Violino e Percussão A importância dos Instrumentos no Estudo da

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Violino e Percussão
A importância dos Instrumentos no Estudo da Canção Mané Beat
Rodrigo de Souza Mota1
Retroprojetor2
(...)
Necrofilia é piração, sentido tesão é o tato
Tatu é o bicho, tá tudo legal, tá tum percussão
Violino e percussão
Violino e percussão
(...)
A presente música de Moriel Costa do grupo Dazaranha, demonstra a importância dos
instrumentos na canção. No caso do exemplo acima citado, a letra exemplifica as escolhas dos
músicos em alguns dos instrumentos utilizados. Neste artigo, não é possível demonstrar
claramente como são utilizados estes dois instrumentos musicais, porém é válido o trecho
citado desta canção para percebermos a importância destes dentro do contexto cancional. Esta
música, além de exemplificar meu argumento, é importante pois é a primeira canção gravada
por uma banda participante do movimento musical florianopolitano Mané Beat.
Quem é o Mané?
Na década de 1970, há uma nova sensibilidade no “ser jovem” em Florianópolis, entre
outras características, o embate entre o tradicional e o moderno. Segundo Cynthia Machado
Campos, com a vinda de novos moradores vindos, principalmente, de São Paulo e Porto
Alegre, os “nativos” buscam formas de manter a cultura local e tendências da cidade, exemplo
1
Doutorando em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina, orientando da Professora
Doutora Ana Lice Brancher e coorientando da Professora Doutora Janine Gomes de Silva e coorientação de
Marcia Ramos de Oliveira . Professor efetivo do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Santa Catarina.
2
COSTA, Moriel. Retroprojetor. In.: Ilha de Todos os Sons, Florianópolis: RBS Discos. 1994. Música 02
1
é o nome da cidade. Para negar o nome Florianópolis, pois lembrava o ditador Floriano
Peixoto, os antigos moradores a chamavam pelo antigo nome, Desterro, enquanto os
migrantes denominava de Floripa. (CAMPOS, 2011)
Ao analisarmos as letras das canções, percebemos temas relacionados à cultura
tradicionalmente instituída como mané, que para exemplificar, utilizo a música “Galheta” da
banda Dazaranha, onde o tema das bruxas é presente “Uma criança bruxa brinca longe do
seu corpo/Sinhá dos anjos, tocava sino balinês para o saci”3. Nesta canção também há
referências do uso de instrumentos, o sino balinês, utilizado por pessoas que acreditam em
maus espíritos ou energias, principalmente ligados ao exoterismo. Durante esta parte, é tocado
o carrilhão de sinos para lembrar a sonoridade do sino balinês. A mesma canção apresenta
também outra cultura que estava se formando em Florianópolis, a cultura surf: “Fantasmas
galegos surfavam chapados na noite da Galheta”. Percebemos no imaginário do jovem dos
anos 1990 um novo “manézinho”, além do pescador, o surfista. Em minha dissertação de
mestrado ressalto como esta cultura surf surge no imaginário jovem na década de 1970,
fortalecendo-se na década posterior, já disseminada como cultura ilhéu na década de 1990:
Nesta década (1980), também surgem séries como Armação Ilimitada, na
Rede Globo, voltada para o segmento jovem. Porém, estas séries só
conseguiram o sucesso alcançado porque no Brasil a cultura jovem / surf
inseria-se em seu cotidiano. No Rio de Janeiro e em Santa Catarina, estados
conhecidos pelos seus litorais propícios ao surf, não foi diferente.
Tendo praias com boas ondas para o esporte, alguns surfistas do Rio de
Janeiro vieram conhecer nosso litoral e, já em 1976, acontece o primeiro
campeonato de surf na Joaquina. Em 1980, é fundada a Associação
Catarinense de Surf (ACS) passando a denominar-se Federação
Catarinense de Surf (FECASURF) em 1987, demonstrando a organização e
fortalecimento dos jovens para este esporte ainda durante a década de 1980.
(MOTA, 2009, p. 26)
Há então um novo jovem mané. Enquanto no final dos anos 1970 e início dos anos de
1980 o “mané” era o filho de pescador, via o mar como uma forma de subsistência, com as
mudanças nos anos 1980, os jovens passam a se identificar com o surf, hibridizando esses
dois olhares sobre o mar, é formado o “viver jovem” dos anos 1990.
3
DAZARANHA. Galheta. In.: Seja Bem Vindo. Florianópolis: RBS Discos. 1996.
2
Em Florianópolis, a primeira banda a gravar um disco foi o Grupo Engenho em 1978,
a big band da capital, com esta busca de brasilidade, ou no caso do Engenho, que apesar de
começar com levada rock, misturaram ritmos mais regionais com aspectos da música
catarinense local, com acordeom, triângulo em ritmo mais rápido, com temas ditos de cultura
açoriana , como o engenho, a rendeira, o pescador, ou o carro-de-boi., sendo inclusive
homenageados por Franklin Cascaes, especialista no assunto em Florianópolis. “Caros jovens,
o vosso trabalho artístico deve continuar com entusiasmo e perseverança, falando todos os
componentes do grupo o mesmo tom de voz, para que haja confiança mútua e duradoura anos
afora” no mesmo disco, mas na capa, o grupo também homenageia Franklin Cascaes: “
‘Engenho’ é dedicado ao grande artista que despertou gerações para o amor à terra: Franklin
Cascaes”. Uso como exemplos as músicas consideradas de jovens destas décadas. O Grupo
Engenho cantando sobre pescadores e rendeiras na música Barra da Lagoa.4
Barra da Lagoa
Hoje to triste pescador
Perdi o amigo Chicão
Morreu de cansaço dos barcos
Lá na barra da lagoa
Lagoa da Conceição
Lagoa da Conceição
Hoje não tem cantoria
Nem vai ter boi de mamão
Renda em dobro pra Maria
Que é rendeira da lagoa
Lagoa da Conceição
Lagoa da Conceição
Dentre os instrumentos utilizados por este grupo, cito a sanfona ou acordeom.
Instrumento muito utilizado pelos portugueses durante a colonização do Brasil, inclusive por
açorianos colonizadores de Santa Catarina. No livro Os Foliões do Espírito Santo no Açores
de Luiz da Sila Ribeiro, de 1942, o autor cita este instrumento como um dos principais nesta
festa e em outras festividades populares dos Açores. Na tese de doutorado em antropoliogia
de Telmo Pedro Vieira ressalta que esta festividade trazida para Santa Catarina pelos
4
NECO. Barra da Lagoa. In.: Grupo Engenho – Vou Botar Meu Boi Na Rua. Florianópolis: Engenho
Produções, 1981. Lado A faixa 02.
3
colonizadores e os instrumentos utilizados, continuam com sua estrutura muito parecida com
a dos Açores de hoje em dia. (VIEIRA, 2008)
A canção de maior sucesso da banda Tubarão, Vou Conquistar seu Coração,
demonstra um território bem relacionado à cultura jovem nos anos de 1980, a praia. Não o
mar, local de trabalho do pescador, mas as ondas, a areia e o esporte, como um dos principais
locais para encontrar garotas para paquerar. Além disso, a música trata da conquista, como o
título já sugere, da garota desinteressada pelo rapaz, mas este lutando pela conquista. O uso de
termos em inglês, proveniente dos Estados Unidos, também sugere uma hibridização de
culturas, aceitando-a como parte do dia-a-dia destes jovens.
Vou Conquistar seu Coração5
Hoje na praia você me esnobou
De Morey-Boogie ao som de rock´n´roll
Good time, surfing in U.S.A.
Você não sabe mas agora eu sei
Pois tudo o que você quiser eu faço meu bem
Pra conquistar seu coração
Vou conquistar seu coração – Oh! OH! OH!
Tudo que você quiser eu faço meu bem
Pra conquistar seu coração
Eu vou gritar até você me dar
Seu coração que ta naquele lugar
Que gosto bom que você deve ter
Gosto gostoso de gostar você
Tudo que você quiser eu faço meu bem
Pra conquistar seu coração
André (Deca) May, um dos fundadores do Ratones/Tubarão, era o responsável pelas
cordas graves nas bandas. Sua contribuição nos arranjos e na célula rítmica das canções pode
ser analisada através da canção “Vou Conquistar se Coração”, gravada três vezes pela banda.
A primeira, no disco Tubarão/Expresso de 1988, depois no Tubarão de 1989 e por último, no
Perdidos no Deserto em 1992. Na primeira gravação, a levada é mais ligada ao surf music, o
5
MAY, Juca e Deca. Vou conquistar seu coração. In.: Tubarão/Expresso. Florianópolis: Grupo Expresso
Produções. 1988. lado A, faixa 01.
4
contrabaixo dá apenas os acordes básicos, a guitarra cria a base de 4 por 4, com semi
colcheias em intervalos ascendentes e descentes, lembrado uma onda. Quero aqui demonstrar
os caminhos que a música jovem seguiu, da busca ao regional ao surf music para assim
analisar a formação desse novo mané nos anos 1990.
Já o uso do termo “mané” e as mudanças no discurso do termo, de pejorativo para o
nativo da Ilha de Santa Catarina pode ser analisado também como disputas políticas.
Guilherme Gustavo Simões de Castro analisando a banda Dazaranha em sua dissertação de
mestrado defende que:
Este termo [manézinho] começou a ser forjado no final da década de 40
pelas elites locais que dominavam a Academia Catarinense de Letras, e a
intenção de reforçar a colonização e a construção de uma identidade
cultural de origem lusitana no litoral catarinense. Em oposição aos
intelectuais do litoral, as elites políticas da região do Vale do Itajaí
reivindicavam a hegemonia política no estado em função de uma
predominância da colonização de origens germânica e italiana. Através da
contradição entre os perfis do “homem do litoral” e do “homem do Vale do
Itajaí”, o objetivo era realizar uma releitura deste paradoxo da história de
Santa Catarina, no contexto do governo do interventor Nereu Ramos, e do
projeto nacionalista de Getúlio Vargas.(CASTRO, 2009, p. 24)
Para Maria Bernadete Ramos Flores, no livro “A farra do Boi: palavras, sentido,
ficções” a vinda de migrantes e a visualização nacional que Florianópolis passa a ter nos anos
de 1970 e 1980 fazem com que jornalistas, moradores e folcloristas busquem esta identidade
para se diferenciar dos migrantes (FLORES, 2007).
Em seu livro de crônicas sobre Florianópolis, Oh Que Delícia de Ilha! (Filho, 1995),
Raul Caldas Filho ressalta dois tipos de nativos da Ilha de Santa Catarina, o manézinho,
aquele que vive do mar, com hábitos simples e rurais e, o ilhéu urbano, que têm o mar como
diversão, vive na cidade com hábitos mais cosmopolitas. O movimento que aqui apresento é
uma miscigenação destes dois conceitos, foi criado dentro dos padrões urbanos valorizando a
vida de seus antecedentes que viviam pelo mar.
O mané está ligado à vida do mar, mas também nos discursos de lendas e mitos das
bruxas divulgados principalmente por Franklin Cascaes. Podendo negar o termo “mané”
5
como fez a banda Tijuquera: “Eu sou ilhéu/sou da vista do canal/do litoral/Sou do mar do meu
Brasil, meu irmão”6 na música Vista do Canal, todavia apresentando-se como homem do mar.
Criar o termo Mané beat, pode ter sido realmente para formar um movimento musical
ou apenas uma nomenclatura para inserirem-se no mercado dentro da cidade, pois os
habitantes se identificariam com esta canção e, também poderiam ganhar alcance no mercado
nacional, inserindo-se em festivais de música independente, muitas vezes voltados para
música pop regional, como o Abril Pró Rock, citado por Maheirie,
Tendo participado do Abril Pró-Rock em Recife, ele [Caio, vocalista da
banda Stonkas & Congas] considera que lá, apesar da diversidade de
bandas e de propostas sonoras, o manguebeat é composto pela união
concreta destas bandas, que se “se ajudam” mutuamente, expressando um
“orgulho muito forte de suas raízes”. Para ele, no mangue beat as
diversidades sonoras não impedem o movimento de acontecer. Talvez
o Mané beat possa surgir como um promotor desta interação.( MAHEIRIE,
2001. p. 162)
Não vejo o estado híbrido como uma simples dialética de duas culturas, mas um
estado selvagem onde não percebemos onde começa um ou outro. Assim a disputa entre o
tradicional e o moderno passam a ser absorvidos por esta nova concepção cultural. Nestor
Garcia Canclini, aborda que a cultura popular se constrói através da hibridização, afirmando
que o “popular se constitui em processos híbridos e complexos usando como signos de
identificação elementos de diversas classes e nações”(CANCLINI, 2004. p 205)
A Música Mané
A fusão entre o tradicional e o regional é um aspecto percebido nas canções de várias
regiões brasileiras na década de 1990, “o rock brasileiro dos anos 90 (...) mantiveram suas
características
originais
básicas.
Resgatou
raízes
artísticas
de
regiões
específicas”(BRANDINI, 2004. p.37) Ao falar sobre hibridização no Brasil da década de
1990, muitos estudiosos como Herom Vargas e Luciano Azambuja, citam como exemplo o
6
DA VILLA e POETA, Rodrigo. Vista do Canal. In.: Tijuquera – Quem quiser, é isso aí.... música 05.
6
movimento Mangue Beat de Pernambuco e suas misturas entre o tradicional, principalmente
vindo do movimento armorial, com ritmos globalizados e novas tecnologias. Ao comparar
com o Mané beat, Azambuja afirma que em Florianópolis não existisse um movimento
híbrido, apenas um nome para tentar inserir-se no mercado nacional. Afirmo que possa existir
um hibridismo pois, como já foi dito, levo em consideração não apenas a dialética direta entre
o regional e o global já citados, como ocorreu no Mangue Beat e no Tropicalismo, mas um
conflito de culturas, usando o funk ou o reggae para falar de Floripa7. Por outro lado,
podemos ressaltar que toda música é híbrida, mas ressalto o terceiro espaço que Bahbah
afirma que é onde as culturas se encontram, já aqui, vejo uma intencionalidade na mistura de
ritmos, não apenas a construção no entre lugar.
Ao analisarmos o que é apresentado como música popular brasileira (MPB),
percebemos uma forte influência de ritmos africanos, como Ijexá, capoeira ou
carimbó.(IKEDA 2011). Da mesma forma, ao escutarmos a música das canções das bandas
que aqui proponho estudar estão inseridas neste contexto, como por exemplo a Dazaranha.
Citando uma reportagem de Adriana Martorano, Guilherme Gustavo Simões de Castro:
O Dazaranha é uma das bandas de maior sucesso atualmente em
Florianópolis. Destaca-se das demais bandas por fazer uma música
original, que mistura ritmos afro-brasileiros com funk, jazz e até um violino
clássico, que dá um toque especial. “Estou aqui porque o Dazaranha
merece todo o apoio, eles têm um som muito original”, afirma Zé Luís,
baterista da banda de thrash- metal, Motherfucker.(CASTRO, 2009, p. 49)
Os estilos musicais, as sensações (emoções) e identidades sonoras que cada banda do
movimento Mané Beat busca estão diretamente relacionadas com os instrumentos escolhidos
e sua maneira de tocar. A gaita de boca, ou harmônica, usada pela banda Primaveram nos
Dentes, trazendo o blues na sua estética ou o violino utilizado e tocado de forma a lembrar
uma rabeca por Tijuquera em algumas músicas e Dazaranha em quase todas suas canções,
relacionado a música açoriana. Ao isolarmos o vocal, perde-se as emoções da música por
inteiro, percebendo apenas o que é diretamente ligado à letra.
7
Apelido usado para identificar Florianópolis, muito usado pelos jovens locais.
7
Muitos estudiosos da canção, como por exemplo Luiz Tatit, abordam em suas análises
apenas a letra e a melodia, deixando apenas a voz como único instrumento para estudo.
Porém, outros instrumentos devem ser estudados e, ao não fazê-lo perde-se muito na riqueza
da canção. Dentre todos os exemplos que poderiam ser escolhido para uma demonstração
inicial, ressalto a canção “Samba de uma nota só” de Tom Jobim e Newton Mendonça. Nesta
canção, a primeira estrofe é toda cantada em “uma nota só”, deixando as tensões e ondulações
sonoras com os intervalos feitos pelos demais instrumentos, principalmente o violão e, com
estes intervalos8 entre voz e violão, faz-se parecer um canto não monotônico, como realmente
é cantado.
Ou pra falar de uma música rock, temos os instrumentos da canção do grupo punk
baiano, Camisa de Vênus, que na sua música Simca Chambor, de 1986, utiliza instrumentos
para preencherem as ideias entre versos. Tem como tema principal na canção, o Golpe Militar
de 1964, falando sobre os sonhos da juventude através de um carro, o Simca, durante o
governo de João Goulart. No tema instrumental que antecede o último verso, em que os
militares tomam o poder, é tocado um instrumento de sopro bem desafinado, lembrando a
corneta militar e desafinando como se o que ocorresse a partir daquele momento seria algo
desastroso.
Voltando a falar do Movimento Mané Beat, devemos ter como primeira referência o que
ele buscava com esta denominação. Como o Cristian Feel da banda Iriê apresenta no
documentário Sete Mares numa Ilha,
“Até o próprio nome já diz, tem haver com a cultura açoriana, por que o
cenário é a nossa ilha que tem vários estilos musicais diferentes assim. (...)
vai do reggae, do funk, rock, metal, tem de tudo nessa ilha, som até mesmo
açoriano, de boi-de-mamão, rola tudo, então Mané Beat engloba isso aí
tudo no sentido de isso é o som a batida do mané. Não é o Mané pejorativo,
mas o mané da Ilha, o nativo, o local.”
8
Intervalos musicais são as distâncias entre uma nota e outra.
8
Com esta citação temos as principais influências musicais do movimento, muito
influenciado pelo movimento Mangue Beat de Recife, o hibridismo dos estilos locais com os
globais. A principal influência na sonoridade local é a cultura açoriana, vindos para a Ilha de
Santa Catarina no século XVIII, trouxeram sua cultura junto e com isso sua sonoridade. No
livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Ernesto Veiga de Oliveira, escreve um
capítulo apenas de instrumentos açorianos e, dá ênfase aos cordofones, primeiramente à viola,
mas destaca também a rabeca.
RIBEIRO, Luiz da Silva. Os Foliões do Espírito Santo no Açores. Angra
do Heroísmo: Tipografia Andrade, 1942. Pág 09.
9
Nesta imagem retirada do livro Os Foliões do Espírito Santo nos Açores de Luiz da
Silva Ribeiro, percebemos alguns dos instrumentos, dois pandeiros, uma viola e uma rabeca.
Importante manifestação cultural nos açores que foi trazida para Florianópolis e, até hoje a
Festa do Divino Espírito Santo é uma das principais festas da cidade. Podemos perceber dessa
forma como a rabeca está associada à cultura ilhéu.
O som Mané Beat
A banda Dazaranha, anteriormente citada, tem como principal instrumento o violino.
Tocado por Fernando Sulzbacher de forma rápida, sem muito sustain nas arcadas, demonstra
uma forma de tocar semelhante à rabeca e, com levadas que lembram riffs de guitarra. A
canção apresentada no início deste texto, “Retroprojetor” foi a escolhida pela banda para fazer
parte de um CD coletânea da RBS Discos intitulado Ilha de Todos os Sons, de 1994, primeira
música gravada e publicada pela banda, traz logo de entrada um solo deste violino tocado da
maneira descrita seguido pela bateria e guizos tocados de forma percussiva, para, no segundo
25 da música uma virada de caixa faz surgir todos os outros instrumentos e o vocal. Mesmo
com todos os instrumentos tendo sua importância, preenchendo a música, Suzbacher não
deixa de tocar seu instrumento, algumas vezes como base, outras como virada entre refrão e
estrofe e até mesmo em uníssomo com a guitarra de Chico Martins.
Em determinado momento, Gazu, principal vocalista da banda, canta “violino e
percussão, violino e...” deixando bem destacado estes instrumentos, ou conjunto de
instrumentos no caso da percussão. Enquanto canta esta parte, apenas Sulzbacher e Gerry
Costa, percussionista do Dazaranha, tocam seus instrumentos, apresentando esta sonoridade
para todos, até mesmo para pessoas que não haviam identificado pela sonoridade dos
instrumentos. Ter estes instrumentos musicais, o violino e a percussão, sem tirar a
importância dos outros instrumentos, é uma das principais características do grupo.
O violino remete à açorianidade da rabeca, fazendo assim o grupo demarcar bem suas
influências na origem colonial da Ilha. Porém, outro instrumento, ou grupo de instrumentos,
10
citado na música, a percussão, tem explicações além da colonização açoriana. Alguns
integrantes da banda, como Moriel Costa e Gerry, eram capoeiristas, Moriel era professor de
capoeira no ensino fundamental e médio. Desta forma a percussão e levadas de ritmos
africanos são influencias diretas ao utilizarem estes instrumentos nas músicas. Percebemos
assim outra influência externa vinda para a cultura ilhéu, os escravos trazidos da África.
Mas a percussão também é utilizada para ressaltar alguns aspectos da cultura açoriana
da Ilha, como as lendas de bruxas. No caso da música Galheta, que tem como tema a magia
existente na praia que o título já cita (famosa por ser de nudismo), é utilizado o carrilhão para
lembrar os sinos balineses para espantar os maus espíritos, como já dito acima.
Além disso, alguns dos músicos eram surfistas, tribo que, em Florianópolis, adotou o
reggae como ritmo para sua vida mais ligada à natureza e ao mar. No seu início a banda se
identificava com este gênero musical se apresentando em festivais e bandas que também eram
assim se identificavam, como o reggilha em 1994 que teve a participação das bandas Stonkas
y Kongas, Iriê e Dazaranha (Diário Catarinense, 29/04/1994), todas posteriormente fizeram
parte do Movimento Mané Beat. A banda mantém sua identidade com o reggae, inclusive ao
formar o movimento cultural mané beat, porém apresenta-se como identidade ilhéu. Quando
grava seu quarto disco em 2007, na música Ô Mané!, uma ode às bandas que fizeram parte do
movimento e à quem faz música privilegiando a cultura local citam “Se deixar bumbo dessa
ilha começar a bater/ Festa por que tem gente aqui/Fazendo som, fazendo reggae n roll/
Fazendo amor, fazendo amor”9 (destaque do autor). No trecho que destaco o estilo musical
em que a banda se diz fazer parte, ou que “tem gente aqui”, fazendo uma mistura de reggae e
rock´n´roll, talvez a escolha de instrumentos faça essa definição, ao analisarmos os riffs de
guitarra de Chico Martins, tem a pegada influenciada ao rock, principalmente a bandas mais
pesadas dos anos 1970.
Outras bandas deste movimento também ressaltam o uso do violino para destacar a
açorianidade, como a banda Tijuquera. Esta banda tem a utilização de vários instrumentos
marcantes da cultura açoriana, como o pandeiro, o violino/rabeca, viola e tambores. No seu
9
COSTA, Moriel. Ô Mané!. In.: Dazaranha-Paralisa. Balneário Camboriú: Studio 55, faixa 13. 2007.
11
álbum Quem quiser, é isso aí… de 2006 com a música Água tá Clara demonstra as mudanças
na cidade. A canção começa com uma música incidental com Cláudio “Cadinho” Costa,
integrante do grupo Gente da Terra e tio de Márcio Costa, guitarrista da Tijuquera, falando
“vamo entrá com o pandero”, mas a música começa com uma levada reggae de guitarra de
Márcio Costa. O pandeiro só aparece como vinheta após o final da música com Seu Cláudio
cantando uma música de seu grupo.
Outras tem uma maior influência do reggae e, mais até que o Dazaranha, os
instrumentos são tocados de forma bem marcada, com grooves de baixo utilizando tríades e
guitarras base com a palheta tocando do agudo pro grave com pausas.
Água tá clara
Tijuquera
Água ta clara, o sol queimando fogo
sempre o fera na minha jogada - a praia
O canal da barra, na cheia da maré
dá na lagoa - espelho da minha alma
Um boi sobre a mata
sobre a água dessa ilha
que eu nem sei
se é ainda a nossa cara
Se a antiga Desterro se foi
se hoje é carro onde era boi
se hoje é barro onde era água
e, no lugar de um "bom dia!",
de um "oi!": "quanto custa?"
"quanto foi?"
Ao menos ainda nos resta esse mar d´água
Senhora dos navegantes
abençoai cada resistente
segue o rumo, vai canoa
Segura, força
na mão o leme
O ritmo sincopado demonstra forte influência da música africana, também dito como
ritmo brasileiro.
12
A diversidade é uma das marcas do movimento Manébeat. Os integrantes do
movimento apresentavam dessa forma a Ilha de Santa Catarina, não como algo homogêneo de
ligação com os açorianos, mas com influências do mundo todo no fim do século XX. Nos
discursos sobre o que seria o Mané beat, alguns membros como Cléo, vocalista da banda Iriê,
admite que sua banda estava totalmente voltada para o reggae e que não tinha nada a ver com
a cultura açoriana. Em verdade, cada banda desenvolvia um trabalho próprio, cantado em
português nos mais diversos gêneros de influência anglo-americana (rock, blues, reggae, funk,
metal) e “até boi de mamão”, citando nas letras as belezas da Ilha de Santa Catarina. Estas
características musicais e poéticas serão o enfoque da pesquisa, o que foi construído como
música ilhéu (MAHEIRIE, 1999) Como também cita o produtor Gringo Starr, um dos
anunciadores da cena, acreditava que a diversidade sonora traduzia a identidade da ilha:
O que tem a ver Primavera com Iriê, com Daza, com Phunky Budda,
com Tijuqueira? Exatamente por não ter nada a ver é que tem tudo a ver.
Sabe, cada um faz o seu trabalho da sua forma, canta as belezas da nossa
terra da sua forma, misturam ritmos, misturam influências (...) e isso cria
uma característica uníssona, todos acabam falando a mesma
coisa.(MAHEIRIE, 2001, p. 159)
Gringo Starr acreditava que eram essas diferenças estilísticas que construíram a
identidade musical da Ilha de Santa Catarina. Se compararmos os usos de instrumentos
utilizados nas bandas citadas por ele, podemos perceber bem as diferenças ditas, mas também
semelhanças. Tinham como instrumentos bases a tríade do rock, guitarra, baixo e bateria,
porém os modos de tocarem e instrumentos para acrescentar a identidade sonora de cada um
deles era evidentemente diferentes. Tijuquera e Dazaranha já foram dissertadas neste artigo,
portanto aqui falarei das outras, Iriê, Primavera nos Dentes e Phunky Buddha.
A primeira, Iriê, se posiciona como uma banda de reggae, tendo a guitarra bem marcada
no contraponto. Também há, assim como Tijuquera e Dazaranha, o uso de percussão, porém
bem mais ligado ao ritmo reggae que à capoeira ou outros afro-brasileiros. Já a Phunky
Buddha, tem seu estilo mais ligado ao blues, soul e funk, ritmos chamados de black music no
Brasil. Estas duas bandas trazem em algumas de suas letras os lugares da Ilha ou a vida dos
13
moradores da capital de Santa Catarina e, demonstram que estes são também ritmos que os
jovens “ilhéus” tem em sua construção identitária.
Primavera no Dentes, a banda mais antiga do movimento, tem ritmos diversos, como o
rock, reggae, ijexá e blues, este último, no documentário sobre a banda intitulado
“Vagabundos” (KAIR, 2012), Joe Zangga, vocalista do conjunto, afirma ser o principal. A
utilização da gaita de boca, ou harmônica, por Nei d´Bertta, deixa bem claro esta escolha, se
tomarmos a música “O Vagabundo”(d´Bertta e Packer) temos no início um solo de gaita com
quase dois minutos antes de começar o vocal, utilizando levadas rítmicas de blues e blues
note, com a harmonia de slow blues (tônica, quarta, tônica, quinta, quarta, tônica, quinta). A
harmônica é tão marcante na banda, que ao falar sobre um show da banda em Florianópolis,
após ter ganhado o terceiro lugar no Skol Rock de 1995, o jornal Diário Catarinese destaca na
foto apenas Nei tocando o instrumento. Nei e Joe também tocam percussão, tocando com
ritmos sincopados e lembrando os estilos afro-brasileiros já aqui citados.
Todas as bandas aqui citadas neste trabalho têm como denominadores comum, fazerem
parte de um movimento que se dizia tocar o som dos jovens ilhéus e a utilização de
instrumentos percussivos e/ou ritmos afro-brasileiros. Deixo aqui o questionamento para
futuros trabalhos: Quanto de africano a cultura dos chamados “manézinhos” de Florianópolis
possuem? Ao abordados sobre sempre é citada a influência dos açorianos, todavia, ao
analisarmos estes grupos musicais e seus instrumentos, percebemos uma influência negra
muito forte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MORAIS, José Geraldo Vinci de. Metrópole em Sinfonia: História, cultura e música popular
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MOTA, Rodrigo de Souza. Rock dos Anos 1980, Prefixo 48: Um Crime Perfeito?. Dissertação
de mestrado. Orientadora: Ana Lice Brancher. Departamento de História. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 2009.
NAPOLITANO, Marcos. A Síncope das Ideias: A questão da tradição na música popular
brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
NAPOLITANO. Marcos. História & Música: História cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
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Sete Mares numa ilha. Documentário. Direção: Kátia Maheirie e André Gassen, 1999.
Disponível em: http://www.rocksc.com.br/2009/10/sete-mares-numa-ilha-documentario1999.html . Visto dia 20 de março de 2015.
TATIT, Luiz. Análise Semiótica Através das Letras. 2ª ed.São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
TATIT, Luiz. Musicando a Semiótica. 2ª ed. São Paulo: Annalube/FAPESP, 1997.
TATIT, Luiz. O Século da Canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
Referência Discográfica
Dazaranha – Nossa Barulheira. Florianópolis: Estúdio do Dazaranha. 2003 (CD)
Dazaranha - Seja Bem Vindo. Florianópolis: RBS Discos. 1996. (CD)
Dazaranha – Tribo da Lua. São Paulo: Atração Fongráfica. 1998 (CD)
Dazaranha-Paralisa. Balneário Camboriú: Studio 55, 2007. (CD)
Grupo Engenho – Vou Botar Meu Boi Na Rua. Florianópolis: Engenho Produções, 1981.
(Vinil)
Ilha de Todos os Sons, Florianópolis: RBS Discos. 1994. (CD)
Iriê – Ao Vivo no Atol, Florianópolis: Meta Produções . 1998. (CD)
Iriê – Iriê. São Paulo: WEA. 2007. (CD)
Iriê – Translação. Florianópolis: Iriê produções. 2001 (CD)
Iriê – Vamos Passear. Florianópolis: Metatron. 2003. (CD)
Phunky Buddha – Phunky Buddah, Florianópolis: Templo do Universo Paralelo. 1999. (CD)
Primavera nos Dentes – O Parto São Paulo: Creative Sound. 1997. (CD)
Projeto 12:30 – Florianópolis: Departamento Artístico Cultural – UFSC. 1999 (CD)
Tijuquera – Quem Quiser é isso Aí... 2006 (CD)
Tubarão/Expresso. Florianópolis: Grupo Expresso Produções. 1988. (Vinil)
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Documentários utilizados
KAIR,
Sidney.
Vagabundos.
2012
Disponível
https://www.youtube.com/watch?v=IlKRHEb6iNY&list=PL7BD8DCD501DCE0BE
dia 20 de março de 2015.
em:
Visto
MAHEIRIE, Kátia e GASSEN, André 1999. Sete Mares numa ilha. Documentário. 1999.
Disponível em: http://www.rocksc.com.br/2009/10/sete-mares-numa-ilha-documentario1999.html . Visto dia 20 de março de 2015.
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