O ATLAS LINGÜÍSTICO DO MARANHÃO E OS ESTUDOS DIALETAIS NO ESTADO Maria de Fátima SOPAS ROCHA – UFMA Os estudos dialetais, iniciados no Brasil na década de vinte do século passado, com os trabalhos realizados por Amadeu Amaral (O dialeto caipira, 1929) e Antenor Nascentes (O linguajar carioca, 1922) confirmam as estreitas relações estabelecidas entre língua/gem e cultura. Câmara Júnior (1972, p. 273) afirma que “A língua é parte da cultura. É, porém, parte autônoma que se opõe ao resto da cultura. Tem não obstante uma individualidade própria que deve ser estudada em si”. Lévi-Strauss (1975, p. 86) comenta a complexidade das relações entre língua e cultura, lembrando que é possível, também, tratar a linguagem como um produto da cultura: uma língua em uso numa sociedade, reflete a cultura geral de uma população. Mas num outro sentido, a linguagem é parte da cultura: constitui um de seus elementos, dentre outros. Recordemos Tyler, para quem a cultura é um conjunto complexo que compreende as ferramentas, as instituições, as crenças, os costumes e também, bem entendido, a língua. Dessa forma, o estudo da realidade dialetal maranhense requer o conhecimento da história e do processo de colonização do Maranhão, que envolvem elementos culturais configurados no próprio processo de colonização do Brasil. No Maranhão, como no Brasil, formou-se, em decorrência desse processo, uma sociedade mista composta por índios, brancos e negros, o que terá reflexos na história interna e externa do português falado no Maranhão. Segundo Meireles(2001, p. 49), durante o século XVI o Maranhão foi apenas “pasto de flibusteiros europeus, notadamente ingleses, franceses e holandeses” Antes do estabelecimento dos portugueses, ainda no final do século XVI, os franceses encontraram uma população de aproximadamente dez mil índios, distribuídos por 27 aldeias. Eram essencialmente marañaguaras, de origem tupinambá, que vinham progressivamente ocupando regiões mais ao norte, fugindo da ocupação portuguesa no sul do país. O processo de colonização do Maranhão, quando se integra o elemento branco de forma mais efetiva, tem início em 1615, após a expulsão dos franceses, e apresenta quatro momentos principais: - o Estado Colonial do Maranhão – que compreendia mais ou menos as regiões que hoje constituem os Estados federados do Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Maranhão, Piauí e Ceará – foi criado em 1621, estando sujeito diretamente à metrópole; - em 1652, a configuração geopolítica do Estado é alterada, sendo estabelecidas em seu lugar duas capitanias gerais – São Luís e Grão-Pará; - em 1654, essa configuração é novamente alterada, constituindo-se, então, dois Estados - o do Maranhão e o do Grão-Pará; - em 1753, o Estado do Grão-Pará e Maranhão foi dividido em quatro Estados – Maranhão, Grão-Pará, São José do Rio Negro e São José do Piauí; - com a transferência da família real para o Brasil (1808), com a autonomia do Piauí (1811) e com a elevação da América Portuguesa a Reino Unido de Portugal e Algarves (1815), o Maranhão perde qualquer hegemonia ou jurisdição sobre a larga extensão territorial que abrangera quando fora o Estado do Maranhão e Grão-Pará, perde a autonomia que mantivera, passando, assim, da condição de Estado Colonial à de Província, subordinada à Corte estabelecida no Rio de Janeiro. ( MEIRELES, 2001, p. 64-180). Sobre a presença de portugueses no Maranhão, merece registro a vinda de 200 casais de açorianos – casais que devem ser entendidos aqui como famílias – que fugiam às dificuldades climáticas e aos surtos de peste que assolavam as Ilhas que constituem esse arquipélago atlântico e que, tidos como ótimos lavradores, estabelecidos no Maranhão contribuiriam “para a melhor e mais pronta colonização da terra” (MEIRELES, 2001, p. 63). A imigração açoriana continuou nos dois séculos seguintes e marcou fortemente a cultura local. A partir do 1661, aumenta progressivamente o fluxo de negros africanos que vão suprir a necessidade de mão-de-obra para o cultivo da cana de açúcar e de algodão. Meireles (apud RAMOS et al., 2005, p. 257) afirma que no final do século XVIII, dos 78.860 habitantes estimados, no Maranhão, a maioria é de negros, que representam 40,28% do total da população; os mestiços somam 23,53% e apenas 36,19% podem ser considerados brancos. Prado Júnior (1957, p. 144), a esse respeito, comenta que: Com o algodão vieram os escravos africanos – ou vice-versa, preferivelmente -; modifica-se a feição étnica da região, até então composta na sua quase totalidade, salvo a minoria de colonos brancos, de índios e seus derivados mestiços. O algodão, apesar de branco, tornará preto o Maranhão. Outra particularidade da composição da população maranhense é a chegada, a partir do final do século XIX, de sírios e libaneses, cuja presença se percebe claramente, por exemplo, em hábitos culturais como a culinária maranhense, que incorporou pratos árabes ao seu cotidiano. A formação histórico-social e cultural do Maranhão certamente deixou marcas na constituição do português falado no Maranhão. Uma das primeiras observações, de que se tem conhecimento, sobre a realidade lingüística maranhense, data do século XIX, quando Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres Maranhão escreve sua obra, Poranduba Maranhense ou Relação Histórica da Província do Maranhão. A obra, cujo título foi tomado do tupi para fazer referência aos objetivos da obra [poranduba- do tupi = pergunta, notícia, informação], compreende 33 capítulos, dos quais os seis últimos apresentam informações sobre a língua usada no Maranhão naquela época, como o léxico relativo aos costumes (cap. 29), plantas (cap. 30), animais (cap. 31), aves e insetos (cap. 32) e peixes e anfíbios dos rios e lagos (cap. 33). Sobre a língua falada no Maranhão, registra a Poranduba: Prezentemente a língua corrente no paiz é a portugueza, os instruídos a falam muito bem; porém entre os rusticos ainda corre um certo dialecto, que emquanto a mim, é o resultado da mistura de línguas das diversas nações, que tem abitado o Maranhão; elles a falam com um certo metal de voz, que o faz muito agradável ao ouvido. (MARANHÃO, 1946, p. 148). A esse respeito, vale registrar que esse certo dialecto, mistura de línguas, mencionado pelo Frei Francisco, ratifica a posição do Maranhão como um dos centros brasileiros de maior densidade de falares indígenas no século XVII (cf. Elia, 1979), contribuindo, portanto, para o uso corrente da língua geral, na Província, até meados do século XVIII (RAMOS et al., 2005, p. 258). O delineamento da conformação dialetal do Maranhão é um antigo desejo de estudiosos que, enquanto fotógrafos da língua, trabalharam em diferentes perspectivas. Conhecem-se, principalmente, estudos enfocando diferenças léxico-semânticas. Um dos primeiros a registrar particularidades regionais do léxico foi Leonardo Mota, em apêndice designado como “Linguagem Popular”, do livro Sertão Alegre, de 1928 (neste trabalho citado pela edição de 2002). O livro visa a registrar textos de literatura oral de cantadores do Nordeste. No apêndice, o autor elabora um vocabulário de palavras e expressões populares nordestinas, registrando e exemplificando seu significado, apresentado variantes, outros significados e, quando possível, a região ou regiões em que são usados. Neste apêndice não há registro de nenhuma palavra ou expressão identificada como especificamente maranhense, embora muitas possam ser reconhecidas como de uso freqüente no Estado. No que diz respeito ao Maranhão, no entanto, vale lembrar o registro feito pelo autor, no corpo do livro, da curiosa designação do maranhense tal como é conhecido no Piauí: “O piauiense chama o maranhense de papa arroz. Este, em represália, chama o piauiense de capa-garrote e, sobretudo de espiga.” (MOTA, 2002, p. 172). Em 1931, um outro trabalho, concebido como um estudo da história, da geografia, dos recursos naturais e da fauna do Maranhão e dos tipos e costumes dos maranhenses, registra alguns termos peculiares, fazendo considerações de ordem fonética. O autor afirma considerar que “A língua é um dos elementos que contribuem para a caracterização dum povo, e por isso nunca deve ser desprezada por quem se preocupa com observações demológicas.” (ABREU, 1931, p. 229). O autor registra ainda: No Maranhão fui encontrar vários termos que nunca tinha ouvido, noutros Estados, com a significação dada ali. Colhi alguns que me pareceram dignos de registros [...] São exemplos: praga, toá, pira, tresidella {...} frito, gorgolô ou mingongo, pipóca, terecô, etc. (ABREU, 1931, p. 229-230). Muitos dos termos registrados, ainda hoje conhecidos como marcas da cultura e do falar maranhense, são considerados pelo autor como exclusivamente maranhenses embora admita que outros possam ser encontrados em diferentes regiões nordestinas [...] como tresidella (núcleo povoado que está do outro lado do rio, bairro de gente de menos recurso, sem importância comercial) e tiquira (cachaça de mandioca) e outros que pertencem não só à linguagem maranhense, mas também à linguagem de outras regiões brasileiras como fracateia (fraqueja, não resiste) usado também no Piauí, e quitanda (armazém, venda)) usado no sul para designar o estabelecimento que vende legumes e aves. (RAMOS et al., 2005, 260). Na década de 50 do século passado, Domingos Vieira Filho, pesquisador e folclorista, elabora um trabalho intitulado A linguagem popular do Maranhão (1953), que trata especificamente do registro do falar maranhense, com mais de mil e cem vocábulos coletados e comentados. Este trabalho é, possivelmente, o primeiro registro sistemático do português falado no Maranhão. O autor explica que Muitos dos termos arrolados neste vocabulário estão, hoje, nos dicionários, com as honras de cidadania na língua portuguesa do Brasil. Muitos há, entretanto, que só têm curso aqui e de tal modo se acham integrados no linguajar corrente que não há como evitá-los ou substituí-los por outros de feição mais erudita. (VIEIRA FILHO, 1979, p. 9). Vieira Filho registra o termo, identifica a que tipo de registro pertence, quando necessário, elenca sinônimos, explica o significado e busca complementar as informações, com abonações identificadas. Registra, por exemplo, BAJUGAR – Jogar; lançar; atirar. Alt. de bajogar. BALADEIRA – Estilingue; bodoque. Aparelho que consiste em duas tiras de borracha cujas pontas são amarradas em uma forquilha e em um pedaço de couro, onde se coloca a pedra que se deseja lançar. Abon. “...bem como o uso de baladeiras tendo como alvo as lâmpadas pública” in “ Jornal Pequeno”, ed. De 14 de setembro de 1955, S. Luís. A baladeira é a setra, funda ou atiradeira do sul. [...] PUNGA – Umbigada violenta e lasciva que homens e mulheres se aplicam mutuamente na dansa (sic.) do tambor-de-crioula. Abon. “Com requebros a todos assombro Voam lenços, ocultam-me o ombro, Entre palmas, aplausos, furor!.. Mas se alguém ousa dar-me uma punga, O feitor de ciúmes resmunga Pega a taca, desmancha o tambor!”. Trajano Galvão, “A Crioula”, in “Parnaso Maranhense”. [...] QUALHIRA – (chulo) – Homossexual masculino. Alt. qualira. Abon. “...é o estampido acompanhado do soco da coronha nos ombro, seu ´qualhira´!” Nascimento Morais Filho, op. cit., 144. (VIEIRA FILHO, 1079, p. 15). Nos anos setenta e oitenta do século passado, um novo momento se inicia nos estudos lingüísticos sobre o português falado no Maranhão, quando foram realizados estudos acadêmicos sistemáticos sobre os falares maranhenses, principalmente por Ramiro Corrêa Azevedo, professor da Universidade Federal do Maranhão. Estes estudos enfocaram diferenças e coincidências fonético-fonológicas, morfossintáticas e prosódicas. O professor Ramiro Azevedo, com base nas pesquisas realizadas para o trabalho O falar são-luisense (1973), propõe uma divisão prévia do Maranhão em zonas lingüísticas: Zona da Ilha de São Luís, Zona da Baixada, Zona Litorânea, Zona dos Cocais, Zona dos Planaltos Meridionais e Zona Limítrofe com o Pará. Em trabalho posterior, Áreas Lingüísticas do Maranhão (1976), realizado com a colaboração do antropólogo Olavo Correia Lima e do professor José Ribeiro de Sá Vale, Azevedo propõe uma nova divisão, por áreas: Área de São Luís, Área Litorânea, Área da Baixada, Área dos Cocais, Área do Baixo Sertão e Área Gurupiana. Em seus trabalhos, Azevedo defende a caracterização do falar de São Luís como um falar nordestino e a influência de outros falares nordestinos em regiões maranhenses, como o paraense no litoral ocidental e na zona Gurupiana; do piauiense no litoral oriental; dos falares nordestinos nas zonas dos Cocais e do Baixo-Sertão. Em 1980, Azevedo publica resultados de pesquisas antropolingüísticas realizadas com a colaboração de Elenice Bezerra Melo e Maria do Socorro Monteiro Vieira, na comunidade da Raposa, atualmente um dos municípios da Ilha de São Luís, onde se registra uma forte presença de migrantes, oriundos principalmente do Ceará e do Piauí, mas também de outra regiões do Maranhão, como Tutóia e Barreirinhas, e cujas principais atividades são a pesca e as rendas artesanais. Outro trabalho realizado pelos mesmos pesquisadores, O falar da zona dos Cocais (1986), classificado como um trabalho de dialetologia rural, identifica a proximidade com outros falares nordestinos e ainda “[...] surpreendentes estruturas lingüísticas mais ligadas a uma língua arcaica.” (MELO et al., 1986, p. 53). Azevedo publica ainda trabalhos antropolingüísticos sobre a presença africana no falar maranhense, nos títulos: Isolados negros no Maranhão (em parceria co Olavo Correia Lima, 1980); Antropolingüística: Bom Jesus (1981), Uma experiência em comunidades negras rurais (1982); e Etnografia de uma fala rural negra: Itapecuru (1984). Também nesses estudos o autor identifica a presença de marcas nordestinas e observa uma fraseologia e um léxico algo recuado no tempo. Estes trabalhos marcam uma nova época nos estudos dialetais maranhenses, por sua sistematicidade e preocupação com a fundamentação científica, mas conhecem-se ainda outros estudos, em geral vocabulários, como o Vocabulário de quatro dialetos indígenas do Maranhão: guajajara, canela, urubu e guajá de Olímpio Cruz (1972); Bumba-meu-boi no Maranhão de Américo Azevedo Neto (1983) e Pequeno vocabulário popular do Maranhão de José Raimundo Gonçalves ( s/d). Todos estes trabalhos vêm contribuindo para um melhor conhecimento da realidade lingüística do Maranhão, mas só recentemente, em 2000, foi dado início a um projeto de pesquisa – o Atlas Lingüístico do Maranhão-ALiMA – que objetiva levantar dados em todo o Estado, possibilitando assim concretizar antigos sonhos de conhecimento profundo do português falado no Maranhão. REFERÊNCIAS ABREU, S. F. Na terra das palmeiras. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráphica, 1931. AZEVEDO NETO, A. Bumba-meu-boi no Maranhão. 2.ed. São Luís: Alumar, 1997. AZEVEDO, R. C.; M. do S. VIEIRA, M.; E. B MELO. Antropolingüística: Raposa. São Luís: SIOGE, 1980. AZEVEDO, R. C. Antropolingüística: Bom Jesus. São Paulo, Ciência e cultura, n. 33, v. 12. p. 1612-1615, dez, 1981. _____. Áreas lingüísticas do Maranhão. Littera, Rio de Janeiro, p. 103-112. jan./jun, 1976. _____. Etnografia de uma fala negra rural: Itapecuru. São Paulo, Ciência e cultura, n. 36, v. 5. p. 806-814, mai, 1994. _____. 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