que Locke destacou as idéias modernas de república, de representatividade e de responsabilidade política, e ainda de
mandato parlamentar temporário determinado, foi, todavia, com
Jean Jacques Rousseau que a idéia de soberania do povo e de democracia mais se desenvolveram, ao acentuar mais as idéias relativas
aos direitos pessoais do indivíduo frente à máquina do Estado.
Rousseau é um defensor do Estado de Direito Positivo, pois acredita
que o Direito produzido pelo Estado resultaria de uma vontade de todos
os indivíduos. Para ele, o direito estatal significaria o retorno dos direitos
individuais que foram outorgados ao Governo Civil, e que agora os devolve ao povo sob a forma de direitos políticos. A autoridade republicana
deriva, inevitavelmente, do consentimento popular. Todos os mandatos
representativos, todas as normas legais e todos os atos de governo deverão ser pautados pelo interesse geral da população do Estado Civil.
Em Rousseau delineia-se a diferenciação entre legalidade (que significa agir rigidamente em conformidade com as prescrições legais) e
legitimidade, valor ainda maior e que significa agir em consonância
com as aspirações e os interesses gerais da comunidade. Um poder
que se constituiu nos termos da lei é um poder legal, mas se o dirigente do Estado, por qualquer razão se afasta dos parâmetros do
Contrato Social, perderá a legitimidade e o próprio poder, pois, em
última instância, a razão suprema da soberania é a vontade geral.
Patenteia-se, a partir das idéias políticas e jurídicas de Locke e
de Rousseau, uma vinculação inafastável entre o Governo Civil e
o Povo. O primeiro nasce do consensus populi e só com a contínua
ratificação popular adquire dia-a-dia a legitimidade necessária. Diferentemente do que acontecia na monarquia, em que o Governante
se confundia com o Estado, na República rousseauniana o governante é um agente do povo, o seu representante maior na administração da coisa (res) do povo (publicae).
Por isso, a idéia de que o representante político da comunidade lhe
deve contas e que deve ser transparente em seus atos, tudo é uma decorrência dos postulados filosóficos da concepção republicana de Estado.
O Contrato Social e a Constituição Republicana
Com o advento da Revolução Francesa de 1789, onde se preconizava a substituição da antiga forma de Estado (unitária, autoritária
e monárquica) por um novo regime, no qual fosse instituída uma
16
Curso Controle Social das Contas Públicas
sociedade produtora de “liberdade, igualdade e fraternidade” (liberté, egalité et fraternité), surgiu como novidade política o instrumento republicano que se denominou de Constituição.
Deve-se assinalar a ocorrência de uma gradação, de uma evolução política que se iniciou com o autoritarismo, assumiu a forma do
contratualismo e finalizou com a proposta constitucionalista.
A sociedade capitalista burguesa, após realizar suas revoluções
infra-estruturais (comercial e industrial) passou agora a encetar uma
revolução ideológica ou superestrutural que significou a formalização jurídica de suas relações de produção, de livre comércio, de associações em geral, de família, de sucessões, de eleições dos poderes políticos e da forma ou regime e de sua alternância entre os cidadãos.
O resultado formal dessa afirmação de vida burguesa desenvolvida e civilizada foi a Constituição. Neste instrumento jurídico e por
meio dele o hipotético Contrato Social se converteu em realidade.
Aqui um capítulo especial da Carta Magna trata da ordem econômica
capitalista, das relações de propriedade, de comércio e de indústria,
das relações de trabalho, consagrando, de fato, o sistema econômico
da propriedade privada e da não intervenção do Estado na economia
liberal burguesa. Garantida a essência capitalista do Estado burguês,
a Constituição tratará da forma organizativa do Estado, de seus Poderes Políticos (executivo, legislativo e judiciário) e da investidura
dos cidadãos nesses mesmos poderes, sua duração e alternância.
Será ainda a Constituição do Estado Nacional, unitário ou federativo, que disporá filosoficamente sobre os valores que animam a
ética estatal e sobre a relação política entre o indivíduo e o Estado.
Aqui se verificará uma antinomia de difícil solução entre os interesses individuais e os interesses públicos e do Estado, como aparelho político dirigente da sociedade. O Estado será inevitavelmente
controlado em sua burocracia administrativa, política e jurídica pelos grupos sócio-econômicos mais fortes e atuantes em cada época
determinada. Revelará em cada momento crítico uma postura de
tolerância ou de intolerância com relação aos movimentos sociais
reivindicadores de um melhor tratamento às classes menos favorecidas no processo produtivo da riqueza social.
O contratualismo é uma
doutrina cujas origens
remontam à filosofia grega,
mas que adquiriu importância
teórica e política somente
no pensamento liberal
moderno, que considera a
sociedade humana e o Estado
originados por um acordo
ou contrato estabelecido
entre cidadãos autônomos,
valorizando desta maneira
a liberdade individual, geral
em detrimento da autocracia
ou dos excessos da ingerência
estatal. São teóricos do
contrato social: Hobbes,
Locke, John Rawls.
Antinomia: Contradição real
ou aparente entre leis, ou
entre disposições de uma
mesma lei, o que dificulta
sua interpretação.
O Estado burguês e a crise econômica e social
A pauperização crescente da classe operária trará com o desemprego e a subvida da sociedade fabril, o fenômeno da marginalização e da
prostituição, o que obrigará as classes dirigentes do Estado a organizar
suas polícias e exércitos recrutando para tais contingentes a mão de
obra carente e ociosa então marginalizada. Parte do povo pobre é armada para reprimir a grande massa popular pobre e desarmada.
17
Em meados do século XIX, movimentos sociais de base popular
e operária contestam o Estado burguês com pregações sindicalistas,
cooperativistas, socialistas, anarquistas e comunistas. As idéias de
Proudhon (1809 - 1865) expressas no livro A Propriedade e depois em
A Filosofia da Miséria, de Saint Simon (1760 - 1825) em A Indústria, e
o Manifesto Comunista, de Marx (1818 – 1883) e Engels (1820 – 1895),
demonstram que um espectro de revolta e de fome ronda a Europa.
Os marxistas rechaçam as pregações idealistas da filosofia alemã
do Estado, enunciadas por Kant (1724 – 1804) e por Hegel (1770 1831) que sacralizavam o Estado, apresentando-o como a realização
da idéia do bem, e insistindo que a ordem jurídico-positiva do Estado era uma ordem imparcial e justa baseada na idéia de justiça, e
posicionada acima dos interesses das classes sociais em conflito.
Para esses filósofos alemães, o Estado burguês havia se constituído
como um instrumento burocrático militar e jurídico a serviço da burguesia vitoriosa, que usaria tudo, inclusive o Direito, a Ética e a Religião,
além da Polícia e dos exércitos, para subjugar o povo jurisdicionado.
Marx e Engels desmascaram as Teorias do Estado e do Direito instituídas pela burguesia vitoriosa (antes humanista e esclarecida que
pregava a defesa dos direitos humanos e individuais e da cidadania)
e chegam a pugnar pelo fim do Estado através de um processo social
revolucionário tão violento como foi o terror da Revolução Francesa.
Edificam-se, pois duas propostas. Uma real e efetiva preconizada pela burguesia e seu Estado Constitucional que promete uma
sociedade juridicamente organizada pelo Direito Positivo racional e
imparcial, baseado na idéia grega de isonomia ou igualdade formal
dos cidadãos perante a lei estabelecida. Esse é o ideal burguês pregado a todos como verdade ideológica do Estado.
Formalmente todos são iguais, embora materialmente o processo
de produção da riqueza (que foi liberal e sem intervenção estatal,
baseado na livre iniciativa privada) tenha propiciado a formação
de uma sociedade materialmente desigual. Mas tal seria uma contingência da realidade humana, onde os mais aptos vencem a livre
concorrência. Seria esse um fato comum a toda história civil.
A outra proposta, mais generosa e humanista, preconiza a criação de uma sociedade socialista, em que os meios econômicos de
produzir a riqueza sejam estatizados e controlados pela burocracia
política governante. O Estado haveria de ser intervencionista definindo técnicas, táticas e estratégias de produção e distribuição da
riqueza social e produzindo um Direito Positivo de cunho social,
dirigido ao interesse de todos os que compõem a coletividade.
18
Curso Controle Social das Contas Públicas
A experiência do socialismo soviético
Essa última proposta inspirou a Revolução Russa de 1917 que
deu margem ao modelo socialista soviético de administração econômica e política. O leninismo (de Wladimir Lênin - 1870-1924) e
o stalinismo (de Josef Stálin - 1879-1953), depois reformados por
Nikita Kruschev (1894-1971), Leonid Brejnev (1906-1982), Nicolai
Podgorny (1903-1983), Konstantin Chernhenko (1911-1985) e finalmente por Mikhail Gorbachev (1931-).
O modelo soviético sobreviveu até 1990, quando tal experiência
capitulou por motivos que merecem uma análise mais detalhada
em outra oportunidade. O fracasso da experiência anti-capitalista e
anti-burguesa propiciou, contudo, o retorno a uma concepção agressiva e autoritária do capitalismo norte-americano (Doutrina Bush)
que investe em uma nova era de guerras e de conflagrações.
Vivenciamos hoje uma atitude realista e crítica que nos orienta a buscar procedimentos, mesmo parciais e reformistas (antes sequer admitidos
como possibilidade teórica) mediante os quais seja possível melhorar o
padrão de vida política individual e social nos Estados contemporâneos.
A realidade econômica multinacional transcendeu situações geopolíticas
concretas e produziu, com isso, novos valores e valorações relativas a
cada espaço social e político da comunidade internacional e nacional.
O sonho utópico de uma revolução estrutural de uma sociedade
humana determinada deu lugar a um propósito menos absolutista, e
mais realista, onde as reformas pontuais e as atitudes estratégicas em
determinados setores da vida social (econômico, político, educacional
ou jurídico) podem propiciar alterações significativas e quantitativas
na existência social e histórica de um povo, de um país, ao ponto de,
posteriormente, assumir uma mudança qualitativa substancial.
A crença no poder local, no exercício militante da cidadania, por associações comunitárias e profissionais, por partidos políticos e por profissionais da educação, da medicina e do direito, por exemplo, pode atingir
índices significativos de alteração nas formas sociais de existência.
O profissional do Direito pode partir da lei positiva criada pelo
Estado burguês como diretriz de seu trabalho, mas cumpre-lhe ter
uma atitude crítica, ativa e recriadora da lei legislada, através de
uma interpretação (hermenêutica) sociológica e democrática, na
qual humanizará os dispositivos legais e os compatibilizará com os
interesses sociais do Estado Democrático de Direito.
A preocupação com a transparência, com a clareza de atitudes
dos agentes públicos pode resultar em práticas revitalizadoras da
vida cidadã e dessa forma num processo pontual e quantitativo preparar uma sociedade do futuro, que podemos com toda racionalidade, acreditar que seja mais humana, mais justa e mais feliz.
19
Principiologia: Relativo
à lei de caráter geral com
papel fundamental no
desenvolvimento de uma
teoria e da qual outras leis
podem ser derivadas.
Dentre os exilados que
voltavam estavam Luiz
Carlos Prestes, Francisco
Julião, Miguel Arraes de
Alencar, Leonel de Moura
Brizola, Fernando Henrique
Cardoso e José Serra, dentre
outros.
20
O Estado Constitucional brasileiro
O Estado Constitucional brasileiro, advindo da Carta Magna de 1988
definiu-se como republicano, representativo, federativo e democrático.
É essa, pois, a sua definição ideológica e principiológica. Devemos
lembrar que a formulação jurídico-filosófica do Estado Constitucional
brasileiro nasceu em momento especial de convulsão sócio-política.
Vivenciávamos a transição democrática proposta por Ernesto
Geisel e levada a efeito por João Batista Figueiredo em passos cuidadosos ao lado da sociedade civil, então agitada com a chegada
dos exilados anistiados a partir de 1979.
Com efeito, a volta de personalidades políticas marcantes movimentou um conjunto explosivo de ideologias mudancistas e socializantes, provocando movimentos sociais constantes e cada vez mais
organizados em prol da anistia política e da redemocratização.
O Congresso Nacional assumiu postura de Assembléia Constituinte e após criar comissões legislativas específicas ligadas aos diversos
setores da sociedade civil brasileira, passou a receber as mais arrojadas
propostas jurídicas para a elaboração de uma Constituição redentora e
cidadã, como proclamava o grande dirigente desse processo, deputado
e presidente da Câmara Federal, Ulysses Guimarães (1916-1992).
Superficialmente, a sociedade brasileira, através de sua intelectualidade e sua juventude, bem como setores da Igreja Católica (CNBB),
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da combativa Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), introduziram idéias e princípios democráticos e socializantes, que foram assimilados pela classe dirigente, sem que, contudo, mudasse qualquer dos pilares econômicos da
sociedade burguesa vigente, e que apenas, naquele instante histórico,
acertava socialmente a alteração na forma de governo do Estado.
Em outras palavras, como acentua Bruno (2009), em sua obra
Raízes Gregas da Teoria Moderna dos Direitos Humanos, o Estado brasileiro apresentou ao mundo um avançado modelo jurídico-político
de Estado Democrático (sobretudo no que concerne à consagração
principiológica dos direitos fundamentais e dos direitos e garantias
individuais), conservando, todavia, incólume a propriedade privada dos meios de produção e a ordem econômica constitucional da
Carta Magna anterior, outorgada pelo regime militar.
Tem razão a professora, pois as conquistas preconizadas pelo estatuto
constitucional de 1988 consagraram, na verdade, uma intencionalidade
e uma vontade social de justiça, digamos uma “democracia formal”,
permanecendo, outrossim, os mesmos entraves legais da ordem jurídica
anterior, no que concerne à efetividade de direitos sociais e individuais.
Foi prática comum do legislador constituinte, admitir um direito social e colocá-lo no texto constitucional como um princípio, quase sempre,
Curso Controle Social das Contas Públicas
sujeito à ratificação de uma lei complementar posterior. Como resultado,
tem-se que os princípios dificilmente foram positivados pelas casas legislativas federais, e fizeram com que as conquistas jurídicas e populares, se
quedassem no texto da Carta Magna como meras intenções ou recomendações. O que, convenhamos, para a vida burguesa, nada significa. “De
boas intenções o inferno anda cheio,” diz o adágio popular.
A democracia direta como aspiração
Sempre que se fala em democracia vem à tona a discussão do
modelo grego, para muitos o exemplo ideal dessa forma de governo. É comum referir-se ao século V antes da era cristã, o século de
Péricles, quando a democracia foi caracterizada pelos institutos da
isonomia, da isagoria e da isotimia.
Na verdade os atenienses apresentaram uma legislação democrática que igualava formalmente todos os cidadãos (era a igualdade
perante o nomos ou lei positiva da pólis). Mas essa igualdade não
se quedaria numa abstração lógica, pois efetivamente esses mesmos
cidadãos poderiam reunir-se na Ágora (praça pública) e ali teriam
oportunidades iguais de questionar as medidas políticas e administrativas do governo democrático.
Havia sim, um certo controle social com relação aos atos dos governantes, pois estes anunciavam ou publicavam suas medidas, primeiro
sob forma oral, comunicando aos cidadãos da pólis que se reunissem
na Ágora, uma multidão estimada entre 3.500 a 6.500 pessoas. Qualquer
cidadão da pólis democrática poderia, na praça pública, exercer a isagoria, ou seja, pedir a palavra e questionar esta ou aquela medida, que em
seguida era submetida a uma votação pela assembléia popular.
Foi exatamente em razão dessa prática cidadã que a retórica, a oratória e a dialética passaram a fazer parte da formação intelectual e cívica de
cada homem livre de Atenas. Essa igualdade se complementava através
do instituto da isotimia, ou seja, a possibilidade jurídica de qualquer dos
cidadãos exercer um cargo administrativo na vida da cidade.
Os críticos do modelo grego geralmente procedem a partir de
valores e conceitos modernos e, por isso, condenam a experiência
grega por não admitir escravos e mulheres como cidadãos, além de
restringir os direitos políticos dos estrangeiros.
Esquecem, contudo, que a liberdade de pensar e de se expressar
nas praças e nos mercados públicos possibilitou a pensadores de
outras cidades, no caso os sofistas, a trabalhar na pólis ateniense.
Sua atuação consistia no ensino do direito, da política e da retórica,
e na pregação de idéias progressistas e humanistas que se chocavam
até mesmo com os interesses da cidade-estado ateniense.
Isonomia: Princípio geral do
direito segundo o qual todos são
iguais perante a lei, não devendo
ser feita nenhuma distinção entre
pessoas que se encontrem na
mesma situação.
isagoria: É um conceito oriundo
da democracia grega. Consiste
no direito que todos os cidadãos
tinham de manifestar sua
opinião política na Ágora,
a praça onde se reuniam as
assembléias do povo.
Isotimia: Se traduz no livre
acesso ao exercício das funções
públicas mediante sorteio,
abolindo privilégios de grupos
ou classes.
Lembremos dos jovens
sofistas: Antifonte, Licófron
e Alquidam, que, pela
primeira vez no Ocidente,
condenaram a escravidão,
apregoaram a igualdade
natural de todos os homens,
condenaram o direito
positivo (por se revelar
a expressão da vontade dos
mais fortes) e sob protestos
de Aristófanes proclamaram
a igualdade de direitos e
de dignidade entre homens
e mulheres.
21
Em outras palavras, não é correto exigir-se da experiência grega a vivência de valores que somente se concretizaram na história humana a
partir do século XIX, como é o caso da escravidão, abolida no Brasil, por
exemplo, apenas em 1888. Lembremos que todas as sociedades da época: egípcia, persa, turca, etíope, grega e romana se organizavam economicamente sob a forma escravocrata. Filósofos como Sócrates (470 – 399
a. C.), Pitágoras (580 – 497 a. C.), Platão (428 – 347 a. C.) e Aristóteles (384
– 322 a. C.) acreditaram como natural a existência de homens considerados mais aptos e destinados pela formação e intelecto (aristós) a dirigir os
menos capazes e inaptos para tomar decisões (idiothés).
Lembremos, com Bruno (2009), que na própria França, após a Declaração Universal dos Direitos do Cidadão de 1786, quando foi elaborado o Novo Código Civil Francês, em 1804, as mulheres foram excluídas civilmente da cidadania e os homens sem propriedade, da mesma
forma, ficaram à margem das decisões da República Francesa.
Observemos, pois, que somente após a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU) de
1948, foi reconhecida à mulher a igualdade de direitos civis e políticos. E em nosso país tal igualdade apenas se positivou com a
publicação da Carta Magna de 1988.
Temos que concluir que as intenções jurídicas resultam de idéias
e valores que animam o espírito das nações desde o exemplo grego,
mas, para que os princípios e valores sejam convertidos em normas
jurídicas, em regras de ação, se revela uma dificuldade prática bem
maior. Uma coisa, por exemplo, é a igualdade formal ou abstrata
que a Constituição Federal assegura a todos, outra bem diferente é
a igualdade material que significa a participação efetiva dos indivíduos nos frutos da produção de bens econômicos e nos processos
sociais de educação, trabalho, saúde e habitação digna.
Contradições do sistema e do regime político
no Brasil
Para superar tais antinomias ou contradições a sociedade civil
contemporânea tem apostado nos institutos constitucionais da democracia direta, de modo a transpor a crise do nosso sistema representativo, uma vez que deputados e senadores cada vez mais se
revelam desacreditados e sem qualquer compromisso efetivo com
os interesses do Estado Democrático de Direito.
O plebiscito, o referendum e a iniciativa legislativa popular são
procedimentos de democracia direta que visam a revitalizar a ordem democrática, e realizar de modo real e efetivo os ideais previstos na Carta Constitucional de 1988.
O desenvolvimento das práticas cidadãs, de investigação e de de-
22
Curso Controle Social das Contas Públicas
núncias, através da imprensa, de organizações não-governamentais
(ONGs), das defensorias públicas e dos Ministérios Públicos estaduais, federais e especiais (ligados aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios) têm possibilitado um maior controle social dos
atos dos governantes de todas as instâncias administrativas.
A transparência da isagoria grega tem sido um fantasma que atormenta autoridades corruptas e que escondem suas atitudes ilícitas sob o
argumento de “segredo de Estado”. Se é impossível reunir o povo numa
Ágora imensa (pela impossibilidade material ou física), é possível, no
entanto, que todos os cidadãos e órgãos políticos, administrativos, privados ou públicos, tenham acesso via internet aos contratos, compras, diários oficiais e negócios públicos em geral, e assim efetivem um controle
democrático da administração de sua cidade, estado ou da União.
Hoje está assentado definitivamente o direito do cidadão de conhecer todos os meandros da vida administrativa, negocial e política do Estado. O governante em qualquer nível é um mandatário do
povo, seu procurador e representante. Todo o proceder político há
que ser claro, lúcido, transparente, sem segredos.
Considerações finais
Hodiernamente, em que pesem as decepções históricas das ideologias
revolucionárias que pretendiam transformar radicalmente a realidade
social, política, econômica e jurídica (sonho ou pesadelo desfeito com a
queda do Muro de Berlim e do desmantelamento do bloco Socialista Soviético), a sociedade civil européia e americana tem descoberto, através
de movimentos independentes de partidos, formas de participação e de
controle da administração política dos governos dos diversos países. Tal
se verifica através de ações organizadas pontualmente, em momentos
decisivos da história de cada povo, onde se chama a sociedade civil do
Estado Democrático de Direito para intervir utilizando mecanismos jurídicos e legais previstos na Constituição, como o referendum, o plebiscito e
a iniciativa popular no Brasil, e o recall, na república da Venezuela.
O fato das classes ou categorias sociais, dos estudantes, da juventude e da intelectualidade ter encontrado motivos de decepção nos
partidos da esquerda tradicional e da direita oficial, não os afastou
da vontade de participar da vida política, combater a corrupção, os
excessos de autoritarismo de algumas autoridades e crer na possibilidade social de transformação do Estado, modificando-o paulatinamente, até transformá-lo qualitativamente.
O sonho de uma mudança radical revolucionária pode ser vivenciado como uma utopia que se afirma sob formas parciais e pontuais
de mudanças quantitativas nos mais diversos setores da sociedade
civil, em que o cidadão organizado e consciente possa atuar.
23
Síntese
• No Brasil, o momento pós-ditadura é marcado por uma nova Carta Constitucional
promulgada em 1988, considerado como um
avançado modelo jurídico-político do estado
democrático de direito, embora somente no
plano da intencionalidade.
• Nas democracias do século XXI, as formas de
participação e de controle da administração
política dos governos dos diversos países
se verificam através de ações organizadas
pontualmente, em momentos decisivos da
história de cada povo, nos quais se chama
a sociedade civil do Estado Democrático de
Direito para intervir utilizando mecanismos
jurídicos e legais previstos na Constituição,
como o referendum, o plebiscito e a iniciativa
popular no Brasil.
,
• Neste fascículo procurou-se descrever a formação do Estado Moderno desde o século
XVI, com a emergência da burguesia, os novos descobrimentos e a revolução científica,
que causaram profundos impactos nas estruturas sociais vigentes, e vieram a forjar novos
modelos de sociedade.
• As primeiras doutrinas políticas da modernidade encontram-se presentes nas obras de Maquiavel, Jean Bodin, Thommas Hobbes, John
Locke, e Rousseau. As contribuições desses
pensadores mostram uma evolução política
que se iniciou com o autoritarismo, assumiu
a forma de contratualismo e finalmente chega
a proposta constituicionalista. Os questionamentos sobre as bases do Estado burguês têm
em Marx e Engels seus baluartes, culminando
com a Revolução Russa de 1917.
Avaliação
1. Descreva sucintamente, os aspectos que marcam o
nascimento da sociedade moderna.
2. Por que a ética protestante é tão importante para a
emergência e consolidação do capitalismo?
3. O que vem a ser Direito Positivo e porque Maquiavel o considera um instrumento de ordenação da
sociedade?
4. Que contribuições Hobbes, Locke e Rousseau dão
a constituição do Estado Moderno?
5. Em que contexto político é elaborada a Constituição
brasileira de 1988?
6. O que marca as sociedades e os governos democráticos do século XXI?
Referências
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo:
Editora Saraiva. 1971.
RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. Rio de Janeiro:
Ediouro. 2002.
____________ Teoria do Estado. São Paulo: Editora Saraiva. 1967.
SOUZA FILHO, Oscar d´Alva e. A Ideologia do Direito Natural. Fortaleza:
Editora ABC. 2ª. Edição. 2008.
BRUNO, Luciana Fernandes. Raízes gregas da teoria moderna dos
direitos humanos. Fortaleza: Editora ABC. 2009.
DURANT, Will. História da Filosofia. São Paulo: Ed. Melhoramentos.
1978.
Realização
____________ Tetralogia do Direito Natural. Fortaleza: Ed. ABC.
2008.
Apoio
Download