O conceito dialético de abstração em ‘O Capital’ de Karl Marx André Cressoni∗ RESUMO O intuito deste trabalho consiste em explorar alguns elementos que envolvem o conceito dialético de abstração. O conceito dialético de abstração deve compreender o percurso pelo qual se prova o fundamento do real, no caso de Marx, o fundamento do processo social. Este percurso, porém, não é somente uma passagem em que vão se incluindo novas determinações como somatórias ou sobreposições. Ao contrário, trata-se do processo de externalização de uma lógica interna, sem que interior e exterior se contraponham sem interpenetrarem-se. Por isso, a passagem do abstrato ao concreto compreende a passagem de condições lógicas de possibilidade para sua efetivação em níveis distintos de efetividade. Se a abstração aparece como ponto sempre presente no debate metodológico da dialética de Marx, há uma tendência a reduzir o método expositivo ao método de abstração, sem atentar para os fatores que envolvem a já tão debatida transição dialética abstrato-concreto. Essa tendência resultaria de uma falta de compreensão da natureza expositiva intrínseca à dialética, presente não somente em O Capital, mas na tradição dialética, como em seus mais conhecidos expoentes em Platão e Hegel. Para a compreensão, por isso, da natureza expositiva da dialética de O Capital é mister operar, como indica Lenin, um contraponto com a Ciência da Lógica de Hegel. É por isso que adentraremos em peculiaridades da dialética hegeliana para a compreensão daquilo que seria de fato o conceito dialético de abstração. Nelas exploraremos algumas características principais do que poderia se chamar de 'abstração' na lógica hegeliana. Diante deste elementos, avaliaremos como ela podem ser utilizadas ou não numa compreensão do conceito de abstração tal como se apresenta em O Capital de Marx. Desta forma, a intenção consiste concluir como o conceito de abstração impõe a necessária fluidez interna operante no sistema capitalista, daí Marx buscar na dialética essa fluidez lógica que apresentava-se para ele na lógica hegeliana. PALAVRAS-CHAVE: Dialética. Abstração. Marx. Hegel. Capitalismo. O conceito dialético de abstração deve estar compreendido no percurso através do qual se prova o fundamento do real. Este percurso, porém, não é somente uma passagem em que vão se incluindo novas determinações como somatórias ou sobreposições. Ao contrário, trata-se do processo de externalização de uma lógica interna, onde interior e exterior não se contrapõem, mas interpenetram-se. ∗ UNICAMP – Doutorando; [email protected] Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 50 Apesar da literatura marxista estar esclarecida quanto ao intuito de Marx em expor as leis internas do sistema capitalista, não levam às últimas consequências a dialética do conceito de capital que a obra de Marx busca elaborar. Por isso caem no erro de afirmar que a função da abstração em O Capital proviria tão somente da dificuldade em compreender a realidade do sistema produtivo como tal. O método expositivo reduzido à abstração ficaria, deste modo, relegado a uma relação externa e, por isso, estranha ao desenvolvimento lógico interno das categorias. Se a abstração aparece como ponto sempre presente no debate metodológico da dialética de Marx, há uma tendência a reduzir o método expositivo ao método de abstração, sem atentar para os fatores que envolvem a já tão debatida transição dialética abstrato-concreto. Essa tendência resultaria de uma falta de compreensão da natureza expositiva intrínseca à dialética, presente não somente em O Capital, mas na tradição dialética, como em seus mais conhecidos expoentes em Platão e Hegel. A abstração, compreendida como processo de purificação dos elementos perturbadores da análise, não se reduz à dificuldade de apreensão da realidade do sistema, mas se refere muito mais ao intuito de Marx em desenvolver o conceito concreto de capital a partir das condições lógicas de possibilidade do mesmo. A abstração, no interior do método expositivo, deve ser desenvolvida dialeticamente até ser superada, de modo que a possibilidade lógica dá lugar à efetivação do sistema como um todo. O método expositivo (Darstellungsweise) deve abranger, por isso, os níveis de efetividade do conceito de capital, de modo que as leis internas e abstratas ganham corpo e vida. Somente neste sentido se pode compreender a interpenetração entre o método expositivo e a lógica interna do sistema, colocando o método de abstração no seu lugar correto dentro da arquitetônica de O Capital. No intuito de explorar a passagem dialética abstrato-concreto, são esclarecedoras as análises operadas por Rosdolsky em sua obra Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx, quando atenta para a diferença entre o conceito de capital em geral e a pluralidade de capitais. Já estando presente nos Grundrisse, esta separação é fundamental no sentido de colocar uma diferenciação entre as leis imanentes do sistema capitalista e as formas como as mesmas se manifestam. Por isso, antes de Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 51 “compreender as formas de manifestação, primeiro é necessário investigar o que se manifesta nelas” (ROSDOLSKY, 2001, p.51). Segundo Marx, nos Grundrisse, nisto consistiria o erro de grande parte da economia política, principalmente a economia política vulgar, que, se prendendo às representações imediatas do sistema, não compreende que a “competição em geral, essa força locomotiva essencial da economia burguesa, não estabelece suas leis, mas é na verdade seu executor” (MARX, 1993, p.552). Isso se justifica, segundo Marx em O Capital, pelo fato de que “cada capital particular tem de ser considerado apenas como fração do capital global” (MARX, 1988, p.160). Esta concepção resulta da busca de Marx em elaborar uma crítica da economia política de maneira científica. Não basta explorar o sistema capitalista no movimento dos diversos capitais. Uma teoria crítica científica, isto é, que revisa de maneira profunda a própria postura epistemológica da economia política, deve fundamentar-se nos postulados sobre os quais os diversos capitais perfazem seu movimento, pois estes compõem-se de uma multiplicidade de categorias que ocultam as leis universais do sistema, de modo que na esfera superficial da “concorrência aparece, pois, tudo invertido” (Ibid., p.160). É por isso que “uma análise científica da concorrência só é possível depois de se compreender a natureza interna do capital” (MARX, 1988, p.240). Por isso, a passagem do abstrato ao concreto compreende a passagem de condições lógicas de possibilidade para sua efetivação em níveis distintos de efetividade. Entretanto, mesmo a análise científica que escrutina, avalia e identifica os diversos níveis de efetividade do conceito dialético, deve assentar-se numa determinação histórica. Para tanto, em primeiro lugar, as abstrações devem caber a um momento histórico bem definido, pois até as categorias mais abstratas (…), apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinidade desta abstração, igualmente produto de condições históricas, e não possuem validez senão para estas condições e dentro dos limites destas (MARX, 1978, p.120). Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 52 Confundir-se abstração com as determinações que são comuns a todas as formas históricas seria reduzir o método dialético de O Capital a um antropologia da raça humana, o que não é o objetivo de Marx, pois “não se trata se uma abstração arbitrária, mas um abstração que compreende as características específicas que distingue o capital de todas as outras formas de riqueza” (MARX, 1993, p.449). O perigo de uma má compreensão do conceito de abstração pode dar origem a falsas conclusões sobre o método de Marx. Se, então, a forma específica do capital é abstraída, e somente seu conteúdo é enfatizado, como aquilo que é um momento necessário de todo trabalho, então claramente nada é mais fácil que demonstrar que capital é uma condição necessária de toda produção humana. A prova disso procede precisamente pela abstração de todos os aspectos específicos que fazem dele o momento de um estágio histórico específico de desenvolvimento da produção humana (Ibid., p.258). O método de abstração deve conseguir encontrar os momentos essenciais e internos de determinado modo de produção, pois o tipo de abstração que “demonstra que as relações econômicas expressam em todo canto as mesmas determinações simples” consistem em “uma abstração infantil”, já que, criticando Bastiat, chegaríamos ao resultado de que toda relação em seu caráter específico é reduzida a uma abstração e tudo é reduzido à relação não-desenvolvida da troca de mercadoria (…). De acordo com isso, todas as categorias econômicas são somente vários nomes para o que é sempre a mesma relação, e essa crua inabilidade para compreender as verdadeiras distinções é, então, suposta a representar o puro senso comum como tal (Ibid., p.249). De fato, o nível da abstração em que Marx trata do capital em geral demonstra sua posição essencial na medida em que corresponde, também, à chave metodológica para a análise histórica do desenvolvimento dos modos de produção, já que se trata, sobretudo, de compreender que o fundamento do movimento histórico consiste nas relação entre a propriedade dos meios de produção e a força produtiva. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 53 Mas essa abstração deve ser desenvolvida, não podendo ser 'reduzido à relação nãodesenvolvida'. O que na passagem acima de Marx aparece na ordem histórica é verdadeiro também no que concerne à ordem lógica. O abstrato não desenvolvido se reduz a uma compreensão somente representativa do real, contrário ao conhecimento dialético-conceitual. O abstrato desenvolvido ganha o significado de concreto, onde suas possibilidades se efetivaram como identidade do interno e do externo. O concreto, por isso, é um resultado do desenvolvimento a partir do abstrato, que colocou as relações essenciais do sistema produtivo. Neste sentido, são frutíferos os apontamentos de Sweezy quando afirma que, seguindo Hegel, o objeto da abstração em O Capital consiste em “Colocar o essencial em relevo e tornar possível sua análise” (SWEEZY, 1973, p.41), assim também quando afirma que o essencial é a relação entre capital e trabalho assalariado, de modo que “todas as relações sociais exceto as existentes entre capital e trabalho devem ser provisoriamente afastadas, para serem reintroduzidos, uma de cada vez” (Ibid., p.45). Nisso corresponderia o conceito de abstração, não no sentido de “se afastar do mundo real, mas isolar certos aspectos dele para a investigação intensiva” com um “número relativamente pequeno de aspectos da realidade”, tendo, por isso, “um caráter provisório” (Ibid., p.46). Mas então temos várias definições da abstração: aspectos isolados, condições essenciais, assim como a necessidade de ser desenvolvida. A abstração parece, portanto, ser um conceito difícil de ser compreendido, pelo fato de ter vário sentidos, de modo que se tem de relacioná-los uns com os outros. É neste sentido que se opera a análise de Grier, quando analisa o conceito de abstração em Hegel. Grier faz uma distinção de seis sentidos diferentes de abstração na Ciência da Lógica de Hegel: 1) abstração teria o sentido de separar, ou seja, “abstrair é separar, colocar aparte, os elementos daquilo que pertence junto como um tipo de unidade” (GRIER, 1990, p.66); 2) como resultado do primeiro, abstração teria o sentido daquilo que é uma visão unilateral das coisas; 3) novamente como consequência daquilo que é separado e unilateral, “abstração nesse sentido seria qualquer coisa concebida meramente como positiva, faltando a negatividade” (Ibid., p.67), envolvendo claramente as raízes da dialética antiga no conceito de negatividade no diálogo Sofista de Platão; 4) outro Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 54 sentido da abstração “seria identifica-lo com aquilo que é meramente imediato” (Ibid., p.68); 5) um quinto significado do conceito de abstração se encontraria “naquilo que prende o movimento do pensamento, ou interrompe o auto-desenvolvimento do conceito, prevenindo-o da transição” (Ibid., ibidem); 6) por último, “abstração como o sem-conteúdo, o vazio (ou o que é comumente equivalente, o meramente formal)” (Ibid., p.69); Porém, como aponta Errol Harris, em artigo de réplica a Grier: As seis presumíveis definições hegelianas que são colocadas no artigo de Grier apontam todas para a primeira: abstração é primariamente definida como 'colocar aparte' algum elemento parcial do todo concreto (…). As outras definições sugeridas são principalmente exemplificações, ou aplicações da primeira – corolários ou consequências (HARRIS, 1990, p.78). Pensamos que estas indicações sobre o conceito de abstração na dialética hegeliana nos permite iluminar o movimento essencial do método de abstração tal qual se apresenta em O Capital. De fato, como vimos na análise de O Capital, os elementos abstratos consistem naquilo que ainda é vazio (ponto 6), no sentido do que ainda falta ser desenvolvido (ponto 5), tomado, assim, de modo ainda imediato (ponto 4), pois falta a mediação, isto é, a negatividade (ponto 3), sendo unilateral (ponto 2), pelo fato de serem elementos ainda separados da unidade (ponto 1). Neste sentido, parece correto a afirmação de Harris em relação aos apontamentos de Grier. Entretanto, Harris continua: (...) cada parte é em si mesmo um todo provisório, apesar de parcial e provisório, ele tem uma aspiração para desenvolver o que é nele (an sich) meramente implícito, e se tornar uma exemplificação mais adequada do princípio ordenador universal (o Conceito) (Ibid., p.80). Toda categoria na Ciência da Lógica de Hegel é, desta forma, uma definição provisória do absoluto, de modo que em cada estágio do desenvolvimento lógico deve-se espelhar o absoluto, refletir, de algum modo em seu próprio isolamento ou em sua própria particularidade, o princípio da ordem total do conceito como tal. É por Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 55 isso que Harris propõe uma definição menos categórica do conceito de abstração, de modo que devemos olhar pelo ponto de vista dos estágios do desenvolvimento do todo concreto. Seguindo a proposta desta linha de análise, abstrato e concreto tornam-se expressões concomitantes de cada estágio do desenvolvimento, isto é, “abstrato e concreto emerge em cada estágio”, pois “em nenhum passo do desenvolvimento do objeto deve uma categoria (…) vir à tona que não tenha imediatamente emergido daquele estágio e derivado daquele que o precede” (Ibid., p.81). Assim, se cada categoria deve provir de um desenvolvimento lógico daquilo que o precede, este desenvolvimento posterior é a realização das condições lógicas possíveis e, por isso, abstratas daquele a partir do qual se originou. Abstrato e concreto não podem, segundo Harris, serem categorias fixas, delimitadas em si mesmas, não podendo determinados estágios do desenvolvimento dialético serem categoricamente abstratas enquanto outras são categoricamente concretas, só podendo ser termos indicando o grau de completude e integridade da categoria em consideração (qualquer que seja ela). É porque elas fazem isso que figuram repetidamente na exposição do processo dialético, e não como categorias 'oficiais' na série lógica (Ibid., p.82).: Deste modo, tudo é “concreto e abstrato em algum grau” (Ibid., p.80). De fato, este parece ser o procedimento que se apresenta na grande obra marxiana. Vemos em Marx ocorrer assim: o trabalho excedente deu origem à mais-valia, expressão mais concreta da exploração, mas de tal modo que a própria mais-valia é, na esfera da produção, um conceito abstrato, desenvolvendo-se na esfera da circulação a partir do número de rotações que um determinado capital realiza em determinado período; e do mesmo modo dando origem, posteriormente, à forma lucro, desta derivando a forma lucro médio, a partir do que se originam o juro, crédito, renda comercial e renda fundiária. Assim ocorrem com outras categorias, como o preço de custo que deriva de mediações que passam do capital constante e variável através do capital fixo e circulante, até, enfim, chegar ao preço de produção, que sintetiza o Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 56 desenvolvimento da mercadoria e do valor. Vários são os exemplos que podemos citar quanto a isso. Surge, no entanto, na análise de O Capital, um problema no que toca este conceito de abstração proposto por Harris: o próprio Marx, em vários momentos, como vimos, identifica as leis abstratas com aquelas propostas no Livro I, ou seja, as leis da exploração e da acumulação. Deste modo, ao que tudo indica, Marx parece dar um sentido fixo, isto é, categórico à abstração e ao concreto. Isso significa, consequentemente, que Marx estaria colocando a abstração como categoria, e não postulando níveis de abstração. Se seguíssemos esta linha, diríamos que as leis da exploração e da acumulação são, em si, abstratas. Porém, dando continuidade a esta linha, seríamos obrigado a afirmar que: 1) as leis da exploração e da acumulação estão colocadas aparte da unidade; 2) elas são uma visão unilateral do sistema capitalista; 3) ao mesmo tempo, são positivas, isto é, não sofreram o processo de negatividade; 4) são também o meramente imediato; 5) as leis internas interrompem o autodesenvolvimento do conceito; 6) e, por fim, são vazias de conteúdo. Seria incorreto, em nosso ponto de vista, afirmar todas essas características das leis internas da exploração e da acumulação, pois de modo algum as leis internas do capital são vazias, mas, ao contrário, constituem justamento o conteúdo interno que vem à tona na superfície da sociedade. E, assim, este conteúdo não é o meramente imediato na análise científica. Ao mesmo tempo, cremos que seria incorreto afirmar que o conceito de abstração interrompe o auto-desenvolvimento do conceito, já que, como vimos, uma abstração que não se eleva ao desenvolvimento lógico de suas potencialidades internas é definido como uma 'abstração infantil', o que, ao nosso ver, seria correto não somente para Marx, mas para o método dialético como tal, devendo-se diferenciar entre abstração no sentido pernicioso da palavra, daquela abstração dialeticamente correta. Por isso, daqui em diante podemos nos desvencilhar da 5ª característica da abstração. Sabemos, também, que seria incorreto afirmar que Marx fixa certas categorias como absolutamente abstratas, sem consideração do processo no qual ocorrem vários estágios de abstração e concretude das categorias, como vimos acima nos casos da Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 57 passagem da mais-valia para o lucro, deste para o lucro médio, entre outros. Há, de fato, vários estágios de colocação das possibilidades lógicas e de suas respectivas realizações. Assim, a realização de determinadas potencialidades são, ao mesmo tempo, a colocação de outras novas. O trabalho excedente coloca a possibilidade da mais-valia, esta a possibilidade do lucro, sem o qual não há lucro médio, e assim em diante com várias outras categorias. Isso, entretanto, faz surgir uma característica que passou por alto nas análises da abstração em Harris e Grier: as categorias abstratas são, ao mesmo tempo, a colocação das condições lógicas de possibilidade dos desenvolvimentos posteriores. É este o caráter que nos levou a abandonar a característica número 5. O conceito de abstração não pode ser compreendido sem o conceito de possibilidade. A exposição no transcurso lógico contém variados níveis de efetividade, onde a possibilidade se encontra como sua essencialidade, pois cada nível de efetivação do conceito coloca novos pontos a partir dos quais efetivam-se outros níveis conceituais. É verdade, porém, que, se Marx não fixa rigidamente a abstração, diante destas definições de abstração, excetuada a 5ª, temos de flexibilizar as definições tal como apresentamos acima, de modo que os vários sentidos que a abstração carrega no método dialético de O Capital podem ser dirigidas a diferentes determinações do conceito de capital, e não somente relativo às leis da exploração. Com isso, por exemplo, apesar de ser incorreto afirma que as leis da exploração e da acumulação são o imediato, isto seria correto para outro nível da abstração, a saber, a análise da mercadoria, do mesmo modo com a característica de ser a mercadoria ainda uma categoria vazia, o que, entretanto, se modificará no decorrer da exposição. Assim, descartada a 5º característica, as outras cinco são sempre relativas ao nível de desenvolvimento conceitual, não podendo estarem todas presentes sempre em cada estágio deste desenvolvimento. Isso, entretanto, não aparece nas análises de Harris e Grier. Somente Harris parece chegar mais perto disso, na afirmação de que, na ótica do abstrato e concreto, todas as determinações do conceito são relativas ao grau de desenvolvimento. Ele não chega, porém, a conceber que também as variadas características da abstração são relativas, e não estão sempre presentes em conjunto. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 58 Apesar disso, ao nosso ver, as ponderações de Harris e Grier são frutíferas para a compreensão de abstração na dialética, mas não sem ponderações. Tendo isso em mente, cremos que, de fato, postular categorias que são abstratas em si mesmas seria incorrer em um erro do qual Marx não partilha. De fato, as categorias econômicas são, antes, definidas em graus de concretude. As afirmações de Marx que parecem dar a entender uma fixação categórica da abstração seria, assim, um falso problema. A dificuldade consiste em que Marx em pouquíssimos momentos discute seu próprio método, e quando isso ocorre, é somente de modo geral, não adentrando nas profundidades que de fato existem na aplicação do método dialético de O Capital. Seria ingenuidade admitir que o método dialético aplicado por Marx se resume somente aos apontamentos que ele mesmo faz. Como afirma Lênin, a única lógica que Marx nos deixou é a lógica de O Capital, ou seja, não um tratado conceitual puro da dialética, como o fez Hegel, mas o conceito dialético efetivo, real, como exposição da própria vida da matéria. Tendo isso em vista, compete à pesquisa enveredar nos meandros que Marx nos deixou – o que, claramente, não poderia ser realizado neste curto trabalho. As leis da exploração e da acumulação não estão fixadas como momentos abstratos no Livro I, mas, ao contrário, elas surgem constantemente no decorrer da obra. Para vias de exemplo, a exploração e a acumulação retornam em níveis maiores de efetividade na análise da concorrência, o que seria impossível se fossem elas determinações rigidamente abstratas. O ponto nodal da análise de Harris é, por isso, compreender que fixar rigidamente categorias abstratas em si mesmas seria incorrer no erro do conhecimento representativo do entendimento. O conhecimento dialético-conceitual faz o caminho inverso: relativizam-se as determinações rígidas, de modo que as categorias ganham a fluidez do conceito. Já no Posfácio à segunda edição de O Capital, Marx cita um autor que não teria senão definido sua obra segundo a dialética. Diz este autor sobre a obra de Marx: “Para ele, o mais importante é a lei da modificação, e seu desenvolvimento, isto é, a transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações para outra” (MARX, 1988, p.25). Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 59 Ora, é esta fluidez que faltaria ao método de O Capital caso se concebesse a abstração e o concreto como categorias fixas em determinadas dimensões. O importante, portanto, para o método dialético, e que o diferencia em última instância do método do entendimento, é compreender a interpenetração entre abstrato e concreto, entre interno e externo, a identidade de ambos que se perfaz em graus de efetividade do conceito. Por isso é que o foco da análise é 'a transição de uma forma para outra', ou seja, como os elementos que vão sendo apontados adquirem determinações diferentes segundo a função que exercem em cada nível de efetividade. Referências Blibiográficas GRIER, Philip T.. Abstract and Concrete on Hegel´s Logic. In: Essays on Hegel's Logic. George di Giovanni (org.). Albany: State Univ. Of New York, 1990. HARRIS, Errol E.. A Reply to Philip Grier. in: Essays on Hegel's Logic. George di Giovanni (org.). Albany: State Univ. Of New York, 1990. MARX, Karl. O Capital – crítica da economia política. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe - 3ª ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Coleção Os economistas). Indicando Livro seguindo do volume em números romanos. ___________. Grundrisse – Foundations of the Critique of Political Economy. Translated with a Foreword by Martin Nicolaus. London: Penguin Books, 1993. ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Tradução César Benjamin. Rio de Janeiro: EDUERJ; Contraponto, 2001. SWEEZY, Paul M. Teoria do desenvolvimento capitalista. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 60