Livros – Aprender com Manawee - No-IP

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Originalmente publicado em: Notícias Magazine, 4 de Outubro de 2009.
Livros – Aprender com Manawee
Carla Maia de Almeida*
RESUMO
Os animais são o tema mais constante e universal da literatura para crianças. Fazem
coisas que não estão ao alcance das personagens humanas, eliminam estereótipos
raciais e sociais, acolhem com segurança as emoções infantis. Neles reconhecemos
as nossas origens e lembramos essa linguagem ancestral onde o instinto se fazia
ouvir.
Um antigo relato de origem afro-americana fala-nos de um homem chamado
Manawee – e de como Manawee conseguiu casar-se com as duas irmãs que cortejava,
graças à ajuda infalível do seu cão. A história conta-se no best-seller da psicanalista
junguiana Clarissa Pinkola Estés, Mulheres que Correm com os Lobos.
Manawee era um rapaz forte e atraente, mas isso não convencia o pai das raparigas,
que lhe lançou um desafio: teria de adivinhar os nomes delas para obter o «sim». Manawee
manda o seu cão escutar as conversas e regressar com a resposta certa. O cão corre para casa
das irmãs. Umas vezes é distraído por um osso suculento, outras é uma figura ameaçadora
a saltar-lhe ao caminho, mas por fim consegue revelar os nomes ao dono, garantindolhe um casamento feliz e o início de uma família de quatro elementos, canídeo incluído.
Se as duas irmãs, uma mais bonita e outra mais doce, representam a complexidade por
vezes contraditória da psique feminina, Manawee e o seu cão remetem-nos para a dupla
natureza de todo o indivíduo, homem ou mulher: uma natureza humana que tem como
aliada a natureza animal e instintiva, aqui simbolizada pelo cão. Dedicado, persistente e
corajoso, este encarna a confiança de Manawee no poder da intuição. O cão e Manawee
são um só, existindo para se completarem.
*Jornalista «freelancer» e autora de livros infantis.
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Contos étnicos tradicionais como Manawee estão também na origem da presença dos
animais nos livros para crianças, tenham ou não um cunho literário. Com uma diferença
substancial: se outrora estes relatos – que tomaram a forma de contos populares, contos
de fadas, narrativas míticas ou fábulas – eram disseminados oralmente junto de um
público ouvinte de adultos e crianças, com o início da industrialização do livro infantil,
a partir da segunda metade do século XIX, o recurso às personagens animais passa a
ter em vista a criança como destinatário quase exclusivo. Em Cheek by Jawl, Ursula K.
Le Guin, escritora e ensaísta norte-americana consagrada no domínio da fantasia e da
ficção científica, vê nesta mudança de paradigma narrativo a prova de que «as crianças
são vistas como indivíduos inferiores, que ainda não ascenderam ao estádio totalmente
humanizado dos adultos». Dito de outra maneira, estão mais próximas da dupla natureza
encarnada por Manawee e o seu cão.
Os animais na literatura universal
Menos radical, Teresa Colomer, professora e investigadora da Universidade
Autónoma de Barcelona, afirma que as histórias de animais humanizados (ou seja,
decalcados à imagem das pessoas) são o tema mais tradicional e constante da literatura
infantil, o que não é dizer pouco. Em A Formação do Leitor Literário, Colomer localiza
nas antigas fábulas a raiz desta multiplicidade de histórias, acrescentando que no século
XIX se diversificam «as formas e os propósitos da sua utilização, passando da sátira dos
costumes à defesa dos animais (como em Beleza Negra, de A. [Anna] Sewell, 1877) ou
à descrição de diversos modelos de convivência entre protagonistas humanos e animais
(como em O Livro da Selva, 1894-1895, de R. [Rudyard] Kipling).»
Hoje, as livrarias revelam a autoridade dos animais na secção infanto-juvenil, ao
mesmo tempo que a permissão destes para circular noutras estantes é condicionada.
Há notáveis excepções, é certo: Jack London (Presa Branca, O Apelo da Selva), Henry
Williamson (Tarka the Otter), Doris Lessing (Gatos e Mais Gatos), George Orwell (O Triunfo
dos Porcos), Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver), Franz Kafka (A Metamorfose) e
Virginia Woolf (Flush – Uma Biografia) são alguns dos escritores de renome que elegeram
animais como personagens principais, ainda que no caso de Orwell, Swift e Kafka esta
opção tenha como finalidade sustentar uma visão alegórica do mundo, em lugar de
atender-se à caracterização biográfica de criaturas não humanas. Mais recentemente,
Yann Martel conquistou o Booker Prize de 2002 com A Vida de Pi, a saga de um rapaz e
um tigre-de-Bengala em deriva existencial pelo oceano. E Sam Savage escreveu Firmin,
uma história melancólica de resistência e redenção pela literatura, com uma ratazana
devoradora de livros como protagonista.
Alguns destes títulos encontram-se na fronteira entre a literatura juvenil e a
literatura dita «para adultos», sendo de realçar a sua representação no Plano Nacional
de Leitura – casos de Jack London, Jonathan Swift ou Yann Martel. É como se a presença
dos animais, enquanto personagens dotadas de autonomia, baralhasse os códigos de
classificação etária e desafiasse o cânone literário. Peter Hunt, professor de Literatura
para Crianças na Universidade de Cardiff, um dos mais conceituados estudiosos desta
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área (a Gulbenkian/Casa da Leitura trouxe-o a Portugal em Janeiro, para o congresso
«Formar Leitores para Ler o Mundo»), sintetiza a evidência do seu estatuto ambivalente:
«O facto de serem “sobre animais” tende a deixar estes livros num limbo entre o mercado
[editorial] para adultos e o mercado para crianças.»
«O uso de personagens animais nos livros para crianças pode ter origem no conto
popular, ou na suposição de que o leitor em desenvolvimento está de alguma forma mais
próximo dos animais, ou de que estes estão mais próximos dele», escreve, em Children’s
Literature [NR: tradução nossa]. Certo é que esta proliferação não tem equivalente real nas
actuais sociedades industrializadas; ou terá, mas num sentido perversamente enviesado.
A julgar pelo que se vê (e lê), somos levados a acreditar que basta levantar uma pedra
da calçada para ver saltar um coelho, que os ursos fazem parte da vizinhança ou que o
destino das galinhas é viverem felizes para sempre. Exagerando, diríamos que as secções
infantis das livrarias quase se tornaram uma reserva ecológica para animais domésticos e
selvagens, representando muitas vezes uma primeira (e até única) forma de contacto das
crianças com este lado da Natureza.
Um mundo repleto de possibilidades
«Para a criança, o universo animal preenche um espaço considerável, suscitando,
às vezes em simultâneo, curiosidade, medo, atracção e rejeição.» É a opinião de Ana
Margarida Ramos, professora auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro, onde lecciona Literatura Portuguesa e Literatura para a Infância.
Respondendo à nm por e-mail, considera que a atracção e empatia espontâneas que
as crianças demonstram em relação aos animais são extensivas à «espécie humana em
geral». Hesita em remeter os livros «para adultos» atravessados por esta temática para
o limbo de mercado de que fala Peter Hunt: «Tenho dificuldade em proceder a esse tipo
de catalogações. Pense-se no sucesso do cão Marley [Marley & Eu, de John Grogan], por
exemplo; ou, à escala portuguesa e com a qualidade literária que não tem o best-seller
americano, na obra de Manuel Alegre, Cão Como Nós. Também me ocorrem exemplos de
algumas crónicas de António Lobo Antunes ou da presença de animais em romances – o
cão do Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, por exemplo.»
Voltando aos livros para crianças, Ana Margarida Ramos é mais peremptória: «Pela
sua multiplicidade de formas, tamanhos, aparências, habitats, os animais configuram um
mundo repleto de possibilidades, surgindo, aos olhos da criança, como extraordinárias
“máquinas” insufladas de vida própria.» Literárias ou didácticas, é impossível resumir
a diversidade de aproximações ao tema, mas destacam-se duas tendências claras: ou
os animais surgem personificados, interagindo com outros animais, à semelhança dos
humanos; ou decalcam-se sobre uma construção mais realista, mantendo os traços
psicológicos e comportamentais da sua espécie – como a lealdade, o afecto ou a astúcia.
Os animais do bosque de Joanica Puff (A. A. Milne) ou de O Vento nos Salgueiros (Kenneth
Grahame), por um lado, e o cavalo de Beleza Negra (Anna Sewell), por outro, são exemplos
de clássicos que ilustram as duas tendências continuadas por autores contemporâneos.
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Com maior ou menor talento literário, as histórias com animais humanizados servem
também para transmitir valores ou problematizar questões sociais, como o racismo ou a
ecologia. Muitas vezes, os conteúdos são inspirados pela simbólica associada ao animal:
a sabedoria do mocho, a falsidade do crocodilo, a paciência da aranha, o sacrifício do
pelicano, a nobreza do leão… «O simbolismo de algumas espécies ou as preferências
pessoais dos autores por algumas delas tornam-nas elementos de referência e modelos
de comportamento, veiculando, de forma mais ou menos implícita, determinadas ideias»,
sublinha Ana Margarida Ramos. «Pensemos, por exemplo, na trilogia de Álvaro Magalhães
que tem lugar na Mata dos Medos, nos contos para crianças de José Eduardo Agualusa ou
no elefante cor-de-rosa da Luísa Dacosta, entre muitos outros.»
Um espelho para os dilemas infantis
Todo o universo literário reflecte a sua época, e também aqui a representação dos
animais tem evoluído a par e passo. O célebre episódio em que Tom Sawyer dá uma
colherada de tónico – provavelmente à base de cocaína – ao gato da tia Polly faz parte das
«maldades» toleráveis no final do século XIX, algo estranhas à luz da actual consciência
ecológica em que os animais estão incluídos. «É natural que a literatura espelhe essa
transformação que foi ocorrendo, na qual a Natureza deixou de ser vista como uma
espécie de mina inesgotável de recursos que o homem explorava em benefício próprio
e passou a ser fonte de preocupações e cuidados, promovendo-se a sua defesa contra as
agressões», diz Ana Margarida Ramos.
Constata-se que o interesse pelas histórias de animais humanizados decresce com
a idade – a partir da faixa etária dos oito/dez anos, ainda segundo o estudo de Teresa
Colomer. Nos livros destinados à primeira infância, até aos três anos, os animais são figuras
simples, coloridas e imediatamente reconhecíveis. Utilizam-se para identificar aspectos
da realidade e explicar conceitos mais ou menos abstractos, como os jogos de opostos:
quente/frio, dentro/fora, meu/teu e outros. Já na segunda infância, dos três até aos seis ou
sete anos, com o desenvolvimento da personalidade e da linguagem, as crianças revelam
um interesse crescente por histórias com enredos, bem como por emoções e situações
que lhes são familiares, vendo nos animais modelos de projecção que lhes proporcionam
respostas seguras num mundo feito por adultos.
«Algumas leituras, e não apenas as de influência psicanalítica, continuam a sublinhar
que os animais ocupam um lugar de destaque na vida infantil, permitindo projecções
de dilemas existenciais, além de oferecerem exemplos de identificação e formas de
reconhecimento», conclui Ana Margarida Ramos. «Enquanto uma espécie de espelho da
criança, no qual ela se vê reflectida, o animal representa o instinto e a sabedoria natural
e intuitiva, valores que, nos dias de hoje, parecem cada vez mais inalcançáveis.»
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