DEFICIÊNCIA MENTAL OU INTELECTUAL? IMPLICAÇÕES NO USO DAS NOMENCLATURAS NASCIMENTO, Suzi Rosana Maciel Barreto do1 - UNIOESTE SZMANSKI, Maria Lidia Sica2 - UNIOESTE Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O texto tem como foco analisar o que está posto culturalmente, quando se utiliza nomenclaturas como: deficiência mental e deficiência intelectual, ao referir-se ao desenvolvimento da pessoa com deficiência em seu processo de aprendizagem. Trata-se do que pode ser mensurável, como resultados de testes de QI, ou leva-se em conta a possibilidade de superação das limitações apresentadas, através de recursos e práticas diversificadas? Este foi o objetivo da investigação do caso apresentado: “o desenvolvimento escolar de Ramon”. A partir da perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural e suas contribuições para a organização do processo educativo, é possível enveredar por caminhos que levem a uma compreensão ampla do que seja o desenvolvimento global de uma pessoa com deficiência mental e porque este termo evoluiu para o termo “intelectual”. Para se chegar a esta discussão foi necessário o aporte teórico referente à deficiência mental e às práticas pedagógicas, inclusive aquelas referentes ao Atendimento Educacional Especializado para a Deficiência Mental, documento oficial, utilizado pelas práticas inclusivas nas escolas públicas brasileiras e nos diferentes níveis de ensino. No diálogo com o pensamento vygotskiano, foram encontrados subsídios necessários para ir além do desenvolvimento intelectual já apresentado pela pessoa, compreendendo suas possibilidades de ampliação na relação com o ambiente cultural no qual esta pessoa insere-se, e dar a devida atenção àqueles que são os seus pares neste ambiente. Só a partir desta abordagem histórico-cultural, acreditase ser possível investigar o sujeito e proporcionar-lhe a liberdade para ser ativo na apropriação do conhecimento e para se relacionar com outras pessoas em idades e condições de aprendizagem diferenciadas. 1 Aluna do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação/PPGE (UNIOESTE/Cascavel). Graduada em Pedagogia (UERJ). Especialista em Educação Especial Inclusiva (Universidade Gama Filho-RJ) e em Educação e Reeducação Psicomotora (UERJ). Membro do Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Ação Docente (GPAADUNIOESTE). E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP e Pós-doutora em Psicologia, Desenvolvimento e Aprendizagem (UNICAMP). Líder do Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Ação Docente (GPAADUNIOESTE). P. Professora Associada do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: [email protected] 15674 Palavras-chave: Deficiência mental/intelectual. Processos de ensino e processos de aprendizagem. Ensino fundamental. Formação de professores. Introdução Compreendendo a deficiência mental A Organização Mundial de Saúde (OMS -1980) propôs três níveis para esclarecer as deficiências, a saber: deficiência, incapacidade e desvantagem social. Já em 2001, esta proposta foi revista e a pessoa com deficiência passou a ser vista com funcionalidade global, com relação aos fatores contextuais e do meio, representando assim um rompimento com o isolamento, pois, essa pessoa sendo capaz de se relacionar com fatores externos e consigo também, se relaciona com as demais pessoas. A Convenção de Guatemala, que ocorreu em 1999, internalizada à Constituição Brasileira, através do Decreto 3.956/2001, no seu artigo 1º, definiu deficiência como uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. Essa definição contribuiu para que a deficiência fosse vista como uma situação, permanente ou transitória, que merece atenção da sociedade, para que os sujeitos nela envolvidos não sejam prejudicados ao exercerem sua cidadania. Esta é uma questão de organização social, respaldada pela legislação brasileira. Políticas públicas garantem o acesso de todas as crianças à escola. Mas apesar disso, nem todas as crianças chegam à aprendizagem de fato. Ao mesmo tempo em que a escola inclui, tentando facilitar o acesso em seu espaço físico, tem um longo caminho a percorrer para vencer o fracasso na escolarização de alunos com limitações, principalmente a mental. A deficiência mental é um verdadeiro impasse para o ensino na escola regular. É difícil diagnosticá-la, e seu conceito está sempre sendo revisado (BRASIL, 2007, p.14). A medida do coeficiente de inteligência (QI), por exemplo, foi utilizada durante muitos anos como único parâmetro para definição dos casos. Entretanto, o próprio Código Internacional de Doenças (CID 10), desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde, ao especificar o Retardo Mental (F70-79), propõe uma definição ainda baseada no coeficiente de inteligência (QI), classificando-o entre leve, 15675 moderado e profundo, conforme o comprometimento. A Organização Mundial de Saúde, também inclui vários outros sintomas de manifestações dessa deficiência, como: a [...] dificuldade do aprendizado e comprometimento do comportamento, o que coincide com outros diagnósticos de áreas diferentes. Na definição médica, deficiência mental envolve, além dos componentes genéticos, os fatores ambientais, preservando o conceito de QI. Assim: “O conceito de deficiência mental é fundamentado no déficit de inteligência, abrangendo variadas causas pré, peri e pós-natais. Entretanto, a variação da inteligência entre os componentes de uma população não depende somente de seu genótipo, mas também das diferenças ambientais” (DIAMENT, 2006, p.417). Nas perspectivas de deficiência mental que tomam como base o quociente de inteligência (QI), considera-se o valor inferior a 70, inteligência média apresentada pela população, conforme padronizado em testes psicométricos ou como critério para categorizar uma defasagem cognitiva. Ou seja, segundo o Atendimento Educacional Especializado de Deficiência Mental (BRASIL, 2007, p. 15), o número de alunos categorizados como deficientes mentais foi ampliado enormemente, abrangendo todos aqueles que não demonstram bom aproveitamento escolar e com dificuldades de seguir as normas disciplinares da escola. O aparecimento de novas terminologias, como as “necessidades educacionais especiais”, aumentaram a confusão entre casos de deficiência mental e outros que apenas apresentam problemas na aprendizagem, por motivos que muitas vezes são devidos às próprias práticas escolares. QI: Critério Quantitativo da Deficiência Mental A American Association on Mental Retardation (AAMR, 1992), em manuais anteriores, que foram sempre sendo revisados entre 1933 e 1992, recomendava a medida de QI como critério quantitativo da deficiência mental, considerando como ponto delimitador o valor de QI 70-75. Essa compreensão da AAMR influenciou sistemas que especificam o retardo mental como o DSM-IV e o CID-10 que mantiveram o QI como critério, embora indo além. Para Luckasson et al (1992, p. 5), 15676 Retardo mental é o funcionamento intelectual significativamente abaixo da média, acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo, em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação, autocuidado, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, autossuficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança. O início deve ocorrer antes dos dezoito anos de idade. Os autores do DSM-IV categorizam a deficiência mental a partir dos seguintes critérios: a) limitações do funcionamento intelectual; b) limitações nas habilidades adaptativas; c) idade de início das manifestações ou sinais da deficiência. Como o visto, a partir das referências das limitações funcionais, adaptativas e idade da manifestação da deficiência mental, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-IV) adota a classificação categorial da deficiência mental. Estabelecem-se categorias descritivas com base em sintomas e comportamentos, agrupando-os em síndromes ou transtornos (não necessariamente mentais). E a do retardo mental situa-se como uma dessas categorias ou sintomas, não significando sua classificação um transtorno específico, pois só entra como transtorno mental quando não se encaixa em outras síndromes. O sistema DSM-IV continua adotando uma classificação de deficiência mental proposta pelo manual da AAMR de 1959, definindo as seguintes categorias: a) F79.9 - 317 - Retardo mental leve (nível de QI 50-55 até aproximadamente 70). Este grupo constitui o maior segmento (cerca de 85%) dos indivíduos com o transtorno e em seu conjunto, os indivíduos com este nível de retardo mental desenvolvem habilidades sociais, de comunicação e apresentam o mínimo de prejuízo nas áreas sensório-motoras; b) F71.9 - 318.0 - Retardo mental moderado (nível de QI 35-40 até 50-55). Este grupo constitui cerca de 10% da população de indivíduos que apresentam o retardo mental. Com este nível moderado, estes indivíduos adquirem habilidades de comunicação na infância e podem ser beneficiados por treinamento profissional; c) F72.9 - 318.1- Retardo mental severo (nível de QI de 20-25 até 35-40). Este grupo constitui 3-4% dos indivíduos com retardo mental, os quais adquirem pouca ou nenhuma fala comunicativa durante os primeiros anos da infância. Porém, na idade escolar aprendem a falar e se treinados, adquirem habilidades de higiene. 15677 Quanto à aprendizagem, se familiarizam com o alfabeto, contagem simples e podem também reconhecer algumas palavras fundamentais à sobrevivência; d) 73.9 - 318.2 - Retardo mental profundo (nível de QI abaixo de 20 ou 25). Este grupo constitui 1-2% dos indivíduos com retardo mental. Já nos primeiros anos da infância, aparecem prejuízos no funcionamento sensório-motor destes indivíduos, o que implica em uma necessidade de apoio individualizado, ou seja, é necessário que outra pessoa se responsabilize por seus cuidados e que haja treinamento supervisionado para que possam executar tarefas simples como habilidades de higiene e comunicação. Este mesmo sistema, DSM-IV, acrescenta uma categoria: F79.9 - 319 - (retardo mental de gravidade inespecificada) aplicando-a em ocasiões em que as condições deficitárias da pessoa não permitem mensuração da inteligência e quando existe um julgamento clínico de funcionamento intelectual significativamente abaixo da média. Em geral, quanto menor a idade, mais difícil é a avaliação da presença de Retardo Mental, exceto nos casos com prejuízo profundo. Contudo, desde 1992, a Associação Americana de Retardo Mental (AAMR, 1992), desaconselha a utilização dessas categorias de retardo mental. Em seu lugar, recomenda uma categorização dirigida à intensidade das necessidades de apoio, como descritos na concepção multifatorial da deficiência mental. Em 2002, a Associação Americana de Retardo Mental (AAMR, 2002), propôs um modelo teórico, representado pela Figura 1, que aponta para a questão da deficiência mental, não apenas em seu sentido etiológico, mas ressalta uma relação dinâmica entre o funcionamento do indivíduo, os apoios de que este dispõe e cinco dimensões a serem consideradas no seu desenvolvimento, a saber: a) Dimensão I – Habilidades intelectuais; b) Dimensão II – Comportamento adaptativo (habilidades conceituais, sociais e práticas de vida diária). c) Dimensão III – Participação, interações e papéis sociais d) Dimensão IV – Saúde (saúde física, saúde mental, etiologia). e) Dimensão V – Contexto (inserção ambiental e cultural). 15678 Figura 1- Modelo Teórico de Deficiência Mental Fonte: Associação Americana de Retardo Mental (2002, p. 10). A Classificação Internacional de Doenças (CID-10), também consiste num sistema categorial de descrições diagnósticas com base na organização de síndromes. Assim como o DSM-IV declara-se um modelo ateórico, isto é, mesmo existindo um padrão para a definição da doença, de natureza organicista, no caso da deficiência mental, os autores da CID- 10 admitem a necessidade de um sistema mais amplo e específico para esta deficiência. Proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF, 2001) É um instrumento de classificação utilizado como complemento ao sistema CID-10. Nesse ponto, vai além da visão especificamente médica, de base etiológica, para incluir a perspectiva sócio ambiental, adotando, assim como o Sistema AAMR 2002, o conceito de funcionalidade, como um importante aporte para a classificação da doença. Lançando mão do conceito de funcionalidade, a CIF se organiza em duas partes relacionadas com os componentes (Corpo e Ambiente). Desta forma: Parte 1: Relacionada ao Corpo: 15679 a) Funções do corpo e estruturas do corpo – referindo-se às funções fisiológicas dos sistemas corporais (inclusive as funções mentais), bem como suas partes estruturais ou anatômicas, tais como órgãos e membros. b) Atividades e participação. c) Quatro construtos estão relacionados à Parte 1: mudanças na função e na estrutura do corpo, capacidade e desempenho. Parte 2: Relacionada ao Ambiente a) Fatores ambientais. b) Fatores pessoais. c) Um construto está associado à Parte 2: facilitadores ou barreiras existentes nos fatores ambientais. d) Quanto aos problemas que a deficiência mental pode acarretar à pessoa, podem ser observados os seguintes aspectos: a. Em sua capacidade de realizar, por impedimentos na funcionalidade. b. Em sua habilidade de realizar, devido a limitações na atividade de um modo geral. c. Em suas oportunidades de funcionar no meio físico e social, devido a restrições de participação. Além de fatores pessoais, a CIF abrange importantes domínios contextuais do convívio humano: o lar, a família, a educação, o trabalho e a vida social. Daí a importância de se considerar na deficiência mental, não apenas o corpo, mas relacioná-lo ao ambiente e à vida social da pessoa. e) A definição de deficiência mental segue convergente nos diversos sistemas de classificação internacionais. A AAMR tem sido referência para os demais sistemas em relação ao diagnóstico e classificação da deficiência mental, porque a sua última versão/2002 foi posterior à publicação do DSM-IV e da CID-10. Os sistemas 2002 da AAMR, como o CIF, apresentam a perspectiva funcionalista, ecológica e multidimensional. Para o entendimento da deficiência mental, é necessário que os profissionais que lidam com esse conceito, atentem pra a relação entre o Sistema AAMR/2002 e a CIF, porque ambos 15680 oferecem um referencial teórico importante para o entendimento desta deficiência e juntos constituem instrumentos necessários para o seu diagnóstico. Smith (2002, p.62) pontua uma particularidade subjacente aos sistemas de classificação da deficiência mental. Trata-se do “pensamento tipológico”, segundo o qual certos grupos podem ser organizados com base em: características compartilhadas, homogêneas, obscurecendo as diferenças individuais. Para Smith, a deficiência mental está sujeita a essa concepção tipológica, como se existisse uma “essência” que a definisse. Entretanto, ao homogeneizar as diferenças da deficiência mental, como se buscasse uma “essência”, perde-se a especificidade de cada caso. Mudança de Nomenclatura: Deficiência Intelectual Segundo Sassaki (2005, p. 9-10), a expressão “deficiência intelectual” foi oficialmente utilizada já em 1995, quando a Organização das Nações Unidas (juntamente com The National Institute of Child Health and Human Development, The Joseph P. Kennedy, Jr. Foundation, e The 1995 Special Olympics World Games) realizou em Nova York o simpósio chamado INTELECTUAL DISABILITY: PROGRAMS, POLICIES, AND PLANNING FOR THE FUTURE (Deficiência Intelectual: Programas, Políticas e Planejamento para o Futuro). Sassaki reafirma que a partir da década de 80, o termo utilizado vinha sendo "deficiência mental". Antes disso, muitos outros termos já existiram. E, atualmente, há uma tendência mundial (brasileira também) de se usar "deficiência intelectual", termo mais apropriado por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo. Em 2002, a Confederação Espanhola para Pessoas com Deficiência Mental aprovou por unanimidade uma resolução substituindo a expressão “deficiência mental” por “deficiência intelectual”. Isto significa que agora a Confederação passa a ser chamada Confederação Espanhola para Pessoas com Deficiência Intelectual (Confederación Española de Organizaciones en favor de Personas con Discapacidad Intelectual). Esta organização aprovou também o novo Plano Estratégico de quatro anos para melhorar a qualidade de vida, o apoio institucional e os esforços de inclusão para pessoas com deficiência intelectual. Como aponta Sassaki (2005, p. 9-10) “(...) cada vez mais se está substituindo o adjetivo ´mental´ por ´intelectual´”. A Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde realizaram um evento (no qual o Brasil participou) em Montreal, Canadá, 15681 em outubro de 2004, evento que aprovou o referido documento DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE DEFICIÊNCIA INTELECTUAL. Observe-se que o termo “intelectual” foi utilizado também em francês e inglês: Déclaration de Montreal sur la Déficiénce Intelectuelle, Montreal Declaration on Intelectual Disability)”. Para Diament (2006, p.417) “quando se refere à aprendizagem da pessoa com deficiência mental, não se aborda somente a aprendizagem escolar, como também precisa se ater aos aprendizados das atividades de vida diária (AVDs) e das atividades de vida prática (AVPs)”. Há que se considerar a deficiência, sem desprezar o contexto da pessoa que a apresenta. Nos tempos atuais tem-se vivenciado particularmente políticas educacionais fundamentadas nos princípios da democracia e no reconhecimento do Direito de Todos a uma Educação de Qualidade, de forma que a escola pública seja um local de produção de conhecimentos, de espaços acolhedores e de respeito às potencialidades de cada um. Todos os esforços por uma qualidade na educação para todos, remete ao Paradigma Inclusivo, quando se fala em reconhecer que a pessoa com deficiência precisa estar em um contexto, no qual a deficiência deixe de ser o foco, para dar lugar à pessoa. Não se trata de negar a existência da deficiência ou das limitações que ela provoca no sujeito, mas de preparar os caminhos para o acolhimento deste sujeito na sociedade, assistindo-o em suas necessidades, e descobrindo formas para que ele produza conhecimento, benefícios para si e para os outros, como é comum aos sujeitos que vivem em sociedade, enfim, produtor e produto de seu momento histórico. Merecem destaque a Declaração Universal dos Direitos Humanos, referência na luta pela igualdade de direitos de todos, a Convenção relativa dos Direitos das Crianças em vigor desde 1990, e a Declaração de Salamanca em 1994 que proclama a “inclusão das crianças, deficientes como direito do cidadão, o direito de ser diferente e ter uma educação de qualidade” (SANTOS, 2005, p. 21). Segundo Diament e Cypel (1989, p. 810), “A deficiência mental (DM) não é uma entidade nosológica e sim, um complexo sintomatológico, cuja única unidade reside na deficiência intelectual”. Localiza-se no intelecto, mas não se trata de uma patologia que possa ser tratada e curada. O déficit intelectual limita o sujeito em suas aquisições, principalmente cognitivas. Porém apontamos para o objetivo da educação inclusiva: oferecer meios, para que o sujeito interaja com o conhecimento, de forma a minimizar as limitações causadas pela deficiência. 15682 A Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994, p.9), coloca que a deficiência mental caracteriza-se por registrar um funcionamento intelectual geral significativamente abaixo da média, que se origina no período de desenvolvimento, existindo concomitantemente com limitações associadas a duas ou mais áreas da conduta adaptativa ou da capacidade do indivíduo em responder adequadamente às demandas da sociedade, nos seguintes aspectos: comunicação, cuidados pessoais, habilidades sociais, desempenho na família e na comunidade, independência na locomoção, saúde e segurança, desempenho escolar, lazer e trabalho. Para a Associação Americana de Retardo Mental a deficiência mental é concebida como uma “incapacidade caracterizada por limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo e está expresso nas habilidades práticas, sociais e conceituais, originando-se antes dos dezoito anos de idade” (AAMR, 2006, p.20). A tradicional AAMR, “American Association for Mental Retardation” fundada em 1876 carregou por muito tempo o termo retardo mental em seu nome, porém num gesto de renovação e sintonia com os novos tempos mudou de nome para “American Association on Intellectual and Developmental Disabilities”, alterando inclusive sua sigla mundialmente conhecida de AAMR para AAIDD. Essa mudança oficializou-se no dia 1º de janeiro de 2007 e tem como objetivo assumir uma atitude frente à necessidade, cada vez mais urgente, da inclusão das pessoas com deficiência intelectual na sociedade. E de principalmente, corrigir possíveis interpretações ultrapassadas sobre as verdadeiras condições destes indivíduos em produzir conhecimento. Há de se considerar que o fato de ser ultrapassado o termo “retardo mental”, já é um indício de que os tempos são outros e as possibilidades de se trabalhar com as pessoas com deficiência intelectual também. Por que como se tem concluído, a deficiência intelectual limita o sujeito no seu desenvolvimento cognitivo, mas há meios educativos para que tal limitação não interfira em outras áreas do seu desenvolvimento. Faz-se necessário esclarecer dúvidas sobre a diferença na utilização dos termos: mental ou intelectual. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, pode-se definir deficiência mental como o estado de redução notável do funcionamento intelectual inferior à média, associado a limitações pelo menos em dois dos aspectos do funcionamento adaptativo, dentre os quais: comunicação, cuidados pessoais, competências domésticas, habilidades sociais, utilização de recursos comunitários, autonomia, saúde e segurança, aptidões escolares, lazer e trabalho com início antes dos 18 anos (DSM-IV, 1995). 15683 O termo foi atualizado para “intelectual”, justamente para abranger os 5% da população mundial, que segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), tem alguma deficiência intelectual. Quanto às causas, podem variar e são complexas, como: fatores genéticos, como a Síndrome de Down; ambientais, como decorrente de infecções e uso de drogas na gravidez, dificuldades no parto, prematuridade, meningite e traumas cranianos. Esses fatores causam limitações intelectuais no sujeito, assim como os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), nos quais se inserem o Autismo, Transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtornos de Déficit de Atenção (TDA). A mudança para “intelectual” objetivou se referir às limitações do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo e principalmente para que fossem verificadas as diferenças pertinentes aos indivíduos com deficiência intelectual. Um indivíduo que apresenta uma deficiência intelectual, não é como outro que apresenta a mesma deficiência, portanto, para estimulá-lo a realizar qualquer que seja a atividade, é necessário conhecê-lo como pessoa, saber do que gosta ou não, conhecer sua rotina, para poder intervir de forma responsável e, sobretudo, respeitando-o como pessoa. A pessoa com deficiência intelectual não apresenta comprometimento da mente como um todo, e sim, limitações intelectuais. Porém, ao ser estimulada, com diversificados recursos, esta pessoa pode adquirir excelentes desempenhos, tanto adaptativos, como os que dizem respeito aos saberes escolares, valorizados pela sociedade. Desta forma, é função política da escola trabalhar com pessoas que apresentam deficiência intelectual e aos professores cabe o fazer a mediação entre essa limitação e o conhecimento sistematizado, oferecido pela escola, o que também representa um fazer político. Para isso não se pode negar aos professores o acesso ao conhecimento que lhes respalde para uma atuação mais responsável com as limitações dos seus alunos. Quando se fala em preparação do professor para o trabalho escolar, deve-se ter a clareza de que não se trata de apropriar-se somente de um termo ou outro referente à inclusão de pessoas com deficiência no ambiente escolar, pois isso seria uma fragmentação do conhecimento produzido historicamente a respeito da deficiência apresentada. É necessário ao trabalho dos professores, ir mais fundo no conhecimento, bem como na sua origem histórica em busca da formação escolar de seus alunos, apresentem deficiência ou não. A respeito da apropriação de um conhecimento raso sobre determinadas áreas, Vygotski, (1991, p.326), afirma que: “Quem não investiga nem descobre algo novo não pode 15684 compreender por que os investigadores introduzem novas palavras para os fenômenos”. Transportando a contribuição de Vygotski para a questão da apropriação do conhecimento pelo professor e da sua responsabilidade em transmitir conhecimento a seus alunos, pode-se dizer que o fato de apropriar-se de uma nova nomenclatura, como por exemplo, “deficiência intelectual”, não faz do professor um especialista em deficiência, que diz respeito ao intelecto. Muito pelo contrário, é necessário agora se aprofundar no que diz respeito a esta deficiência, isto implica na busca pelo professor da origem histórica da deficiência, bem como nas suas implicações no processo de escolarização dos alunos que apresentam essa deficiência, na atualidade e daqueles que foram escolarizados em outros momentos na história da escola. Esta postura diante do “novo” seria a postura de um investigador, a que cabe ao professor, quando começa a interpretar porque os “fenômenos” ao serem investigados recebem novas nomenclaturas. No caso da deficiência intelectual, verá que não é uma simples troca de nomenclatura, mas para se chegar a ela, houve um processo histórico, o qual foi sendo marcado também por mudanças na concepção da deficiência em si, sobretudo, no que diz respeito às possibilidades da pessoa com a deficiência intelectual estar no contexto da escola regular e ali se desenvolver em seu processo de aprendizagem. O que dizer da compensação como superação da limitação? O conceito de compensação é fundamental para que sejam compreendidos os estudos feitos por Vygotski a respeito da “defectologia”, fazendo referência às crianças com “defeito”, atualizando o termo para: deficiência. Para ele, a deficiência de uma função orgânica ou mesmo uma lesão de um órgão provoca no sistema nervoso central e no aparato psíquico uma posição que os levam a assumir a tarefa de compensar o que seria um “defeito” ou uma deficiência. Sendo assim, uma pessoa com deficiência intelectual beneficiar-se-ia da compensação para desenvolver-se, inclusive cognitivamente. No caso visto a seguir é propício dizer que: “todo defeito cria estímulos para elaborar uma compensação” (VYGOTSKI, 1997, p. 14). 15685 Um relato de superação: o desenvolvimento escolar de Ramon Ramon3 apresentava um diagnóstico de deficiência intelectual, além de dificuldade de comunicação e isolamento, e aos 16 anos frequentava o 6º ano do Ensino Fundamental e a Sala de Recursos Multifuncional em uma escola municipal da cidade de Niterói-RJ. A tendência a isolar-se e a dificuldade em comunicar-se, foram se modificando, após algumas atividades propostas relacionadas ao teatro, à expressão corporal, marcas do trabalho desenvolvido com um grupo menor e a partir de propostas diferenciadas, que ofereciam ao aluno alternativas para a apropriação dos conteúdos desenvolvidos na sua turma regular. Desta forma, pudemos ter a grata surpresa de constatar que o aluno demonstrava interesse por muitos conteúdos relevantes para acessar o currículo proposto para o seu ano de escolaridade. Apesar de manter-se quieto no grande grupo: sala de aula/totalidade da escola, mesmo porque uma de suas características era buscar o isolamento, no contexto da sala de recursos com um grupo menor, ele se expressava com certa desenvoltura e relatava com facilidade acontecimentos relacionados a viagens de ônibus de uma determinada empresa que faz o trajeto: Rio de Janeiro/São Luiz-Maranhão, e o levava à casa de seus avós, pelos quais dispensava uma atenção muito especial. A partir do interesse do aluno, pudemos propor uma pesquisa, na Internet, a respeito dessa empresa de ônibus, aproveitando um aspecto importante do desenvolvimento do “humano”, para Vygotski, que seria o “emocional”. Por meio da leitura de itinerários feitos por esta empresa, o aluno ia se familiarizando com os nomes dos estados brasileiros e suas características mais relevantes elencadas por ele e pelos outros alunos, com os quais Ramon trocava experiências e conhecimentos, na sala de recursos. Aspectos como: distância de alguns estados com relação ao Rio de Janeiro - seu estado de origem, exploração da quilometragem percorrida nas estradas, quantidade de combustível gasta no percurso, constituíam-se em assuntos que íamos trabalhando em consonância com os conteúdos trabalhados na sala de aula regular. Desta forma, Ramon apropriava-se de conceitos inerentes ao desenvolvimento de um aluno do 6º ano do ensino fundamental, aos quais dificilmente teria acesso sem que lhe fossem disponibilizadas essas estratégias diferenciadas e significativas. Não se trata aqui de dizer que o aluno foi isolado neste espaço, mas que em um grupo menor, pôde-se colocar o fator tempo como secundário, priorizando o que era 3 Nome fictício. 15686 realmente significativo para o aluno e para o grupo com o qual trocava experiências de vida e de aprendizagens. O fato de o aluno ter confiança para relatar aspectos da sua vida pessoal para um grupo reduzido (8 a 12 alunos) sendo suas particularidades respeitadas e compartilhadas foi decisivo para um resultado satisfatório. Após três anos, Ramon participou de uma peça teatral, direcionada a cerca de 180 alunos, do 6º ao 9º anos da escola. A forma como os homens se relacionam com o meio ambiente, estão produzindo e sendo afetados por mudanças, constitui-se em um conteúdo bastante relevante para o saber sistematizado da escola. Nesta ocasião, em 2008, foi produzido um documentário sobre a “Ilha da Conceição”, local em que a escola localiza-se, mostrando a dificuldade dos pescadores em encontrar peixes e utilizar as praias para o lazer devido à poluição na baía de Guanabara. No aspecto saúde, o nível de poluição chegou a ponto de impedir o acesso às praias que circundavam a região, pelo perigo de adquirir doenças de pele entre outras provocadas pela poluição do mar. No aspecto econômico, os pescadores já não encontravam peixes naquela região, precisando buscá-los em regiões distantes o que lhes trazia enorme prejuízo. A família do aluno fazia parte das famílias afetadas pela poluição. Por isso, sua necessidade de engajar-se em um movimento que trazia à tona essa discussão, que permeou seu processo de aprendizagem também em outros conteúdos não referentes à poluição da Baía de Guanabara. Em um contexto em que se valorizava: “Invenções que mudaram a vida do homem”, ao interpretar a importância e propor uma invenção para os dias atuais, Ramon sugeriu um carro que pudesse levar as pessoas de um lado para o outro, sem poluir a natureza, descrevendo-o, ainda que de forma simplificada. Um fato importante que marcava as pesquisas do aluno, quando buscava propagandas de carros em revistas e na Internet, era deter-se no logotipo do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), demonstrando assim sua preocupação com os prejuízos decorrentes da intervenção humana no meio ambiente, o que era veiculado pela propaganda da época, além de ser consenso do grupo. Verificou-se, portanto, o pressuposto vygotskiano de que: com práticas pedagógicas diferenciadas, é possível que alunos com deficiência intelectual, “retrasados mentales”, possam ser impulsionados no seu desenvolvimento psíquico. 15687 Considerações Finais Com este relato buscou-se além de situar o trabalho com este aluno especificamente, com deficiência intelectual, demonstrar a possibilidade pontuada por Vygotski, de que os alunos considerados “anormais” deveriam estudar os mesmos conteúdos que os demais, considerados “normais”, isto é, tanto aqueles como estes deveriam ser expostos a um currículo geral. Apenas as estratégias utilizadas para se chegar a estes conteúdos seriam diferenciadas. A ninguém ocorre sequer negar a necessidade da pedagogia especial. Não se pode afirmar que não existem conhecimentos especiais para os cegos; para os surdos e os mentalmente atrasados. Porém esses conhecimentos e essas aprendizagens especiais há que se subordiná-los à educação comum, à aprendizagem comum, a pedagogia especial deve estar diluída na atividade geral da criança (VYGOTSKI, 1997, p.65). Quanto à contribuição vygotskiana para a inclusão da pessoa com “deficiência mental” naquele momento histórico e na sociedade em que viveu, o autor afirmava que: Aunque los niños retrasados mentales estudian un tiempo más prolongado, aunque ellos aprendan menos que los niños normales y, por último, aunque se lês ensene de outra manera, aplicando métodos y procedimentos especiales, adaptados a las particularidades de sus estados, eilos aprenderán io mismo que todos los demás niños y recibirán a misma preparación para la vida futura [...] (VYGOTSKI, 1983, p.118). Cabe ressaltar que embora a nomenclatura utilizada fosse “retardo mental”, diferentemente da nomenclatura utilizada atualmente, para se referir à deficiência localizada no intelecto, Vygotski (1997) aponta para a necessidade de que as particularidades dos alunos com deficiência sejam atendidas e que estes, assim como os demais que não apresentam deficiências, sejam preparados para a vida. Tal preparação traz implícita a necessidade de preparação dos docentes inseridos em um contexto tão diversificado como o escolar. Não seria a mesma base filosófica utilizada na atualidade quando se traz à discussão o papel do professor na educação inclusiva? Quando se busca o apoio em Saviani (2003, p. 27) para rever o papel político do professor e da escola na apropriação do saber sistematizado pelo aluno, torna-se necessário lembrar que este papel é: “um sentido político em si”. O papel político do professor é a expressão, na prática, do seu compromisso com o saber-fazer, da ação pensada objetivamente, capaz de se tornar competência. “A competência é mediação, isto quer dizer que ela está entre, no meio, no interior do compromisso político (...) ela é, pois, instrumento (...) ela não se 15688 justifica por si mesma, mas tem (...) a sua razão de ser no compromisso político” (Ibid.,p. 3435). Conclui-se então com este trabalho, que a categorização da deficiência mental, assim como sua evolução para o termo: intelectual, além de localizar a deficiência no intelecto, traz consigo implicações histórico-culturais, que envolvem uma diversidade de áreas do conhecimento, bem como áreas de atuação profissional distintas, as quais de alguma forma irão se articular com o processo de ensino e de aprendizagem. De forma que há necessidade de rever conceitos sempre, localizá-los historicamente, o que requer do professor uma formação constante e ininterrupta para se apropriar de conhecimentos em áreas, que antes não faziam parte da sua formação ou não precisavam ser contempladas em sua sala de aula, como a área médica que categoriza as doenças mentais, por exemplo, ou na área específica de atuação da psicologia, da psicanálise, etc. Apropriar-se de conceitos em diferentes áreas, não exige que o professor conheça profundamente cada uma, para nela interferir profissionalmente, mas para poder interferir na sua área, no processo de ensino e de aprendizagem, de forma responsável, localizando as demandas apresentadas por seus alunos no tempo e espaço, isto é historicamente. Num momento em que a sociedade requer da escola, a inclusão de alunos com deficiência no ensino regular, requer também que o professor esteja preparado para atender alunos com ou sem deficiências em seu processo de escolarização. 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