EVANGELHO DE MATEUS: UMA COMUNIDADE RESISTENTE*

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EVANGELHO DE MATEUS:
UMA COMUNIDADE
RESISTENTE*
ELENICE FÁTIMA DE OLIVEIRA**
Resumo: o evangelho de Mateus é fruto da percepção elaborada por uma comunidade de
seguidores, que interpreta a mensagem de Jesus, com base em sua própria realidade. É formada
por judeu-cristãos, na cidade de Antioquia, Síria. Este Evangelho reflete a luta e o conflito
vivenciado por este grupo de seguidores de Cristo. A comunidade de Mateus é considerada
uma comunidade resistente, pois enfrenta os opositores com convicção e elabora um plano
alternativo de sobrevivência..
Palavras-chave: Evangelho de Mateus. Comunidade. Resistência. Interpretação.
N enhuma leitura é isenta de influência, pois ler é interpretar. Para interpretar,
supõe-se que o intérprete condiciona sua leitura por uma espécie de pré compreensão, que surge do seu próprio contexto vital (CROATTO, 1986, p. 9).
É preciso compreender o contexto para entender os recados do texto. Os textos Bíblicos
sofreram e sofrem, essa dinâmica; para interesses diferentes, leituras diferentes. O mesmo
texto poderá sofrer variações dependendo da interpretação que lhe será dada por parte de
quem o lê e automaticamente o interpreta. Foi assim nos inícios dos Cristianismos, na
formulação dos primeiros escritos; A isso se deve à falta de uniformidade nos textos que
fundamentaram a fé cristã nos seus inícios. Os Evangelhos foram importantes fundamentos da fé e da espiritualidade crista, e sua elaboração se deu com base na interpretação das
tradições acerca do Cristo, por parte das comunidades que o receberam como tal. Os textos do Novo Testamento são fonte para estudos da história do movimento
de Jesus e dos inícios de comunidades cristãs, dentro do contexto político-administrativo
do império Romano e religioso-cultural do judaísmo do Século I (REIMER, 2012, p. 235).
* Recebido em: 12.08.2015. Aprovado em: 20.08.2015.
** Mestranda em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade de Goiás. E-mail: [email protected]
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 25, n. 3, p. 369-378, jul./set. 2015.
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Os textos dos evangelhos foram produzidos a partir da experiência das comunidades que se
formaram em torno do Jesus histórico e refletem a percepção dessas comunidades dentro de
seu contexto religioso-político. A comunidade de Mateus, como qualquer outra, defrontava-se com a tarefa de explicar suas experiências e convicções para os membros seguintes e desenvolver estruturas e procedimentos que ajudassem a protegê-la de forças e crenças estranhas
(OVERMAN, 1997, p. 13,17). O Evangelho de Mateus deve ser compreendido levando
em conta a concorrência e o conflito com os judaísmos em formação. Eventos importantes
ocorreram durante o século I e proporcionaram às várias comunidades que se formaram nesse
período, inclusive o judaísmo formativo e a comunidade de Mateus, a oportunidade de se
organizarem e se definirem. Essa organização e definição se dará dentro de uma sociedade
marcada pelas desigualdades, pelos excessos, pelos abusos e pelas injustiças.
O autor final exerceu forte controle redacional e criativo sobre os documentos e tradições a sua disposição. Ele os organizou e modificou para satisfazer as necessidades de seu grupo, transmitir sua interpretação do movimento de Jesus e divulgar suas soluções para problemas do grupo. A história de Jesus
em Mateus reflete a experiência do grupo mateano e sua situação social (SALDARINI, 2000, p. 13).
Compreender o que está ao redor de uma comunidade nos ajudará a entendê-la no
seu interior. Quem compunha a comunidade de Mateus? De onde vieram? Quais acontecimentos históricos marcantes circundavam esta comunidade? Em que período tudo aconteceu? Os
textos que compõem o evangelho foram produzidos dentro de uma realidade experimentada
por um certo grupo que formula reações, criando sua identidade e se fortalecendo. Este grupo, ou esta comunidade se utiliza de material informativo a respeito do Cristo e elabora sua
própria percepção a seu respeito, fazendo um elo entre o passado religioso judaico e a experiência inovadora que acreditavam ter conhecido. Portanto, essa experiência ou essa realidade
não é o início de tudo. A espiritualidade cristã acontece dentro da história dos testamentos
e os evangelhos são importantes fundamentos dessa espiritualidade. O evangelho de Mateus
foi produzido em meio a um grande conflito e é exatamente isso que buscamos, a origem do
conflito e a razão de ser de sua produção.
SITUAÇÃO VITAL DO EVANGELHO DE MATEUS
Para a compreensão do cenário e do ambiente onde se desenvolveu a comunidade
de Mateus, precisamos resgatar alguns dados históricos e seus respectivos períodos. A Comunidade de Mateus era formada inicialmente por judeus. Saldarini (2000, p. 146) levanta a
hipótese de que o grupo mateano é uma assembleia doméstica de judeus que creem em Jesus,
têm entendimento próprio da Bíblia e da vontade de Deus interpretada por Ele; Esse tipo de
assembleia doméstica era comum na sociedade greco-romana, e é semelhante a associação voluntária. Muitos intérpretes das escrituras, modernamente, utilizam-se do método de leitura
de textos bíblicos para compreender a realidade e o contexto do autor e seus grupos. Parece
ser este o caso de Mateus; ele está recontando a história do Cristo, com base em Marcos e na
sua própria percepção, para narrar a própria história de seu grupo. Sendo assim, os discípulos
de Jesus servem de descrição para o grupo mateano mais tardio e simbolizam as atitudes e
o comportamento dele. A correspondência não é perfeita, por isso os dados fornecidos por
Mateus precisam ser usados para a reconstrução de sua visão de sociedade.
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A comunidade mateana antes de se tornar uma comunidade, era apenas um grupo
dentro de uma comunidade judaica. Para muitos a denominação comunidade sugere separação e independência do judaísmo, o que de fato ocorrerá em um dado momento na história
desse grupo. As perdas sofridas nas relações comuns e no conflito social com a comunidade
judaica são suportáveis devido as metas a serem alcançadas. O desejo que eles sentem de uma
relação renovada com Deus por intermédio de Jesus e o conflito deles com o resto da comunidade judaica combinam-se para produzir um forte senso de identidade de grupo (SALDARINI, 2000, p. 153). Para compreendermos o surgimento desses grupos e a razão de suas
disputas retomemos algumas questões e antecedentes do judaísmo de 165 a.C. a 100 d.C.
Esse período foi marcado pelo surgimento de inúmeras seitas e é perceptível a facciosidade
dentro do judaísmo. Questões políticas e religiosas se misturam e a confusão parece pairar
por toda a parte. Este é um período marcadamente importante para a sociedade judaica,
pois irá revelar o comportamento de líderes religiosos após um longo período de reformas
no pós-exílio na Babilônia.
O período de 165 a.C. a 100 d.C. na Palestina foi fluido e diversificado. Isto se
deve, além de outros motivos, ao duro tratamento dado a muitos Israelitas por seus governantes selêucidas (Síria), a crescente influência do helenismo e sua sedução para israelitas e
aversão para outros, e os abusos de governantes asmoneus (família sacerdotal) posteriores,
foram fatores que levaram à divisão. Entre 167-164 ocorreu a resistência dos Macabeus ao
domínio grego e essa resistência durou até o ano 37 d.C. quando então os romanos dominaram a Palestina. Entre os elementos que provocaram fragmentação no século I d.C. estiveram
a ocupação romana, as escolas judaicas e a destruição do templo de Jerusalém (OVERMAN,
1997, p. 22,23). A consciência da facciosidade característica desse período volátil da história
de Israel é crucial para um entendimento adequado dos judaísmos formativo e de Mateus.
Devido à alternância do poder proveniente das inúmeras alterações políticas e religiosas desse período, vários grupos ou movimentos se formaram e reivindicaram para si o
poder. Para o historiador Josefo havia três facções ou escolas entre os judeus: os fariseus, os
saduceus e os essênios. Estes fariseus tiveram uma escalada na vida religiosa e política, pois
conquistaram prestígio e chegaram a ocupar importantes cargos no governo. Sua influência
política variava, devido á alternância do poder governamental na Palestina. Também gozavam de bastante popularidade entre o povo e tiveram grande influência. O papel dos fariseus
como grupo político diferenciado associado aos governantes políticos é aludido na tradição
dos evangelhos (Mc 3,6; 12,13).
Segundo Josefo, os fariseus surgiram como um corpo organizado e um grupo diferenciado politicamente viável por volta do ano 100 a.C. Isso teria sido em algum momento durante o reinado de
João Hircano ou de Alexandre Janeu. Eles eram um grupo suficientemente distinto para que Josefo
pudesse descrever suas crenças e piedade a seus leitores romanos. Os fariseus desfrutavam o apoio
do povo. Ele era sua base de poder e influência. Eles eram apenas uma de muitas seitas ou facções
ativas nesse período. Eles experimentaram tanto proteção como alienação e estavam nitidamente
envolvidos na competição e no conflito entre vários grupos, partidos e comunidades (OVERMAN,
1997, p. 27).
Onde teve início a comunidade de Mateus? Carter (2002, p. 10), defende que o
evangelho de Mateus se origina de um grupo de judeu-cristãos, que vivem na grande cidade
de Antioquia, na Síria. Esta comunidade, não era constituída pela elite dirigente, e não comFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 25, n. 3, p. 369-378, jul./set. 2015.
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partilhava seu interesse em Jesus com a maior parte de sua sociedade. Nenhum manuscrito
dos evangelhos indica o local em que foram escritos ou os seus autores; evidências são utilizadas para definir estas questões. Em 70 d.C. o império romano invadiu a Palestina, que já
era sua colônia e lhe pagava tributos. Sufocou o movimento judaico revolucionário, tomou
Jerusalém e destruiu o templo. Neste período os judeus que conseguiram fugir de Jerusalém
tiveram que se reorganizar. As comunidades cristãs que já existiam em Jerusalém saíram antes.
Algumas foram para a cidade de Pela, ao lado oriental do rio Jordão, outras se espalharam
pela Síria e Fenícia, e outras ainda se refugiaram junto à comunidade de Antioquia na Síria.
E foi provavelmente de Antioquia, por volta dos anos 80 d.C., que Mateus escreveu o seu
evangelho para essas comunidades.
A data da composição dos evangelhos também se revela incerta, em razão de
os manuscritos não darem nenhuma indicação a esse respeito. Outras evidências são consideradas para se supor essa data. O Evangelho de Mateus, ao que tudo indica, deve ter ficado
pronto por volta dos anos 80 d.C. Mateus utiliza Marcos como uma de suas fontes, e Marcos
só foi escrito por volta de 70 d.C. em Roma. Mateus reescreve Marcos, acrescentando, ou
interpretando este evangelho. Ele faz referência à destruição de Jerusalém, consumada em 70
d.C pelos romanos e a interpreta como uma punição divina (Mt 22, 1-14). Antioquia era
uma das três maiores cidades do império romano. Lá havia um grande número de Judeus que
viviam tanto na zona rural quanto na urbana. Era uma cidade composta por várias etnias e
classes de pessoas. Como centro comercial, Antioquia era o ponto de convergência para várias
rotas comerciais principais norte-sul e leste-oeste.
A maioria das pessoas que ali viviam estavam mergulhadas em profunda marginalização. As autoridades estavam comprometidas com o poder romano em troca de favorecimento. Quem tinha ligações com o poder era por este favorecido, quem não tinha era extorquido. As altas taxas de impostos eram duramente cobradas para a manutenção de um poder
imperial que não conhecia limites. Autores antigos reconhecem que juízes e veredictos podiam
ser comprados. Aqueles com riqueza e status elevado recebiam tratamento mais favorável que
aqueles de níveis inferiores. Reputação e dinheiro funcionavam a favor de um e contra outro
(CARTER, 2002, p. 37). Antioquia era considerada uma cidade grande para os padrões da
época, e de intensa densidade populacional. A estrutura social dessa cidade não fugia à regra
das demais do império. Com uma população mínima de ricos e os demais que serviam às suas
necessidades. Fora da cidade estavam os camponeses, sobrecarregados de tributos e sempre se esforçando para alcançar uma existência de subsistência. Alguns eram proprietários com diversos
tamanhos de posses; outros eram arrendatários, jornaleiros (Mt 20, 1-16).
Além de ser hierárquica, vertical e interconectada, a estrutura social era marcada pela hostilidade. Os
escritos da elite indicam que eles desprezavam a não elite, um historiador social observa: “podemos
notar de passagem as categorias que são passíveis de escárnio: na cidade, artesãos insignificantes e
gente sem local comercial fixo, os sem dinheiro; no campo, os camponeses. E em todo lugar, escravos, as crianças e as mulheres”. Enquanto alguns membros da elite, não da cidade ou do império,
realizaram doações para grupos escolhidos de “pobres merecedores” e muitas vezes em vista da honra
ou benefício do provedor, a opinião geral parece ser que era impossível fazer o bastante e que a
maioria dos pobres geralmente merecia, nada mais e nada menos, que a sua pobreza (CARTER,
2002, p. 41).
A relação cidade/campo parece ter sido uma relação de desconfiança e desprezo.
O Camponês desconfiava da cidade e os da cidade desprezavam os camponeses, considerados
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por eles gente sem classe. A narrativa do evangelho parece refletir toda essa realidade sócio
econômica e a estrutura social da cidade de Antioquia, que era, na verdade a de todo o império. Apesar de o evangelho ter um foco nos marginalizados, pelo uso frequente do termo “pequeninos”, entre outros, e a constante narrativa envolvendo crianças, mulheres, camponeses,
estrangeiros, alguns comentaristas afirmam que a audiência de Mateus pode não ser composta
apenas por esta classe de marginalizados. Algumas evidências levam a crer que havia no grupo
de Mateus alguns representantes de um ambiente urbano. O uso da palavra cidade vinte e
quatro vezes, pode ser uma evidência.
Dada a experiência comum de endividamento, perda de terras e perda de status e relações de parentesco conforme o povo rural se mobilizava para a cidade procurando algum meio para sobreviver, é
provável que parte dessas pessoas fizesse parte da audiência de Mateus. A antiga opinião de que as
comunidades do cristianismo primitivo eram constituídas quase que exclusivamente de miseráveis
sociais e econômicos não parece sustentável. Antes, a audiência parece representar uma amostra de
sua sociedade (CARTER, 2002, p. 50).
Parece que também é consenso entre os estudiosos dos evangelhos de que a comunidade de Mateus era pequena, numericamente falando. E que inicialmente fazia parte da comunidade maior, judaica. Todos se reuniam em assembleias e também as próprias casas eram
locais de culto. Como as casas eram pequenas, estima-se um grupo de no máximo quarenta
a cinquenta pessoas. Este número é apenas uma estimativa, pode ser que não corresponda à
realidade daquela comunidade. O que se sabe é que no início este grupo era composto por
judeus, mas aos poucos foi se abrindo para a entrada de estrangeiros.
O MÉTODO UTILIZADO POR MATEUS PARA INTERPRETAR AS ESCRITURAS
O evangelho de Mateus interpreta as passagens bíblicas como profecias do presente
e do futuro das respectivas comunidades, essênia e cristã. Mateus procurou desenvolver uma
genealogia e teologia de Jesus, como expressão da fé vivida nas comunidades. As citações do
AT são interpretadas à luz do acontecimento cristão. Mateus também faz uso bem amplo
do AT, em particular do evangelho da infância, em torno ao tema do novo Êxodo e do novo
Moisés. Em Mateus tudo em torno de Cristo e sua doutrina acontece “para que se cumpra” o
dito pelos profetas (1,23; 2,6. 15. 23; 27,9). Mateus insiste no cumprimento escatológico das
profecias do AT. Ele introduziu em sua genealogia de Jesus, cinco mulheres, todas mal afamadas, Raab, Tamar, Rute, Batzabéia, Maria. A colocação dessas mulheres na genealogia de
Jesus foi revolucionária, rompendo com a cultura rabínica que não considerava mulheres nas
genealogias. Estas mulheres não fizeram parte da elite, antes, para os padrões da época foram
mulheres excluídas. Mateus quer mostrar que o enviado de Deus, Jesus é o cumprimento profético de 2 Sm 7-14, e em seu projeto de nova justiça incluía os marginalizados e os excluídos.
O evangelho de Mateus representou para a sua comunidade, a síntese de um programa muito bem elaborado pelo autor e redator final desse material, com a finalidade de
apresentar o Cristo, como um mestre extraordinário. Stegemann (2012, p. 51), observa que o
Evangelho de Mateus, em relação ao de Marcos, oferece um texto, claramente aumentado em
cerca de 60%. Oferece, depois da genealogia de Jesus, algumas informações sobre seus pais
e sobre uma série de circunstâncias relacionadas com o seu nascimento (Mt 1-2). Descreve
encontros do Cristo já ressurreto com sua comunidade de seguidores (Mt 28). Este programa
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sintetiza os ensinos de Jesus em cinco grandes discursos: Capítulos 5-7, sermão do monte;
Capítulo 10, discurso missionário; capítulo 13, discurso de parábolas; Cap. 18, discurso da
igreja; capítulos 23-25 discursos escatológicos.
Esses cinco discursos, organizados assim, fazem lembrar os cinco livros do Pentateuco e Jesus é apesentado como o Mestre dos mestres. Entremeados aos discursos aparecem
dez milagres feitos por Jesus, comparados com as dez pragas ou maravilhas do Êxodo 7-11.
Os Evangelhos são considerados literatura popular e foram pensados e elaborados com este
critério. Mosconi, (2004, p. 18-20) apresenta algumas características da literatura popular,
presente nos Evangelhos: Lê o passado em função do presente, é existencial; é feita de pequenos textos, e não de grandes e compridos discursos, é fragmentária; não aparecem nomes de
autores; gostam de enfeites para salvar a verdade dos fatos; usa linguagem simbólica e parabólica, pois isso ajuda a gravar mais os recados; ela é militante, comprometida com a vida, com a
defesa da vida, sobretudo com os pobres e dos marginalizados. Não é literatura clássica fria e
ausente. Os evangelhos são textos compostos por militantes do Reino e a eles se destina, bem
como a pessoas que querem entrar na militância do Reino e do seguimento a Jesus Cristo.
É recorrente em Mateus o uso das expressões “Reino dos Céus e nova Justiça”.
Este discurso é usado para contrastar com o reino do mundo representado pelo império romano, pelos líderes religiosos e no período de Mateus pelos judaísmos formativos e rabinos
(fariseus). Ao longo de todo Evangelho, há uma briga forte e acirrada de Jesus com os líderes
judeus: anciãos, sumos sacerdotes, sobretudo, fariseus e doutores da Lei. Mateus narra essa
polêmica de Jesus com os líderes para demonstrar que sua comunidade e os redatores dos
Evangelhos tiveram muitos atritos com fariseus e escribas, seus vizinhos de casa. Repetidas
vezes, fala-se em Mateus, com uma certa distância e desprezo, de “suas sinagogas”, “sinagogas
deles” (4,23; 9,35; 10,17; 12,9; 13,54; 23,34).
Muitos integrantes da comunidade mateana vieram da Palestina, especialmente da
Galileia, onde haviam muitos camponeses e as terras de lá haviam se tornado latifúndio nas
mãos dos romanos. Muitos camponeses se tornaram arrendatários de suas próprias terras e
qualquer manifestação de revolta popular era imediatamente sufocada pelo exército romano.
Portanto, os sem-terra, os despossuídos agora estavam reunidos em torno de uma esperança
chamada Jesus de Nazaré. A narrativa do Evangelho de Mateus é construída paulatinamente
e tem como objetivo principal responder a duas questões importantes relativas à comunidade:
Quem é Jesus para nós, e como é ser discípulo dentro da nossa realidade? Ao responder essas
duas questões a comunidade de Mateus vai formando sua própria identidade e fortalecendo a
convicção de que agora são os representantes do povo de Deus, na terra, ou seja, o novo Israel.
A COMUNIDADE MATEANA RESISTE
Não será assim tão fácil para esta comunidade, convencer os grupos fragmentados
do judaísmo de sua legitimidade como povo de Deus, nem será fácil convencê-los de que Jesus é o Cristo. A comunidade de Mateus encontrou forte resistência por parte destes grupos,
especialmente por parte de certo grupo judaico conhecido como judaísmo formativo. Com a
destruição de Jerusalém, do templo, das instituições judaicas, sacerdotes, sinédrio (Supremo
Tribunal dos judeus) e o consequente esfacelamento e dispersão, o momento era o de reorganizar. Alguns fariseus, liderados por Johan Ben Zakhai, escriba sobrevivente do Sinédrio,
fizeram assembleias em Jâmnia, por volta dos anos 75 - 85 a.D. e fundaram uma espécie de
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novo Sinédrio composto exclusivamente por fariseus e escribas. Este grupo lançou as bases
do novo judaísmo. Aos poucos foram expondo seu programa e foram alcançando reconhecimento pelos judeus da Palestina e de fora. Este programa também chegou até Antioquia,
onde estava a comunidade mateana. Alguns judeu-cristãos começaram a ter dúvidas a respeito
da pessoa de Jesus e da fé que professavam. Mateus, temendo essa influência e autoridade sobre sua comunidade, ataca a legitimidade desse grupo, pois só pelo fato de não reconhecerem
Jesus, como o Cristo, já os tornava ilegítimos, na ótica de Mateus. Este grupo contra-ataca e
argumentam que têm tradição como intérpretes da Lei.
O grupo de Mateus foi considerado, por eles como dissidentes e heréticos, foram
expulsos de suas assembleias, desprezados e considerados até como inimigos (9,35; 10,17;
12,9; 23,24). O programa dos fariseus previa a canonização dos textos sagrados, de língua hebraica, adequação de um judaísmo sem pátria e sem templo, a casa se transforma em local de
culto e procuram manter viva a memória do templo. O conflito vai aumentando e é perceptível de ambos os lados, pois em uma dessas assembleias os fariseus proferiram dezoito bênçãos
para os judeus e uma maldição para os cristãos, considerados agora, inimigos. Os judeus rabínicos (fariseus) e os cristãos mateanos frequentavam os mesmos locais de culto, partilhavam a
fé e esperança no Deus único, e nas tradições contidas no At. O conflito entre eles tem origem
na disputa pelo poder. O grupo de Mateus tenta sobreviver, influenciar e se manter no poder,
apesar da resistência por parte dos fariseus, que também procuram a mesma coisa.
A grande dificuldade de Mateus com esses líderes judaicos é que eles não entenderam a mensagem de Jesus, de libertação, de inclusão do necessitado, de simplicidade na fé;
antes queriam impor costumes e leis judaicas, consideradas ultrapassadas, na ótica de Mateus,
a todos, mesmo aqueles que vieram do paganismo. A esses os ritos judaicos não tinham o
menor sentido. Mateus tenta mostrar que os ritos religiosos, por si sós não são instrumentos
suficientes de salvação. Esta só seria alcançada mediante o reconhecimento de Jesus, como
o Cristo, o ungido de Deus. A grande novidade trazida por Jesus é que agora, o ser humano
teria acesso a Deus independente dos rituais, dos sacerdotes, e do templo, isto seria possível
mediante um novo nascimento. Esta teologia resume toda a espiritualidade da fé cristã, baseada no encontro do espírito humano, com o Espírito de Cristo.
Mateus apresenta Jesus como o Filho de Davi e de Abraão. Era grande a expectativa,
entre os judeus, de um Messias, mas este só poderia ser descendente de Davi, conforme as
promessas contidas no Antigo Testamento (Mt 2,4-6; 22,41-42). A narrativa de Mateus deve
ser lida como uma contra narrativa. Mateus está dando respostas aos ataques do grupo rival
ao mesmo tempo que está também apresentando seu programa. Para os judeus Moisés era o
único legislador legítimo. Mateus apresenta Jesus, como o Novo Moisés, capaz de dar sentido
à nova Lei. Muitas são as evidências ligando fatos da vida de Jesus à de Moisés. Como Moisés
subiu ao monte e lançou o decálogo (Êxodo 20), Jesus subiu a um monte e lá promulgou
a nova Lei aos discípulos (Mt 5, 1-12), as Bem-aventuranças; Como no Sinai nascia Israel,
com as Bem-aventuranças estava nascendo as bases do novo Israel. Esta seria a identidade da
comunidade/igreja.
Mateus apresenta Jesus como Messias pobre e sofredor. Esta identidade de Jesus irá
se identificar com os pobres e sofredores da comunidade mateana. Esta certamente não era
a identidade da elite, nem dos líderes religiosos. Jesus é aquele que anuncia e realiza o Reino
dos Céus, por isso a comunidade ao se identificar com Ele, entende que deve ser portadora
das boas novas do Reino. Com a morte e ressurreição de Jesus, o Reino irrompe na terra e a
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comunidade tem a missão de anuncia-lo, ainda que seja perseguida, incompreendida ou sofra
dificuldades. Ela deve resistir pois esta missão agora lhe foi dada (Mt 10). Não seria fácil o
cumprimento dessa missão, o próprio Jesus alertou: “Eu não vim trazer paz sobre a terra, mas
espada” (Mt 10,34). A terra não estava madura para receber o anúncio da chegada do Reino
dos Céus, mas com certeza a espada do juízo traria as consequências de sua rejeição.
A elite representada por reis, governadores, altos oficiais, latifundiários, blasfemadores, opressores, pecadores, seria julgada por não reconhecer em Jesus, o único
Senhor; A comunidade, também, deve reconhecer em Jesus seu único Senhor, não deve mais
se curvar diante de líderes comunitários, escribas, Sinédrio, imperador romano, nem deve
haver hierarquia entre seus membros. O programa de Mateus para sua comunidade previa
um viver separado do sistema político vigente e sobreviver, apesar dele; isso causou muitos
conflitos, de todo gênero (Mt 10,34-39). O conflito maior, todavia, foi com os judeus das
sinagogas. A exigência de Jesus quanto à observância da justiça excedente, deslegitimava-os
como autoridade religiosa. Para Mateus, a justiça que vinha sendo praticada por esses líderes
não representava a vontade de Deus, que desde sempre esteve a favor dos necessitados.
CONCLUSÃO
O Evangelho de Mateus é fruto da leitura feita pelas comunidades judaico-cristãs,
levando em conta a sua situação, sua expectativa e sua necessidade. A comunidade mateana,
composta por judeus e gentios, constrói uma imagem do Cristo, baseada em fragmentos de
textos informativos acerca de Jesus, e com base no Evangelho de Marcos. A percepção dessa
comunidade está baseada na interpretação das profecias contidas no AT e nas promessas nele
contidas. O redator do final do Evangelho organiza as informações com um propósito bem
definido: o de anunciar quem é Jesus para eles e como é segui-lo apesar das resistências. O grupo
mateano representa a sociedade da época, composta por marginalizados, excluídos, discriminados, empobrecidos e sem pátria; eram vítimas de um sistema cruel e insaciável, que queria
sempre mais; o império romano. O contexto vital de Mateus deve ser levado em conta para
uma melhor interpretação de seu texto. Na composição do Evangelho Mateus usa o estilo de
literatura popular, compondo-o com partes dos discursos de Jesus e partes narrativas.
Esta comunidade era formada por judeu-cristãos, vindos da Galileia e de Jerusalém,
e de outras regiões da Palestina. A Galileia era uma região onde havia um grande número
de camponeses, que tiveram que deixar suas casas depois de perderem suas terras. Partiram
para Síria em busca de terra, de trabalho, de sobrevivência e de sossego. Ao chegarem em Antioquia, se uniram às outras comunidades judaicas lá existentes. No início o relacionamento
parecia pacífico, mas com a necessidade de reorganizarem o judaísmo, que havia se fragmentado, após o ano 70, as coisas foram se tornando difíceis, pois a disputa pelo poder era acirrada e não dava trégua. O conflito se tornou intenso após o concílio de Jâmnia, promovido
pelo grupo de fariseus, conhecidos como judaísmo formativo. A intenção desse concílio era
formular as bases do novo judaísmo e estabelecer os fariseus no poder.
A comunidade mateana é considerada uma comunidade de resistência, pois mesmo
em meio a ameaças e perseguições, ela rebate as críticas e insinuações dos grupos concorrentes
e entra na disputa armada com a palavra de Deus e a fé. Reescreve a história de Jesus com
seus discípulos, estabelecendo uma correspondência com sua própria realidade. O conflito
se intensifica, as perseguições aumentam, sofrem violência física, são expulsos das sinagogas,
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mas em meio a tudo isso, essa comunidade consegue criar sua própria identidade e se entende
como responsável pelo anúncio da chegada do Reino dos Céus a todos, judeus e gentios.
MATTHEW´S COMMUNITY: A RESISTANT COMMUNITY
Abstract: The Mathew Gospel is result of perception made by a community of followers, which interprets the Jesus’s message, based on his own reality. It is consisted of jewish-christians, in Antioch,
Syria. This Gospel reflects fight and conflict from this group of Christ followers. The community
of Mathew is considered a resistant community, because faces his opponents with conviction and
made an alternative plan to survive.
Keywords: Gospel of Mathews. Community. Resistance. Interpretation.
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