UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO DIAGNOSE E ENSINO DE PRONOMES: UM ESTUDO SOBRE A RETOMADA ANAFÓRICA DO OBJETO DIRETO DE TERCEIRA PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Juliana Magalhães Catta Preta de Santana 2016 DIAGNOSE E ENSINO DE PRONOMES: UM ESTUDO SOBRE A RETOMADA ANAFÓRICA DO OBJETO DIRETO DE TERCEIRA PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Juliana Magalhães Catta Preta de Santana Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientadora: Profa. Doutora Silvia Rodrigues Vieira Rio de Janeiro Fevereiro de 2016 Diagnose e ensino de pronomes: um estudo sobre a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no Português brasileiro Juliana Magalhães Catta Preta de Santana Orientadora: Professora Doutora Silvia Rodrigues Vieira Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Silvia Rodrigues Vieira – UFRJ _________________________________________________ Profa. Doutora Mônica Tavares Orsini – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Ricardo Joseh Lima – UERJ _________________________________________________ Doutor Antonio Francisco de Andrade Júnior – UFRJ – Suplente _______________________________________________ Prof. Doutor Gilson Costa Freire – UFRRJ – Suplente Rio de Janeiro Fevereiro de 2016 SANTANA, Juliana Magalhães Catta Preta de. Diagnose e ensino de pronomes: um estudo sobre a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no Português brasileiro / Juliana Magalhães Catta Preta de Santana. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2016. xi, 205f.: il.; 31cm. Orientadora: Silvia Rodrigues Vieira Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2016. Referencias Bibliográficas: f. 177-181 1. Retomada anafórica. 2. Objeto direto de terceira pessoa. 3. Sociolinguística. 4. Ensino de Português. I. Vieira, Silvia Rodrigues. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Diagnose e ensino de pronomes: um estudo sobre a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no Português brasileiro. SNOPSE Estudo sobre as variantes da retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no PB. Análise de base qualitativa de materiais didáticos e entrevistas com docentes. Análise sociolinguística variacionista de corpus de redações escolares de estudantes do Rio de Janeiro no 9º ano do Ensino Fundamental. Análise da correção efetivada nas redações, no âmbito da rede pública de ensino. SANTANA, Juliana Magalhães Catta Preta de. Diagnose e ensino de pronomes: um estudo sobre a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no Português brasileiro. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2016. RESUMO Esta pesquisa investiga a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa como fenômeno gramatical variável no Português do Brasil e sua correlação com o ensino de pronomes no que concerne ao referido fenômeno. Para tanto, pauta-se no quadro teórico da Sociolinguística Variacionista (WEINREICH, LABOV & HERZOG, [1968] 2006; LABOV, [1972] 2008) e na Sociolinguística Educacional proposta por Bortoni-Ricardo (2004), além das contribuições de autores que têm desenvolvido discussões relevantes ao âmbito do ensino da Língua Portuguesa (cf. MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014; VIEIRA, 2015, no prelo). Ao compreender o ambiente escolar, considera-se, aqui, especialmente relevante a atuação de três agentes: a orientação prevista no material didático; a mediação do professor; e a atividade de seus alunos. Assim, objetiva-se diagnosticar como se concretiza a integração e atuação dessa “tríade” no tratamento dispensado ao fenômeno linguístico em abordagem, a qual, julga-se, influencia mais diretamente o estudo da língua. Para tanto, foram realizadas três seções de análise: (i) análise do material didático utilizado pelas professoras em sala de aula, de forma a averiguar como este se comporta com relação à variedade existente no PB para o fenômeno linguístico em questão; (ii) análise de entrevista realizada por escrito com as referidas professoras, no intuito de alcançar sua compreensão sobre o espectro da variação e de normas de uso no PB; (iii) análise do corpus extraído de redações escolares corrigidas pelas mesmas professoras, de modo a compreender quais as estratégias de retomada encontradas na produção escrita dos seus estudantes e, ainda, verificar quais destas formas foram por elas corrigidas ou não e por que motivo. A partir da análise dos resultados obtidos, pode-se articular algumas reflexões para ensino, sobretudo no que tange à abordagem de fenômenos gramaticais variáveis, mais especificamente acerca das variantes do acusativo anafórico de terceira pessoa. Palavras-chave: Retomada anafórica; objeto direto de terceira pessoa; Ensino de Português; Sociolinguística. SANTANA, Juliana Magalhães Catta Preta de. Diagnose e ensino de pronomes: um estudo sobre a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no Português brasileiro. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2016. ABSTRACT This research investigates the anaphoric reference of the direct object of the third person as a variable grammatical phenomenon in Brazilian Portuguese and its correlation with the teaching of pronouns regarding the study of the referred phenomenon. With that goal, it is based on the theoretical framework of Variationist Sociolinguistics (WEINREICH, LABOV & HERZOG, [1968] 2006; LABOV, [1972] 2008) and Educational Sociolinguistics proposed by Bortoni-Ricardo (2004), and also on the contributions of authors that have been developing relevant discussions within the scope of the teaching of the Portuguese language (cf. MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014; VIEIRA, 2015). In understanding the school environment, it is considered to be especially relevant, here, the influence of three agents: the orientation found in the didactic material; the mediation of the teacher; and the activity of their students. Thereby, we seek to diagnose how the integration and the influence of that “triad” materialize in the treatment given to the linguistic phenomenon that is being approached, which, it is believed, influences more directly the studying of the language. With that intention, three sections of analysis have been conceived: (i) the analysis of the didactic materials used inside the classrooms by two teachers acting (during the course of the year 2015) in the 8th grade of public municipal schools in Rio de Janeiro, as a way to verify how such works approach the existing variety found in Brazilian Portuguese of the phenomenon that is being studied; (ii) the analysis of a written interview done with the referred teachers, with the goal to reach their understanding about the spectrum of the variation and the norms of use in Brazilian Portuguese; (iii) the analysis of the corpus extracted from the school compositions corrected by those same teachers, as a way to understand the strategies of anaphoric reference found in the written production of their students and, moreover, verify which of those forms were corrected or not by the teachers and for what reason. From the analysis of the obtained results, we look to articulate some reflections regarding the teaching related to the approach of variable grammatical phenomena, especially the one that is related to the variants in the anaphoric accusative of the third person. Key-words: Anaphoric reference; direct object of the third person; teaching of Portuguese; Sociolinguistic. Ao meu avô, Bely Catta Preta. Incomparável. Eu te amo, vô. (in memoriam) À minha mãe, que “fecha com meus sonhos como ninguém”. À minha vozinha, que ilumina minha vida todos os dias com os mais felizes sorrisos, tranquilos. AGRADECIMENTOS A Deus, a meu anjo da guarda e aos anjos de luz que estão sempre olhando por mim. Obrigada por orientar todos os meus passos, e sempre, sempre me proteger. À minha mãe, a melhor mãe de todas, que está sempre pronta pra me ajudar no que for, mesmo se não estiver pronta. Sem você, nada disso seria possível. Nossa proximidade e cumplicidade são únicas. Obrigada por tanto, mãe. Obrigada por ser você a minha mãe! Minha leitora, minha amiga, meu suporte... e um etc. enorme. “Ela fecha com meus sonhos como ninguém”... À minha vozinha, a mais linda do universo, como faço questão de reforçar, chata e repetitivamente, mas com muito amor, todos os dias. Obrigada por tudo!!!!! Você não sabe como me dá forças e equilíbrio para encarar com mais sabedoria (embora eu ainda esteja engatinhando nesse processo) tudo com que a vida pode nos bridar. Ao meu pai, que está sempre ao meu lado, preocupado comigo, perguntando sobre tudo e disposto a me ajudar em qualquer coisa. Obrigada por estar sempre por perto, meu pai, mesmo quando longe! Você é demais, pai! Ao meu tio Jonas, que vem consecutivamente de São Paulo ao Rio para me auxiliar (salvar) todas as vezes em que a tecnologia tenta nos pregar alguma peça. Na verdade, isso não é nada perto do tio maravilhoso e admirável que você é. A toda minha família, micro e macro, que mais do que me encher de orgulho, me enche de amor e carinho, sempre. Aos amigos que compartilharam, em algum momento, da minha trajetória acadêmica, fazendo com que esse percurso tenha sido (e continue sendo) repleto de alegrias, as quais colorem nossas conquistas profissionais. Àquelxs do coração, que comemoram junto, sobretudo às minhas amigas lindas que compreenderam todos os finais de semana em que eu disse “não vai dar, amiga”. Notícia: agora dá!!! Às escolas municipais do Rio de Janeiro que contribuíram de forma essencial para o desenvolvimento desta pesquisa. Às professoras que gentilmente concederam suas respostas em entrevista, sem as quais seria inviável proceder ao desenvolvimento deste trabalho. À tia Carla, que tanto me ajudou para estabelecer contato com uma das escolas e uma das professoras entrevistadas. Muito obrigada! Ao Professor Antonio Andrade, quem, talvez sem saber, contribuiu em muito para a feitura do anteprojeto que viabilizou minha entrada no âmbito do tão almejado Mestrado Acadêmico em Língua Portuguesa. Suas aulas, além de deixarem saudades, realmente transformaram (apenas positivamente, claro!) minha formação e consequente atuação como professora. À Professora Mônica Orsini, pelas contribuições mais do que valorosas no início do Mestrado, não só nas considerações relevantes conferidas ao ministrar sua disciplina, mas também no auxilio e orientação, em especial, à minha monografia de final de curso, a qual originou o desenvolvimento desta pesquisa. Ao Professor Ricardo Lima, quem se mostrou ser uma pessoa maravilhosa, ainda que nos poucos encontros acadêmicos. À CAPES, por financiar esta pesquisa e contribuir para a continuidade da minha tão sonhada jornada acadêmica. Em especial, à minha querida orientadora, Silvia Rodrigues Vieira, que, mesmo com a vida “uma loucura”, “enlouquecida com (i), (ii), (iii), ...”, sempre encontra disponibilidade para nos orientar. Mais do que orientadora, é uma pessoa verdadeiramente incrível e ainda cumpre papel de psicóloga nos momentos de sufoco. É professora. Com todas as características admiráveis da profissão. Sem mais delongas, fica para a posteridade: #Silviaédiva! Parte desta pesquisa foi financiada por uma bolsa CAPES (maio de 2014 a março de 2016). Cuando arrancaron los camiones, cargados de presos, yo fui uno de los niños que corrieron detrás, tirando piedras. Buscaba con desesperación el rostro del maestro para llamarle traidor y criminal. Pero el convoy era ya una nube de polvo a lo lejos y yo, en el medio de la Alameda, con los puños cerrados, sólo fui capaz de murmurar con rabia: <<¡Sapo! ¡Tilonorrinco! ¡Iris!>> (Manuel Rivas, La lengua de las mariposas) SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 19 CAPÍTULO 1 – REVISÃO DA LITERATURA: O TRATAMENTO DISPENSADO AO FENÔMENO DO ACUSATIVO ANFÓRICO DE TERCEIRA PESSOA ............................................................................................. 23 1.1 A abordagem da tradição gramatical .................................................................. 23 1.2 A abordagem das descrições linguísticas ............................................................ 30 1.2.1 A gramática descritiva de Perini (2007 [1989]) ............................................... 30 1.2.2 A gramática descritiva de Castilho (2014 [2010]) ........................................... 34 1.2.3 A gramática pedagógica de Bagno (2012) ....................................................... 38 1.2.4 Síntese do fenômeno da retomada do objeto direto de terceira pessoa em gramáticas do PB, segundo a tradição gramatical e as descrições linguísticas ........ 43 1.2.5 A abordagem em estudos científicos ............................................................... 46 1.2.5.1 O objeto direto anafórico de terceira pessoa na fala brasileira ..................... 47 1.2.5.2 O objeto direto anafórico de terceira pessoa na escrita brasileira ................. 53 1.2.5.3 O ensino do objeto direto anafórico de terceira pessoa................................. 60 CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................. 66 2.1 A Sociolinguística Variacionista ......................................................................... 66 2.2 A Sociolinguística Educacional .......................................................................... 70 2.3 O ensino de Português - pontos de partida .......................................................... 76 2.3.1 Por um ensino de gramática reflexivo ............................................................. 77 2.3.2 Por um ensino que envolva variação e normas ................................................ 82 2.3.3 Por um ensino de gramática na construção dos sentidos do texto ................... 88 CAPÍTULO 3 – METODOLOGIA E HIPÓTESES DE PESQUISA................. 93 3.1 Procedimentos metodológicos e hipóteses de pesquisa....................................... 93 3.2 Descrição dos ambientes escolares de pesquisa .................................................. 97 3.3 Descrição dos materiais de pesquisa ................................................................... 99 3.3.1 Os materiais didáticos utilizados ..................................................................... 99 3.3.2 A entrevista ...................................................................................................... 101 3.3.3 As redações escolares ...................................................................................... 104 3.3.3.1 Grupos de fatores controlados ...................................................................... 105 3.3.3.2 O tratamento dos dados ................................................................................. 117 CAPÍTULO 4 – ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS MATERIAIS DE PESQUISA .............................................................................................................. 120 4.1 A análise qualitativa: os materiais didáticos e as entrevistas .............................. 120 4.1.1 O Cadernos Pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação (SME) ........ 120 4.1.2 O livro didático Vontade de Saber Português, de Romiere Alves e Tatiane Brugnerotto (2012) .................................................................................................... 126 4.1.3 O Caderno do Futuro do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP). ...................................................................................................................... 130 4.1.4 A perspectiva das professoras: as entrevistas .................................................. 132 4.2 Análise Sociolinguística Variacionista dos dados: a produção textual dos estudantes .................................................................................................................. 140 4.2.1 Distribuição geral dos dados ............................................................................ 140 4.2.2 Análise multivariada dos dados ....................................................................... 142 4.2.2.1 Variáveis relevantes ao emprego do pronome clítico ................................... 143 4.2.2.2 Variáveis relevantes ao emprego do pronome lexical................................... 150 4.3 O grupo de controle correção .............................................................................. 154 4.4 Análise dos resultados: reflexões para o ensino ................................................. 167 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 172 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 177 ANEXOS .................................................................................................................. 182 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1. Percentual das variantes do objeto direto anafórico na escrita de estudantes brasileiros, segundo Averbug (2000). .................................................... 53 Gráfico 2. Percentual das variantes do objeto direto anafórico na escrita de estudantes brasileiros de acordo com seu nível de escolaridade, segundo Averbug (2007) ...................................................................................................................... 54 Gráfico 3. Distribuição geral dos dados de acusativo anafórico de terceira pessoa no corpus de redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental. ...................... 141 Gráfico 4. Probabilidade de uso do ele acusativo em função da variável “estrutura sintática da frase”. ................................................................................... 153 Gráfico 5. Percentual geral de correção do acusativo anafórico de terceira pessoa. ..................................................................................................................... 155 Gráfico 6. Percentual geral de correção ao uso das variantes do OD anafórico de terceira pessoa ......................................................................................................... 157 LISTA DE TABELAS Tabela 1. Uso do objeto direto anafórico de terceira pessoa na produção oral de estudantes do Rio de Janeiro conforme o nível de escolaridade, representada de Averbug (1998 apud AVERBUG 2008, p. 16)........................................................ 49 Tabela 2. Objeto direto anafórico na fala popular brasileira com base nos resultados de Duarte (1986) e Marafoni (2010)....................................................... 51 Tabela 3. Objeto direto anafórico na fala culta brasileira, segundo os resultados de Duarte (1986) e Freire (2000).............................................................................. 52 Tabela 4. Clíticos acusativos na fala e escrita cultas no PB conforme resultados de Freire (2000, 2005).............................................................................................. 54 Tabela 5. Objeto direto anafórico no PB conforme continuum de oralidadeletramento, segundo Freire (2005)........................................................................... 55 Tabela 6. Objeto direto anafórico na escrita culta brasileira e na fala culta lusitana, com base nos resultados de Freire (2005) e Freire (2000) respectivamente........................................................................................................ 55 Tabela 7. Ocorrência de mesmo SN e SN sinônimo conforme o nível de escolaridade; adaptada de Machado (2006, p. 70), com apenas os resultados da variante SN anafórico............................................................................................... 57 Tabela 8. Objeto direto anafórico em redações escolares conforme o gênero textual, segundo Machado (2006, p. 73).................................................................. 58 Tabela 9. Distribuição geral dos dados de acusativo anafórico de terceira pessoa no corpus de redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental........................ 140 Tabela 10. Distribuição das formas do SN anafórico encontradas nas redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental: SN idêntico; SN semelhante; e SN sinônimo. ................................................................................................................. 142 Tabela 11. Atuação da variável “animacidade do antecedente” quanto ao emprego do clítico acusativo. .................................................................................. 143 Tabela 12. Atuação da variável “antecedente do acusativo anafórico” quanto ao emprego do clítico acusativo. ................................................................................. 145 Tabela 13. Atuação da variável “distância entre o antecedente e o acusativo anafórico” quanto ao emprego do clítico acusativo. ............................................... 146 Tabela 14. Atuação da variável “escola” quanto ao emprego do clítico acusativo. 147 Tabela 15. Atuação da variável “função sintática do antecedente” quanto ao emprego do clítico acusativo. .................................................................................. 148 Tabela 16. Atuação da variável “estrutura sintática da frase” quanto ao emprego do clítico acusativo. ................................................................................................. 149 Tabela 17. Resultados do grupo de controle “correção” quanto ao emprego do ele acusativo. ........................................................................................................... 151 Tabela 18. Atuação da variável “animacidade do antecedente” quanto ao emprego do ele acusativo. ....................................................................................... 151 Tabela 19. Atuação da variável “estrutura sintática da frase” quanto ao emprego do ele acusativo. ...................................................................................................... 152 Tabela 20. Distribuição geral do acusativo anafórico de terceira pessoa em função da frequência de correção ............................................................................ 155 Tabela 21. Resultados do cruzamento entre os grupos de fatores “escola” e “correção” sobre o emprego do clítico acusativo. ................................................... 161 Tabela 22. Resultados do cruzamento entre os grupos de fatores “escola” e “correção” sobre o emprego do pronome lexical. ................................................... 165 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Pronomes pessoais segundo a tradição gramatical do PB (ROCHA LIMA, 2012; CUNHA & CINTRA, 2001; BECHARA, 2009). ............................. 28 Quadro 2. Classes e subclasses de substantivos e adjetivos (PERINI, 2007, p. 331) .......................................................................................................................... 32 Quadro 3. Formas pronominais retas e oblíquas do PB conforme Perini (2010) .. 34 Quadro 4. Pronomes pessoais do PB falado e escrito na atualidade, segundo Castilho (2010, p. 477) ............................................................................................ 35 Quadro 5. Pronomes da não-pessoa no Português brasileiro, conforme Bagno (2012, p. 796) .......................................................................................................... 39 Quadro 6. Objeto direto anafórico de terceira pessoa no Português do Brasil – tradição gramatical e descrições linguísticas: quadro-síntese ................................. 44 Quadro 7. Variantes utilizadas na narrativa fictícia para entrevista com docentes. 137 Quadro 8. Síntese dos resultados das análises dos materiais didáticos, entrevistas e redações escolares sobre as variantes clítico acusativo e pronome lexical .......... 168 19 INTRODUÇÃO A pesquisa em Língua Portuguesa, por bastante tempo, encontrou-se dissociada da atuação de professores em sala de aula. Ao que parece, essa situação vem se modificando, ao passo que a produtividade da inter-relação entre teoria e prática vem sendo compreendida. Além do crescente conhecimento sobre a própria Língua Portuguesa, julga-se relevante que a pesquisa teórica, a um só tempo, se beneficie do contexto escolar para ampliar seu horizonte de investigação e conduza a resultados concernentes à prática de professores que trabalham esse conhecimento da língua materna com seu alunado. Nessa perspectiva, a presente pesquisa tem como campo de estudo o contexto do ensino da nossa língua, pautado, de um lado, nos conhecimentos (socio)linguísticos obtidos com relação ao Português do Brasil (doravante PB) e, de outro, na própria investigação da produção linguística escolar. Nesse intuito, tomam-se como aporte teórico os pressupostos da Sociolinguística Variacionista (WEINREICH, LABOV & HERZOG, [1968] 2006; LABOV, [1972] 2008), que esclarecem a relação intrínseca entre língua e sociedade, junto ao princípio da heterogeneidade ordenada, e as contribuições da Sociolinguística Educacional, propostas por Bortoni-Ricardo (2004), área que alia os pressupostos sociolinguísticos aos objetivos do ensino de Português. É intento deste trabalho, portanto, promover uma análise que abarque um estudo de cunho variacionista da língua e sua correlação com o contexto escolar. Nesse âmbito, esta pesquisa investiga a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa como fenômeno gramatical variável no Português do Brasil e o correspondente ensino de pronomes no que concerne à referida função sintática. Em outras palavras, busca-se promover um diagnóstico sobre o modo como se dá o ensino de pronomes, mais especificamente no que tange ao objeto direto anafórico de terceira pessoa, tendo em vista os diversos estudos científicos já realizados sobre o tema, e, a partir disso, articular algumas reflexões para o âmbito do ensino no que diz respeito à abordagem do fenômeno em estudo. Ao focalizar o contexto do ensino, compete ao professor refletir sobre o que se deve ensinar em sala de aula e como se deve fazê-lo. Para tanto, considerar a questão da variação linguística e as características associadas a determinadas variantes constitui uma tarefa presente nessa ponderação. No que se refere ao ensino de pronomes, ainda há uma distância considerável entre as descrições de estudos acadêmicos e o que se verifica, em geral, na prática escolar. Caberia pensar, então, quais variantes têm lugar no ensino e que lugar ocupam 20 essas variantes no contexto escolar. Em se tratando do ensino público do Rio de Janeiro, sabese que as diversas variedades linguísticas referentes ao alunado não correspondem totalmente às aceitas como de prestígio. Assim, a tentativa de submeter os alunos a determinado molde tido como prestigioso na sociedade sugere certa problematização. Ainda que a variedade utilizada pelos alunos contenha variantes socialmente estigmatizadas, é impossível (e ineficaz) simplesmente apagá-las e depositar em seu lugar uma norma de prestígio, com a qual o aluno pouco tem contato. Tampouco é válido manter limitado o conhecimento inicial em língua materna de que dispõem os alunos apenas porque assim já se comunicam em suas comunidades de fala, mas tentar substituir uma norma estigmatizada por outra considerada padrão também é uma forma de limitar o conhecimento linguístico. É necessário que se apliquem formas diversificadas no processo de ensinoaprendizagem, para que os alunos alcancem um contato com o ainda desconhecido e, a partir daí, adquiram novos conhecimentos. Desse modo, a ampliação de suas habilidades linguísticas sucede do provimento de subsídios para que possam se adequar – adequar seus discursos – às circunstâncias a que são e podem vir a ser expostos em sociedade. Isto é, tratase de aprimorar a habilidade linguística dos alunos em adequar-se aos possíveis contextos de interação comunicativa. Nesse propósito, é preciso considerar três agentes que se integram e influenciam mais diretamente o estudo da língua: a orientação prevista no material didático, a atuação do professor e a atividade de seus alunos, o que vai resultar em um trabalho conjunto. Em vista disso, o objetivo geral desta pesquisa é justamente verificar como se concretiza a tríade “material didático – orientação do professor – domínio por parte dos alunos” no que tange às variantes linguísticas existentes para a representação do objeto direto anafórico de terceira pessoa. Os estudos anteriores indicam as seguintes variantes existentes no PB para o referido fenômeno linguístico: a) o pronome clítico, como em Margoᵢ descobriu que seu namorado aᵢ traía com sua “AMIGA” e ela decide se vingar, que é a variante considerada pela norma padrão; b) o pronome lexical, como em todos os dias a mãe do Luizᵢ levava eleᵢ para o treino de futebol, que mostra o uso de um pronome originalmente nominativo em função acusativa; 21 c) o sintagma nominal, como nos exemplos: Lucas entrou na água para salvar as meninasᵢ seus colegas vieram e ajudaram ele a salvar as meninasᵢ e logo após de ter se apaixonado por Cam, Luᵢ descobriu que ele era um anjo caído e que estava na terra para cumprir uma missão, que era salvar a bondosa meninaᵢ da sua morte, que se configura como uma estratégia de “esquiva”, conforme apontam Tarallo (1993), Silva (1993), e Duarte (2013), ao uso do clítico, distanciado do vernáculo brasileiro, e ao uso do pronome lexical, estigmatizado socialmente; d) o objeto nulo, como em uma vez a mulher deixou o celularᵢ de bobeira e o homem pegou ᵢ para mexer, que é a estratégia preferida dos brasileiros e, em geral, sequer é mencionada no ambiente do ensino; e e) o pronome demonstrativo, como em Mia dizia [que não e que isso era muito importante pra ela e que não queria que ninguém o tocasse]ᵢ. Ela dizia issoᵢ até mesmo para sua melhor amiga, verificada na maioria das vezes retomando um objeto proposicional. Para atingir o propósito em questão, esta pesquisa envolve o ambiente educacional de duas escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, por meio das quais é investigado o trabalho desenvolvido com duas turmas de 9º ano do Ensino Fundamental. Nesta investigação, busca-se o alcance de quatro objetivos específicos: (i) analisar de que forma são apresentadas as formas variantes de retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no material didático utilizado por suas professoras em sala de aula, de modo a averiguar como esse material se comporta com relação à variação existente no PB para o fenômeno linguístico abordado; (ii) investigar a percepção das professoras sobre os conceitos de variação e normas de uso da língua, levando em consideração o grau de legitimidade por elas atribuído às formas variantes do objeto direto anafórico; (iii) examinar a produção textual escrita de seus respectivos alunos, de modo a compreender quais as estratégias de retomada por eles mais ou menos utilizadas e por que o são; e (iv) com base nos três objetivos anteriores, apresentar reflexões acerca do ensino do referido fenômeno gramatical variável. Esta pesquisa, portanto, compreende três etapas de análise. A primeira se refere à apreciação crítica dos referidos materiais didáticos no que diz respeito ao tratamento neles dispensado ao fenômeno linguístico aqui em estudo. A segunda, que abrange a perspectiva das docentes, é feita a partir da elaboração de uma entrevista a elas destinada. A terceira etapa, por sua vez, compreende a análise e interpretação de um corpus extraído de redações escolares corrigidas pelas professoras em questão, o qual não apenas viabiliza averiguar as 22 estratégias encontradas na produção escrita desses estudantes, mas permite, ainda, verificar quais dessas formas foram corrigidas ou não. Essa análise possibilita um contraste entre as considerações concedidas pelas professoras em entrevista e a avaliação/correção por elas realizada efetivamente na produção de seus alunos. Os três tópicos de análise acima explicitados se inter-relacionam, contribuindo para o alcance do objetivo geral desta pesquisa. Para o desenvolvimento da investigação, esta dissertação encontra-se organizada da seguinte maneira. O Capítulo 1 proporciona uma revisão das obras já realizadas na literatura acerca do fenômeno linguístico aqui investigado, englobando as abordagens da tradição gramatical e das descrições linguísticas sobre o tema. O Capítulo 2, por sua vez, esclarece os fundamentos teóricos que norteiam esta pesquisa, sejam os próprios da Sociolinguística Variacionista, sejam os mais recentes referentes ao ensino de Português como língua materna. No capítulo 3, apresentam-se os procedimentos metodológicos e a hipóteses adotadas na realização desta pesquisa, bem como as descrições das escolas aqui envolvidas e dos materiais de pesquisa investigados. O capítulo 4 se refere aos três tópicos de análise acima mencionados. Primeiramente, apresenta-se a apreciação de base qualitativa dos materiais didáticos e das entrevistas realizadas e, em seguida, expõe-se o exame sociolinguístico variacionista dos dados encontrados nas redações escolares coletadas. Posteriormente, em uma terceira seção do capítulo, apresentam-se as reflexões para o ensino promovidas em decorrência dos resultados anteriormente alcançados. Na sequência, expõem-se as considerações finais obtidas com esta pesquisa e as referências bibliográficas utilizadas para sua elaboração. Parte dos materiais didáticos e a entrevista formulada estão disponíveis, por último, na seção de anexos. Em vista das considerações mencionadas, busca-se, aqui, não só compreender o que está presente nos materiais didáticos ou na produção dos estudantes com relação fenômeno linguístico estudado, mas também promover o confronto entre esses materiais, a visão do professor sobre a variação da língua quanto ao fenômeno em questão e a realidade linguística verificada na escrita de seus alunos. Além disso, a partir da promoção de algumas reflexões para o ensino baseadas nos resultados ora alcançados, almeja-se aproximar o espaço das pesquisas teóricas da possiblidade de um ensino condizente com os conhecimentos linguísticos já alcançados no âmbito acadêmico. 23 CAPÍTULO 1 REVISÃO DA LITERATURA: O TRATAMENTO DISPENSADO AO FENÔMENO DO ACUSATIVO ANAFÓRICO DE TERCEIRA PESSOA Neste capítulo, faz-se uma revisão dos estudos que envolveram e descreveram o fenômeno analisado nesta pesquisa: a retomada do objeto direto anafórico de terceira pessoa no Português do Brasil. Neste percurso, tratamento especial é dado à correlação entre a realização do fenômeno no PB e o ensino de português, no que tange, portanto, ao estudo dos pronomes e estratégias que retomam o objeto direto no uso da língua. Desta forma, a seção 1.1 a seguir aborda o tratamento dispensado ao tema na tradição gramatical brasileira, enquanto a seção 1.2, por sua vez, abarca a abordagem feita pelas descrições linguísticas. 1.1 A abordagem da tradição gramatical Com o desenvolvimento dos estudos científicos e as contribuições alcançadas na atualidade, acaba-se por abordar, muitas vezes, as considerações da tradição gramatical como insuficientes à realidade linguística, como se a Gramática Tradicional (doravante GT) não “desse conta” dos fenômenos da língua. Ocorre que, na história de construção do pensamento tradicional, sequer se dispunha dos aparatos que atualmente contribuem para as pesquisas linguísticas, além do fato de que a Gramática Tradicional surge em um contexto histórico e social distante e, portanto, bastante distinto da atualidade. Em vista disso, antes de passar à abordagem da tradição gramatical sobre o fenômeno linguístico aqui em questão, faz-se necessário ressaltar, brevemente, o contexto em que se desenvolveu a GT e seus objetivos, para, assim, evitar uma conclusão superficial de que esta simplesmente não daria conta dos fenômenos linguísticos como um todo. O estudo da gramática teve seus passos iniciais desde a Antiguidade Clássica, quando gregos e romanos manifestaram suas primeiras reflexões sobre a língua a partir de fontes diversas1. Dentre essas fontes, estavam as práticas políticas e jurídicas da época, que exigiam um domínio das habilidades de fala suficiente à argumentação feita na tentativa de vencer as disputas da área, reflexões de Platão e Aristóteles sobre a natureza da linguagem humana e a 1 As informações contidas nesta introdução à abordagem da tradição gramatical (seção 1.1) estão baseadas, sobretudo, nas contribuições de Pagotto (1998, 2013) e na obra Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós, de Carlos Alberto Faraco (2008, p. 130-161). 24 construção da lógica como raciocínio válido na análise de diferentes aspectos da língua grega; estas últimas de caráter filosófico (cf. Faraco, 2008, p.131-132). Algum tempo depois, já na era cristã, conforme aponta o referido autor, os gregos passaram a dedicar profundamente seus estudos à produção literária de autores consagrados. Objetivaram descrever a língua dos poetas e prosadores estudados, a qual acabava por considerar-se um modelo de usos linguísticos. Quando Roma chegou ao Império, acolheu a cultura grega e, tendo como referência a língua dos consagrados autores clássicos, também buscou fixar um latim modelar para as considerações sobre a língua. Nesse intuito, produziram diversas gramáticas do Latim, dentre as quais, como afirma Faraco (op. cit., p.138), a gramática de Prisciano (séc. VI d. C.) obteve maior destaque e em certa medida, serve, até hoje, como modelo direto ou indireto para a produção das gramáticas tradicionais. No período da Idade Média, porém, houve uma progressiva substituição do Latim pelas línguas vernáculas, dada por meio do “contato entre os diferentes dialetos latinos falados em cada região com as várias línguas germânicas trazidas pelas ondas invasoras” (FARACO, p. 147). Com isso, embora já não se utilizasse efetivamente o Latim, obrigava-se o aprendizado dessa língua, o que, consequentemente, era como aprender uma língua estrangeira, uma Língua 2 (L2). Começou a construir-se, assim, uma cultura/pedagogia do erro no ensino da língua, tendo em vista o modelo em que se espelhavam, modelo este que não mais se verificava sequer na fala efetiva de nativos. No século XVI, surgiram as primeiras gramáticas do Português, dentre as quais se destacou a de João de Barros (1540). Segundo Faraco (2008), tal gramática estendia o modelo de referência dos usos literários de poetas e prosadores aos usos linguísticos de “barões doutos”, isto é, aos indivíduos mais letrados da sociedade (p. 143). Assim, o objetivo central dessas gramáticas era, a partir da descrição desses usos, propor um modelo que configurasse o uso clássico da Língua Portuguesa. Esse perfil tradicional acompanha as gramáticas que, mesmo produzidas no decorrer do século XX, se enquadram no perfil das chamadas gramáticas tradicionais brasileiras. No Brasil, norteado pela segregação social do período colonial, é aquele modelo medieval de ensino que influencia as práticas pedagógicas. Posteriormente, quando da independência de nosso país, convencionou-se seguir não um modelo de língua mais próximo da fala de brasileiros letrados, mas sim um modelo que adotasse a escrita lusitana, com base nos escritores portugueses do Romantismo. Já no século XIX, o segmento mais privilegiado 25 da sociedade começou a contribuir para a constituição de uma norma linguística ideal, baseada da norma lusitana, de modo que o distanciamento entre as camadas sociais fosse alargado, conforme esclarece Pagotto (1998). Nesse sentido, os indivíduos que dispunham do estudo da língua eram ainda um grupo bastante restrito: a elite branca brasileira do século XIX. Naquele momento, portanto, o estudo era privilégio de uma minoria. Com o desenvolvimento da sociedade – aumento do comércio, maior número de pessoas aprendendo a ler e tomando parte de estudos escolares (não mais uma minoria, apenas) –, o distanciamento entre a linguagem do indivíduo e o que se ensina nas escolas foi, progressivamente, aumentando (FARACO, 2008, p. 129-158). Considerando o histórico social do estudo da língua, o que se verifica, nos dias atuais, é que a gramática tradicional ensinada nas escolas, em muitos pontos, de fato não corresponde à gramática natural dos alunos brasileiros. A esse respeito, o autor faz uma ressalva aos que se dedicam ao ensino do Português: Enquanto a questão do domínio da cultura letrada e, em consequência, da língua modelar era problema de uma reduzida elite, um modelo normativo anacrônico não causava maiores dificuldades. Contudo, à medida que mudanças socioeconômicas (em especial, a industrialização e a urbanização) trouxeram a necessidade de se ampliar o acesso da população à escola e se propagou o conceito moderno de cidadania (que inclui o direito de todos aos bens culturais), um tal modelo passou a ser um problema grave, como no Brasil de hoje, em que ele não faz sentido para a maioria da população e, por isso, acaba por embaraçar não só o ensino do português, como o próprio funcionamento social da norma culta/comum/standard (FARACO, 2008, p. 146). A partir desse breve histórico, é possível compreender o fato de que as gramáticas tradicionais elaboradas até hoje demonstram uma abordagem um tanto redutora sobre os fenômenos variáveis da língua como um todo (como seria de se esperar, portanto) – o que se justifica, sobretudo, pelos objetivos particulares que assume. Ocorre que diversos grupos sociais continuam a considerar as propostas apresentadas na tradição gramatical como modelos para suas práticas linguísticas, sobretudo na escrita. Tendo em vista a relevância social de um modelo gramatical milenar, é compreensível o peso que ele tem, até hoje, nas práticas sociais, científicas e pedagógicas. No que diz respeito ao contexto pedagógico, não é raro que a abordagem tradicional seja o quadro teórico descritivo e prescritivo adotado. O que se faz necessário, logo, é uma atualização da descrição da GT para fins didáticos – mesmo porque esta continua sendo ponto de partida 26 para diversas pesquisas científicas desenvolvidas na atualidade. Faraco (2008, p. 153) destaca um dos próprios autores dentre as gramáticas investigadas na seção a seguir, Celso Cunha, ressaltando que um dos seus principais objetivos do Projeto NURC, na sua visão, era ajustar tanto quanto possível o ensino da língua portuguesa, em todos os seus graus, a uma realidade concreta, evitando a imposição indiscriminada de uma só norma histórico-literária, por meio de um tratamento menos prescritivo e mais receptivo às diferenças regionais e socioculturais do País (CELSO CUNHA, 1985:28 apud FARACO, 2008, p. 153). Dito isso, além de “superar a cultura do erro e criar condições para um ensino mais eficiente e eficaz da língua portuguesa em nossas escolas” (cf. Faraco, p. 130), não basta compreender que a tradição gramatical não condiz com a realidade linguística atual e não acompanha o desenvolvimento da língua em uso. O maior desafio está “na reconstrução de nosso imaginário sobre a língua, promovendo, nessa área, um reencontro do país consigo mesmo” (p. 156). Levando em consideração esse breve histórico sobre o desenvolvimento da Gramática Tradicional (apresentado de forma concisa, dentro dos limites deste trabalho), foram averiguadas as gramáticas de Rocha Lima (2012 [1972]), Cunha & Cintra (2001 [1985]) e Bechara (2009 [1999]) a respeito da abordagem que fazem, mais especificamente, sobre o tema do objeto direto anafórico de terceira pessoa no Português do Brasil, tendo em vista que figuram, ao que parece, entre as mais influentes nas instituições educacionais brasileiras. As três gramáticas tradicionais averiguadas apresentam abordagem semelhante do tema do acusativo anafórico de terceira pessoa. Ao partir do princípio de que a função de retomar um termo é, de modo geral, atribuída aos pronomes, esta revisão da tradição gramatical se inicia a partir da definição de “pronome” concebida pelos gramáticos em questão. Segundo Rocha Lima (2012 [1972]), pronome é “a palavra que denota o ente ou a ele se refere, considerando-o apenas como pessoa do discurso” (p. 156). Bechara (2009 [1999]) diz basicamente o mesmo em outros termos: “é a classe de palavras categoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto” (p. 162). Cunha & Cintra (2001 [1985]), por sua vez, definem os pronomes como termos que “desempenham na oração as funções equivalentes às exercidas pelos elementos nominais” (p. 275). Os pronomes, na proposta dessas gramáticas (e 27 da tradição gramatical em geral), servem para a) “representar um substantivo” e b) “acompanhar um substantivo determinando-lhe a extensão do significado” (Cunha & Cintra, 2001, p. 275). Nesse âmbito, as três gramáticas referidas classificam os pronomes como classe gramatical dividida entre os seis grupos: pessoais, demonstrativos, relativos, possessivos, indefinidos e interrogativos. Os pronomes pessoais, que abarcam as formas de retomada do objeto direto, são caracterizados, tal como na gramática de Rocha Lima, por Cunha & Cintra (2001, p. 276) da seguinte maneira: 1.º) por denotarem as três pessoas gramaticais, isto é, por terem a capacidade de indicar no colóquio: a) quem fala – 1ª PESSOA: eu (singular), nós (plural); b) com quem se fala – 2ª PESSOA: tu (singular), vós (plural); c) de quem se fala – 3ª PESSOA: ele, ela (singular); eles, elas (plural); 2.º) por poderem representar, quando na 3ª pessoa, uma forma nominal anteriormente expressa: Santas virtudes primitivas, ponde Bênçãos nesta Alma para que ela se uma A Deus, e vá, sabendo bem por onde... (A. de Guimaraens, OC, 149.) Levantaram Dona Rosário, quiseram levantá-la, embora ela se opusesse, choramingasse um pouco, dissesse que não lhe era possível fazê-lo. (M. J. de Carvalho, AV, 137.) 3.º) por variarem de forma, segundo: a) a função que desempenham na oração; b) a acentuação que nela recebem. Com relação à função dos pronomes pessoais, informa-se que podem funcionar como sujeito da oração – configurando sua forma reta – ou como objeto da oração, direto ou indireto – configurando as formas oblíquas. Quanto a estas, a acentuação dos pronomes os diferencia entre as formas tônicas e átonas. Assim, dá-se o quadro tradicional de pronomes pessoais – já amplamente conhecido (ROCHA LIMA, p. 386-387; CUNHA & CINTRA, p. 277; BECHARA, p. 164): 28 Pronomes pessoais retos Singular 1ª pessoa 2ª pessoa 3ª pessoa eu tu ele, ela Pronomes pessoais oblíquos átonos tônicos me te o, a, lhe, se2 1ª pessoa nós nos 2ª pessoa vós vos, se 3ª pessoa eles, elas os, as, lhes, se Quadro 1. Pronomes pessoais segundo a tradição gramatical do PB (ROCHA CINTRA, 2001; BECHARA, 2009). Plural mim, comigo ti contigo ele, ela, si nós, conosco vós, convosco eles, elas, si LIMA, 2012; CUNHA & Esta é a abordagem feita pelas gramáticas tradicionais em geral, de bases e critérios semelhantes. Não há menção, portanto, a nenhuma outra estratégia de retomada do objeto direto de terceira pessoa no Português do Brasil. A única forma aludida, de fato, é a forma dos pronomes oblíquos átonos o, a, os, as (e suas variantes lo, la, los, las; no, na, nos, nas, a depender da terminação da forma verbal a que se ligam em casos de ênclise) – os clíticos acusativos. Dentro dessa proposta, Rocha Lima e Cunha & Cintra destinam uma seção em suas gramáticas para tratar de casos em que o termo objeto direto desempenha função de sujeito da oração seguinte, como em mandei-o entrar; fez-me sentar; deixe-nos pensar. Os gramáticos explicam que, nesse caso, os pronomes oblíquos, originalmente acusativos (caso do objeto direto), podem acumular as funções de objeto do primeiro verbo e sujeito do segundo, o verbo no infinitivo. São estruturas formadas a partir de verbos causativos ou perceptivos, como os exemplos citados. Entretanto, em construções como estas, no PB, é muito frequente o uso dos pronomes nominativos (retos) em lugar dos oblíquos (cf. seção 1.3): mandei ele entrar; fez eu sentar; deixe a gente passar. Ressalta-se que essas colocações não configuram um uso inculto da língua, no sentido de ser rejeitado por falantes letrados, mas ainda não têm representação na tradição gramatical. À parte dessas estruturas de “dupla função”, Cunha & Cintra destacam, em uma seção intitulada Equívocos e incorreções, o uso do pronome nominativo na posição de objeto direto: Na fala vulgar e familiar do Brasil é muito frequente o uso do pronome ele(s), ela(s) como objeto direto em frases do tipo: Vi ele. 2 Encontrei ela. As formas se e si, sendo estritamente reflexivas, não constituem foco desta pesquisa. Além disso, Cunha & Cintra (2001, p. 277) não as expõem dentro desse quadro pronominal. 29 Embora esta construção tenha raízes antigas no idioma, pois se documenta em escritores portugueses do século XIII e XIV, deve ser hoje evitada. (CUNHA & CINTRA, p. 288) Nota-se a prescrição feita em direção ao não uso da forma destacada. Bechara (2009 [1999]), porém, faz algumas ressalvas que sugerem, bastante limitadamente, a variação do fenômeno do objeto direto anafórico de terceira pessoa no PB. Após afirmar, tal como os demais gramáticos, que “o pronome pessoal reto funciona como sujeito ou complemento predicativo, enquanto o oblíquo como os demais complementos: Eu saio. Eu não sou ele. Eu o vi. Não lhe respondemos” (BECHARA, 2009, p. 173), o autor destaca certos casos em que o pronome reto pode substituir o uso do pronome oblíquo. São estes: a) quando o verbo e seu complemento estiverem distanciados, separados por pausa: “Subiu! E viu com seus olhos Ela a rir-se que dançava.” [GD] b) nas enumerações e aposições: Depois de muita delonga o diretor escolheu: eu, o Henrique e o Paulinho. c) precedido de todo, só, e mais alguns adjuntos, pode aparecer ele (e flexões) por o (e flexões); cf. adiante. d) quando dotado de acentuação enfática, no fim do grupo de força: “Olha ele!” [EQ] (BECHARA, 2009, p. 173) Em seguida, o autor afirma que “o pronome ele, no português exemplar moderno, só aparece como objeto direto quando precedido de todo ou só (adjetivo)”, exemplificado em “No latim, eram quatro os pronomes demonstrativos. Todos eles conserva o português. [PL. 1, 398]” ou “se dotado de acentuação enfática, em prosa ou verso”, como no exemplo d acima (BECHARA, 2009, p. 175). Estes são os únicos contextos mencionados em sua gramática com o pronome nominativo utilizado na retomada do objeto direto de terceira pessoa. Cabe salientar que Bechara produziu, além de sua Moderna Gramática Portuguesa aqui abordada, uma gramática de cunho pedagógico. Nesta, vale mencionar, o gramático expõe uma breve consideração sobre a existência da categoria zero para a retomada do objeto direto – o objeto nulo do PB: 30 Estando perfeitamente conhecido pela situação linguística, pode-se calar o pronome complemento do verbo; esta linguagem é correta, apesar da censura que lhe faziam os gramáticos de outrora. “Disse já que tinha de fazer uma explicação ao leitor. Tenha; e é indispensável.” [AH] (BECHARA, 2012, p. 144) Ainda assim, essa referência à omissão do pronome acusativo não alcança a extensão tomada por essa estratégia no sistema linguístico do PB. Como vai ser detalhado na seção 1.3, o objeto nulo é a estratégia mais utilizada pelos falantes brasileiros para a retomada do objeto direto, superando tanto o pronome nominativo em função acusativa, limitadamente mencionado por Bechara, quanto o clítico acusativo, referenciado nas gramáticas tradicionais como um todo. 1.2 A abordagem das descrições linguísticas Tendo em vista que as gramáticas tradicionais, em geral, não registraram as mudanças da língua no que se refere ao quadro de pronomes e, por conseguinte, não apresentam uma descrição coerente com a realidade linguística do Português do Brasil, alguns linguistas da atualidade se propuseram a desenvolver gramáticas que buscassem dar conta dos fenômenos gramaticais e variáveis no PB atual. Dentre esses compêndios, examino as gramáticas descritivas de Perini (2007 [1989]) e Castilho (2014 [2010]), e a gramática pedagógica de Bagno (2012), no tangente à descrição do fenômeno da retomada do objeto direto de terceira pessoa, além de destacar os estudos científicos já desenvolvidos acerca do tema em questão. 1.2.1 A gramática descritiva de Perini (2007 [1989]) Perini (2007 [1989]) dedica uma seção de sua gramática a apreciar a abordagem tradicional acerca dos pronomes e, em vista das incoerências por eleapresentadas, promove uma nova definição e classificação para esses elementos na língua. O autor afirma que não há semelhanças sintáticas nem semânticas na caracterização do amplo grupo abrangido pela tradição na classe única de pronomes. Há, na verdade, uma junção de critérios sintáticos e semânticos que os envolvem na sua classificação tradicional. 31 No que se refere à caracterização pelo critério sintático, Perini (2007, p. 329-330) mostra que as funções de substituição e de acompanhamento de um nome não são suficientes para a identificação do que se entende por pronome na língua. Em sua argumentação, parte de exemplos com a substituição de um pronome-sujeito por um SN de referência. A partir da sentença ela não gosta de quiabo3, substitui o pronome reto ela por essa senhora e por Gigi: essa senhora não gosta de quiabo / Gigi não gosta de quiabo. Neste caso, o SN essa senhora e o nome próprio Gigi seriam então pronomes, segundo a função de substituição concebida pela tradição. Nesse sentido, o linguista demonstra a semelhança no comportamento sintático de pronomes e substantivos – como o autor ressalta, “mais exatamente, os pronomessubstantivos” (op. cit., p. 330). Utiliza-se, ainda, da definição dada na própria gramática tradicional de Cunha & Cintra, em que afirmam que os pronomes são termos que exercem funções equivalentes às desempenhadas por elementos nominais (cf. seção 1.1.1). A noção de acompanhamento, por sua vez, é rebatida pelo simples fato de que outros elementos quaisquer também podem acompanhar substantivos, como os adjetivos velho e cinza, além do pronome meu, em meu velho paletó cinza. Antes de passar à base do critério semântico, cabe ressaltar que a mesma substituição realizada pelo autor para o pronome-sujeito vale para o pronome-complemento, no tema da retomada anafórica. Em a senhora a chamou, é possível a substituição por a senhora chamou a menina ou a senhora chamou a Gigi, além de a senhora chamou ela, em que se percebe a função da substituição do termo complemento sendo exercida tanto por formas pronominais – originalmente acusativa e nominativa – quanto por um SN e um nome próprio. Passando, então, ao embasamento no critério semântico, o linguista afirma que a maioria dos pronomes não se refere às pessoas do discurso, embora os termos que as indicam sejam também por ele considerados pronomes. Ao abordar casos em que se indicam o espaço e o tempo em determinada situação, o autor explica que muitos pronomes tampouco o fazem (como os indefinidos algum e qualquer, exemplificados), enquanto outras palavras que não são consideradas pronomes carregam esta informação: “atual, antigo, contemporâneo (situação no tempo); próximo, distante, vizinho (situação no espaço)” (p. 330). Em vista dessas considerações, Perini propõe um novo arranjo de pronomes, classificado a partir de um critério sintático. Esse critério é ponto de partida, de modo geral, 3 Todos os exemplos usados para explicação da abordagem de Perini, nesta seção, foram extraídos de sua Gramática Descritiva do Português (2007, p. 304-354). 32 para a análise do sistema da língua como um todo em sua gramática. Assim, o linguista parte de traços distintivos que caracterizam o funcionamento dos elementos na língua conforme a noção de protótipo, que os une por meio da maior ou menor presença de determinadas características semelhantes. Dessa forma, no que diz respeito ao assunto abordado nesta pesquisa, o autor parte dos dois grandes grupos de substantivos e adjetivos (e rompe com a divisão entre pronomes substantivos e pronomes adjetivos da tradição gramatical). Para os substantivos de Perini, verificam-se os traços [+CP], [-Mod] e [-Pv]: podem exercer função de complemento do predicado, não são modificadores e não podem exercer função de predicativo. Os adjetivos de Perini, por sua vez, apresentam os traços [+CP] [+Mod] [+Pv]; os dois últimos os diferenciam dos substantivos. É na classe dos substantivos que Perini engloba a classe dos pronomes. Segundo o autor, os substantivos têm a capacidade de ocorrer na função de núcleo de um SN ([+NSN]), capacidade esta também exercida pelos tradicionais pronomes retos. Ao que tudo indica, apenas estes são considerados pertencentes à classe dos pronomes na gramática de Perini. Estes pronomes, por sua vez, podem ocorrer como núcleo de um SN, formando o SN por si só; apresentam, assim, o traço [-T, SN], que indica que não podem ocorrer junto a nenhum outro elemento desse SN, figurando apenas sozinhos. A esse respeito, o autor subdivide a classe dos substantivos (na qual se encontram os pronomes da sua descrição) em duas subclasses, caracterizadas pelo traço [T,SN]. Perini (p. 328) expõe a classificação conforme o quadro abaixo: Classes e subclasses de substantivos e adjetivos Substantivos: [+CP], [-Mod] e [-Pv] Substantivos 1: [-T,SN, +NSN, -Int––, -PN, -íssimo] Substantivos 2: [+T,SN, +NSN, -Int––, -PN, -íssimo] Adjetivos: [+CP] [+Mod] [+Pv] Adjetivos 1: [+Int––] Adjetivos 1a: [-T,SN, +NSN, -PN, -íssimo] Adjetivos 1b: [-T,SN, +NSN, -PN, +íssimo] Adjetivos 1c: [-T,SN, +NSN, +PN, +íssimo] Adjetivos 1d: [-T,SN, -NSN, +PN, +íssimo] Adjetivos 2: [-Int––, -T,SN, -NSN, -PN, -íssimo] Quadro 2. Classes e subclasses de substantivos e adjetivos (PERINI, 2007, p. 331). 33 Perini (op. cit., p. 331) restringe a designação de pronomes aos itens da classe de substantivos do tipo 1, tendo em vista que os elementos dessa classe são todos considerados pronomes pela tradição gramatical. No entanto, faz um esclarecimento importante a esse respeito: Os substantivos 1 são todos chamados pronomes pela gramática tradicional e poderão receber esse mesmo nome aqui; mas é preciso ter em mente que os pronomes, assim definidos, são uma subclasse dos substantivos; e que palavras como alguém, assim como todos os pronomes adjetivos da gramática tradicional, não são pronomes na nossa nomenclatura (PERINI, 2007, p. 329). A partir dessa proposta de análise da língua, a função da retomada anafórica de um termo da oração, no interesse desta pesquisa, do objeto direto, pressupõe a compreensão do funcionamento do termo objeto direto no sistema linguístico, levando em consideração o critério sintático tomado como ponto de partida pelo autor. Nesse âmbito, o termo objeto direto é classificado em sua gramática pelos traços [-CV, + Ant, +Q, -CN, + Cl , -PA], a saber, a ausência de concordância verbal, a possibilidade de topicalização, a possibilidade da retomada anafórica por (o) que ou quem, a ausência de concordância nominal com outro termo da oração, a possibilidade de clivagem e a impossibilidade de ocorrer na posição de auxiliar. Nesse caso, nota-se que a retomada anafórica é evidenciada apenas por meio dos pronomes relativos, mas as variantes de representação do objeto direto de terceira pessoa não conseguem enquadrar-se em todos esses traços. Conforme aponta Cunha (2007), em artigo publicado na revista SOLETRAS da UERJ (ed. nº 13, p. 145-146), o clítico, por exemplo, diferente de um SN e de um pronome nominativo, gera uma sentença agramatical ao ser clivado e/ou topicalizado: a senhora encontrou sua neta / a senhora encontrou ela / a senhora a encontrou – foi sua neta que a senhora encontrou / foi ela que a senhora encontrou / *foi a que a senhora encontrou; sua neta a senhora encontrou / ela a senhora encontrou / *a a senhora encontrou. Ao abordar o recurso da topicalização no PB, Perini (op. cit., p. 301) faz referência ao uso da categoria zero na retomada do objeto direto antecedente. O linguista compara, por exemplo, a sentença “Fia fez a fantasia e Fernanda a forrou” à variante “Fia fez a fantasia e Fernanda [] forrou”, na qual o objeto omitido é perfeitamente compreensível para os brasileiros, tratando-as como sinônimos. 34 A gramática averiguada não expõe um quadro que abarque o uso dos pronomes, somente, no PB. No entanto, na edição de 2010 de sua Gramática do Português Brasileiro, o autor, tomando como objeto de análise o português falado do Brasil, apresenta o seguinte quadro de formas pronominais retas (da classe dos pronomes, segundo a explicação citada acima) e oblíquas: Formas retas Formas oblíquas Eu Me, mim, -migo Você, (tu) Te, (-tigo)4, (ti), (lhe) Ele, ela – Nós Nos, -nosco Vocês Eles, elas – [reflexivo] Se Quadro 3. Formas pronominais retas e oblíquas do PB conforme Perini (2010). Como se pode observar, de fato não são mencionados os clíticos acusativos como formas oblíquas de terceira pessoa para o PB. O autor aclara que, assim sendo, as formas retas da terceira pessoa podem ser utilizadas em quaisquer funções sintáticas, o que licencia seu uso como objeto direto (anafórico de terceira pessoa). Desse modo, conclui-se que, na abordagem descritiva de Perini, são possíveis as retomadas do objeto direto de terceira pessoa no PB por meio das formas: pronome nominativo, SN anafórico e objeto nulo. 1.2.2 A gramática descritiva de Castilho (2014 [2010]) A gramática descritiva de Castilho (2014) reúne diversos estudos realizados no âmbito da língua portuguesa, seja de pesquisadores sociolinguistas, seja de outras áreas da Linguística. Dessa forma, parte dos critérios da GT para a caracterização da classe dos pronomes, que, segundo o autor, “levaram em conta suas propriedades semânticas, discursivas e gramaticais (= sintáticas e morfológicas)” (CASTILHO, 2014, p. 472). Os critérios da definição e classificação dos pronomes pela GT observados em sua gramática são, basicamente, os mesmos da análise feita por Perini. No entanto, Castilho não 4 O autor indica que as formas entre parênteses são pouco usuais no PB. 35 rompe com a tradição gramatical em criar uma nova classificação para os elementos da língua (como faz Perini (2007)). O autor busca apenas, a partir dos termos da GT, descrever o sistema da língua, levando em consideração as formas apresentadas pelos estudos linguísticos mais recentes. Assim, destaca que os pronomes de 1ª e 2ª pessoas têm função dêitica, enquanto os de 3ª são anafóricos. Faz uma ressalva, além disso, para os casos em que a terceira pessoa se encontra presente na situação do discurso (“à vista”), tomando por base as reflexões de Apolônio Díscolo (séc. I d. C./ 1987). Feitas as explicitações iniciais sobre o assunto, Castilho (op. cit., p. 477) exibe um quadro de pronomes pessoais no PB da atualidade, o que é exposto a seguir: PESSOA PB FORMAL Sujeito Complemento PB INFORMAL Sujeito Complemento 1ª pessoa sg. Eu Me, mim, comigo Eu, a gente Eu, me, mim, 2ª pessoa sg. Tu, você, o senhor, a senhora Te, ti, contigo, Você, ocê, tu Prep + eu, mim Você/ ocê/ cê, te, ti, Prep + o senhor, com a senhora 3ª pessoa sg. Ele, ela o/a, lhe, se, si, consigo Ele, ei, ela Prep + você/ ocê (= docê, cocê) Ele, ela, lhe, 1ª pessoa pl. Nós Nos, conosco A gente Prep + ele, ela A gente, 2ª pessoa pl. Vós, os senhores, as senhoras Vos, convosco, Vocês, ocês, cês Prep + a gente Vocês/ ocês/ cês, 3ª pessoa pl. Eles, elas Prep + os senhores, as senhoras Os/as, lhes, se, si, consigo Prep + vocês/ ocês Eles, eis, elas Eles/ eis, elas, Prep + eles/ eis, elas Quadro 4. Pronomes pessoais do PB falado e escrito na atualidade, segundo Castilho (2010, p. 477). Como se pode notar, houve a tentativa de promover um quadro que abarcasse as formas mais formais e mais informais efetivamente usadas no PB atual. Em se tratando das formas concebidas para a terceira pessoa, Castilho (2014, p. 479) ressalta que [...] (ii) ele preservou o nominativo e ganhou o acusativo, funcionando como objeto direto (57b); (iii) o acusativo o tem os alomorfes lo e no, e está desaparecendo, talvez por conta dessa riqueza toda, sendo substituído pela forma única ele acusativo (57c); (iv) lhe mudou para li e ganhou o caso acusativo (57d). 36 À parte da seção destinada ao estatuto dos pronomes no PB, no entanto, o autor expõe algumas pesquisas feitas no âmbito da Sociolinguística para dar conta das estratégias de representação do objeto direto (p. 300-304, no capítulo de “estrutura funcional da sentença”). Abordam-se, então, as características que definem esse termo em sua categoria funcional, inicialmente abrangendo as variantes que o retomam: Complementando o que se disse anteriormente, o objeto direto tem as seguintes propriedades: 1. É proporcional aos pronomes pessoais acusativos ele/o (54) João pôs o livro na estante João pôs ele/ o pôs na estante. 2. Na passiva correspondente, o objeto direto assume função de sujeito: (54’) O livro foi posto por João na estante. 3. Pode ser preenchido por sintagma nominal de núcleo pronominal (55a) ou nominal (55b), e por sentença substantiva objetiva direta (55c), colocando-se habitualmente após o verbo: (55) a) Viu-me na rua5. b) Viu o rapaz na rua. c) Disse que viu o rapaz na rua. 4. O papel temático do objeto direto é /paciente/, como em (55a e 55b), mesmo com verbos causativos: (56) O passageiro desceu o pacote 5. O objeto direto pode ser omitido na sentença: (55a’) Viu Ø na rua. (CASTILHO, 2014, p. 300-301) Tendo em vista as propriedades citadas acima, o autor parte para a seção de preenchimento do objeto direto, na qual explora formas variantes que o representam, a partir das pesquisas de Tarallo (1983), Duarte (1989) e Cyrino (1997). Ao tomar por base estudos de Duarte (1989), Castilho apresenta, segundo a referida autora, as quatro estratégias de preenchimento do objeto direto: 1. Clítico acusativo – apenas 4,9% das ocorrências, como em (57) a) Ele veio do Rio só para me ver. b) Então eu fui ao aeroporto para buscá-lo. 2. Pronome ele (= pronome lexical, na terminologia da autora): 15,4% das ocorrências: 5 Embora o autor tenha apresentado um exemplo de uso do clítico na primeira pessoa, a pesquisa mencionada aborda o uso de clíticos de terceira pessoa apenas, ao qual se refere o percentual de 4,9% de ocorrência. 37 (58) Eu amo meu pai e vou fazer ele feliz. 3. Sintagma nominal anafórico – 17,1% das ocorrências: (59) a) Ele vai ver a Dondinha e o pai da Dondinha manda a Dondinha entrar, ele pega o facão... b) No cinema a ação vai e volta. No teatro você não pode fazer isso. 4. Categoria vazia – 62,6% das ocorrências: (60) O Senhozinho Malta está tentando o Zé das Medalhas a matar o Roque. Mas ele é muito medroso. Quem já tentou matar Ø foi o empregado da Porcina. Ontem ele quis matar Ø, a empregada é que salvou Ø. (op. cit. p. 301-302) Ainda segundo Duarte (1989), o autor expõe alguns condicionamentos linguísticos – sintáticos e semânticos – e extralinguísticos que motivam o uso de uma ou outra variante. Sobre os condicionamentos sintáticos, menciona diferenças entre estruturas simples e complexas constatadas pela pesquisadora citada. Em casos de estruturas simples, a possibilidade de elisão do objeto é maior, enquanto as estruturas complexas favorecem a retenção do objeto. Seguem os exemplos fornecidos na gramática para tais estruturas, respectivamente: (61) a) Conta essa história do seu avô de novo. b) Você já contou pra ele? (62) a) Eu não tenho nada pra reclamar não. Eu acho ela sensacional. b) Ontem ele foi ao cardiologista. Eu já deixei ele ir ao cardiologista sozinho há muito tempo. c) Eu queria ter uma irmã. Eu acho ter uma irmã tão bom! (op. cit., p. 302) No que se refere ao fator semântico, o autor explicita, com base nos resultados de Duarte (1989), que o traço [-animado] favorece a elisão do objeto direto, enquanto os objetos plenos, em sua maioria, apresentam o traço [animado]. Expõe-se, ainda, que, ao cruzar esses fatores sintáticos e semânticos, o favorecimento à forma plena do objeto direto pelo traço /animado/ se mostra, sobretudo, com o uso do pronome lexical, em especial nas estruturas complexas. Em se tratando dos condicionamentos extralinguísticos, três fatores são apontados: (i) Os clíticos não aparecem entre os falantes jovens, e só começam a ser utilizados à medida que eles progridem em sua formação escolar. Isso mostra que o uso diferenciado dos clíticos é um caso de diglossia. (ii) Por outro lado, a idade e a formação escolar não têm a menor importância na emergência da categoria vazia, o que mostra que a elipse do objeto direto está bem estabelecida na estrutura dessa variedade no PB. 38 (iii) Nas situações mais formais, evita-se o pronome lexical e cresce a utilização dos sintagmas nominais, mas de qualquer forma o clítico não é utilizado. Isso pode mostrar que essa classe bate em retirada, mas ainda resiste na língua escrita. (op. cit. p.302-303) Desse modo, Castilho (2014) se vale ainda da abordagem da Gramática Tradicional no sentido de não promover uma reformulação da definição da categoria pronome, nem, tampouco, uma classificação nova para o grupo de elementos que essa categoria abarca. Entretanto, busca descrever com mais detalhes as funções exercidas por esses elementos no sistema da língua e, a partir de estudos linguísticos diversos, expor a situação atual de uso do PB. 1.2.3 A gramática pedagógica de Bagno (2012) Marcos Bagno (2012) rompe com a tradição em grande parte dos conteúdos da Língua Portuguesa em sua obra, bem como na formulação desta de modo geral. O autor concorda com a ineficiência de “substituir ou acompanhar um nome” para a identificação dos pronomes, também abandonando a definição e a classificação dadas pela GT, assim como Perini (2007). Entretanto, Bagno (2012) o faz de maneira diferente, apesar de citar o referido autor. Ao abordar “conceitos importantes para entender a gramática” (Bagno, p.431-493), destina uma seção à conceituação de pronome, a qual já apresenta como título: “Pronome não é classe, é função” (p. 462-466). Segundo o autor, “os pronomes não são uma classe de palavras, mas uma função que palavras de diversas classes podem exercer – a função da retomada anafórica” (p. 462). A partir desta compreensão, Bagno refere-se aos tradicionais pronomes pessoais como índices de pessoa e, dentro desta proposta, a terceira pessoa do discurso é tratada como não-pessoa, cabendo aos índices de pessoa apenas as 1ª e 2ª pessoas do discurso. Para esse novo conceito e posicionamento, o autor afirma aderir às análises de Émile Benveniste6 (1902-1976). No intuito de melhor compreender essa classificação, vale destacar a argumentação exposta em sua gramática: 6 Linguista francês, do século XX que contribuiu com a teoria da enunciação para os estudos na área do discurso. 39 Benveniste recorre à definição dos gramáticos árabes que chamam a 1ª pessoa de “aquela que fala”, a 2ª de “aquela a quem me dirijo” e a 3ª de “aquela que está ausente”, sem usar a numeração da gramática ocidental. Essa noção de ausência é fundamental: uma ausência física ou uma ausência do discurso. Um dado importante que Hagège (1982:96) nos oferece é que apenas 24% das línguas por ele analisadas (754 no total) apresentam forma própria para a “3ª pessoa”. Os outros 76% recorrem a classificadores, anáforas, demonstrativos – o latim não apresentava pronomes de “3ª pessoa”; as línguas românicas, para criá-los, recorreram precisamente aos demonstrativos latinos7 (BAGNO, 2012, p. 464). Nesse sentido, Bagno (2012) esclarece o caráter de não-pessoa atribuído à tradicional (e assim amplamente conhecida) terceira pessoa. Dessa forma, não confere o rótulo de pronome à primeira e à segunda pessoas do discurso (índices de pessoa), relacionadas à dinâmica da interação verbal, nos termos do autor, mas apenas à chamada não-pessoa (ÑP), que “empreende a retomada anafórica, agindo em favor (pró-) do nome, economizando seu uso, poupando-o de ser repetido” (p. 465). Dentro dessa proposta, os pronomes podem assumir várias formas, a depender da sua função sintática na sentença (proformas). A esse respeito, Bagno (2012, p. 796) fornece o seguinte quadro de referência: PRONOMES DA NÃO-PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Sujeito Obj. direto Obj. indireto Reflex. Compl. oblíquo Sg. Pl. Sg. Pl. Sg. Pl. Sg./Pl. Sg. Pl. ELE ELES ELE ELES A/ PARA ELE A/ PARA ELES SE ELE ELES ELA ELAS ELA ELAS ELA ELAS A/ PARA ELAS SI SI LHES (CONSIGO) (CONSIGO) SE O OS A/ PARA ELA A AS LHE LHE Quadro 5. Pronomes da não-pessoa no Português brasileiro, conforme Bagno (2012, p. 796). 7 Bagno aponta a estratégia de indeterminação do sujeito com o uso do verbo na terceira pessoa do singular, bastante usual no PB atual, além de gramaticalizações de verbos em substantivos como em leva-e-traz e sabe-tudo, estruturas que, segundo o autor, reforçam ainda mais a impessoalidade da terceira pessoa – portanto, “não-pessoa” (op. cit.). 40 Diante desse quadro, o linguista informa que a retomada anafórica de “não-pessoa” no PB ocorre majoritariamente por meio de uma categoria vazia, do objeto nulo. Em seguida, afirma que os clíticos o, a, os, as ocorrem “exclusivamente na atividade linguística dos falantes urbanos mais letrados, esporadicamente na língua falada, mas principalmente na escrita de gêneros textuais mais monitorados” (p. 797). A partir disso, o autor destaca que o uso dos clíticos é “extremamente raro” no PB (p. 797), o que, em certa medida, corrobora pesquisas já desenvolvidas sobre o tema, as quais revelam que os clíticos não fazem parte do vernáculo brasileiro (cf. seção 1.3), sendo aprendidos por meio do letramento formal e/ou acesso à leitura, o que também é exposto nessa gramática. Acerca da não presença dos clíticos no vernáculo8 do Português do Brasil, o autor destaca, em box exclamativo9, a pertinência e a necessidade do ensino desses elementos: Precisamente por isso é que cabe à educação linguística o ensino sistemático desses clíticos, como algo que é praticamente estrangeiro para os falantes do PB contemporâneo. É importante chamar atenção para os gêneros textuais em que eles ocorrem, mostrar aos alunos o mecanismo da retomada anafórica, de modo que saibam recuperar, no texto, a informação pronominalizada na forma de o, a, os, as [...] (BAGNO, 2012, p. 798). Ainda assim, em relação ao trabalho com os gêneros, há, no mesmo box, uma ressalva sobre o uso dos clíticos em gêneros que “reproduzem a vida urbana contemporânea”, com exemplo de algumas histórias em quadrinhos. Afirma-se que seu uso em contextos como esse (histórias em quadrinhos) é pouquíssimo adequado, à exceção de uma caricatura, de um personagem pedante, nos termos do autor, o que é exemplificado com as expressões “vou buscá-lo” e “eu o encontrei” em falas de crianças de livros infantis. Em se tratando de fala de crianças brasileiras que ainda não tiveram acesso à escola ou à leitura, o autor afirma que utilizam somente o objeto nulo e o pronome ele como forma de retomada do objeto direto. De fato, o objeto nulo já aparece como a estratégia preferida pelos brasileiros para essa função desse a fase infantil, quando ainda sem influência de instrução formal. Nessa fase, porém, as crianças parecem não demonstrar uso significativo do pronome nominativo ele, a julgar por alguns estudos em aquisição já realizados (cf. seção 1.3, com 8 Entende-se por vernáculo o estilo ou situação de comunicação em que o mínimo de atenção é dado ao uso da língua, isto é, seu uso com o mínimo de monitoramento possível, conforme explica Labov ([1972] 2008). 9 Há diversos destaques feitos no decorrer da gramática de BAGNO por meio de boxes (caixas ou adendos) enfatizados com um grande sinal de exclamação. Nestes, em geral, o autor faz apelos didáticos que julga apropriados, haja vista o caráter pedagógico de sua obra. 41 resultados de Averbug, 2008). Foram verificadas outras formas de retomada do objeto direto anafórico nessa etapa de uso do PB: DP pleno (17%); anáfora de complemento nulo (15%); DP com nome apagado (9,5%); nome nu não contável (5%); nome nu contável no singular (3,5%); e, só então, pronome nominativo (3%), nos resultados de Averbug (2008, p. 109). As ocorrências do objeto nulo em seus dados, cabe citar, sobrepõem-se às demais estratégias, com 40% de frequência10. De modo geral, Bagno (2012) explicita como formas de retomada do objeto direto anafórico as seguintes: o pronome nominativo, o pronome lhe acusativo, o clítico acusativo e o objeto nulo, que ganha, inclusive, uma seção de destaque intitulada A vitória do objeto nulo, na qual o autor mostra a queda do uso do clítico e o aumento do uso do objeto nulo no PB a partir de pesquisas de Duarte (1989), Tarallo (1993) e Bagno (2000). Ressalta, ainda, que o objeto nulo se mostra como uma estratégia de esquiva, valendo-se dos termos de Fernando Tarallo, ao uso do ele, nominativo em função acusativa (que carrega certo estigma), e dos clíticos, segundo o autor, considerado “certo demais” pelos falantes urbanos mais letrados, em seus termos (op. cit., p 799). Em vista disso, o autor destaca a aplicação da variante objeto nulo e seu aproveitamento no ambiente do ensino: Se assim é, podemos aproveitar esse fenômeno e sugerir aos nossos alunos que aproveitem essa estratégia – o objeto nulo –, quando, quiserem dar a seu texto mais leveza, mais ritmo, mais naturalidade. É um privilégio único, exclusivo da nossa língua, perfeitamente intuitivo e espontâneo para nós – não há então por que não se valer dele (BAGNO, 2012, p. 799). Sobre a estratégia com o pronome lhe acusativo, há uma ressalva, ainda, para seus contextos de uso: “única e exclusivamente na língua escrita, pois o lhe na língua falada só se refere a você, nunca a ele/ ela” (p. 799); ressalva esta seguida de vários exemplos de uso do lhe acusativo em textos escritos mais monitorados. Não há menção explícita à variante com um SN anafórico, também significativa no PB e “estratégia de esquiva”, muitas vezes, equiparada ao objeto nulo (cf. seção 1.3). Ainda assim, o tratamento dispensado aos pronomes como elementos funcionais de retomada anafórica, sem restrição à forma, deixa em aberto essa possibilidade. 10 A referida pesquisadora encontrou ainda outras estratégias menos utilizadas, quais sejam: nome nu agramatical (2,9%); nome próprio (2%); oração (1,5%); pronome demonstrativo (0,3%); nome nu contável no plural (0,3%) (AVERBUG, 2008, p.109). 42 Assim como na gramática tradicional de Rocha Lima (2012) e Cunha & Cintra (2001) (seção 1.1.1), há a referência às estruturas com verbos causativos e sensitivos. Entretanto, na gramática de Bagno, essa referência aponta para o uso, no PB, dos tais índices de pessoa e não-pessoa (pronomes nominativos; retos, na tradição). Mais uma vez, entra em ação um box com apelo didático sobre o tema em questão: Como venho reiterando, a função da escola é ensinar o que os alunos não sabem. Ninguém precisa ensinar um falante nativo de PB a dizer “deixa eu entrar” ou “apanhei ele fumando” porque essas construções já estão perfeitamente incorporadas à nossa língua. Já as construções clássicas, em que o objeto direto do verbo causativo/sensitivo assume a forma de um clítico acusativo (me, te, o, a, lhe, nos, os, as, lhes), não pertencem ao vernáculo geral brasileiro, de modo que é necessário e importante ensinálas sistematicamente na escola para que os alunos se conscientizem da existência delas e possam, se quiserem, empregá-las em gêneros textuais falados ou escritos mais monitorados. Como sempre, a melhor maneira de proceder a esse ensino é recolhendo as ocorrências de verbos causativos/sensitivos no mais amplo espectro possível de gêneros textuais, falados e escritos, monitorados e não monitorados, para que seja possível fazer o trabalho de comparação e análise das construções variáveis que tais verbos permitem. Isso, evidentemente, sem cair no prescritivismo tradicional de condenar o que já é perfeitamente nosso e tentar impor como únicas possíveis as regras da tradição normativa. O ensino de língua tem de valorizar a multiplicidade de recursos que a língua oferece e não tentar podá-la em nome de um conceito de correção anacrônico e autoritário (BAGNO, 2012, p. 602) (grifos do autor). O ensino sistemático de formas mais distantes do vernáculo é também um pressuposto aqui adotado, o que se aborda com mais detalhes no capítulo de fundamentação teórica desta pesquisa. No entanto, a ênfase em “ensinar o que os alunos não sabem”, apenas não desvalorizando construções mais naturais ou instintivas, presentes no vernáculo do PB, pode sugerir uma concepção de ensino um pouco redutora. Se “ensinar” a língua é trabalhar reflexivamente seu sistema e os usos que lhe são permitidos, verificados e produtivos, o conceito de ensino engloba também essas construções mais naturais, no sentido de fazer refletir sobre como elas se comportam, em que contextos e que outras formas seriam possíveis nesse percurso, tal como o próprio Bagno destaca no box citado anteriormente com referência ao ensino do objeto nulo. E isto se pode fazer justamente da maneira explicitada na citação do box acima: “recolhendo ocorrências de usos linguísticos no mais amplo espectro de gêneros textuais, de diversos estilos e modalidades, para comparação e análise das construções 43 variáveis”. Assim, é cabível não “ensinar um falante nativo de PB a dizer deixa eu entrar ou apanhei ele fumando”, mas ensinar estudantes da língua a pensar sobre essas estruturas para não só dizê-las, mas também entendê-las e, aliado a isso, refletir, compreender e apropriar-se de quantas construções mais lhes forem produtivas. No capítulo seguinte, essa concepção de ensino e seus objetivos são mais bem aclarados, segundo diversos autores tomados como referência (cf. produções de Faraco, Vieira, Duarte, entre outros). Anteriormente, pois, apresentam-se os estudos científicos (acerca do fenômeno linguístico aqui focalizado) que servem de ponto de partida para esta pesquisa (seção 1.2.5), bem como serviram alguns para a abordagem de ensino dos autores referenciados no próximo capítulo. Antes, ainda, na seção a seguir, apresento um quadrosíntese das abordagens tradicional e linguística, segundo as gramáticas aqui examinadas, sobre o fenômeno da retomada do objeto direto anafórico de terceira pessoa. 1.2.4 Síntese do fenômeno da retomada do objeto direto de terceira pessoa em gramáticas do PB, segundo a tradição gramatical e as descrições linguísticas O quadro abaixo busca sintetizar mais objetivamente o tratamento dispensado ao fenômeno da retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa no PB conforme as seis gramáticas investigadas – as três primeiras referentes à tradição gramatical e as três últimas às descrições linguísticas. Para cada uma delas, busquei evidenciar a definição da categoria de pronomes considerada nas obras, a maneira como os autores classificam essa categoria, as particularidades destacadas a respeito da terceira pessoa do discurso e, por fim, as estratégias de retomada do objeto direto de terceira pessoas nelas autenticadas. 44 O OBJETO DIRETO ANAFÓRICO DE TERCEIRA PESSOA NO PB – TRADIÇÃO GRAMATICAL E LINGUÍSTICA ROCHA LIMA (2012 [1972]) T R A D I Ç CUNHA & CINTRA Ã (2001 O [1985]) G R A M A T I C A L BECHARA (2009 [1999]) Definição de pronome Classificação dos pronomes Particularidades da 3ª pessoa Estratégias de retomada do OD de 3ª p. “Pronome é a palavra que denota o ente ou a ele se refere, considerando-o apenas como pessoa do discurso” (p. 156). Classe gramatical dividida entre os seis grupos: pessoais, demonstrativos, relativos, possessivos, indefinidos e interrogativos. Pessoa de quem se fala no discurso. 1. Pronomes oblíquos átonos: o, a, os, as. Servem para: i) representar um substantivo (pronomessubstantivos); ii) acompanhar um substantivo determinando-lhe a extensão do significado (pronomes adjetivos). “Os pronomes desempenham na oração as funções equivalentes às exercidas pelos elementos nominais” (p. 275) Servem para: i) representar um substantivo (pronomessubstantivos); ii) acompanhar um substantivo determinando-lhe a extensão do significado (pronomes adjetivos). “Pronome é a classe de palavras categoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto” (p. 162) Servem para: i) representar um substantivo (pronomessubstantivos); ii) acompanhar um substantivo determinando-lhe a extensão do significado (pronomes adjetivos). Os pronomes pessoais variam de forma i) quanto à função: sujeito (forma reta), objeto (formas oblíquas); ii) quanto à acentuação (formas oblíquas tônicas e átonas). Classe gramatical dividida entre os seis grupos: pessoais, demonstrativos, relativos, possessivos, indefinidos e interrogativos. Os pronomes pessoais variam de forma i) quanto à função: sujeito (forma reta), objeto (formas oblíquas); ii) quanto à acentuação (formas oblíquas tônicas e átonas). Classe gramatical dividida entre os seis grupos: pessoais, demonstrativos, relativos, possessivos, indefinidos e interrogativos. Os pronomes pessoais variam de forma i) quanto à função: sujeito (forma reta), objeto (formas oblíquas); ii) quanto à acentuação (formas oblíquas tônicas e átonas). Os pronomes na 3ª pessoa podem representar uma forma nominal anteriormente expressa. Pessoa de quem se fala no discurso. 1. Pronomes oblíquos átonos: o, a, os, as. Os pronomes na 3ª pessoa podem representar uma forma nominal anteriormente expressa. Pessoa de quem se fala no discurso. Os pronomes na 3ª pessoa podem representar uma forma nominal anteriormente expressa. 1. Pronomes oblíquos átonos: o, a, os, as. 2. Pronome nominativo quando precedido de todos ou só (todos eles / só ele) ou se dotado de acentuação enfática (Olha ele!). 45 PERINI (2007 [1996]) D E S C R I Ç CASTILHO (2014 Ã [2010]) O Os pronomes são uma subclasse dos substantivos, podendo ocorrer, sozinhos, como núcleo de um SN (apenas os “pronomes retos” da GT). Não expõe uma definição própria; segue a abordagem da tradição gramatical, buscando evidenciar a variação no sistema. L I N G U Í S T I C A Substantivos do tipo 1, que carregam os traços: [+CP, -Mod, -Pv], dos substantivos em geral; e [-T,SN, +NSN, -Int––, PN, -íssimo], da sua classe em específico. Não expõe uma classificação própria; segue a abordagem da tradição gramatical, buscando evidenciar a variação no sistema. 1. Pronome nominativo Não possui referentes na forma oblíqua. 2. objeto nulo, quanto do antecedente topicalizado 3. SN anafórico Os pronomes de 3ª são anafóricos, exceto em casos em que a terceira pessoa se encontra presente na situação do discurso (“à vista”) (as três com base na língua falada) 1. Clíticos acusativos o, a, os, as (em contexto formal) 2. Pronome nominativo (em contexto informal) 3. SN anafórico (cf. Apolônio Díscolo, séc. I d. C., 1987) 4. Objeto nulo (cf. Duarte, 1989) Pronomes de nãopessoa BAGNO (2012) Os pronomes não são uma classe de palavras, mas uma função que palavras de diversas classes podem exercer – a função da retomada anafórica (p. 462). Não há classificação para os pronomes, pois são elementos funcionais. Servem para a estratégia de retomada anafórica. “Empreendem a retomada anafórica, agindo em favor (pró-) do nome, economizando seu uso, poupando-o de ser repetido” (p. 465). 1. Pronomes nominativos: ele(s); ela(s) (na língua falada e escrita) 2. Clíticos acusativos: o, a, os, as (uso esporádico na fala urbana mais letrada, mas principalmente na escrita mais monitorada) 3. Categoria objeto nulo (na língua falada e escrita) 4. Lhe (apenas na língua escrita) Quadro 6. Objeto direto anafórico de terceira pessoa no Português do Brasil – tradição gramatical e descrições linguísticas: quadro-síntese. 46 1.2.5 A abordagem em estudos científicos Embora os clíticos sejam uma estratégia de referência para a retomada do objeto direto nos materiais didáticos (conforme as GTs), diversos estudos já vêm demonstrando, o processo de perda pelo qual vêm passando esses pronomes de terceira pessoa no Português do Brasil. Esse processo favoreceu o emprego de outras variantes no preenchimento dessa posição. Em especial, a categoria zero na posição de objeto direto, no PB, veio se destacando em contextos de uso cada vez mais amplos, além do emprego do pronome tônico, de caso originalmente nominativo, em função acusativa (cf. Tarallo (1983), Duarte (1986), Cyrino (1990, 1996), Corrêa (1991), Nunes (1993, 1996), Averbug (1998, 2000, 2008), entre outros). Na tentativa de relacionar o processo de perda dos clíticos à extensão do objeto nulo no PB, Cyrino (1990, 1996, 1997) desenvolveu análises diacrônicas que permitiram compreender a origem dessas mudanças no sistema do Português do Brasil. A autora mostrou que o clítico acusativo de terceira pessoa foi o primeiro a cair11 e, nessa mudança, o clítico o proposicional foi o primeiro a desaparecer. A referência a objetos sentenciais passou a licenciar o objeto nulo, primeiramente, e, a partir daí, essa forma foi progressivamente ganhando espaço em demais contextos. Averbug (2008) cita Cyrino (1997) ao retomar claramente essa trajetória do objeto nulo no PB: Cyrino (1997), ao investigar a mudança que teria afetado o estatuto do objeto nulo no PB, propõe que a mudança diacrônica no século XIX foi possível devido ao fato de a criança ter estendido a alternativa de elipse, primeiramente para os objetos sentenciais, depois para os com antecedente [animado, - específico], depois para [- humano, + específico], depois para [+ humano, - específico] e, finalmente, para casos de objeto com antecedente [animado, + específico]. O objeto nulo passou a ser gradativamente licenciado em outros contextos12 (cf. conceito de reanálises diacrônicas) (AVERBUG, 2008, p. 115-116). A autora citada verificou em sua amostra, ainda, o aparecimento do pronome tônico referente a um objeto direto também no século XIX, especialmente com um antecedente [+ 11 Cabe mencionar o estudo de Nunes (1993), que alia a queda do clítico acusativo de terceira pessoa a um procedimento fonológico. A autora explica que as crianças a partir do século XIX adquiriram um sistema com cliticização fonológica da esquerda para a direita e, portanto, não licenciavam o onset da sílaba dos clíticos acusativos de terceira pessoa. Nas palavras da autora, o emprego desses elementos no PB exige, pelo menos, “material fonológico que os preceda” (NUNES, 1996, p. 2015); daí o exemplo de termos como comprá-lo, presentes no Português Brasileiro. 12 Pesquisas recentes vêm buscando evidenciar uma mudança na gramática do PB, por meio da refixação do parâmetro do objeto direto anafórico nulo, como, entre outras, a de Averbug (2008), que investiga a mudança desse parâmetro a partir da gramática de crianças brasileiras, em um estudo de aquisição. 47 animado], contexto em que o objeto nulo ainda não era interpretado (Cyrino, 1990, 1997; Duarte, 1986). Pesquisas posteriores vêm constatando a forte diminuição das restrições ao objeto nulo no PB, variante que se consolidou como preferida pelos brasileiros (tanto na fala quanto na escrita). Essas pesquisas demonstram, além disso, que o pronome lexical é uma estratégia pouco frequente no PB, restrita a determinados contextos, dando lugar a outra variante, a forma com o SN anafórico, segunda mais frequente no PB (tanto na fala quanto na escrita)13. Tais ocorrências e fatores são mais bem descritos nas subseções seguintes. 1.2.5.1 O objeto direto anafórico de terceira pessoa na fala brasileira A abordagem do objeto direto anafórico como fenômeno variável no PB em trabalhos acadêmicos de cunho variacionista ocorreu pela primeira vez na dissertação de mestrado de Omena (1979), na qual a autora investigou a fala de quatro estudantes da categoria de ensino do antigo Mobral. Seus informantes, portanto, formavam um grupo de alunos em alfabetização, cursando o que se denomina hoje como Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Nessa ocasião, Omena (1979) verificou a ausência total de clíticos para a representação do acusativo anafórico. Segundo seus resultados, houve 76% de ocorrência de objetos nulos e apenas 24% de pronomes lexicais em função acusativa. Seu estudo se pautou somente nessas três estratégias mencionadas de retomada do objeto direto. Esses resultados do trabalho de Omena (1979) já contribuíram para a compreensão de que o objeto nulo se mostra como a estratégia preferida dos falantes brasileiros e o clítico acusativo não se verifica na fala de indivíduos de pouca ou nenhuma escolaridade, fatos que posteriormente vieram a ser mais detalhados, inclusive em trabalhos que investigaram a fala de crianças em fase de aquisição do Português como língua materna (cf. Averbug 2005). O trabalho de Omena (1979) permitiu, ainda, observar alguns fatores linguísticos que condicionavam o uso de uma ou outra estratégia: a) a animacidade do antecedente e b) a presença da mesma função sintática de objeto direto na posição do antecedente configuraram fatores que favoreceram o emprego da categoria zero; c) estruturas mais complexas, em que o elemento acusativo exerce “dupla função” (sujeito de uma infinitiva, que funciona como complemento de verbo causativo ou perceptivo, ou sujeito de uma minioração), favoreceram 13 Recentemente, Marco Antonio Martins e Jussara Abraçado organizaram o Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro (2015), que aborda, dentre outros, os estudos sobre variação na função acusativa no PB (DUARTE e RAMOS, p. 173-198). 48 o uso do pronome lexical (OMENA, 1979 apud MARAFONI, 2010, p. 18-19). Esses fatores serviram de base para as pesquisas posteriores, que descreveram ainda outros condicionamentos. A partir do trabalho pioneiro de Omena, novas pesquisas deram continuidade ao estudo desse fenômeno. Duarte (1986), em sua dissertação de mestrado, registrou quatro variantes possíveis como estratégias de retomada do objeto direto: o clítico acusativo, o pronome lexical, o objeto nulo e o SN anafórico. Levando em consideração uma nova estratégia (SN anafórico), a autora investigou a fala de informantes em diferentes níveis de escolaridade e em diferentes faixas etárias. Sua análise constatou, de modo geral, o predomínio de objetos nulos (62,6%), seguido das estratégias com o SN anafórico (17,1%) e o pronome lexical (15,4%) respectivamente. Sobre esta última, a autora destacou a ocorrência em decorrência do traço [+ animado] do antecedente. Corroborando as constatações anteriores de Omena, o clítico acusativo apresentou um percentual baixíssimo de ocorrências (4,9%). Em sua análise, tal ocorrência de clíticos foi verificada apenas em estruturas simples SVO por informantes de alto grau de escolaridade. Mais especificamente, a autora demonstra que construções com formas simples do indicativo (especialmente no presente e pretérito perfeito) e com formas do infinitivo são os únicos contextos em que ainda se verificam clíticos acusativos de terceira pessoa na modalidade oral do PB. Aos fatores linguísticos condicionantes observados por Omena (1979), Duarte (1986) acrescentou fatores extralinguísticos, quais sejam: a escolaridade e a faixa etária do informante. A autora constatou que os falantes mais jovens não realizaram nenhuma ocorrência de clíticos acusativos, ao passo que essa variante veio ascendendo conforme o aumento do nível de escolaridade. No entanto, o emprego do SN anafórico superou o uso dos clíticos inclusive nos graus mais altos de faixa etária e escolaridade. O objeto nulo, por sua vez, manteve-se como a estratégia predominante em todos os níveis analisados. A autora investigou, ainda, a avaliação dos falantes sobre o emprego dessas variantes, por meio de um teste de percepção e produção a eles aplicado. Essa análise contribuiu para a compreensão do forte estigma atribuído à variante pronome lexical, enquanto o objeto nulo não é notado pelos informantes. Corrêa (1991) e Averbug (1998, 2000) demonstraram que o clítico acusativo de terceira pessoa de fato é aprendido por falantes brasileiros via escolarização. Tal estratégia não faz parte da gramática interna do PB, conforme comprovam os estudos de Nunes (1993), 49 Duarte (1986), entre outros. Averbug (1998) investigou o desempenho linguístico de estudantes cariocas no que tange ao uso ou não das variantes pronominais em questão. Para tanto, valeu-se do corpus do Projeto Discurso e Gramática – UFRJ, realizando um estudo com informantes distribuídos nos seguintes níveis de escolaridade: classe de alfabetização infantil e adulta, 4ª série e 8ª série (atuais 5º e 9º ano do terceiro ciclo) e os últimos anos do Ensino Médio e do Ensino superior. A estes informantes, a autora solicitou a produção de registros do gênero “narrativa recontada”14. A partir disso, a autora verificou, tal como Corrêa (1991), a atuação da escolaridade na produção oral desses estudantes (AVERBUG 2008, p. 16): Clítico Escolaridade Pronome SN Objeto nulo lexical anafórico TOTAL Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % – – 5 17 14 48 10 35 29 100 1 3 10 26 10 26 18 45 39 100 4ª série – – 15 22 23 33 31 45 69 100 8ª série – – 12 17 21 30 37 53 70 100 Ensino – – 8 9 48 55 32 36 88 100 – – 8 9 43 49 37 42 88 100 Médio Ensino Superior Tabela 1. Uso do objeto direto anafórico de terceira pessoa na produção oral de estudantes do Rio de Janeiro conforme o nível de escolaridade, representada de Averbug (1998 apud AVERBUG 2008, p. 16). Nos resultados de Averbug (1998), o clítico acusativo não ocorre sequer nos dados do ensino superior, o que sugere que a escola não consegue recuperar essa forma na fala desses estudantes. O baixíssimo percentual de clíticos acusativos encontrados pela autora – que corresponde a um único dado – refere-se, curiosamente, à fala de um adulto em processo de alfabetização. Por outro lado, observa-se a queda gradativa da variante pronome lexical, indicando a atuação da escola nesse sentido. Sendo esta a variante estigmatizada e o clítico ausente na fala do PB, o objeto nulo e o SN anafórico se mantêm como as estratégias mais utilizadas em todos os níveis de escolaridade. O gênero “narrativa recontada” foi solicitado no intuito de averiguar as variantes utilizadas tanto na modalidade oral quanto na escrita. Para esta seção, abordam-se apenas os dados referentes à modalidade oral. 14 50 Marafoni (2004) analisou a realização do objeto direto anafórico em fala popular do PB, utilizando amostra do Rio de Janeiro. Seus resultados confirmaram os estudos anteriores de Duarte (1986) e Omena (1979), com a primazia da variante objeto nulo (67,3%) e um percentual menor do que 1% para a variante pronome lexical (0,7%). Os fatores condicionantes observados em sua pesquisa também ratificaram os fatores conferidos nas pesquisas anteriores, como a influência da função sintática do antecedente (que, quando equivalente, favorece o objeto nulo) e o traço semântico do antecedente ([- animado], favorecedor do objeto nulo). No entanto, a autora constatou casos já significativos de objeto nulo com antecedente [+animado], o que corrobora a extensão progressiva dos contextos em que o objeto nulo é licenciado no PB (embora esta variante ainda ocorra com maior frequência em estruturas com o antecedente [-animado]). Dentre outros fatores, a topicalização do antecedente favoreceu fortemente o emprego do objeto nulo, ainda que não seja um fator necessário ao uso dessa variante, já que esta se emprega no PB também quando o antecedente não é topicalizado, como menciona a própria autora. Em tese de doutorado, Averbug (2008) analisou o parâmetro do objeto nulo, estratégia de maior ocorrência na fala brasileira, em período de aquisição no PB. Sua pesquisa abarcou prioritariamente o contraste entre o objeto direto anafórico nulo vs. expresso, o que a levou a investigar também outros fenômenos (como o objeto direto novo (não anafórico) e o sujeito nulo vs. expresso). O que se mostra bastante relevante para a presente pesquisa é que, na amostra utilizada pela autora, não se verificou nenhuma ocorrência de clíticos acusativos e apenas 3% de ocorrências do pronome nominativo em função acusativa. Este baixo percentual da variante pronome lexical foi averiguado com destaque pela autora na fala de uma criança que apresentava um nível sociocultural mais baixo. A pesquisadora acompanhou longitudinalmente a fala de três crianças brasileiras de diferentes níveis socioculturais e, analisando a expressão linguística de cada criança, percebeu que os diferentes estímulos linguísticos a que são expostas contribuem para diferenças relevantes na sua produção oral. A criança exposta a um ambiente mais letrado, por sua vez, demonstrou o comportamento mais diferenciado, com um baixo percentual de uso do pronome nominativo em função acusativa em toda a sua trajetória de análise. Acerca dos contextos favorecedores ao objeto nulo, destaca-se uma consideração importante de sua tese. Após a análise dos dados, a autora concluiu que é grande a atuação dos traços semânticos animacidade/especificidade, em aquisição, previstos por Cyrino, Duarte & Kato (2000) quando se 51 trata de nulo anafórico. Essa estratégia é mais freqüente se o traço [animado] for associado ao [+ específico] e quando o antecedente é proposicional, o que indica também continuidade. O não esperado é a resistência da categoria vazia no contexto semântico oposto: [+ animado / - específico], apesar da hipótese da Cyrino assinalar esse contexto como possível (57% no século XX). De fato, não há qualquer restrição em relação à animacidade. O objeto nulo [- específico] pode aparecer com antecedente animado ou inanimado (AVERBUG, 2008, p. 198-199). Em outras palavras, ao associar a animacidade à especificidade do antecedente, a autora mostrou que de fato não há qualquer restrição ao objeto nulo por meio do primeiro fator, como já havia indicado Marafoni (2004), ratificando ainda mais a expansão do uso dessa variante no PB. Vale mencionar que a variante pronome lexical se mostrou fortemente condicionada ao traço [+animado / +específico] do antecedente, também confirmando os estudos anteriores. Ao analisar a fala culta brasileira, Freire (2000) também corroborou as constatações ora alcançadas sobre o progressivo desuso do clítico acusativo como forma de retomada do objeto direto anafórico no PB. O autor, investigando a fala de de indivíduos de nível superior completo, encontrou apenas 3% de ocorrência para essa variante. Dentre as demais estratégias, o objeto nulo (59%) e o SN anafórico (34%) figuraram como as formas preferidas pelos falantes cultos brasileiros. Os estudos acima explicitados permitem uma correlação entre as falas culta e popular no PB. A tabela abaixo indica a ocorrência de estratégias de retomada do objeto direto na fala popular brasileira com base nos resultados de Duarte (1986) e Marafoni (2010): Função acusativa Clítico Pronome SN Objeto nulo Total DUARTE (1986) – SP 4,9% 15,4% 17,1% 62,6% 100% MARAFONI (2004) – RJ 0,7% 13% 19% 67,3% 100% Tabela 2. Objeto direto anafórico na fala popular brasileira com base nos resultados de Duarte (1986) e Marafoni (2010). A tabela acima, ao comparar pesquisas do final do século XX e início do XXI, demonstra certa queda temporal do clítico acusativo, enquanto o objeto nulo se mantém predominante (de 62,6% a 67,3%), seguido da forma com o SN anafórico, segunda mais 52 frequente (com um leve aumento de 17,1% a 19%). O pronome lexical, por sua vez, sustentase em ocorrência moderada (com uma leve queda de 15,4% a 13%). Ao correlacionar esses percentuais da fala popular com os da fala culta brasileira, notam-se semelhanças entre esses dois contextos da modalidade oral brasileira. A tabela abaixo indica a ocorrência de estratégias de retomada do objeto direto na fala culta brasileira, segundo os resultados de Duarte (1986) e Freire (2000): Função acusativa Clítico Pronome SN Objeto nulo Total DUARTE (1986) – SP 6,4% 9,8% 18,8% 65% 100% FREIRE (2000) – RJ 3% 4% 34% 59% 100% Tabela 3. Objeto direto anafórico na fala culta brasileira, segundo os resultados de Duarte (1986) e Freire (2000). Ao comparar as duas tabelas acima, nota-se que há um progressivo desaparecimento do clítico acusativo, desta a investigação realizada em 1986 ao exame de amostras mais recentes, tanto na fala popular quanto na fala culta – apenas 3% nos dados de Freire (2000). Ao mesmo tempo, a forma com o objeto nulo se mantém como preferencial e o SN anafórico como a segunda estratégia de maior ocorrência também em ambos os contextos de fala. Destaca-se o fato de que o percentual de ocorrência do pronome lexical na fala culta é de apenas 4%. Em se tratando de fala popular brasileira, esse índice aumenta, porém não tanto (passa a 13%, tampouco configurando uma estratégia de preferência), o que contrasta com a suposta impressão de alto emprego dessa forma na fala popular do PB. Como aclara Duarte (2013), ocorre que a forma com o pronome nominativo, no PB, é mais estigmatizada por ter maior saliência fônica, enquanto o objeto nulo serve como um “escape” para o preenchimento da função acusativa sem a necessidade de uso do clítico. Segundo a autora, os clíticos são variantes inerentes à gramática do Português Europeu, em seus termos, mas não à do Brasileiro. Os brasileiros têm com estas, portanto, menor familiaridade, sendo seu emprego aprendido via escolarização. A forma com o SN anafórico, por sua vez, revela a tentativa de evitar repetições, substituindo o objeto por algum referente nominativo, sem que se sofra, ainda, algum estigma. Por isso, também, ocorre o alto índice do acusativo nulo no PB (não saliente, pouco perceptível). A forma com o pronome nominativo apresenta baixo índice de uso tanto para PB quanto para PE: para o primeiro, é a forma mais 53 estigmatizada (por ser a mais saliente); para o segundo, simplesmente não faz parte da sua gramática (e eles não precisam incorporar formas brasileiras via escolarização, haja vista o histórico da língua), conforme aponta a referida autora. 1.2.5.2 O objeto direto anafórico de terceira pessoa na escrita brasileira As pesquisas que abordam o fenômeno na escrita, em geral, demonstram percentual maior de uso do clítico acusativo, que aumenta conforme ascende o nível de escolaridade do autor, aliado a um percentual ainda mais baixo de uso do pronome nominativo em função acusativa, confirmando o estigma atribuído a essa variante. A esse respeito, Averbug (2000), em dissertação de mestrado, expõe a distribuição das variantes representativas do objeto direto anafórico na escrita de estudantes brasileiros: Gráfico 1. Percentual das variantes do objeto direto anafórico na escrita de estudantes brasileiros segundo Averbug (2000); disponível em: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno11-12.html Como se pode observar, a primazia da variante objeto nulo se mantém, seguida, ainda, da estratégia com o SN anafórico (tal como na modalidade oral). Ambas seguem configurando o índice mais significativo, enquanto o emprego do pronome lexical e do clítico acusativo continua a indicar as estratégias menos utilizadas. No entanto, em se tratando de modalidade escrita, o uso do clítico acusativo aumenta consideravelmente, invertendo sua posição com o pronome lexical, em menor índice de uso. Esta inversão fica ainda mais evidente a partir do gráfico disponibilizado pela autora sobre a representação do objeto direto conforme a escolaridade dos estudantes (AVERBUG, 2007, p. 99): 54 Gráfico 2. Percentual das variantes do objeto direto anafórico na escrita de estudantes brasileiros de acordo com seu nível de escolaridade, segundo Averbug (2007). Nota-se que, à medida que aumenta o uso dos clíticos acusativos, há uma queda brusca no emprego dos pronomes lexicais, que chegam a desaparecer no Ensino Superior. Tanto a influência em prol do uso de clíticos quanto o estigma do pronome lexical são reforçados pela atuação escolar. Apenas no Ensino Superior, também, o clítico acusativo é evidenciado como a estratégia mais utilizada (40%), ainda assim equiparada à variante SN anafórico (37%). Freire (2005) investiga a ocorrência de clíticos acusativos na escrita culta brasileira e lusitana. No que se refere ao PB, o autor analisou uma amostra de gêneros textuais escritos a partir de textos extraídos do Jornal do Brasil, O Globo, gibis da Turma da Mônica e da Disney. Seus resultados possibilitaram uma percepção bastante interessante sobre a recuperação desses elementos por meio do fator escolaridade. Vejamos a tabela abaixo, comparando os dados de Freire (2000) e Freire (2005): Função acusativa Clítico Pronome SN Objeto nulo Total Fala culta – PB 3% 4% 34% 59% 100% Escrita culta – PB 47% 8% 14% 31% 100% Tabela 4. Clíticos acusativos na fala e escrita cultas no PB conforme resultados de Freire (2000, 2005). Ao confrontar dados de fala e escrita culta brasileira, chama a atenção o fato de que o aumento do uso dos clíticos (via escolarização) se dá apenas na modalidade escrita. Isto é, a escola não recupera o emprego de clíticos na fala (como visto na seção anterior), o que deve 55 relacionar-se, provavelmente, i) ao enfoque dado comumente à escrita no ambiente escolar e ii) à característica da escrita como um contexto de maior monitoração da língua. Os contextos de fala em questão envolvem um uso menos monitorado da língua. A análise de Freire (2005) evidencia o uso do clítico acusativo de terceira pessoa em um continuum de oralidadeletramento. Reproduz-se, abaixo, a tabela fornecida pelo autor: Função acusativa Clítico Pronome SN Objeto nulo Total + oralidade / - letramento 15 22 20 46 103 + oralidade / + letramento 70 10 24 57 161 - oralidade / + letramento 104 14 24 142 Tabela 5. Objeto direto anafórico no PB conforme continuum de oralidade-letramento, segundo Freire (2005). Como se pode notar, o número de ocorrências do pronome lexical diminui drasticamente no extremo [+letramento] – que é constituído por eventos de comunicação mediados pela língua escrita –, enquanto as ocorrências do clítico acusativo aumentam à medida que esse extremo se aproxima. O aumento do uso do clítico acusativo é então justificável, sendo a escrita tomada, comumente, como foco no ensino da língua portuguesa (o que veremos com mais detalhe na análise desta pesquisa), além de apresentar maior grau de monitoração. A respeito da escrita culta do PB, ainda com base na amostra de Freire (2005), merece destaque certa comparação com os resultados que o autor havia encontrado anteriormente para a fala de informantes portugueses com nível superior completo. A tabela abaixo expõe os resultados de Freire (2005) em paralelo aos resultados encontrados em sua dissertação de mestrado (2000) para o PE. Função acusativa Clítico Pronome SN Objeto nulo Total Escrita culta – PB 47% 8% 14% 31% 100% Fala culta – PE 44% 25% 31% 100% Tabela 6. Objeto direto anafórico na escrita culta brasileira e na fala culta lusitana, com base nos resultados de Freire (2005) e Freire (2000) respectivamente. 56 Ao comparar os dados da tabela acima, chama a atenção o fato de que a frequência de uso do clítico acusativo na escrita culta brasileira corresponde à sua ocorrência na fala lusitana. Este fator corrobora a ideia de que o clítico está presente no processo de aquisição do PE, mas não se verifica no do PB. Considerando que a escola exerce determinada pressão sobre o indivíduo (aluno) e sendo a escrita uma modalidade mais conservadora, o clítico acusativo se configura como a variante mais utilizada na escrita do letrado tanto no PE quanto no PB, embora com diferença percentual significativa. Verifica-se na escrita do PB, ainda, o objeto nulo como forma alternativa ao clítico (31%). O clítico acusativo é recuperado pela escola em contextos determinados. O autor aponta os contextos de tempo verbal simples como os únicos em que essa variante supera as demais, principalmente com o infinitivo (como em mostrá-lo), contexto em que se pode verificar o uso do clítico no extremo de [+oralidade] e em ponto intermediário, bem como todo o continuum de oralidade-letramento. Há, portanto, um alto índice de uso do clítico lo e variantes (dentro do contexto da ênclise em verbos simples do infinitivo), fato associado pelo pesquisador à saliência fonética desse elemento. Ressalta, em sua análise, a hipótese de Nunes (1993) sobre a influência da questão fonológica no comportamento do clítico acusativo no PB (cf. seção 1.3, em nota). Dentre as formas verbais simples flexionadas e complexas marcadas com o tempo, destacou-se o emprego do objeto nulo. Além disso, Freire (2005) também aponta as construções com verbos causativos e perceptivos como um fator de condicionamento relevante nesse sentido. O autor afirma que chamam a atenção no PB as estruturas complexas construídas com os verbos denominados causativos e perceptivos, cujo complemento é uma oração infinitiva encetada por um “sujeito acusativo”. Segundo a tabela, há uma competição entre o pronome lexical e o clítico na disputa pelo total de ocorrências dessas estruturas, com vantagem para o primeiro. Investigando essas mesmas estruturas a partir do contínuo de oralidade-letramento, constata-se uma distribuição: enquanto o pronome lexical só aparece nos eventos de comunicação que apresentam traço de oralidade, o clítico figura apenas nos eventos que contêm traço de letramento (FREIRE, 2005, p. 133). Ao considerar um corpus de redações escolares, Machado (2006) verificou que, de modo geral, a estratégia com o clítico foi a mais utilizada para a retomada do objeto direto pelos estudantes (37%). A autora analisou redações de alunos e alunas em três níveis de escolaridade: 4ª série (atual 5º ano) do Ensino Fundamental, 8ª série (atual 9º ano) do Ensino 57 Fundamental e 3ª série do Ensino Médio. Além de o aumento da escolaridade favorecer o uso dos clíticos, essa análise revelou diversos fatores relevantes para a pesquisa. Um controle interessante adotado pela autora foi a divisão da variante SN anafórico entre o uso de a) mesmo SN e b) SN sinônimo. Como o SN anafórico constitui uma forma de evitar repetições – “escapando” do estigma do pronome lexical e do clítico pouco familiar ao PB (cf. seção 1.3.1) –, é válido averiguar se os alunos utilizam essa forma apenas repetindo o termo antecedente ou se de fato o substituem por outro SN de referência similar. A tabela abaixo demonstra a ocorrência desses dois tipos de SN anafóricos no corpus de redações utilizado por Machado (2006): 4ª série do E. F. Mesmo SN Ocorrência Frequência 27/108 25% SN sinônimo Ocorrência Frequência 1/108 1% 8ª série do E. F. 14/129 11% 8/129 6% 3ª série do E. M. 25/159 16% 14/159 9% Tabela 7. Ocorrência de mesmo SN e SN sinônimo conforme o nível de escolaridade; adaptada de Machado (2006, p. 70), com apenas os resultados da variante SN anafórico. Como se pode observar, a substituição por um SN sinônimo feita pelos estudantes é baixíssima nos três níveis de escolaridade, ainda que aumente levemente com o aumento do grau de instrução. No primeiro, foi encontrada somente uma ocorrência dessa forma (1%), em contraste com 27 ocorrências de mesmo SN (25%). Embora o uso deste tenha diminuído conforme a elevação do nível de escolaridade (de 25% para 16%), o aumento do uso de SN sinônimo, que de fato cumpre o propósito de evitar repetições, ainda é pouco produtivo (de 1% para 9% apenas). Os textos investigados se dividiram entre redações narrativas e dissertativas. Nesse âmbito, algumas constatações da autora merecem destaque. Para uma melhor visibilidade das considerações feitas, segue a tabela de resultados quanto ao tipo textual disponibilizada por Machado (2006, p. 73). 58 Tipo de texto Mesmo SN SN sinônimo Pronome lexical Oco. Freq. Oco. Freq. Oco. Freq. Oco. Freq. Oco. Freq. Dissertativo 30/100 30% 8/100 8% 6/100 6% 41/100 41% 15/100 15% 36/296 12% 15/296 5% 72/296 24% 106/296 36% 67/296 23% Narrativo Clítico Objeto nulo Tabela 8. Objeto direto anafórico em redações escolares conforme o gênero textual, segundo Machado (2006, p. 73). O tipo dissertativo demonstrou maior frequência de uso dos clíticos (41%) em comparação com o narrativo (36%). Este prevê maior proximidade com o domínio da modalidade oral, conforme aponta a autora. Nesse sentido, destaca-se também o maior uso de pronome lexical nas redações desse gênero (24%), o que contrasta fortemente com o uso dessa variante nas dissertações (6%, apenas), gênero em que é muito pouco produtiva. Entretanto, de modo geral, o gênero narrativo foi muito mais produtivo para o surgimento das ocorrências do objeto direto anafórico nos textos, no sentido de que as narrativas desencadearam 296 dados das diferentes estratégias de retomada do objeto direto, enquanto as dissertações possibilitaram 100 dados no total. Ressalta-se, porém, que não houve nenhum direcionamento para a narração em primeira ou terceira pessoa ao solicitar as redações, decisão que coube aos alunos. Ao observar o progresso no uso dos clíticos acusativos, a autora percebeu, ainda, que o gênero feminino se destacou nessa trajetória. No cruzamento entre os resultados dos grupos de fatores escolaridade e gênero, as mulheres incorporam a variante com clítico de maneira mais acentuada do que os homens – aquelas com 46 pontos percentuais e estes com 30 pontos percentuais. Além disso, as mulheres, que na 4ª série apresentaram maior percentual de uso do pronome lexical (48%), reduziram drasticamente o uso dessa variante (caiu para 3%), enquanto os homens oscilaram entre 12%, 24% e 5%, na crescente dos três níveis respectivamente. Em vista dessa instabilidade, a autora mencionou a necessidade de melhor descrição do fator gênero em pesquisas futuras. Em artigo publicado na Revista Virtual de Estudos da Linguagem (ReVEL.), Oliveira (2007) fez considerações relevantes acerca das estratégias de retomada do objeto direto anafórico de terceira pessoa também em redações escolares. Diferente de Machado (2006), o 59 estudo foi pautado em um corpus somente de séries iniciais – 1ª à 4ª séries do ensino fundamental. Neste caso, o objeto nulo foi a estratégia mais produtiva nas quatro séries investigadas, com 52% de ocorrências. Ao considerar apenas os dados dessa variante, a ocorrência de retomada anafórica de antecedentes com traço [-animado], contexto ao qual se mostrou fortemente condicionada, foi verificada em uma frequência de 69% do total de objetos nulos. Isto confirma a colocação de Cyrino (1997) e Duarte (1986), entre outros, sobre a influência do traço [-animado] favorável ao uso da categoria zero. No entanto, a autora percebeu que o traço [+animado] do antecedente também foi bastante significativo nos dados de objeto nulo, com 43% de frequência, confirmando o que já apontavam Averbug (2000) e Marafoni (2004). Assim, nota-se que “as crianças expandiram os contextos de uso do operador nulo, generalizando-o”, como concluiu a referida autora (OLIVEIRA, 2007, p. 26); fato este que corrobora o pressuposto de que o objeto nulo é cada vez mais licenciado no PB, reduzindo-se suas restrições e ampliando-se seus contextos de uso (cf. Cyrino (1997), Duarte (1986) e outros estudos anteriores). Além da animacidade do antecedente, a especificidade do termo também se configura como fator de relevância. Nos dados da pesquisa em questão, o traço [-específico] do antecedente também favoreceu o emprego do objeto nulo, enquanto as demais variantes (expressas) se mostraram condicionadas ao traço [+específico]. Segundo a autora, esse condicionamento, provavelmente, deve-se ao fato de que as crianças estabelecem uma referência no mundo, especialmente, para aquilo que é animado ou concreto (OLIVEIRA, 2007, p. 26-27)15. Sua análise demonstrou, também, a ocorrência do clítico acusativo de terceira pessoa preferencialmente em locuções infinitivas, as quais privilegiavam o emprego da ênclise. Embora não constitua foco desta pesquisa, vale mencionar que a não recuperação do movimento do clítico pela escola foi identificada em seus resultados, já que o clítico empregado em tempos verbais simples se mostrou, invariavelmente, proclítico ao verbo principal; análise esta que corrobora os resultados de Freire (2005) e demais pesquisas desenvolvidas nesse âmbito. Em geral, “os trabalhos com a escrita (cf. Averbug 2000 e Freire 2005), entre outros, mostram que é justamente nos tempos do indicativo e com a forma 15 Cabe retomar aqui a constatação de Averbug (2008) sobre a maior ocorrência de objetos nulos com referência a antecedentes com traço [-animado / +específico] (enquanto objeto nulo [-específico] aparece associado a antecedente animado ou inanimado) em sua pesquisa de aquisição (cf. seção 1.3.1), expressando a continuidade na ampliação dos contextos de uso do nulo anafórico. 60 infinitiva que a escola consegue recuperar o clítico na escrita” (MARAFONI, 2010, p. 113114). Como se pôde notar, os estudos vêm revelando uma recuperação parcial do uso do clítico por meio da escola. As demais estratégias, além dessa, demonstram produtividade seja na fala, seja na escrita do PB, a depender dos contextos de uso em que se realizam – linguísticos e extralinguísticos, conforme aqui detalhado. 1.2.5.3 O ensino do objeto direto anafórico de terceira pessoa Como a correlação, no âmbito acadêmico, entre a teoria de pesquisas científicas e a prática do ensino é algo ainda considerado recente, não há uma gama extensa de trabalhos que tenham se dedicado especificamente a esse intuito. No entanto, a preocupação com o ensino da língua já se mostrava de maneira a complementar alguns estudos desenvolvidos na área. Na já referida tese de doutorado de Freire (2005), por exemplo, o autor dedicou um capítulo a promover reflexões acerca do ensino de clíticos (no caso, acusativos e dativos de terceira pessoa). O autor buscou evidenciar os meios pelos quais a escola tenta recuperar o emprego dos clíticos haja vista o distanciamento entre esse uso e a gramática natural dos alunos brasileiros. Na ocasião, investigou alguns dos livros didáticos até então aprovados pelo MEC (tanto para o ensino fundamental quanto para o ensino médio), dos quais destacou o tratamento neles dispensado ao ensino do objeto direto anafórico de terceira pessoa. Os livros direcionam “correções”, segundo o autor, na tentativa adequar os alunos a uma determinada “norma culta”, especialmente na busca por evitar totalmente o uso dos pronomes nominativos em função acusativa, ressaltando apenas a variante com o clítico como “a forma correta”. Em vista do que averiguou em tais livros em paralelo aos estudos anteriormente feitos, que indicavam a influência da escolaridade sobre o uso das variantes do OD anafórico de terceira pessoa, Freire (2005) ressaltou a pouca eficácia da escola na promoção do uso dos clíticos e mostrou, por meio de alguns exemplos, que a aprendizagem dos alunos nesse domínio não ocorre sem problemas. O autor evidenciou os chamados “usos irregulares dos clíticos de terceira pessoa”: (28) Felizmente, os frutos brotaram, mas os foram colhidos para uma minoria […] (UFRJ, concurso de seleção 2001) 61 (29) O povo que cada vez mais ignorante, deixa-se levar por uma mídia, que traz notícias manipuladas para o confortá-lo. (UFRJ, concurso de seleção 2001) (30) O futuro que o Brasil espera e sempre esperou não parece chegar, pois fez pouco para merecer-o. (UFRJ, concurso de seleção 2001) (FREIRE, 2005, p. 184). Como se pode observar, trata-se de exemplos extraídos de redações vestibulares, escritos por alunos já cursando o último ano de Ensino Médio. Isto é, o exercício da escola no ensino da variante de prestígio não se completou de forma eficiente. Nesse sentido, Freire (2005, p. 185) propõe que o ensino de clíticos de terceira pessoa deveria basear-se não em meras recomendações proibitivas ou em exercícios artificiais de substituição, mas na percepção dos escritores brasileiros de hoje sobre esse fato gramatical, obtida a partir da leitura de textos produzidos pela imprensa, que remetem a situações reais e representam o que efetivamente constitui a norma culta brasileira. Com a formulação do Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), novas professoras pesquisadoras trouxeram à baila discussões diretamente inseridas no âmbito escolar, de forma a desenvolver caminhos para o ensino de regras gramaticais variáveis no PB, tal qual é o caso do fenômeno aqui em enfoque. Uma delas trabalhou justamente com a questão do ensino das variantes do OD anafórico de terceira pessoa. Em sua dissertação de mestrado, Xavier (2015) formulou uma sequência didática como proposta de intervenção para o ensino das variantes do acusativo anafórico. A autora trabalhou com uma turma de nono ano do Ensino Fundamental de uma das primeiras escolas estaduais a serem fundadas no distrito de Lagoa Salgada/RN. A turma abarca 19 alunos matriculados, dos quais somente 16 participaram da proposta feita pela pesquisadora (9 do sexo feminino e 7 do masculino). Primeiramente, a autora sugeriu a feitura de duas produções escritas. A primeira, mais formal, consistia em narrar a história de um filme por eles assistido em sala de aula (“Narradores de Javé”); a segunda, mais espontânea, consistia em um relato de vivência pessoal por parte dos alunos, narrando sobre uma experiência de risco de vida deles ou de alguém a eles próximo. Na análise das produções escritas, dentre as variantes do acusativo anafórico de terceira pessoa, foram encontrados: para o relato sobre o filme, a mais elevada ocorrência de 57% de sintagmas nominais, seguida de 37% de objetos nulos e apenas 7% de pronomes nominativos, enquanto o clítico apareceu no mais baixo percentual de 5%; para o 62 relato pessoal, o objeto nulo atingiu o maior percentual de 56%, invertendo sua posição com o SN anafórico, que caiu para 25%, enquanto a ocorrência de nominativos subiu para 16% e a novamente mais baixa ocorrência de clíticos caiu ainda para 3% dos usos verificados. Xavier (2015, p. 62) relata que houve uma única ocorrência do clítico acusativo dentre os relatos pessoais, a qual sinalizava um referente [+ animado] e mais próximo do objeto anafórico: (31) Num certo dia, ainda nesse ano a policia envadio a casa da [minha tia]i. Ela foi durmir na casa de outra tia minha, então eu e meus pais e a filha da minha tia, íamos lá visita-lai de madrugada. Aluno E, 16 anos, feminino. Na análise dos resultados da primeira produção escrita – relato sobre um filme, estilo mais formal –, a autora observa que o uso dos clíticos se deu de forma a contemplar um domínio estrutural sobre essa variante, com a colocação adequada dos pronomes o, a, os, as, e a contração também adequada de suas variantes para verbos terminados em r e m (-lo, -la, los, -las, -no, -na, -nos, -nas), embora nos pouquíssimos casos encontrados (apenas quatro). Nesse sentido, Xavier (2015, p. 56) aponta que das quatro ocorrências com o pronome clítico, três delas tinham referentes [+animados] e nos quatro casos, os referentes estavam estruturalmente próximos, o que sugere que na hora de retomar um referente próximo, a opção pelo clítico acusativo seja a mais viável. Já quando o referente se encontra mais distante textualmente, supõe-se que os alunos optem pela retomada pelo sintagma nominal a fim de não gerar ambiguidade e também para relembrar com mais nitidez o referente. A análise dos resultados das produções solicitadas permitiu um diagnóstico da situação de conhecimento e prática da turma na direção do uso das variantes do acusativo anafórico de terceira pessoa. A partir disso, foram feitos os próximos passos na sequência da proposta didática. A autora trabalhou “reflexões iniciais”, em seus termos, sobre o conceito de gramática e o objeto direto anafórico, e, em seguida, introduziu o assunto mais especificamente em aulas expositivas, nas quais buscou apresentar (i) a noção de predicação para a tradição gramatical e a tradição linguística, (ii) a noção de objeto direto para cada uma delas e (iii) as formas variadas para a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa. Após essas aulas, a pesquisadora promoveu, junto à turma, a transcrição de uma gravação de fala dos próprios alunos, feita anteriormente por ela em sua própria sala de aula, e, posteriormente, trabalhou com diferentes textos escritos em aula, de modo a abranger as mais variadas ocorrências do acusativo anafórico nas mais diversas situações de comunicação. 63 Feito isso, mostrou aos alunos todo o diagnóstico alcançado no intuito de fazê-los refletir ativamente sobre as variantes verificadas e sua produtividade em determinados contextos de uso. Por fim, solicitou uma produção escrita da turma, esta vez em conjunto: uma narrativa ficcional, a fim de averiguar se houve de fato alguma mudança no comportamento da turma com relação às variantes do objeto direto anafórico. Os resultados dessa última produção escrita revelaram um aumento fortemente significativo no uso dos clíticos acusativos, os quais foram constatados como a estratégias mais utilizada, com 45% de ocorrência, porém ainda equiparada ao percentual de 42% de sintagmas nominais anafóricos. O objeto nulo atingiu 10% do total de acusativos, enquanto o pronome nominativo se verificou em apenas 3% dos dados. Entretanto, assim como Freire (2005), Xavier (2015) também encontrou dados em que o uso dos clíticos se deu de maneira irregular, o que evidencia a dificuldade dos alunos no aprendizado dessa variante. No último trabalho referido, foram observados casos em que o elemento acusativo era usado em lugar do dativo, como em “O pai e a mãe de Dhin, Mary e John, o repetiram as mesmas frases (Aluno A 16 anos, feminino)” (XAVIER, 2015, p. 105). Em outros, ainda, alguns alunos fora da faixa etária estipulada para tal série, que já possuíam maiores dificuldades com a escrita, revelaram usos de um suposto clítico em lugar de outras classes de palavras, como em “Era uma vez um hipopótamo chegaram-na casa dele porque o hipopótamo teve de volta para-la na cidade (...) (Aluno D, 18 anos, masculino)” (op. cit., 2015, p. 105). Dessa forma, é possível perceber o quão distante é o uso dos clíticos para os alunos brasileiros. Não obstante essa distância, os estudos revelam que essa variante não só é prestigiada pela tradição gramatical, mas se verifica, ainda, em contextos de escrita mais monitorada no Português do Brasil. Assim, o ensino dos clíticos segue inserido no rol de objetivos do ensino de Português, embora não de modo estanque e fechado em comparação com as outras variantes (cf. os diversos estudos citados anteriormente), mas como uma variante a mais disponível no sistema da língua para a retomada anafórica do acusativo de terceira pessoa. O conhecimento dessa variante amplia, portanto, o repertório linguístico dos estudantes, para além do reconhecimento e compreensão sobre as variantes a eles mais familiares. 64 A esse respeito, os resultados dos trabalhos científicos ora abordados conduzem a um diálogo com a proposta de Kato (2005), que trata a aprendizagem da escrita, contexto em que mais se verifica o uso do clítico acusativo, como um processo de aquisição em segunda língua (L2), tendo em vista que o clítico não faz parte da gramática natural dos brasileiros. Para melhor compreender essa questão, vale esclarecer que a referida autora tem como embasamento a Teoria de Princípios e Parâmetros desenvolvida no programa gerativista de Chomsky (1957, 1965, 1981), a qual, embora não seja tomada como aporte teórico desta pesquisa, merece um parêntese que permita elucidar o estatuto do clítico acusativo em comparação com as demais variantes aqui em estudo. Segundo a teoria mencionada, os princípios são leis válidas para todas as línguas naturais, enquanto os parâmetros são as propriedades que uma determinada língua pode ou não exibir, definindo, assim, as diferenças entre as línguas. Desse modo, existe um princípio que enuncia que todas as sentenças finitas têm sujeito (o Princípio da Projeção Estendida, abreviado como EPP). Associado ao EPP existe o parâmetro do sujeito nulo (...). Para certas línguas, como o inglês, este sujeito tem que ser pronunciado sempre; para outras, como o português, nem sempre o sujeito é pronunciado. O inglês apresenta o valor negativo; o português o valor positivo (MIOTO, SILVA & LOPES, 2013, p. 22). Em se tratando do preenchimento do objeto direto anafórico, por exemplo, apenas algumas línguas possibilitam a forma com o objeto nulo em sua representação. É o caso do Português, em que João quis um carroᵢ e conseguiu comprar Øᵢ seria uma sentença possível. Já para o Espanhol, a oração exigiria a presença plena de um objeto: Juan quizo un cocheᵢ y logró comprarloᵢ / Juan quizo un cocheᵢ y loᵢ logró comprar. Isso significa dizer que o Português do Brasil atende positivamente ao parâmetro do objeto nulo, enquanto o Espanhol concebe negativamente este parâmetro. Ao observar os parâmetros ainda sem valores fixados, os princípios da língua configuram o que Chomsky (1981) denomina Gramática Universal (GU). À medida que os parâmetros das línguas vão se fixando como positivos ou negativos, constroem-se as gramáticas das línguas, a Gramática Nuclear, segundo o referido autor. Nesse processo, entretanto, conforme os sujeitos iniciam e dão continuidade a seu desenvolvimento em sociedade, cada indivíduo recebe um determinado input linguístico, seja por meio do contato com a experiência de pais letrados, seja por certas condições prévias de leitura em seu ambiente de origem ou até mesmo escolar. Esse input particular pode envolver fenômenos de empréstimos e resquícios de mudança, originando o que Kato (2005) designa como a periferia marcada individual. Aliando-se a gramática nuclear aos traços da periferia 65 marcada, configura-se a língua interna do indivíduo, a Língua-I (CHOMSKY, 1981; KATO, 2005), a qual se refere à gramática interna dos sujeitos, à sua gramática natural, como nos referimos até aqui. Por essa perspectiva, a seleção de uso do clítico em determinado contexto de caráter escrito ([+ formal, + monitorado]), por parte dos estudantes brasileiros, implica não simplesmente uma estratégia de adequação linguística ao referido contexto, mas sim o alcance de uma mudança de gramática que viabilize seu emprego, conforme sugere Duarte (2013, 2015) ao buscar distinguir as concepções de adequação linguística e mudança de gramática. Apesar de não competir à presente pesquisa uma discussão específica sobre as diferenças entre essas gramáticas, o breve esclarecimento sobre tais temas permite compreender que, de fato, o clítico acusativo não se mostra como uma variante (ao lado de ele, zero, SN) naturalmente presente na gramática interna de todos os falantes brasileiros. Nesse sentido, é bem verdade que o acesso à variante clítico acusativo não se realiza do mesmo modo que os alunos brasileiros, em geral, acionam as demais variantes, a eles já familiares, presentes em sua gramática interna. No entanto, no último ano do Ensino Fundamental, já se espera que os estudantes compreendam o uso dos clíticos acusativos, uma vez que, nesse estágio, já dispuseram de contato com essa variante, mesmo que apenas por meio da influência escolar. Em outras palavras, por mais que os alunos não tenham sofrido a influência do contato com o clítico acusativo a partir da chamada periferia marcada, a escola se encarrega de promover esse contato desde os primeiros anos escolares, por meio das histórias infantis, por exemplo, e, bastante produtivamente, a partir do sexto ano do Ensino Fundamental (como os próprios materiais didáticos analisados nesta dissertação poderão comprovar, mais adiante). Assim, considera-se pertinente o reconhecimento e uso, caso estimado, dessa variante no nível de escolaridade em que se encontram os estudantes envolvidos nesta pesquisa, ainda que seja considerada uma forma díspar das demais variantes, distante da sua língua interna, sua gramática natural. 66 CAPÍTULO 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para apresentar o aporte teórico de que se vale a presente investigação - para além dos pressupostos a respeito da expressão do objeto direto já detalhados na revisão da literatura –, segmenta-se este capítulo em três seções. Na primeira, apresentam-se as bases teóricometodológicas que fundamentam o tratamento da regra variável de preenchimento do objeto direto, a Sociolinguística Variacionista (Seção 2.1); na segunda, mencionam-se as contribuições da Sociolinguística para o ensino, reconhecendo a subárea denominada Sociolinguística Educacional (Seção 2.2); e na Seção 2.3, expõem-se os pontos de partida que fundamentam as ponderações e reflexões que serão feitas em relação especificamente ao ensino de Português como língua materna. 2.1 A Sociolinguística Variacionista No intuito de estudar dados da Língua Portuguesa considerando seu uso em interações comunicativas diversas, parte-se, aqui, do quadro teórico-metodológico da Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação e Mudança, postulada por Weinreich, Labov e Herzog ([1968] 2006) – doravante WLH. Esse aporte compreende a língua produzida em seu contexto social e, assim, busca descrever a variação e a mudança linguísticas. Os sociolinguistas observam prioritariamente os usos da língua nas produções espontâneas de determinadas comunidades de fala, analisando, na medida do possível, o que se percebe como a expressão vernacular falante – a expressão espontânea da língua em situação de mínimo monitoramento (LABOV, [1972] 2008). A abordagem sociolinguística, portanto, exige um estudo da língua de modo a envolver o comportamento social, a saber, “quem fala, quando se fala, onde, para quê e com quem se fala”. Nesse sentido, seus fundamentos se aplicam a dados de natureza diversa, orais ou escritos, verificados em determinada sincronia, em diferentes sincronias ou mesmo diacronicamente. A partir do levantamento de dados linguísticos, alcança-se uma análise quantitativa dos usos verificados, o que viabiliza a descrição da língua nos limites de cada investigação. 67 A língua é uma forma de comportamento social [...]. Crianças mantidas em isolamento não usam a língua; ela é usada por seres humanos num contexto social, comunicando suas necessidades, ideias e emoções uns aos outros (LABOV, 2008 [1972], p. 215). Dessa forma, a base da Sociolinguística Variacionista permite compreender as motivações que implicam a variação linguística e as consequentes (porém não obrigatórias) mudanças da língua. Tais motivações podem ser de ordem linguística ou extralinguística (provocadas pelo componente de natureza social em alguma medida). Assim, o processo de variação e mudança é descrito com base em fatores que recebem diversificadas representações sociais (idade, sexo, classe social, nível de escolaridade) e em fatores linguísticos (motivadores internos da língua). Pode-se, com isso, descrever as motivações que conduziram a um ou outro uso linguístico, uma ou outra variante linguística. Em vista dessas apreciações, entende-se que a língua não é homogênea, mas sofre variações, que podem ou não acarretar mudanças linguísticas. A Sociolinguística, por seu papel, busca sistematizar as variações que ocorrem no uso da língua, compreendendo a regularidade que se verifica nesse processo. Nota-se, assim, que a heterogeneidade linguística é pautada em regras, as quais não são fixas, mas variáveis. A esse respeito, WLH ([1968] 2006) defendem o princípio da heterogeneidade ordenada, a partir do qual se compreende a natureza variável da língua – não homogênea –, isto é, entende-se a variação como inerente ao próprio sistema linguístico. Entretanto, essa variação se dá de forma ordenada, o que promove a noção de regras variáveis, postulado que permite à Sociolinguística estudar e sistematizar a variação linguística. A regularidade da variação, portanto, é sistematizada por um conjunto de regras variáveis, e não categóricas. Labov ([1972] 2008), por sua vez, explora o sistema de regras variáveis em que se manifesta a língua, tendo em vista que toda variação é condicionada. É comum que uma língua tenha diversas maneiras alternativas de dizer “a mesma” coisa. Algumas palavras como “carro” e “automóvel” parecem ter os mesmos referentes; outras têm duas pronúncias, como cantando e cantano. Existem opções sintáticas como Uma pessoa que eu confio muito vs. Uma pessoa em quem eu confio muito ou É fácil para ele falar vs. Para ele falar é fácil (LABOV, 2008 [1972], p. 221). Observa-se, logo, que as formas linguísticas alternantes, denominadas variantes linguísticas, podem ocorrer em qualquer nível gramatical. No que concerne à pesquisa aqui 68 realizada, o fenômeno gramatical em abordagem se insere no nível morfossintático do sistema da língua (mais especificamente o uso de pronomes em função acusativa anafórica de terceira pessoa no Português brasileiro), e, na promoção de uma análise variacionista do tema, compreendem-se fatores condicionantes estruturais (linguísticos) e sociais (extralinguísticos). Considera-se, para tanto, que a variação é inerente a cada língua e que, ainda, toda variação é condicionada (LABOV, [1972], 2008). Como se pode perceber, a língua é heterogênea (varia) e viva (modifica-se). Nesse sentido, toda mudança linguística pressupõe variação, embora nem toda variação acarrete necessariamente uma mudança na língua (LABOV, [1972] 2008). No intuito de compreender os mecanismos da mudança linguística, WLH ([1968] 2006) propõem cinco princípios empíricos que norteiam seus estudos: a) a transição, que consiste no período de mudança de um estado da língua para o outro, em que o falante alterna entre o uso de uma forma e outra, até que uma forma alternativa se consolide em detrimento da outra; b) as restrições, possíveis condicionamentos e a ausência de restrições linguísticas e extralinguísticas que propiciam condições para que ocorra uma mudança; c) o encaixamento linguístico, que demonstra o fato de que os fenômenos em mudança se correlacionam de algum modo, o que possibilita a consideração de que uma mudança conduz à outra; d) a implementação, que incide sobre como e quando um fenômeno variável passa a ser parte da estrutura sociolinguística de uma comunidade, constituindo uma mudança implementada; e) a avaliação, que está relacionada à percepção ou avaliação dos membros de determinada comunidade sobre o fenômeno variável, avaliação esta que pode afetar o processo de mudança. No que se refere à presente pesquisa, seu foco recai não sobre o processo de mudança linguística em si, mas sobre a realidade linguística atual do fenômeno gramatical variável em questão e seu reflexo no ensino de Português. Desse modo, dentre os cinco princípios elencados pelos autores, dois deles serão perseguidos neste estudo, visto que constituem fatores de maior relevância para os objetivos aqui traçados: o princípio das restrições e o princípio da avaliação – embora todos se mostrem altamente inter-relacionados na concretização e estudo do sistema linguístico. 69 Ao analisar o uso do objeto direto anafórico de terceira pessoa na escrita de estudantes brasileiros, alguns fatores linguísticos e extralinguísticos serão interpretados como favoráveis ou restritivos ao emprego de uma ou outra forma para a referência anafórica em questão; daí a importância de abranger as restrições em um estudo que busque compreender este fenômeno linguístico, tal como realizado em pesquisas anteriores sobre seu comportamento variável no PB (sintetizadas no Capítulo 1 desta dissertação). A avaliação, por sua vez, se mostra especialmente relevante, uma vez que serão averiguados o reconhecimento e a aceitabilidade de determinadas formas pronominais no âmbito do ensino. A percepção dos professores exerce forte influência sobre esse processo, seja sua apreciação mais subjetiva como falante do Português, seja sua avaliação efetivamente explícita no exercício da profissão; ambas incidindo sobre sua escolha por determinadas formas como aceitas ou não e em que contextos o são. Ainda acerca da avaliação dos falantes sobre as variáveis linguísticas, Labov (2008 [1972], p. 290) ressalta que as variáveis mais próximas da estrutura superficial frequentemente são foco da avaliação social. De fato, valores sociais são atribuídos a regras linguísticas somente quando há variação. Os falantes não aceitam de imediato o fato de que duas expressões diferentes realmente “têm o mesmo significado” e existe uma forte tendência a atribuir diferentes significados a elas. Se dado grupo de falantes usa uma variante particular, então os valores sociais atribuídos a esse grupo serão transferidos a essa variante linguística. Os valores atribuídos aos grupos sociais, portanto, recaem sobre as variantes linguísticas por eles utilizadas. Isto leva a crer que os preconceitos existentes na sociedade, por consequência, podem contribuir para certo preconceito linguístico. Nesse sentido, dentre outras motivações, determinadas variantes são estigmatizadas, colaborando para a construção de estereótipos sociais. Labov (2008 [1972], p. 360) explica que os estereótipos são uma das categorias que influenciam o processo de mudança da língua. Tais categorias se compõem conforme a avaliação social que os elementos linguísticos recebem, de forma que podem ser: a) indicadores, com traços linguísticos que diferem quanto à estratificação social dos falantes (idade e grupo social), sem que sejam perceptíveis à avaliação, tendo em vista que não costumam chegar ao plano da consciência; 70 b) marcadores, que, não apenas diferenciados em grupos sociais, variam quanto à questão estilística no uso da língua, mesmo que sua escolha nem sempre se dê de forma consciente para os falantes (mas de modo subjetivo); c) estereótipos, formas rotuladas pela sociedade de maneira enfática, de modo que algumas se tornem fortemente estigmatizadas, as quais, ainda assim, podem persistir e resistir no sistema linguístico. Dentro desta última categoria, Labov (2008 [1972], p. 287) afirma que esses estereótipos sociais oferecem uma visão fragmentada e assistemática da estrutura linguística, para dizer o mínimo. Em geral, podemos afirmar que a correção social explícita da fala é extremamente irregular, concentrando-se nos itens lexicais mais frequentes, enquanto o verdadeiro curso da evolução linguística, que produziu a forma marcada dessas variáveis, é altamente sistemático. O autor esclarece que até mesmo no uso de variantes consideradas estigmatizadas há uma regularidade sistemática. Não há nenhuma ausência de sentido no emprego dessas formas, que sequer é aleatório. O fator avaliativo da variação linguística, portanto, faz-se altamente relevante para o contexto educacional, em que se pressupõe a legitimação ou não de variantes e a reflexão sobre estas no processo de ensino-aprendizagem da língua. Nota-se, com isso, a relevância da interação entre a teoria sociolinguística e o escopo do ensino; interação esta explorada pela chamada Sociolinguística Educacional, descrita na seção que se segue. 2.2 A Sociolinguística Educacional Ao tomar como campo de estudo o contexto educacional, é importante ter em vista que o aluno, na escola, já apresenta saberes sobre sua língua que permitem uma comunicação regular em sociedade, conforme afirma Cyranka (2008). O ensino da língua materna não tem por papel, pois, anular tais saberes em função de assentar outros. No entanto, é notória a dificuldade em aproximar o ambiente escolar e a conduta dos professores ao universo linguístico trazido pelos alunos, e é justamente nesse intuito que se centra o aporte da Sociolinguística Educacional, formulada por Bortoni-Ricardo (2004; 2005). 71 A Sociolinguística Educacional promove uma correlação entre os estudos da Sociolinguística Variacionista, suporte teórico-metodológico de que se vale esta pesquisa, e o contexto escolar, em favor de uma aproximação produtiva entre a descrição de estudos sociolinguísticos e o âmbito do ensino da língua materna. Tendo em vista a dificuldade de aproximação entre o amplo espectro da variação e o âmbito do ensino da língua, o domínio escolar acaba por impor o uso de formas consideradas padrão que, muitas vezes, estão distantes do cotidiano dos alunos (e até mesmo dos professores). Essas formas fazem parte de certo modelo de norma padrão cunhada no século XIX, que serviu de base à formulação da norma gramatical verificada nos compêndios gramaticais, dos quais se valem, em geral, os materiais didáticos muito utilizados em sala de aula; norma esta relacionada ao contexto social e político ainda vigente no século XXI – domínio da elite brasileira em detrimento das demais camadas sociais e seus usos linguísticos. Aliado a esta questão, o prestígio associado a determinado português-padrão sucede, ainda, de uma herança colonial, como aponta Bortoni-Ricardo (2004), e dispõe de um valor cultural enraizado na estrutura da nossa sociedade. Nesse sentido as escolas, em geral, acabam por insistir em uma abordagem baseada no modelo de ensino cunhado no século XIX, o qual, por sua vez, foi inspirado pelo modelo lusitano. Dessa forma, o contexto do ensino, em certa medida, pode persistir na difusão de uma imposição linguística inspirada, em sua origem, nos padrões linguísticos lusitanos, no Português de Portugal, ainda que, atualmente, determinadas instituições escolares, a depender de seu perfil, possam acatar a presença de usos mais inovadores da língua. É preciso, porém, questionar e desmistificar essa possível imposição de modo a compreender suas decorrências na estruturação social. A língua é representativa da cultura de uma comunidade, demonstrando, então, os valores linguísticos da sociedade e seus estigmas. Assim, é preocupante o fato de muitos estudiosos e professores considerarem que toda linguagem, e consequentemente, a cultura das crianças de classes populares, tem que ser substituída pela língua da cultura institucionalizada (CYRANKA, p. 504, Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1). O objetivo da escola não deveria centrar-se, portanto, em uma mera substituição de formas estigmatizadas por determinados usos considerados corretos. Essa conduta, além de estigmatizar a fala do alunado (que, muitas vezes, coincide com a dos próprios professores), inibe a produção linguística dos alunos, que se sentem distantes da própria língua, dificultando ainda mais o processo de ensino-aprendizagem do Português. O mais produtivo 72 seria, então, valorizar as variantes linguísticas surgidas nesse processo, promovendo uma reflexão sobre estas, o que conduziria a refletir sobre outras variantes, a princípio distantes do conhecimento dos alunos. Nessa trajetória, tornar-se-ia viável e mais próximo o alargamento do repertório linguístico do alunado, de modo que pudessem buscar o transitar por formas linguísticas adequadas a diversos contextos: +/- formais e +/- informais; +/- orais e +/escritos/letrados, diferentes formas utilizadas ainda dentro do espectro de variedades cultas do Português brasileiro. A esse respeito, Bortoni-Ricardo (2004, p. 51-63) descreve três continua de variação para o estudo da língua. (i) O continuum rural-urbano, que situa em um pólo os falares rurais mais isolados da sociedade e, no outro, os falares urbanos encontrados nas grandes cidades. Os primeiros, geograficamente isolados, têm menor interação com a influência dos meios de comunicação, que movimentam e retratam a língua em uso. A ponta com falares mais urbanos, por sua vez, é influenciada constantemente pelo processo evolutivo de construção do sistema linguístico nas diversas interações sociais. Nesse caso, tem-se como fator influente a cultura de agentes padronizadores da língua, como a própria escola. Assim, a autora demonstra o continuum de urbanização com a seguinte linha imaginária: ............................................................................................................................................. Variedades rurais isoladas Área rurbana Variedades urbanas padronizadas O que a autora denomina como área rurbana é representativo de um confronto entre essas variedades, o qual envolve migrantes de zonas rurais que preservam seus falares, sua cultura linguística, e indivíduos que habitam núcleos semi-rurais da sociedade, influenciados parcialmente pela urbanização. Cada um dos indivíduos da sociedade, portanto, situa-se em algum ponto desse continuum. Essa identificação, por sua vez, não se refere simplesmente ao seu lugar de origem, mas à cultura linguística com a qual se identifica no exercício do uso da língua dentro do espaço geográfico-social em que se encontra inserido, considerando, ainda, seus antecedentes e seus atributos. (ii) O continuum oralidade-letramento, que dispõe os eventos de comunicação concretizados socialmente. De um lado, os eventos de oralidade demonstram aspectos da língua falada, 73 enquanto, de outro, os eventos de letramento se constituem por traços característicos da língua escrita, porém não necessariamente concretizados em registro efetivamente escrito. ............................................................................................................................................. Eventos de oralidade Eventos de letramento Seria facilitador imaginar, em observação superficial, que os eventos de oralidade não sofreriam influência da escrita e vice-versa. No entanto, as fronteiras entre os gêneros e situações comunicativas se revelam de maneira tênue. Um contexto de comunicação oral pode ter sido pautado em um texto escrito, como na abordagem de um telejornal ou uma conferência religiosa, por exemplo, ao passo que um gênero escrito pode presumir influências da língua falada, como ocorre em mensagens trocadas entre amigos e parentes, chats etc. Diante disso, um enunciador altamente urbanizado diversifica seus usos linguísticos em função dos eventos de comunicação em que se vê inserido, embora sobre as variedades mais rurais haja, ao que tudo indica, o predomínio da cultura da oralidade. (iii) O continuum de monitoração estilística, que vai das interações mais espontâneas às interações de maior planejamento prévio. As situações de interação mais espontânea refletem um uso menos planejado da língua, com menor monitoração linguística. Em outro ponto, há os contextos de maior monitoração, que exigem maior planejamento e atenção aos usos linguísticos: ............................................................................................................................................. - monitoração + monitoração O uso de variantes mais formais em determinada situação demonstra o alto grau de monitoramento linguístico por ela exigido. Em contrapartida, quanto menor for o grau de monitoração da língua, mais estratégias informais de uso serão verificadas. O que implica um uso mais formal da língua são fatores como o ambiente, o interlocutor e o tema abordado no contexto interativo. Nesse sentido, tanto textos orais como escritos variam de acordo com a monitoração estilística. As situações de maior monitoramento da língua, por sua vez, para alcançar determinadas intenções comunicativas (tendo em vista os objetivos dos interlocutores em interação), demandam um domínio maior de habilidades linguísticas, o que configura um dos objetivos fundamentais do ensino da língua. 74 Como se pôde observar, as fronteiras que distribuem essas variedades não são rígidas, mas sim fluidas. A produção linguística concretizada entre os três continua apresentados, portanto, se dá de maneira gradativa e ininterrupta; e não de forma estanque, como se houvesse simplesmente variantes rurais ou urbanas, pertencentes à fala ou à escrita, informais ou formais. Dessa forma, tais continua de variação podem e devem efetivamente nortear o ensino de Português nas escolas, tendo em vista que a variação linguística se mostra presente nas práticas discursivas de modo geral. Assim, é pertinente que o processo de ensinoaprendizagem do Português brasileiro veicule a abordagem dos fenômenos gramaticais dentro do espectro de variação em que são empregados no uso da língua. De modo a contemplar esse propósito, Bortoni-Ricardo (2005, p. 130-133) explicita seis princípios norteadores da prática da Sociolinguística Educacional. O primeiro princípio por ela considerado é a tarefa da escola de ampliar o repertório linguístico dos alunos ao fornecer-lhes recursos comunicativos eficientes em contextos de uso mais monitorado da língua, os que exigem um grau de planejamento mais elevado. A influência da escola, portanto, incide sobre estilos sobrepostos ao vernáculo dos falantes, estilos mais formais, com maior nível de monitoramento. O segundo princípio propõe que formas linguísticas não avaliadas negativamente pela sociedade não são avaliadas negativamente na escola, isto é, não são salientes à correção escolar, mesmo no âmbito de contextos mais monitorados. A própria autora ilustra essa afirmação pela aceitação na escola da categoria zero e do pronome lexical (em determinados contextos linguísticos) como estratégias de retomada do objeto direto anafórico de terceira pessoa: a primeira (anáfora zero) por si só pouco saliente, e a segunda (pronome lexical) com menor saliência nas construções de dupla função ou em miniorações (cf. explicitado no Capítulo 1). Esse princípio demonstra, assim, a relevância do “caráter sociossimbólico das regras variáveis”, nos termos da autora, para o ambiente escolar. O terceiro princípio consiste em compreender a variação linguística inserida em sua matriz social. Isso implica perceber que, no que se refere ao Português brasileiro, a variação se encontra vinculada à estratificação social e às diferenças entre áreas rurais e urbanas. Entretanto, a autora ressalta que, em nosso país (monolíngue), “o ensino da língua de prestígio na escola não é necessariamente fonte de conflito, embora possa ser fonte de discriminação das crianças de variedades populares” (op. cit., p. 132). Nesse sentido, os professores que 75 compreendem as diferenças sociais da língua estão mais aptos a desenvolver estratégias de ensino que ambientem o aluno e favoreçam o aprendizado de novas formas linguísticas. O quarto princípio versa sobre a inserção de eventos de letramento nas salas aula, os quais integram os usos de estilos mais monitorados da língua, enquanto os eventos de oralidade envolvem os estilos de menor monitoramento. Busca-se distinguir “a língua que usamos para falar com pessoas de quem gostamos e em quem confiamos e a língua que usamos para ler, escrever e falar, quando falamos da maneira como escrevemos” (op. cit., p 132). Assim, a autora tenta afastar do ensino uma dicotomia equivocada entre “português culto e português ruim”, nos termos da autora, concebendo, em seu lugar, o exercício e as diferenciações das atividades de oralidade e letramento. O quinto princípio demonstra que a prática da Sociolinguística Educacional demanda uma análise dos significados assumidos pela variação, e não uma simples descrição das formas variantes. Essas formas se verificam em padrões de emprego diferentes e promovem significados socioculturais que também variam; geram avaliações distintas. O uso de determinadas formas linguísticas, avaliadas negativamente por alguns, pode significar um instrumento de inserção ou mesmo autoafirmação de um falante como membro de determinada comunidade, como aponta a autora. A avaliação que professores fazem sobre uma mesma variante também pode diferir e, nesse aspecto, os professores que entendem o valor cultural da variação estão mais suscetíveis ao trabalho com diferentes estilos. O ensino de estilos mais monitorados, assim, constitui-se pela apropriação dos alunos sobre novos recursos linguísticos. O sexto princípio advoga que não basta transmitir ao aluno as descrições que as pesquisas acadêmicas alcançam sobre o sistema linguístico. É preciso conduzir à reflexão sobre os fenômenos da língua de maneira conjunta (professores e alunos) em sala de aula, buscando compreender as circunstâncias que envolvem o uso de formas variantes dentro da estrutura social que as cerca. Esse processo leva a uma conscientização linguística mais apurada, o que também contribui para o aprendizado de estratégias diversas, orais e escritas, disponíveis no sistema da língua. A partir do intuito de correlacionar teoria e prática, estudos acadêmicos e ensino, alguns pesquisadores já vêm desenvolvendo materiais que contribuam para o alcance desse objetivo. O livro Ensino de Português e Sociolinguística, organizado por Martins; Vieira & Tavares (2014), divulga contribuições que a Sociolinguística brasileira forneceu e pode ainda 76 fornecer ao ensino de Português. Ao longo da obra, diferentes autores abordam a variação linguística na escola como um todo, o ensino de fenômenos fonético-fonológicos, destacando sobretudo a relação fala e escrita, e morfossintáticos mais especificamente, evidenciando o comportamento variável no âmbito da própria variedade/norma culta, bem como as avaliações e crenças de alunos e professores sobre o tema da variação e como tal assunto é tratado em livros didáticos, que também compõem o ambiente educacional. A esse respeito, é válido mencionar que os livros didáticos, em geral, embora tenham incorporado o tema da variação linguística, ainda o fazem de maneira muito superficial, como evidencia Lima (2014, p. 115131). Os professores, por sua vez, demonstram uma noção bastante confusa de conceitos importantes à prática do ensino: “limites imprecisos entre “norma”, “modalidade” e “registro””, que carecem de uma delimitação conceitual até mesmo em orientações pedagógicas oficiais do Ministério da Educação e Cultura (MEC) (cf. Martins; Vieira & Tavares, 2014, p. 11). Esses “limites imprecisos” e a compreensão pouco sólida sobre eles acabam por dificultar o processo de ensino-aprendizagem da língua. Em vista disso, a seção seguinte busca aclarar esses conceitos, valendo-se das contribuições de Faraco (2008), e elucidar os pontos que orientam o ensino de Português dentro das concepções que norteiam esta pesquisa. 2.3 O ensino de Português - pontos de partida Esta seção encontra-se dividida em três subseções, na tentativa de explicitar os pressupostos adotados em relação ao ensino de língua materna e que norteiam este trabalho. Trata-se de três eixos propostos e sistematizados, no âmbito do Mestrado Profissional em Letras, por Vieira (2015, no prelo), que compõem o ensino de Português: (i) o eixo da gramática reflexiva, que apresenta as concepções de gramática e as atividades necessárias para o estudo em sala de aula (seção 2.3.1); (ii) o eixo de variação e normas, tal como entendidas e trabalhadas dentro do universo escolar (seção 2.3.2); e (iii) o eixo de gramática na construção dos sentidos do texto (seção 2.3.3). Tais eixos fundamentam questões aqui consideradas relevantes para um ensino de Português produtivo. Algumas referências sobre cada um deles já se apresentam na literatura e, tomando-as como pontos de partida, apresento a proposta de Vieira nas seções que se seguem, relacionando suas propostas, sempre que possível, aos propósitos assumidos nos 77 Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), que orientam o ensino de Português nas escolas. 2.3.1 Por um ensino de gramática reflexivo Estudar a gramática de uma língua implica estudar seu sistema linguístico, isto é, compreender as expressões e operações possíveis e disponíveis para uso dos falantes. Nessa perspectiva, compete à escola buscar uma reflexão sobre os procedimentos do sistema em questão e sua eficácia nas interações comunicativas. Desenvolver esse saber gramatical na escola implica promover um trabalho que ative a consciência linguística dos alunos: um ensino de gramática reflexivo. Por serem nativos de determinada língua, no caso, o Português do Brasil, esses falantes já possuem conhecimentos linguísticos naturais, implícitos e intuitivos, os que constituem a gramática interna do sujeito – a gramática internalizada. Em vista disso, importa refletir sobre esses conhecimentos intuitivos e, a partir daí, de modo indutivo, alcançar o nível da explicitação dessa gramática e alcançar, ainda, outras habilidades linguísticas, inclusive as que não decorrem do processo natural de aquisição, desenvolvendo, por exemplo, a percepção e a produção, quando necessárias, de estratégias menos frequentes e muitas vezes mais formais. Isso proporcionará o crescimento da competência comunicativa do alunado. A concepção de gramática, assim, refere-se ao estudo do sistema linguístico e suas operações, as quais se efetivam em tarefas de compreensão e produção textual. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998) propiciam certa reflexão no que tange ao uso da linguagem e ao conhecimento gramatical na prática pedagógica. É possível constatar duas concepções de gramática que, ainda que de modo nem sempre explícito, norteiam a composição do documento em questão. Considera-se (i) o conceito de gramática internalizada (implícita) e, atendendo aos objetivos do ensino, (ii) a noção de gramática como disciplina (explícita). Estes conceitos configuram dois grandes blocos que abrangem as concepções de gramática. A primeira refere-se ao conhecimento natural e intuitivo do indivíduo, interno, de caráter implícito. Pode-se notar a compreensão dessa gramática internalizada pelos PCN ao perceber que constituem requisitos para a atividade do ensino: 78 a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem (PCN, 1998, p. 27) (grifo meu). Na medida em que se explicita esse conhecimento interno, formalizando-o com a intenção de descrever a língua, toma-se a concepção de gramática como disciplina. Trata-se da explicitação de um conhecimento gramatical; conhecimento explícito, utilizando os termos de Costa (2013). Tal explicitação pode ser feita por meio de uma abordagem normativa e/ou descritiva da língua. É justamente na abordagem utilizada para o estudo da gramática como disciplina que alguns descompassos conceituais começam a ser averiguados. Embora se compreenda a relevância de uma abordagem reflexiva do ensino de gramática, ocorre que o conhecimento gramatical descrito nas gramáticas tradicionais é, muitas vezes, confundido com a proposta de uma abordagem puramente prescritiva da língua, como se a descrição concebida nessas gramáticas conferisse um caráter de imposição ao estudo dos conhecimentos gramaticais, de um modo, então, supostamente preestabelecido. Entretanto, já os PCN (1998, p. 29) apontam que deve-se ter claro, na seleção dos conteúdos de análise lingüística, que a referência não pode ser a gramática tradicional. A preocupação não é reconstruir com os alunos o quadro descritivo constante dos manuais de gramática escolar (por exemplo, o estudo ordenado das classes de palavras com suas múltiplas subdivisões, a construção de paradigmas morfológicos, como as conjugações verbais estudadas de um fôlego em todas as suas formas temporais e modais, ou de pontos de gramática, como todas as regras de concordância, com suas exceções reconhecidas). O documento aclara que a abordagem descritiva apresentada constantemente nos manuais de gramática escolar – os quais, em geral, servem como instrumento de orientação no processo de ensino-aprendizagem da língua – não deve ser tomada como base para um trabalho de reconstrução, apenas, do sistema linguístico na escola. Nessa perspectiva, os PCN afirmam que a Gramática Tradicional (GT) não deve ser delimitadora na escolha dos conteúdos linguísticos a serem abordados em sala de aula. Isto não significa, porém, que não haja espaço para a GT no ambiente escolar. Por uma leitura talvez não muito criteriosa ou pouco precisa dessa questão, acaba-se por construir certo tabu com relação à Gramática Tradicional e a possível eficácia no tratamento de temas diversos relevantes ao ensino. A questão não se fia na impossibilidade de tomar a tradição como referência. O trabalho com e a partir da GT é que não pode ser somente prescritivo, no sentido de limitador 79 ou redutor do termo. É possível trabalhar com a Gramática Tradicional, aliando-a a outros quadros descritivos, quando necessário,de forma a abranger o sistema da língua e orientar uma reflexão por parte dos alunos sobre os conteúdos linguísticos em estudo. Isso significa, de fato, ensinar gramática: trabalhar com o sistema da língua de modo a refletir sobre este e ampliar o conhecimento dos alunos acerca das possíveis e plausíveis operações linguísticas, formulando e movendo-se em diversas expressões de sentido (BASSO & OLIVEIRA, 2012; COSTA, 2013; FOLTRAN, 2013). Assim, não se justifica tratar o ensino gramatical desarticulado das práticas de linguagem. É o caso, por exemplo, da gramática que, ensinada de forma descontextualizada, tornou-se emblemática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve para ir bem na prova e passar de ano – uma prática pedagógica que vai da metalíngua para a língua por meio de exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização de terminologia. Em função disso, discute-se se há ou não necessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão verdadeira é o que, para que e como ensiná-la (PCN, 1998, p. 28). Nesse caso, a tal gramática descontextualizada e desarticulada das práticas da língua faz referência a um conceito redutor de gramática como mera nomenclatura gramatical, utilizando os termos de Foltran (2013). É uma visão tão-somente instrumentalista de gramática, que não atende de fato à gramática da língua, à gramática que tem indiscutivelmente seu espaço na escola. À medida que os alunos vão alcançando o caráter sistemático da língua, tornam-se mais conscientes linguisticamente e, portanto, capazes de falar sobre a língua, isto é, descrevê-la. Nesse sentido, usa-se a metalinguagem para a sistematização dos conhecimentos desenvolvidos. Mais do que isso, a metalinguagem também ocupa importante lugar no processo de ensino-aprendizagem da língua, apenas não de forma isolada ou com a intenção de findar-se em si mesma, como aponta o trecho acima destacado dos PCN (1998). Na verdade, “usar esses termos [metalinguísticos] com propriedade ajuda muito na sistematização desses conhecimentos” (FOLTRAN, 2013, p. 172), o que significa que o ensino da gramática engloba o uso da nomenclatura gramatical, porém não se limita à atividade metalinguística como um fim em si mesma. Nesse sentido, o questionamento da necessidade de ensinar gramática por tomá-la como mera etiquetação de terminologias, ainda utilizando termos de Foltran (2013), é inviável, como bem afirmam os próprios PCN ao identificá-lo como uma falsa questão. No entanto, ainda paira no documento e no ambiente escolar certo “medo” no uso do termo gramática e, consequentemente, na acepção de ensinar gramática na sala de aula, justamente 80 em função desse desafino entre o que de fato significa ensinar gramática. Mais uma vez aclarando a questão, o ensino de gramática é simplesmente imprescindível para o desenvolvimento das habilidades intelectuais do alunado no plano linguístico, já que está no conhecimento gramatical o estudo das estruturas da língua e suas operações, visando à compreensão de diferentes processos de construção das expressões linguísticas. O saber gramatical implica, em última instância, a capacidade de operar de forma consciente com a língua em tarefas de produção e compreensão de texto, a qual propicia a ampliação das habilidades linguísticas dos alunos. É importante, portanto, desconstruir esse possível “medo” da gramática para utilizá-la de maneira clara e consciente durante o processo de ensino da língua, incorporando o que ficou denominado como prática de análise linguística. Nesse intuito, ainda que a Gramática Tradicional careça de atualização em alguns temas, já que foi constituída em um período cujos aparatos para os estudos linguísticos eram menos elaborados do que os atuais, a atuação do professor como mediador em sala de aula traz em si um componente diferenciado, especialmente relevante. O modo de ensinar, por sua vez, não reproduz a clássica metodologia de definição, classificação e exercitação, mas corresponde a uma prática que parte da reflexão produzida pelos alunos mediante a utilização de uma terminologia simples e se aproxima, progressivamente, pela mediação do professor, do conhecimento gramatical produzido. Isso implica, muitas vezes, chegar a resultados diferentes daqueles obtidos pela gramática tradicional, cuja descrição, em muitos aspectos, não corresponde aos usos atuais da linguagem, o que coloca a necessidade de busca de apoio em outros materiais e fontes (PCN, 1998, p. 29). Cabe ao professor, portanto, desenvolver mecanismos que permitam um ensino eficaz da gramática da língua, o que, como se pôde notar, é inclusive apontado pelos PCN. É claro que a diversidade de materiais e fontes utilizados no trabalho em sala de aula é enriquecedora – e realmente necessária –, mas não por isso deva ser, obrigatoriamente, rechaçada toda e qualquer descrição segundo o aporte tradicional. Na tentativa de desenvolver mecanismos para um ensino de gramática mais produtivo, é válido promover o exercício linguístico a partir da própria linguagem dos alunos, o que se pode motivar por meio de atividades linguísticas. A atividade linguística consiste, essencialmente, na prática e reflexão sobre sua própria linguagem, trazendo à baila contextos de comunicação cotidiana dos alunos. Está na escola o espaço para a criação de condições que permitam o exercício do “saber linguístico” das crianças, conforme aponta Franchi (2006, p. 81 95). Trata-se do desenvolvimento comunicativo dos alunos, o que abarca sua participação ativa e reflexiva acerca dos diversos contextos de uso da língua com que se deparam. Cabe à escola, além disso, fornecer recursos expressivos diversificados, em atividades orais e escritas, por meio do (re)conhecimento e produção de diferentes gêneros textuais e contextos comunicativos outros; daí o desenvolvimento de atividades epilinguísticas. A atividade epilinguística, por sua vez, refere-se à capacidade de operar sobre a própria linguagem, conhecendo novas formas de construção que permitam o alcance de novas significações, tal como esclarece o já citado Franchi (2006). Com isso, é possível que o alunado amplie gradativamente suas habilidades linguísticas. Em decorrência natural do trabalho realizado, torna-se viável e necessária a sistematização dos conhecimentos construídos, para que os alunos, de fato, se apropriem destes. Isto se dá no desenvolvimento de atividades metalinguísticas, ainda segundo Franchi (2006), as quais, por fim, permitem a categorização dos conhecimentos linguísticos trabalhados a partir de um trabalho inteligente de sistematização, nos termos do autor, o que, finalmente, conduz a uma clara organização acerca do tema estudado, tal como descrito anteriormente sobre o uso da metalinguagem na prática pedagógica. Desta forma, é possível compreender que a gramática não é algo pronto, fixo, algo que se pode “dar” aos alunos, mas implica uma construção (BASSO & OLIVEIRA, 2010). Nesse sentido, para entender o objeto natural que é a língua (estudo da língua como ciência que é), cabe aos próprios alunos construir a gramática, o que envolve também o exercício da metalinguagem. É necessário construí-la e reconstruí-la para, nos termos dos autores, apoderar-se dela e, então, sabê-la. Não se trata, pois, de uma visão instrumentalista de gramática; mas sim da noção de gramática como o estudo das estruturas da língua e suas operações, no entendimento de diferentes processos de construção das expressões linguísticas. Nesse processo, grande parte dos resultados alcançados pelo trabalho de professores e alunos em conjunto em sala de aula irá contrastar com as descrições da própria GT, e outra parte poderá apenas coincidir. Esse desencontro (ou não), na verdade, é algo bastante positivo, se considerarmos que põe em visualização clara a vivacidade da língua e sua possibilidade constante de mudança. A partir daí, junto ao trabalho reflexivo com a gramática da língua, acrescentam-se as diferenças entre os usos linguísticos e as avaliações sociais a estes relacionadas. Outra demanda é posta em questão: as diferentes variedades e normas da língua. 82 Esta, por sua vez, compõe o segundo eixo de ensino proposto por Vieira (2015, no prelo), apresentado na seção a seguir. 2.3.2 Por um ensino que envolva variação e normas Em concordância com os pressupostos teóricos elucidados até então, já se pode perceber que a variação linguística não se limita a um conteúdo isolado a ser estudado em sala de aula; ela está para o estudo da língua como um todo, tal como o estudo dos gêneros textuais16. Ambos existem no universo das práticas linguísticas de maneira integral. Integrados a essa perspectiva, os PCN (1998) já compreendem a noção de variação como inerente à língua, e entendem, ainda, que as variedades se apresentam atreladas a determinados valores sociais. Nota-se no documento a real ideia de que uma língua homogênea é inviável e, no mais, totalmente distante das formas linguísticas efetivamente utilizadas. Como consta do papel do professor orientar o aluno para uma produção linguística cada vez mais apropriada e bem sucedida, os PCN (1998) apontam que nas sociedades letradas (aquelas que usam intensamente a escrita), há a tendência de tomarem-se as regras estabelecidas para o sistema de escrita como padrões de correção de todas as formas lingüísticas. Esse fenômeno, que tem na gramática tradicional sua maior expressão, muitas vezes faz com que se confunda falar apropriadamente à situação com falar segundo as regras de bem dizer e escrever, o que, por sua vez, faz com que se aceite a idéia despropositada de que ninguém fala corretamente no Brasil e que se insista em ensinar padrões gramaticais anacrônicos e artificiais (PCN, 1998, p. 30). Nessa circunstância, critica-se, de certo modo, a chamada norma padrão, que carrega as tais “regras de bem dizer e escrever”. Tomar determinadas regras como padrão de correção de todas as formas linguísticas significa adotar uma norma idealizada como alvo no ensino. De fato, há um distanciamento considerável entre a norma padrão reverenciada nos 16 Valho-me, aqui, do conceito de gêneros textuais adotado por Marcuschi (2005), mediante o qual tal expressão é usada como “uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros”. Assim estão, por sua vez, também inerentes às práticas linguísticas como um todo. A exemplo, o autor destaca gêneros como “reunião de condomínio, notícia jornalística, [...] conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador aulas virtuais e assim por diante” (MARCUSCHI, 2005, p. 22-23). 83 compêndios gramaticais e a norma culta, aquela efetivamente utilizada por brasileiros escolarizados em situações de monitoramento. A fim de aclarar tal questão, Vieira (2009) põe em discussão que norma padrão é essa objetivada no contexto escolar. Ao que parece, já constitui ponto pacífico, para pesquisadores e professores, a legitimidade da variação linguística. Ocorre que os cerca de 40 anos de boas e produtivas pesquisas sociolinguísticas no país não receberam, ainda, a divulgação desejável. Verifica-se, por vezes, a nosso ver, uma visão estereotipada e dicotômica do amplo espectro da variação. A uma concepção homogeneizante de língua, sobrepôs-se uma outra, que assume a existência da variação, mas que a localiza num espaço fora da escola, como se fosse viável pensar, o tempo todo, assim: “a variação é legítima, a variante x é viável, mas na “norma culta”, a suposta norma da escola, essa variante não cabe, não é adequada. (VIEIRA, 2009, p.54). Dessa forma, essa norma idealizada objetivada na escola não corresponde de fato às normas utilizadas pela elite brasileira, nem mesmo no que se refere à escrita. O conceito de norma, nesse caso, refere-se ao que é normal dentro de determinado contexto social, seja na escrita, seja na oralidade. Isto não significa a ausência de regras na norma, mas essas regras, ainda que sistematizáveis, são também variáveis. É inviável a abordagem e imposição de uma determinada norma padrão como sendo única e invariável, posto que até mesmo as normas cultas de uso da língua variam a depender do contexto em que se encontram seus falantes. Criou-se, então, uma era pedagógica de bipolaridades: a norma culta versus outras normas; a escrita versus as falas; o formal versus os informais, sendo supostamente o primeiro pólo dessas dicotomias estável e homogêneo, como se, na realidade, a legitimidade da variação se verificasse apenas na fala dos outros, não na do professor, nem na dos “bons textos”. Instaura-se, então, uma tentativa constante do professor em estabelecer, no contexto escolar, as estruturas de uma norma culta vista como invariável. Resulta disso a flagrante contradição entre a proposta teórica e a prática da sala de aula – na fala do professor, na teoria gramatical, e nos diversos textos apresentados aos alunos (VIEIRA, 2009, p.54). Como evidenciado acima, há, na verdade, uma pluralidade de normas também no domínio culto de uso da língua – desde a oralidade até a escrita. O ensino da língua formatado, em certa medida, pelos padrões linguísticos lusitanos corrobora a abordagem realizada no contexto escolar, como se não houvesse variedades cultas brasileiras. Na verdade, a diversidade linguística do português do Brasil é ampla e, dessa forma, promover um ensino baseado em uma pedagogia do erro não parece um método produtivo. 84 Se, antes, a escola estava a serviço de uma minoria elitizada – o que contextualizava, de certo modo, o ensino normativista/prescritivista – posteriormente, houve a democratização do ensino, e os alunos que chegam à escola se deparam com uma norma linguística até então desconhecida, com a qual não têm contato. Tendo em vista o histórico de mudanças na nossa sociedade, Faraco (2008) aponta para uma preocupação com relação ao ensino do português no Brasil: Enquanto a questão do domínio da cultura letrada e, em consequência, da língua modelar era problema de uma reduzida elite, um modelo normativo anacrônico não causava maiores dificuldades. Contudo, à medida que mudanças socioeconômicas (em especial, a industrialização e a urbanização) trouxeram a necessidade de se ampliar o acesso da população à escola e se propagou o conceito moderno de cidadania (que inclui o direito de todos aos bens culturais), um tal modelo passou a ser um problema grave, como no Brasil de hoje, em que ele não faz sentido para a maioria da população e, por isso, acaba por embaraçar não só o ensino do português, como o próprio funcionamento social da norma culta/comum/standard (FARACO, 2008, p. 146). Diante disso, a polissemia do termo norma tornou-se uma questão relevante para fins de estudos linguísticos. A esse respeito, Faraco (2008, p. 31-98) aponta quatro possíveis concepções de norma distintas, que distribuo aqui em dois planos, o da realização (item a) – em que a norma constitui efetivamente uma variedade linguística praticada por uma comunidade de fala – e outro da idealização (itens b, c e d) – em que se supõe, em um projeto homogeneizante de norma, o que deveria ser o conjunto de usos de certa língua: a) a norma culta/comum/standard, referente às formas linguísticas efetivamente utilizadas por brasileiros letrados (cultos). Sendo assim, os usos que se encaixam na norma ou variedade culta se situariam no cruzamento entre o ponto mais urbano, o mais formal e o de maior letramento dos continua de variedades da língua, propostos por Bortoni-Ricardo (2005). Retomo, aqui, que o grau de monitoração consiste em um dos continua de variedades da língua, ou seja, o que é culto varia também entre formalidade e informalidade, a depender do contexto situacional em que o falante se encontra. Nota-se, logo, que a norma culta também é plural, tal como apontam Vieira; Freire (2014), que evidenciam a variação presente na norma culta. Existem, portanto, normas cultas de uso da língua, dentre as quais se englobam formas de prestígio social, referentes às variantes utilizadas pela elite letrada brasileira. Cabe, ainda, advertir que muitos dos usos da fala culta brasileira não se distanciam efetivamente da linguagem urbana comum em geral, conforme demonstram os dados do projeto NURC 85 (Norma Linguística Urbana Culta) (PRETTI, 1997 apud FARACO, 2008). Ainda assim, os traços que a distinguem (estereótipos linguísticos) – como, por exemplo, a marcação ou não de pluralidade em certas formas verbais – são fortes alvos de avaliação social e acabam influenciando a distinção entre normas; b) a norma padrão, que se forma a partir de uma construção social e histórica, dada em função do que se imagina como culto pela sociedade. Isto é, a norma padrão é a idealização de um conjunto de regras que representariam, supostamente, o “bom uso da língua”. O uso do clítico como estratégia de representação do objeto direto anafórico, por exemplo, encontra-se contemplado no escopo da norma padrão – o que não implica que se encontre produtivamente essa variante em expressões de norma culta. Como a diversidade linguística é ampla e complexa, as sociedades costumam contar com a chamada norma padrão na tentativa de uniformizar/padronizar a língua: há uma idealização do que se considera culto na sociedade. Trata-se de um construto subjetivo que também é plural e vai se modificando historicamente. A norma padrão do século XIX já não é a mesma do século XXI, e assim por diante. A norma padrão, portanto, vai sendo estabelecida pela sociedade a partir do que se idealiza como unificador e desejável em determinado período social; c) a norma gramatical, constituída no momento em que filólogos e gramáticos se dispõem a codificar a norma padrão nos manuais gramaticais e dicionários de referência. Esta, como se pode observar historicamente, foi influenciada originalmente pelos moldes linguísticos lusitanos, remetendo a um padrão linguístico da elite brasileira do século XIX. Nota-se, portanto, que a norma gramatical, assim como a norma padrão, vai se modificando posteriormente à evolução das normas cultas de uso, que avançam naturalmente a sua frente; d) a norma curta, que remete (ironicamente) a uma norma extremamente restrita, com destaque a formas linguísticas que já caíram em desuso ou até mesmo arcaicas. Trata-se da norma purista dos que cultivam uma cultura do erro muito distante dos usos registrados na norma culta/comum/standard. Esta é uma norma ainda mais radical do que a maior parte das referências encontradas nos próprios compêndios gramaticais. É idealizada, de certo modo, por alguns instrumentos sociais ou indivíduos muito conservadores envolvidos na área da Língua Portuguesa, os que são ainda mais normativos que os manuais de gramática (que muito apresentam de descrição da língua) e os agentes que naturalmente trabalham (jornalistas, professores, dentre outros) com base em certo modelo de norma padrão em nossa sociedade. 86 Esclarecidas as distinções entre as quatro diferentes normas apontadas por Faraco (2008), é possível compreender que há dois planos gerais que englobam as concepções de norma explicitadas: (i) o plano das normas idealizadas e (ii) o plano das normas praticadas. No primeiro, encontram-se a norma padrão e a norma gramatical, além da norma curta mencionada pelo autor, as quais situam um conjunto de regras modelo da língua a partir do que se imagina como culto e prestigioso pela sociedade (padrão) e/ou do que se explicita como tal nas gramáticas tradicionais (gramatical). No segundo, por sua vez, estão situadas as normas linguísticas de uso, verificadas em situações reais de comunicação, dentre as quais estão as normas tidas como não prestigiosas pela sociedade e as normas cultas de uso. Nessa perspectiva, os PCN (1998) não negam a necessidade de uma orientação normativa no ambiente escolar, contanto que esta não seja promovida de forma descabida, desatualizada ou anacrônica. Ao que parece, sugere-se que o modelo de ensino seja coerente com as preferências da norma culta, de modo que a “norma padrão escolar”, nos termos do documento, assumiria um perfil de proximidade com as normas cultas de uso:. Tomar a língua escrita e o que se tem chamado de língua padrão como objetos privilegiados de ensino-aprendizagem na escola se justifica, na medida em que não faz sentido propor aos alunos que aprendam o que já sabem. Afinal, a aula deve ser o espaço privilegiado de desenvolvimento de capacidade intelectual e lingüística dos alunos, oferecendo-lhes condições de desenvolvimento de sua competência discursiva. Isso significa aprender a manipular textos escritos variados e adequar o registro oral às situações interlocutivas, o que, em certas circunstâncias, implica usar padrões mais próximos da escrita. Contudo, não se pode mais insistir na idéia de que o modelo de correção estabelecido pela gramática tradicional seja o nível padrão de língua ou que corresponda à variedade lingüística de prestígio. Há, isso sim, muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associado às variedades não-padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. (PCN, 1998, p. 30-31). O que os PCN chamam acima de língua padrão se refere às normas cultas de uso, e a necessidade de usar, em certas circunstâncias, padrões mais próximos da escrita faz referência ao ponto de maior letramento dos continua de variedades da língua propostos por Bortoni-Ricardo (2005). Nesse sentido, ressalta-se que a variedade linguística de prestígio, que corresponde à noção de norma culta já explicitada, é tão plural e variável quanto as demais variedades, como o documento bem expõe em seguida ao mencionar o valor atribuído às “variedades padrão” da língua, em seus termos. 87 Assim, ocorre que os PCN (1998) se referem como padrão também ao que se entende por norma culta, o que seria um padrão culto de uso. No entanto, é necessário que os professores possam compreender claramente as questões sobre norma que influem no ensino. Um posicionamento não tão evidente das suas significações pode provocar nos professores – e consequentemente nos alunos – uma noção não tão clara sobre o tema. Talvez por isso, entre outras questões, o conceito de norma no ambiente escolar ainda esteja restrito a um conjunto de regras linguísticas, no sentido de regulamento, como o que é normativo; e não como o que é usualmente normal (e variável). Contudo, o próprio documento orienta que, para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma correta de falar, o de que a fala de uma região é melhor da que a de outras, o de que a fala correta é a que se aproxima da língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua difícil, o de que é preciso consertar a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. (...) No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da forma de fala a utilizar, considerando as características e condições do contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo; saber que modo de expressão é pertinente em função de sua intenção enunciativa dado o contexto e os interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de erro, mas de adequação17 às circunstâncias de uso, de utilização adequada da linguagem (PCN, 1998, p. 31). A concepção de norma privilegiada nos PCN (1998), portanto, corresponde aos padrões de uso, verificados em situações reais de comunicação, dentre as quais estão as normas/variedades cultas. Diante disso, vale ressaltar que nem mesmo a variedade linguística trazida pelo professor é referente à norma padrão idealizada (que é irreal). Logo, é pertinente que os usos tanto do aluno como do professor, nas diversas situações de interação em sala de aula, contribuam para uma pedagogia da inserção, como aponta Bortoni-Ricardo (2005). O professor, ao invés de determinar a correção, desejando que o aluno substitua uma norma por 17 A respeito do conceito de adequabilidade linguística, cabe mencionar que alguns pesquisadores, em se tratando de contextos que direcionam a uma mudança de usos da modalidade oral para a escrita, já apontam e defendem a promoção, em tal movimento, de uma mudança de gramática, e não apenas um movimento de adequação. Esta, por sua vez, envolve de fatores como o maior ou menor nível de polidez que determinada situação exige, por exemplo. Ao selecionar usos linguísticos de maior grau de letramento como na escrita mais monitorada, o indivíduo promove uma mudança de gramática, e apenas os falantes escolarizados ou que carregam em sua bagagem maior contato com a leitura têm habilidades para fazê-lo, tal como indicam Duarte (2013) e, em publicação mais recente, Duarte & Serra (2015). 88 outra, pode promover uma reflexão do estudante (e também dele mesmo) sobre a própria língua, favorecendo a ampliação das habilidades linguísticas (e não a substituição). Esse professor, assim, adotaria uma pedagogia sensível à diversidade linguística, nos termos de Bortoni-Ricardo (2005). Mais do que isso, é necessário adotar uma pedagogia da variação linguística, postulada por Faraco (2008), que envolve a busca por “alternativas pedagógicas que permitam pôr a escola na vanguarda, sensibilizando as crianças e os jovens para a variação e para seus sentidos sociais e culturais” (FARACO, 2008, p. 182). Como bem apontam os já mencionados PCN (1998, p. 77), na escola, a tarefa de corrigir, em geral, é do professor. É ele quem assinala os erros de norma e de estilo, anotando, às margens, comentários nem sempre compreendidos pelos alunos. Mesmo quando se exige releitura, muitos alunos não identificam seus erros, ou, quando o fazem, se concentram em aspectos periféricos, como ortografia e acentuação, reproduzindo, muitas vezes, a própria prática escolar (grifo meu). A ideia de assinalar erros de norma, nesse caso, não alude a uma pedagogia do erro, assinalada na concepção de norma curta, anteriormente apresentada. Apontar erros de norma, aqui, não significa que determinadas formas são fixamente erradas, mas que, em determinado contexto situacional, tais estratégias não funcionam ou provocariam uma avaliação negativa. O papel do professor, de fato, é orientar seus alunos e, com isso, fornecer-lhes subsídios que lhes permitam compreender e produzir textos de maneira eficaz. Nesse sentido, corrigir erros de norma implica que o alunado seja conscientizado sobre as diversas formas linguísticas utilizadas na interação social, formas estas que assumem diferentes interpretações / avaliações sociais em cada contexto situacional. 2.3.3 Por um ensino de gramática na construção dos sentidos do texto Muito se tem debatido acerca da funcionalidade do ensino de gramática nas escolas, conforme se discutiu na seção 2.2.1 desta pesquisa. Ao compreender que o ensino de gramática faz referência à ampla gama de operações possíveis e eficientes no sistema da língua em uso, já partimos, aqui, da noção de gramática reflexiva como ponte para a compreensão e produção de textos diversos. Na tentativa de, literalmente, ler textos, compreendendo-os e interpretando-os, 89 deve-se tentar descobrir as várias técnicas de comunicação que o sistema linguístico coloca a serviço do enunciador de um texto e que vão ser recuperadas, conscientemente ou não, pelo leitor, dono de sua gramática textual internalizada. Esse processo de leitura pelo reconhecimento das etapas de composição do texto é passível de ser transmitido aos alunos, com sistematicidade, e os resultados são bastante positivos em qualquer grau de ensino (PAULIKONIS, 2011, p. 244) (grifo meu). Ao fazer referência ao sistema linguístico, faz-se referência à gramática da língua. Partindo-se desse princípio, a questão se volta para como articular os conhecimentos gramaticais e o texto, isto é, de que forma apoderar-se das operações linguísticas para ler e construir diferentes textos. Nesse intuito, diversas linhas já se ocupam por abranger os sentidos no plano textual: a linguística textual, a linguística funcionalista, a análise do discurso, entre outras. Toma-se por base, aqui, apenas algumas referências que permitam explicar este terceiro eixo de ensino, que versa sobre a relação entre gramática e produção de sentidos do texto. Sabe-se que o texto é construído a partir de expressões linguísticas variadas, as quais são envolvidas também por demandas extralinguísticas e contextuais. Nesse sentido, é de fato relevante atentar para o contexto e a intenção de produção de textos na tentativa de compreendê-los. Compreender e interpretar um texto, portanto, exige uma “re-construção de sentidos”, como afirma Pauliukonis (2011, p. 244), adotando uma abordagem da Análise do Discurso de orientação francesa (doravante AD), com os pressupostos de Patrick Charaudeau (1983, 1992). Segundo a autora, trata-se de uma operação interativa que demanda uma articulação de diferentes fatores; não é apenas uma decodificação dos elementos instrucionais, mas o reconhecimento de estratégias realizadas e que configuram significados virtuais, passíveis de serem recuperados por processos de inferência, análise de pressupostos e implícitos situacionais de diversas ordens. [...] Isso não significa que a compreensão seja um processo de integração linear sem o menor obstáculo, pois como sublinha Teun Van Dijk (1987:187), com propriedade, “os processos de compreensão têm uma natureza estratégica, pois, muitas vezes, a compreensão utiliza informações incompletas, requer dados extraídos de vários níveis discursivos e do contexto de comunicação e é controlada por crenças e desígnios variáveis de acordo com os indivíduos” (PAULIUKONIS, 2011, p. 244). A autora explica que as operações utilizadas na estruturação textual mobilizam conhecimentos não linguísticos, que vão, por sua vez, permear os diversos gêneros textuais e 90 suas restrições. Entende-se o texto, portanto, como manifestação de discurso18, remetendo à conjuntura da enunciação, e não mais como um produto acabado e delimitado cruamente. Entretanto, também os conhecimentos linguísticos vão contribuir para a formação dos diferentes gêneros. É no processo de construção do texto, dada por meio das operações linguísticas selecionadas, estrategicamente, pelo enunciador/escritor, que o texto se define como um todo coerente e, assim, significa. A referida autora aclara ainda mais essa questão: Em vez da prática de se buscar primeiro o significado, o quê, finalidade maior do ensino escolar ainda hoje, talvez se deva partir para o enfoque e a análise do modo como o texto foi produzido; ou seja, deslocar-se do significado original para os efeitos de sentido, a partir do exame das operações e estratégias linguísticas que o produziram. Desse modo, em vez de se procurar o que o texto diz, procurar analisar como o texto diz e por que diz o que diz de um determinado modo. O importante é analisar no texto as operações e/ou estratégias que são produtoras de sentido e que, aí sim, podem ser recuperadas como tais pelo leitor. É nesse sentido que gramática e texto se entrelaçam (PAULIUKONIS, 2011, p. 243). A importância do suporte contextual não elimina a relevância dos dados linguísticos sistemáticos, e vice-versa. Ao mesmo tempo em que se deve considerar a contextualização do texto, devem-se compreender, também, as estratégias linguísticas acionadas para a elaboração do texto/discurso, o que exige a compreensão gramatical da língua em uso. Dessa forma, os conhecimentos linguísticos, semântico-pragmáticos e situacionais caminham lado a lado para viabilizar o todo textual, tanto em sua interpretação como em sua produção. Assim, interessa ao professor trabalhar com os alunos as várias estratégias sistemáticas (gramaticais) disponíveis para uso na língua. Trata-se de fornecer os diversos aparatos linguísticos possíveis e demonstrar que a escolha por determinadas estratégias implica determinadas significações. O conhecimento gramatical, tanto no nível da frase como no do texto, configura-se como um artifício de compreensão e de produção de sentidos. Ao tomar conhecimento das diversificadas estratégias/operações da língua, o aluno poderá identificá-las na leitura e interpretação de textos e utilizá-las na composição dos seus próprios. Quanto mais estratégias forem compartilhadas e trabalhadas com o alunado, maior será seu conjunto de habilidades linguísticas para o exercício como leitor e enunciador no mundo. 18 Para melhor compreender a noção de texto como discurso, conferem-se os pressupostos da Análise do Discurso de orientação francesa (doravante AD), disponíveis em Linguagem e discurso, de Patrick Charaudeau (1983, 1992). Trad. e org: Grupo NASD e CIAD-Rio. São Paulo: Contexto, 2008. 91 Ao agir dessa forma, dando atenção a esses diversos fatores, a escola estará colocando em prática a noção de ensino produtivo de texto, a que se refere Luiz Carlos Travaglia em “Uma proposta para o ensino de gramática na escola” (1996:180), quando afirma que um dos objetivos do ensino de língua materna é desenvolver a competência comunicativa do aluno, utilizando um ensino que muito contribuirá para a aquisição de novas habilidades comunicativas. O ensino descritivo e o normativo, centrados no enunciado, também têm seu lugar – visto que cada estrutura linguística deve ser conscientemente dominada pelo aluno, por meio de um encaminhamento pedagógico crítico e reflexivo (PAULIUKONIS, 2011, p. 245). Trata-se, portanto, de apropriar-se do ensino de gramática reflexivo para alcançar o domínio sobre as operações linguístico-discursivas que constituem o texto. Isto significa ensinar gramática na e para a construção dos sentidos do texto. Nessa perspectiva, Moura Neves (2013) organiza toda uma obra em prol da demonstração da inter-relação de processos (gramaticais) que constituem os enunciados. Em seu livro Texto e Gramática, a autora aponta a predicação e a referenciação como pontos de partida desse processo de constituição: predicação e referenciação governam, em inter-relação, a construção de objetos de discurso e sua manutenção no texto. Bem como a natureza referencial desses constructos, que constituem os termos que formam as predicações, e, portanto, os argumentos que ficam disponíveis no discurso – com um determinado estatuto referencial – para o rastreamento coesivo no fazer do texto (NEVES, 2013, p. 286). Assim, fica claro que é a partir de instrumentos gramaticais que conseguimos compreender e construir textos diversos. A atuação da escola, portanto, deve contemplar o estudo da língua nessa direção, envolvendo os objetivos do ensino de gramática dentro dessas concepções aqui explicitadas. Como já apontava Franchi (2006), a criatividade possibilitada nos processos do sistema gramatical viabiliza que as expressões signifiquem. Em vista das considerações feitas, o presente trabalho busca seus fundamentos nas pesquisas anteriores mencionadas na revisão bibliográfica ora realizada (Capítulo 1), no intuito de tratar e compreender as estruturas do objeto direto tal como aludidas nos materiais de pesquisa investigados e coletadas no corpus das redações escolares. Para a análise das redações, em especial, parte-se dos pressupostos básicos da Sociolinguística Variacionista a fim de conceber a noção de regra variável e os condicionamentos linguísticos e extralinguísticos posteriormente averiguados, além do exame da avaliação conferida pelas 92 professoras acerca do fenômeno gramatical variável em questão. No mais, busca-se na subárea da Sociolinguística Educacional e nos autores que debatem o ensino da Língua Portuguesa os pressupostos gerais para interpretar e discutir os resultados relacionados ao campo pedagógico. 93 CAPÍTULO 3 METODOLOGIA E HIPÓTESES DA PESQUISA Neste capítulo, apresentam-se os procedimentos metodológicos e as hipóteses adotadas para a realização desta pesquisa, ambos na seção 3.1. Na seção 3.2, faz-se uma breve exposição do contexto educacional em que se inserem as escolas que viabilizaram o trabalho aqui desenvolvido e, em 3.3, explicitam-se mais claramente os aspectos que compõem os materiais de pesquisa analisados: materiais didáticos (3.3.1); entrevista (3.3.2); redações escolares (3.3.3). Na descrição das redações escolares, ainda, as subseções 3.3.3.1 e 3.3.3.2 relatam os grupos de fatores controlados para a análise e o tratamento dos dados deste corpus, respectivamente. 3.1 Procedimentos metodológicos e hipóteses da pesquisa O primeiro procedimento realizado foi a feitura de uma revisão bibliográfica que permitisse compreender o objeto de estudo aqui em abordagem: o acusativo anafórico de terceira pessoa como fenômeno gramatical variável. Ao mesmo tempo, estabeleceram-se os fundamentos teóricos de que se vale esta pesquisa: os pressupostos da Sociolinguística Laboviana e as contribuições da Sociolinguística Educacional (Bortoni-Ricardo, 2004), aliados, ainda, aos princípios do ensino de Português tais como sistematizados por Vieira (2015), em paralelo às orientações dos PCN (1998). Com base na revisão da literatura e nos fundamentos teóricos explicitados anteriormente, formulou-se uma entrevista19 destinada, por escrito, a professores atuantes no 9º ano do Ensino Fundamental. Tal entrevista teve o intuito de alcançar a perspectiva do professor com relação tanto à compreensão dos conceitos de norma e variação quanto à avaliação que ele faz sobre as formas variantes de representação do objeto direto de terceira pessoa mais especificamente. Em seguida, foram selecionadas duas escolas do Rio de Janeiro por meio das quais fosse possível estabelecer contato com professores de Língua Portuguesa do 9º ano, ambas pertencentes à rede pública de ensino. 19 A entrevista formulada encontra-se mais bem descrita na seção 3.3.2, incluída na seção 3.3, na qual se descrevem os materiais de pesquisa investigados. Além disso, pode-se visualizá-la por inteiro nos anexos desta dissertação. 94 A partir do contato estabelecido, verificou-se de antemão que as duas professoras atuantes nas turmas de 9º ano (uma em cada escola) utilizavam como material didático os Cadernos Pedagógicos fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação (SME) do Rio de Janeiro. Esta informação levou ao acréscimo de uma questão à entrevista formulada: saber a opinião das professoras sobre a apostila da SME e se, por algum motivo, utilizam outro ou outros materiais didáticos em suas aulas. Assim, solicitou-se às duas docentes que respondessem à entrevista e que disponibilizassem redações corrigidas de seus alunos. Ambas as professoras responderam positivamente e contribuíram com a pesquisa. Ao observar suas respostas nas entrevistas, constatou-se que as duas utilizavam outros materiais além dos Cadernos da SME em suas aulas. A professora da escola 1 faz uso do livro didático Vontade de saber Português, de Romeire Alves e Tatiane Brugmerotto (2012), como forma de complementar o trabalho feito com os Cadernos, e a professora da escola 2, por sua vez, informou que complementa seu trabalho com as atividades do Caderno do Futuro, fornecido pelo Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP). Essas informações viabilizaram o prosseguimento desta pesquisa, cuja análise se dividiu em três partes. Na primeira, fez-se uma apreciação crítica, de base qualitativa, do tratamento dispensado ao tema da retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa nos materiais didáticos utilizados pelas professoras em sala de aula. Na ocasião, analisou-se especificamente a orientação feita nos Cadernos Pedagógicos da SME, utilizado pelas duas docentes, no capítulo sobre pronomes do livro didático e no Caderno do Futuro da IBEP, utilizados pela professora 1 e pela professora 2 respectivamente. O objetivo, com esta análise, foi verificar quais formas de retomada anafórica são explicitadas nesses materiais para as possíveis representações do acusativo anafórico de terceira pessoa, percebendo se e como tais formas são legitimadas ou não. A segunda etapa de análise desta pesquisa consistiu na apreciação crítica das entrevistas realizadas com as professoras. A terceira etapa, por fim, incidiu na análise das redações escolares por elas corrigidas. Com relação aos três momentos de análise mencionados, foram formuladas três hipóteses de trabalho. No que concerne ao material didático utilizado, supõe-se que a apostila pedagógica elaborada pela SME apresentaria poucas referências explícitas ao tema como conteúdo gramatical (variável) em estudo, tendo em vista uma suposta aversão à “gramática” que, por certa confusão conceitual, muitas vezes paira em alguns ambientes escolares públicos 95 atuais. A esse respeito, respalda-se na pesquisa diagnóstica que vem sendo desenvolvida por Luiz Felipe da Silva Durval e Jessica Pegas de Abreu, no âmbito da Iniciação Científica durante o curso da graduação em Letras da UFRJ, acerca do tratamento dispensado à variação linguística e a temas gramaticais na referida apostila do Município do Rio de Janeiro, a partir da qual é possível identificar e compreender com mais detalhes as características mencionadas sobre tal material. O estudo dos conteúdos gramaticais, em realidade, é de fato importante para as atividades de compreensão leitora e produção textual explicitamente objetivadas nos PCN (1998). Já para o livro didático em questão, supõe-se que também não haveria referências explícitas às variantes existentes no Português do Brasil para este fenômeno; neste caso, a hipótese se fundamenta no fato de que os livros didáticos em geral costumam objetivar o alcance de certa norma padrão, sem representatividade das normas cultas e populares em uso. Ainda que houvesse alguma menção a formas alternantes de representar o elemento acusativo, acredita-se que o livro buscaria instruir os alunos a empregar o clítico acusativo como sendo a forma “correta” de representação. Caso haja alguma menção às demais variantes, supõe-se que seria feita em um adendo, em parte separada do corpo do capítulo, de modo a distanciálas da variante considerada padrão. Elas seriam, então, tratadas como “possíveis em uma linguagem informal/coloquial”. Para a análise das entrevistas com as professoras, consideraram-se as noções de norma e variação até então averiguadas no contexto do ensino conforme os estudos realizados anteriormente (citados no Capítulo 2, Seção 2.3). Com base em tais estudos, é provável que haja, em sua perspectiva, uma visão dicotômica entre as variantes existentes no Português do Brasil e o que se poderia legitimar na escola. Em vista disso, supõe-se que as professoras compreenderiam a existência de formas acusativas alternantes, como o objeto nulo e o pronome lexical, mas que, ainda assim, optariam pela primazia da forma com o clítico acusativo no ambiente escolar em detrimento das demais variantes, as quais não teriam espaço no contexto do ensino. Nesse aspecto, essa visão dicotômica viria a ser seguida de uma noção polarizada dos registros formal e informal de uso da língua. Nesse sentido, é possível que as professoras relacionem a variante considerada padrão como representativa de um contexto formal, enquanto as demais variantes seriam possíveis apenas em um contexto informal (conforme orientaria o livro didático, segundo a primeira hipótese), sem ponderar a noção de continuum entre os graus de monitoração em questão. 96 Com relação à produção escrita dos alunos, por fim, espera-se verificar a ocorrência de “usos irregulares de clíticos acusativos”, como apontaram Freire (2005) e Xavier (2015). Tais usos seriam empregados pelos alunos na tentativa de utilizar a forma padrão objetivada no ensino, o que, em certa medida, resultaria em pelo menos algumas irregularidades, haja vista a pouca familiaridade que os brasileiros têm com essa variante. Segundo as pesquisas realizadas até então, o clítico acusativo não constitui parte da gramática interna dos falantes do Português brasileiro. Assim, embora seja provável uma ocorrência significativa dessa estratégia, uma vez que os alunos cursam já o 9º ano do Ensino Fundamental, supôs-se que haveria uma predominância no uso de formas com o SN anafórico e o objeto nulo em função acusativa na escrita desses estudantes. Ainda acerca do corpus das redações escolares, no que concerne especificamente à correção constatada em sua análise, supõe-se que as professoras corrijam, em maior escala, o emprego do pronome lexical, embora se espere uma baixa frequência de uso dessa variante. Além disso, é possível que haja um percentual talvez significativo de alguns “usos irregulares do clítico acusativo de terceira pessoa” (cf. Freire, 2005), tendo em vista a larga distância entre essa variante e o vernáculo do PB, o que dificultaria, em certa medida, seu aprendizado. Para a realização da etapa de análise referente ao diagnóstico da produção estudantil e da correção feita pelas professoras, especialmente, promoveu-se uma investigação sociolinguística variacionista dos dados encontrados, conforme os pressupostos de Labov (2008 [1972]). Foram coletadas as redações escolares das turmas de 9º ano do Ensino Fundamental das duas escolas contatadas, as quais constituíram a amostra que será melhor descrita ao final deste capítulo, na Seção 3.3.3. A metodologia adotada para sua análise seguiu os seguintes procedimentos: (i) coleta de dados de acusativo anafórico verificados nas redações; (ii) codificação dos dados conforme os grupos de fatores controlados (descritos na seção 3.1.1); (iii) rodadas multivariadas com o Programa Goldvarb X, alcançando uma descrição de resultados percentuais, pesos relativos e de cruzamentos entre variáveis; e (iv) análise e interpretação dos resultados, comparando-os aos resultados de estudos anteriores. Os grupos de fatores controlados na análise das redações e o tratamento dos dados coletados são detalhados na seção 3.3, que compreende os todos os aspectos da pesquisa que dizem respeito aos materiais investigados, inclusive à amostra de redações (seção 3.3.3), de modo que serão abordados, em sequência, nas subseções 3.3.3.1 e 3.3.3.2, ao final deste capítulo. No que concerne à investigação das correções verificadas no corpus, em especial, 97 fez-se uma apreciação qualitativa das ocorrências corrigidas e não corrigidas pelas professoras, em casos relevantes à análise. Após o exame dos materiais didáticos, das entrevistas com as professoras e da interpretação dos resultados da análise sociolinguística variacionista feita com os dados das redações escolares, foi possível traçar um paralelo entre as considerações feitas para cada um desses três materiais de pesquisa. Assim, alcançou-se o objetivo geral desta pesquisa: verificar como se concretiza a tríade “material didático – orientação do professor – domínio por parte dos alunos” no que tange às variantes linguísticas existentes para a representação do objeto direto anafórico de terceira pessoa e, a partir disso, promover algumas reflexões sobre o ensino nesse âmbito. 3.2 Descrição dos ambientes escolares da pesquisa Ao considerar a relevância de conhecer o contexto educacional que permeia o trabalho aqui desenvolvido, expõem-se, nesta seção, as circunstâncias em que se encontram as escolas aqui envolvidas, tendo em vista a abrangência de seu alunado, o contexto social e a estrutura física de cada uma delas. Visando ao não comprometimento das referidas instituições, optouse por não divulgar seus nomes, bem como os nomes das respectivas professoras que concederam a entrevista. Assim, a referência às escolas e às professoras será feita por meio das expressões escola 1 e escola 2; professora 1 e professora 2. A escola 1 encontra-se situada na Zona Norte do Rio de Janeiro, no bairro da Vila da Penha, e atende a alunos da Educação Infantil até o 9º ano do Ensino Fundamental, incluindo o Ensino Fundamental – Educação Especial. No momento, abrange um total de seiscentos e setenta e seis estudantes. Destes, cento e setenta cursavam o 9º ano do Ensino Fundamental no ano de 2015, divididos em quatro turmas. No que tange ao ensino de Português mais especificamente, a escola conta com o exercício de oito professores, que, em geral, lecionam cada um em três turmas. Em 2015, no entanto, as quatro turmas de 9º ano apresentaram uma única professora de Português como responsável, a qual cedeu a entrevista para esta pesquisa. É uma instituição consideravelmente grande, no sentido de que abarca um número expressivo de alunos (676), os quais, em sua maioria, vivem em comunidades do bairro e proximidades. A escola apresenta uma boa infraestrutura, dispondo de sala de vídeo, laboratório de informática, aparelhos de som e um data show em cada sala de aula, além de 98 vários outros disponíveis, segundo informou a direção da instituição. Todos, salas e aparelhos, encontram-se em boas condições de uso. Além disso, a direção afirmou que a escola possui internet wifi disponível nas salas de aula, caso haja algum evento em que seu uso seja produtivo. A escola 2 também se situa na Zona Norte do Rio de Janeiro, no bairro de Irajá, e, por sua vez, atende a um total de quatrocentos e oitenta alunos do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos. Deste total de alunos, somente sessenta e nove cursavam o 9º ano do Ensino Fundamental em 2015, os quais se encontravam divididos em três turmas. Para o ensino de Português, a direção informou haver quatro professores atuantes na instituição: três efetivos e um exercendo dupla regência (oriundo de outra escola). Dessa forma, os professores costumam atuar em duas séries. No ano de 2015, em especial, a professora de Português responsável pelas turmas de 9º ano estava em vias de se aposentar e, assim, lecionou nessas turmas até o 3º bimestre do ano letivo apenas. Com isso, as turmas de 9º ano ficaram sem professor para as aulas de Língua Portuguesa durante o último bimestre de 2015. Como se pode notar, é uma instituição consideravelmente pequena, se comparada à escola 1 e a outras unidades educacionais, já que abarca um número menor de funcionários e estudantes (480). A maioria de seus alunos também advém de comunidades do entorno da região – Morro da Serrinha, Morro do Juramento e Malvina –, segundo informou a direção, embora sua unidade não esteja localizada tão próxima a elas. A escola conta com uma sala de vídeo e um data show na maioria das salas de aula, mas somente as salas do 2º andar possuem internet wifi para um possível uso educacional. Há, entretanto, uma sala de leitura bem organizada e bastante frequentada pelos alunos. Ambas as escolas se apresentam como contextos educacionais, de modo geral, semelhantes, considerando a origem/classe social de seus alunos e a região onde se situam as unidades de ensino (em bairros muito próximos). O que mais as diferencia, em contrapartida, é a abrangência de seu alunado em números e a infraestrutura de cada uma. Na seção a seguir, apresentam-se, mais detalhadamente, os materiais utilizados para a análise do tratamento pedagógico da regra em estudo. 99 3.3 Descrição dos materiais de pesquisa Conforme já se esclareceu, esta pesquisa compreende três tópicos de análise: os materiais didáticos utilizados pelas professoras 1 e 2; uma entrevista com elas realizada; e 260 redações escolares de seus alunos (por elas corrigidas). Tais materiais de pesquisa são descritos nas subseções a seguir, separadamente. 3.3.1 Os materiais didáticos utilizados Acerca dos materiais didáticos, foram três as obras analisadas: os Cadernos Pedagógicos da SME, presentes nas aulas de ambas as professoras; o livro didático Vontade de saber Português, de Romeire Alves e Tatiane Brugmerotto (2012), utilizado pela professora 1; e o Caderno do Futuro da IBEP, utilizado pela professora 2. Desse modo, vejamos a estruturação de cada um deles. a) Os Cadernos Pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação (SME) Os Cadernos Pedagógicos da SME são formulados no intuito de auxiliar o docente no exercício de sua profissão, tendo em vista a extensa carga horária que, em geral, dificulta a produção contínua de materiais próprios (embora não seja esta uma regra). Esses Cadernos são fornecidos bimestralmente às escolas municipais e se baseiam, de modo geral, nas orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) referentes, no caso, ao Ensino Fundamental. Para esta pesquisa, foram analisados os Cadernos referentes ao 9º ano do Ensino Fundamental, do primeiro ao quarto bimestre do ano de 2015, a fim de abranger exatamente o material destinado às turmas e respectivas professoras, que cederam suas entrevistas. Ao que parece, toda a orientação desse material é feita a partir de textos, sobre os quais são elaboradas diversas questões e atividades. Os assuntos abordados nos textos também desencadeiam temas para as produções textuais dos alunos. A obra, dessa forma, não segue unidades ou seções predefinidas, havendo um ou outro tópico de destaque ao longo do trabalho com os textos. Esses tópicos, em geral, são feitos por meio de pequenas seções denominadas Espaço criação, Espaço pesquisa, Fique ligado!, Arrumando as ideias e Produção de texto, dispostos aleatoriamente a depender da necessidade de determinada abordagem. 100 No primeiro capítulo de análise desta pesquisa (Capítulo 4), será possível observar com mais nitidez a disposição desse material, especialmente no que diz respeito ao conteúdo linguístico aqui em enfoque. b) O livro didático Vontade de saber Português, de Romeire Alves e Tatiane Brugmerotto (2012) O livro didático em questão, utilizado pela professora 1, é parte de uma coleção fornecida pela FTD Educação para o Ensino Fundamental II (que vai do 6º ao 9º ano), cujos livros foram aprovados pelo PNLD (2014). A coleção está organizada em quatro volumes, cada um com seis unidades. Para esta pesquisa, foi investigado somente o volume dedicado ao 9º ano, mais especificamente as unidades que abordam o ensino de pronomes e fazem referência às estratégias de retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa. Assim, bem como para os Cadernos da SME, as seções deste livro que envolvem o referido fenômeno serão mais bem exploradas no primeiro capítulo de análise desta dissertação. Além disso, suas páginas que aludem a tal conteúdo encontram-se disponíveis na seção de anexos. c) O Caderno do Futuro do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP) O Caderno do Futuro, utilizado pela professora 2, compõe uma coleção mais abrangente, que abarca o Ensino Fundamental I e II, desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP). Para esta pesquisa, foi analisada a edição reformulada destinada ao 9º ano do Ensino Fundamental, a qual busca sistematizar os conteúdos estudados desde o 6º até o final do 9º ano. Para tanto, a obra apresenta uma extensa gama de atividades, formuladas de modo a promover uma revisão dos conteúdos trabalhados durante tais períodos. As atividades deste Caderno estão dispostas em quinze unidades que pontuam determinados temas linguísticos, a saber: Revisão das classes gramaticais e funções sintáticas das palavras – I; Revisão das classes gramaticais e funções sintáticas das palavras – II; Discurso direto / discurso indireto e orações intercaladas; Frase, oração, termos da oração, núcleo dos termos e período; Orações coordenadas; Orações subordinadas adverbiais; Orações subordinadas adjetivas; Orações subordinadas substantivas – I; Orações subordinadas substantivas – II; Orações subordinadas reduzidas de particípio, gerúndio e 101 infinitivo; Denotação e conotação; Qualidades da boa linguagem20; Colocação pronominal; Tempos verbais; Vozes do verbo. Todas as unidades são constituídas de exercícios, havendo apenas alguns lembretes teóricos ao longo da obra. Em algumas, porém, expõe-se uma concisa e sistemática explicação sobre o assunto a ser abordado, anteriormente às atividades sugeridas. Em quase todas as unidades, há o agrupamento de determinados exercícios em uma seção designada Ortografia – vamos escrever certo?; e, ao final de algumas, há a seção Prática de produção de texto, na qual se solicita a feitura de diferentes redações. No que concerne ao fenômeno linguístico aqui em questão, foram encontradas referências nas unidades 2 e 13 desse Caderno, as quais são também devidamente exploradas no primeiro capítulo de análise. No mais, as páginas referentes ao tema desta pesquisa também se encontram disponíveis na seção de anexos desta dissertação, para melhor visualização do material. 3.3.2 A entrevista Com base nos estudos anteriores que integram a questão dos conceitos de gramática e variação ao ensino de Português (cf. Capítulo 2) e considerando os objetivos propostos nesta pesquisa, buscou-se, com a entrevista formulada, alcançar três respostas no que concerne à perspectiva das docentes sobre o tema, quais sejam: (i) qual o conceito de gramática compreendido pelas professoras?; (ii) qual é a concepção de variação e normas da língua de que dispõem as professoras?; e (iii) que compreensão as professoras apresentam acerca das variantes disponíveis no sistema linguístico para a representação do objeto direto anafórico de terceira pessoa? Tais questões se tomam no intuito de compreender a concepção de ensino de Português que orienta a conduta das professoras em sala de aula. Assim, é possível traçar um paralelo entre suas perspectivas e os resultados de produção textual de seus alunos, como reflexo da aprendizagem obtida. Para tanto, a entrevista foi destinada por escrito às referidas professoras, a fim de compreender sua visão sobre variação e normas na Língua Portuguesa 20 Esta unidade contém questões que exigem a reescritura de frases ambíguas, substituição de expressões prolixas por concisas , definição de palavras parônimas, exercícios que envolvem concordância verbal, entre outros. 102 de modo geral e sobre a variação nas formas de representação do objeto direto anafórico de terceira pessoa mais especificamente. A essa finalidade, soma-se a intenção de alcançar a percepção das professoras sobre o conceito de gramática e sua opinião acerca da abordagem gramatical feita nos Cadernos Pedagógicos da SME, por ambas utilizados, o que se fez por meio das perguntas iniciais da entrevista: 1. Você utiliza algum livro didático para suas aulas de Língua Portuguesa? Qual? Em que medida o utiliza: em paralelo a outros materiais de apoio ou usa o livro de forma exclusiva, seguindo estritamente suas orientações? Por quê? 2. Sobre a apostila de apoio pedagógico elaborada pela Secretaria Municipal de Educação – RJ, a) você a utiliza em sala de aula? Qual a sua opinião sobre esse material? Você acha que atende às necessidades do aluno de Língua Portuguesa? Por quê? b) O que você acha da abordagem gramatical feita na referida apostila? Está de acordo com ela ou você acha que deveria haver uma abordagem mais específica do componente gramatical?21 Com isso, buscou-se compreender se as professoras acrescentam e desenvolvem informações em sala de aula para além do que fornece o material utilizado e, ainda, qual a opinião delas sobre o tratamento dispensado aos fenômenos variáveis nos Cadernos da SME: c) O que você acha da abordagem de fenômenos variáveis feita na referida apostila? Está de acordo com ela ou você acha que deveria haver uma abordagem mais normativa desses fenômenos? As últimas perguntas foram formuladas na tentativa de tomar conhecimento de quais formas são por elas legitimadas no ambiente escolar e de que maneira o são, abarcando sua percepção sobre os conceitos de norma e a avaliação que fazem sobre os usos linguísticos observados para o fenômeno gramatical variável em questão: 21 Embora a colocação de alternativas nos enunciados 2b e 2c pudesse direcionar, de certo modo, a resposta dos professores entrevistados, o intuito de tais formulações foi, na verdade, evitar possíveis respostas vagas ou pendentes, pouco elaboradas por parte dos docentes. 103 4. Numa construção como “O bebê ficou doente, então a mãe levou ele ao médico.”, escrita por seus alunos, você corrigiria algo? O quê? Por quê? 5. No livro didático de William Cereja e Thereza Magalhães (2012), há como exercício proposto, em dado momento, a seguinte questão (aqui, reduzida): Nas frases a seguir, alguns pronomes estão empregados em desacordo com a norma padrão. Reescreva as frases empregando tais pronomes de acordo com essa variedade. a) O livro não está comigo. Emprestei ele para a minha prima. e) Eu não vi elas na festa. Será que elas não foram convidadas? Em sala de aula, ao corrigir este exercício, você apenas informa as respostas fornecidas como corretas no livro do professor ou também aceita outras possíveis respostas dadas pelos alunos? Se aceita, quais respostas você validaria? Por quê? 6. Como você vê essa norma-padrão empregada no livro no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa, em especial com os alunos do 9º ano? 7. Marque abaixo qual ou quais formas seus alunos utilizam com mais frequência: ( ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora guardou para mim. ( ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora o guardou para mim. ( ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora guardou ele para mim. ( ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora guardou-o para mim. Como você avalia as formas mais utilizadas pelos seus alunos? Por quê? Além disso, foi formulada uma narrativa fictícia de um suposto aluno do 9º ano do Ensino Fundamental, com diversos usos irregulares de ortografia e gramática. Tal narrativa foi adicionada à entrevista no intuito de que as professoras expusessem a correção que fariam no texto. Assim, seria possível perceber quais variantes elas notariam e, se fosse o caso, como as corrigiriam: 3. Considerando a narrativa abaixo como feita por um de seus alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, o que você corrigiria no texto? Poderia apontar no texto tais correções? 104 Cinderela era uma menina doce e gentil. Vivia com seus pais em uma fazenda muito bonita, rodeada de natureza. Ela amava os seus pais mais do que tudo nessa vida. Um dia, sua mãe ficou doente e não aguentou. Foi um momento muito triste para Cinderela e seu pai. Depois de um tempo, ele se casou com uma moça malvada mas que fingia ser boa para ele. A Cinderela teve que aceitar ela e se acostumar com os caprichos dela. A moça malvada ainda tinha duas filhas, e elas não era nada legais com a Cinderela. Quando o seu pai morreu, ela ficou sendo a empregada da casa e não tinha direito de nada, e também tinha que dar seu quarto para as irmãs novas e dormir no porão. Ela era a única que tinha que fazer todos os afazeres da casa, arrumar os quartos e limpar também, lavar a louça, fazer a comida etc etc etc. Ela fazia tudo. Até que chegou o dia do baile do príncipe do reino e sua madrasta não deixou ela ir. Eles já tinham se conhecido antes e estavam apaixonado um pelo outro. A fada madrinha da Cinderela apareceu e fez um vestido lindo e maravilhozo para ela ir no baile com uma carruagem de abóbora que ela transformou os animais. Mas ela tinha voltar antes da meia noite. Quando deu meia noite ela teve que correr para ir embora e deixou seu sapato de cristal cair. O príncipe pegou e depois conseguiu achar a Cinderela porque só cabia no pé dela. Sobre as correções apontadas acima, você teria alguma observação a fazer? Se sim, qual? Dessa forma, a entrevista foi composta por sete perguntas discursivas, de modo que as docentes pudessem dissertar mais livremente sobre as indagações feitas. No primeiro capítulo de análise desta pesquisa, todas as respostas conferidas são destacadas, em prol de uma apreciação crítica mais clara. Para melhor visualização, ainda, a entrevista propriamente dita está disponível na seção de anexos desta dissertação. 3.3.3 As redações escolares As redações escolares coletadas para esta pesquisa advêm da própria avaliação de produção textual das escolas municipais do Rio de Janeiro, que ocorre bimestralmente, a partir da qual são obtidas e lançadas as notas de produção textual do alunado. Todas as redações coletadas foram do tipo textual narrativo, tendo em vista que a ocorrência de dados de acusativo anafórico é mais provável em narrações (cf. os resultados de Machado (2006) citados no Capítulo 1). Tanto as redações provenientes da escola 1 quanto as da escola 2 são compostas por textos em que os alunos deveriam narrar um pequeno conto no qual o protagonista fosse o personagem de algum livro por eles lido durante o bimestre. No caso, foram coletadas as redações do primeiro bimestre do ano letivo de 2015 de todas as turmas de 9º ano de cada escola contatada. 105 Como observado na seção 3.2, a escola 2 tem por característica um número de alunos bem menor do que a escola 1, dispondo de apenas de três turmas de 9º ano, que contabilizam o total de sessenta e nove alunos desse nível escolar. A escola 1, por sua vez, abarca quatro turmas com um total de cento e setenta alunos do 9º ano. Em vista disso, foi necessário completar a amostra da escola 2 com as redações do terceiro bimestre de 2015, na tentativa de equilibrar o corpus de análise desta pesquisa. Essa complementação, no entanto, não comprometeu a investigação aqui feita, já que as avaliações de produção textual dos dois bimestres (1º e 3º) seguiam os mesmos parâmetros, com apenas uma diferença: o comando da avaliação do terceiro bimestre solicitava que os alunos produzissem um conto a partir de algum acontecimento de um livro por eles lido, e não a partir de um personagem, como no comando do primeiro bimestre. Dessa forma, foram coletadas 260 redações dos alunos de 9º ano das escolas 1 e 2, todas já corrigidas pelas respectivas professoras: 130 da escola 1, oriundas das quatro turmas de 9º ano nela existentes, e 130 da escola 2, oriundas das três turmas de 9º ano nela existentes. Nessa ocasião, fez-se o levantamento dos dados de acusativo anafórico de terceira pessoa encontrados nos textos e iniciou-se o tratamento sociolinguístico variacionista descrito na seção 3.3.3.1 a seguir. Dentre as 260 redações coletadas, foram encontrados 657 dados de objeto direto anafórico de terceira pessoa, os quais compuseram o corpus desta pesquisa. 3.3.3.1 Grupos de fatores controlados Para a análise sociolinguística variacionista das redações, estabeleceu-se a possibilidade de cinco variantes para a representação do objeto direto anafórico de terceira pessoa: (i) o pronome clítico: Harry é apaixonado por Hermioneᵢ desde que aᵢ conheceu (Redação 032, escola 1, sexo masculino). (ii) o pronome lexical: A meninaᵢ nunca teve o que quiz, mais teve fé e sonhava em poder ajudar os outros. Dos três anos sua avó retirou elaᵢ do orfanato (Redação 036, escola 1, sexo feminino). 106 (iii) o objeto nulo: Uma vez a mulher deixou o celularᵢ de bobeira e o homem pegou ᵢ para mexer (Redação 146, escola 2, sexo masculino). (iv) o SN anafórico: Quando entrou, viu a bruxaᵢ preparando a panela para por a menina. Ele prendeu a bruxaᵢ e salvou Isabela, que lhe agradeceu muito (Redação 142, escola 2, sexo masculino). (v) o pronome demonstrativo22: Mia dizia [que não e que isso era muito importante pra ela e que não queria que ninguém o tocasse]ᵢ. Ela dizia issoᵢ até mesmo para sua melhor amiga (Redação, escola). A variante SN anafórico, no entanto, foi controlada, ainda, de forma mais detalhada, consoante três formas distintas, quais sejam: (i) o SN idêntico, que abarca o uso de expressão nominal exatamente igual ao SN antecedente: Lucas entrou na água para salvar as meninasᵢ seus colegas vieram e ajudaram ele a salvar as meninasᵢ (Redação 012, escola 1, sexo masculino); (ii) o SN semelhante, que envolve expressões nominais com apenas o núcleo idêntico ao do antecedente, podendo variar quanto a determinantes e/ou adjuntos, por exemplo: Ele morava sozinho e tinha vários amigosᵢ. Quando eles precisavam de ajuda, Ivo sempre dava um jeito de ajudar os seus amigosᵢ (Redação 100, escola 1, sexo feminino); (iii) o SN sinônimo, que abarca expressões nominais totalmente diferentes do antecedente, inclusive com núcleos distintos: O pai da meninaᵢ, no passado, teve um caso com a fada Malévola, que não estava contente em ver seu amadoᵢ com outra (Redação 197, escola 2,sexo feminino). 22 Embora a variante pronome demonstrativo não ocorra em variação com todas as demais formas de retomada, já que a referência anafórica a um objeto proposicional não seria possível por meio de um SN anafórico ou pronome lexical, por exemplo, tal variante foi aqui contabilizada apenas para abranger os dados de proposições encontrados no corpus, que foram devidamente separados na análise dos efeitos variáveis. 107 Essa medida foi adotada com base nos resultados de Machado (2006), que mostraram o baixíssimo índice de uso de SN sinônimos pelos alunos da 4ª série do Ensino Fundamental à 3ª série do Ensino Médio, quando houve um aumento muito pouco significativo no uso dessa estratégia (de 1% para 9% dos casos constatados). Na ocasião, a autora diferenciou apenas as formas SN sinônimo e Mesmo SN, a qual englobava os nossos SN idênticos e semelhantes. Posteriormente, foram estabelecidos treze grupos de fatores que poderiam condicionar a ocorrência de uma ou outra variante. Dentre estes, foram controladas dez variáveis independentes linguísticas, especificadas a seguir. a) Natureza do antecedente Natureza do antecedente Sintagma nominal A campainha tocou: “BLIM! BLOM!” a moça rapidamente foi atender . (Redação 164, escola 2, sexo masculino) Oração Todo dia a professora chega na sala de aula na intensão de tratar todos os alunos da mesma forma, mas com o Vitor ela não conseguia . (Redação 162, escola 2, sexo feminino) Não é comum que os falantes brasileiros retomem um antecedente oracional com o clítico acusativo, seja na fala, seja na escrita. Nesses contextos, em geral, utiliza-se o objeto nulo no PB, conforme aponta Freire (2005). Assim, espera-se que os dados de clítico encontrados no corpus venham a retomar apenas os antecedentes sintagmas nominais, os quais, a depender de outros contextos linguísticos, podem vir a ser retomados também pelas demais variantes. b) A animacidade do antecedente Animacidade do antecedente Animado Istephany fala que está muito feliz com seu namorado mas David continua a pertuba ela. (Redação 161, escola 2, sexo feminino) 108 Inanimado Ela levantou para abrir a porta e quando ela abriu o homem misterioso era seu vizinho que foi entregar a conta de luz. (Redação 011, escola 1, sexo masculino) Proposicional Ela chora falando que é o primo dela, que pode provar , mas ele não acredita e vai embora... (Redação 146, escola 2, sexo masculino) Esta variável se mostra altamente relevante para os estudos que envolvem o tema do acusativo anafórico. Segundo as pesquisas anteriores de Omena (1979), Duarte (1986), Marafoni (2004), Freire (2005), entre outros, o traço [+ animado] do antecedente é o maior favorecedor do uso do ele acusativo e, por outro lado, oferece resistência ao emprego do objeto nulo. Ao considerar que o pronome lexical é a variante mais estigmatizada socialmente, supôs-se que as poucas ocorrências dessa estratégia seriam verificadas em contextos de antecedentes animados, tal como o exemplo fornecido acima. c) A especificidade do antecedente Especificidade do antecedente Específico Quando a menina se aproximou, a bruxa a puxou pelo braço e foi com ela para sua casa (a casa 23). (Redação 142, escola 2, sexo masculino) Não Depois de tanta depressão, ele virou usuário de drogas. Ele vendia específico tudo que tinha para comprar as suas drogas e não possuia mais nada. (Redação 042, escola 1, sexo feminino) Proposicional Só que o que ela não sabia, que ele amava ela e não conseguia dizer para Hazel. (Redação 105, escola 1, sexo feminino) Embora os estudos citados para a variável anterior evidenciem o traço [- animado] do antecedente como fator de resistência ao objeto nulo, Averbug (2000) e Marafoni (2004) verificaram a ocorrência dessa variante até mesmo em contextos de antecedentes inanimados, o que demonstra a ampliação progressiva dos contextos que licenciam o uso da categoria zero para o objeto direto no PB. Nesse sentido, Averbug (2008) apontou que, quando o traço semântico [- animado] do antecedente é associado ao traço [- específico], o objeto nulo é a 109 variante mais frequente no PB, além dos contextos de antecedente proposicional. A autora mostrou que a resistência que persiste ao objeto nulo no PB não se relaciona propriamente à animacidade, mas sim à especificidade do antecedente: “o objeto nulo [- específico] pode aparecer com antecedente animado ou inanimado” (AVERBUG, 2008, p. 198-199). Assim, espera-se encontrar, no corpus em estudo, a maior frequência de objetos nulos com antecedentes não específicos e, em contrapartida, os contextos de antecedente específico devem condicionar o emprego das demais variantes. d) A função sintática do antecedente Função sintática do antecedente Ele pediu desculpas, mas ela não aceitou . (Redação 026, escola 1, sexo Igual feminino) Diferente Cam era um garoto de 17 anos, com cabelos escuros e olhos verdes. Assim que Luce o viu se apaixonou estanteneamente. (Redação 056, escola 1, sexo feminino) A presença de um antecedente que exerce a mesma função sintática do acusativo anafórico (ou seja, a função de objeto direto) favorece o uso do objeto nulo, conforme apontam as pesquisas de Omena (1979), Marafoni (2004), entre outras. Em vista disso, a suposição que aqui se faz é que as demais variantes, inclusive o clítico, venham a retomar mais facilmente um antecedente cuja função sintática é diferente. Busca-se saber, ainda, se este contexto de função sintática diferente pode alcançar um favorecimento, em alguma medida, ao uso do clítico, já que os alunos que produziram os enunciados aqui investigados se encontram no 9º ano e, portanto, devem, segundo a influência normalmente exercida pela escola, objetivar o uso dessa variante, evitando o emprego de pronomes lexicais. e) A forma verbal do predicador do acusativo anafórico Forma verbal Simples flexionada E quanto ao cãozinho, ela levou ele para casa, cuidou dos 110 seus ferimentos e o adotou. (Redação 021, escola 1, sexo feminino) Simples não flexionada Thomas não conhecia sua avó por parte de pai e tinha muita no infinitivo vontade de conhecê-la. (Redação 051, escola 1, sexo masculino) Simples não flexionada Harry a beija por um longo período, tirando seu fôlego e no gerúndio23 logo em seguida a pedindo em namoro. (Redação 032, escola 1, sexo masculino) Complexa Caroline estava com anemia. Sua tia foi ajudando ela a se recuperar a tempo, antes que seja tarde a Caroline não consiga ganhar a disputa com as 22 meninas. (Redação 010, escola 1, sexo feminino) Conforme observado no Capítulo 1, os estudos anteriores vêm demonstrando que a escola recupera o uso do clítico acusativo em contextos determinados. Freire (2005) mostrou que essa variante consegue superar o uso das demais apenas em construções com tempo verbal simples e, principalmente, quando não flexionado, no infinitivo, como em “conhecêla”. Ao considerar a modalidade oral do PB, Duarte (1986) apontou que, além das formas com infinitivo, os contextos de verbos simples do indicativo, sobretudo no presente e no pretérito, são os únicos em que essa variante ainda ocorre (como em “o adotou”, no pretérito). Em vista disso, esta variável foi controlada no intuito de averiguar com quais formas verbais o uso do clítico seria mais frequente, tendo como hipótese, portanto, que ocorreriam com mais frequência nos contextos de verbos flexionados e/ou no infinitivo, quando não flexionados. f) A estrutura sintática da frase do acusativo anafórico Estrutura sintática da frase S V OD Com 4 meses de namoro David fala que ainda gosta dela e que nunca a traiu e pede para voltar. (Redação 161, escola 2, sexo feminino) 23 Buscou-se controlar, também, formas verbais simples não flexionadas no particípio, porém não houve dados de acusativo anafórico com verbos no particípio no corpus analisado. 111 Nessa mesma época, eu levei a pedra para casa e mostrei à minha S V OD OI mãe. (Redação 158, escola 2, sexo masculino) S V OD + A tia ficou com o dinheiro todo até ela completar 21 anos. Sua tia Complemento mandou ela para o internato, sopra fica com o dinheiro dela. oblíquo (Redação 001, escola 1, sexo feminino) S V OD + Thomas morava no Rio de Janeiro com seus pais. Seus amigos Predicativo chamavam ele de nerd, porque ele não conseguia viver um segundo sem internet. (Redação 051, escola 1, sexo masculino) S V OD + Verbo Caroline fazia coisas absurdas, botava o dedo na garganta para no infinitivo poder vomitar, tomava remédios que fazia ela passa mal e desmaiar. (Redação 010, escola 1, sexo feminino) S V OD + Verbo no gerúndio Então o fazendeiro voltou, mais tarde e tentou sesquetra a porquinha e o zezinho so viu a porquinha gritano e levatou desperado. (Redação 003, escola 1, sexo masculino) Os estudos anteriores de Omena (1979), Duarte (1986), Marafoni (2004), Freire (2005), entre outros, demonstraram que os contextos em que o termo anafórico exerce “dupla função” – como nas estruturas S V OD + preditacativo e S V OD + verbo no infinitivo ou gerúndio, em que o objeto é, também, sujeito da oração seguinte – são os fortes favorecedores ao emprego do ele acusativo, tanto na fala quanto na escrita (em menor nível de escolaridade) do PB. Além disso, Duarte (1986) aponta que as estruturas S V OD são as únicas em que ainda se verificam clíticos na fala brasileira. Assim, espera-se encontrar, no corpus em análise, a maior ocorrência de clíticos regulares em estruturas SVOD e de pronomes lexicais em estruturas de “dupla função” com predicativo (S V OD + Predicativo), verbo no infinitivo (S V OD + verbo no infinitivo) e/ou verbo no gerúndio (S V OD + verbo no gerúndio). Ademais, ao considerar um corpus de redações corrigidas, supôs-se que, caso houvesse usos de pronome lexical não corrigidos pelas professoras, estes provavelmente apareceriam em estruturas como estas, de “dupla função”, uma vez que são as menos “perceptíveis” aos brasileiros, não carregando o estigma de construções S V OD com ele acusativo, por exemplo, muito pouco usuais, principalmente na escrita. 112 g) O tipo da oração do acusativo anafórico Tipo de oração Todos os dias a mãe do Luiz levava ele para o treino de Absoluta futebol. (Redação 044, escola 1, sexo masculino) Coordenada assindética Ele deu assistência para vários amigos. O professor chamou ele e disse para Pedro: amanhã voce traz os documentos que voce passou, jogou muito bem. (Redação 138, escola 1, sexo masculino) Coordenada sindética O professor chamou ele e disse para Pedro: amanhã voce traz os documentos que voce passou, jogou muito bem. Ele chegou na casa e disse para a mãe e foram fazer logo os documentos. (Redação 138, escola 1, sexo masculino) Renata vendo o corte da perna do Ivo, ela o leva ao Principal hospital. (Redação 100, escola 1, sexo feminino) Completiva de verbo com Lúcifer estava de volta à sua jaula. O que o surpreendeu função de sujeito24 é que os irmãos voltaram para caça-lo. (Redação 161, escola 2, sexo feminino) Completiva de verbo com Ela pediu perdão para Micaela e prometeu compreendefunção de objeto la melhor, se ela voltasse para casa. (Redação 112, escola 1, sexo feminino) Completiva de oblíqua verbo O pai terminou de fazer as compras e sem esperança ajudaram o pai a guarda as compras. (Redação 043, escola 1, sexo masculino) Completiva de nome Numa cidade bem distante havia um menino que quando ficava triste gostava de brincar com seus carrinhos que têm um superdispositivo e eram capazes de leva-lo para outro lugares. (Redação 175, escola 2, sexo masculino) 24 A respeito das orações consideradas completivas de verbo com função de sujeito, as quais, pela GT, se enquadrariam como uma oração adjetiva (“que o surpreendeu”) cujo pronome relativo “que” retomaria o elemento “o” (no caso, referente a “aquilo”), esclarece-se que os fundamentos para análise de tais orações com base na gramática de Mira Mateus (2003), na qual se pode compreender tal estrutura como indicativa de orações subjetivas (“o que o surpreendeu”). 113 Relativa Liz sem saber o que fazer, sai pelas ruas sem rumo, quando se da conta é atingida por um carro que a joga há metros de distância. (Redação 096, escola 1, sexo masculino) Adjunta Ele chutou a bola e fez o gol, caindo nos braços da torcida, fazendo a torcida feliz. (Redação 073, escola 1, sexo masculino) Acredita-se que esta variável poderia ilustrar o “caráter pronominal do objeto nulo no PB” (cf. Freire, 2005), tendo em vista as considerações de Cyrino (1993, 1997) e Freire (2005), que apontam a ausência de restrições ao uso dessa categoria zero em quaisquer tipos de oração na fala e escrita brasileira. Além disso, é possível que a ordem mais comum de uso da variante clítico acusativo demonstre alguma representatividade com relação à sua produtividade no corpus investigado. Como apontou Machado (2006), o uso da ênclise é mais difícil quando se trata de orações mais dependentes, como as completivas, relativas e adjuntas, nas quais os conectores normalmente favorecem o uso da próclise, à exceção dos casos de orações reduzidas com em “prometeu compreendê-la melhor”, nos quais a ênclise é mais frequente. Nos contextos de orações mais independentes, como as absolutas, coordenadas assindéticas e principais, por sua vez, seria possível verificar tanto a próclise quanto a ênclise. h) A distância entre o antecedente e o termo anafórico Distância entre o antecedente e o acusativo anafórico Perto E em seu primeiro dia de namoro Istephanyᵢ traiu David com Renan. O pai de David aᵢ viu com Renan e contou pra seu filho que não acreditou. Longe Acontece que passava pela rua um policial que ouviu os gritos da meninaᵢ. Ele bateu na porta e como ninguém abriu ele arrombou-a. Quando entrou, viu a bruxa preparando a panela para por a meninaᵢ. 114 Para a definição de “perto” e “longe” adotada nesta pesquisa, tomou-se como medida a distância estrutural de cinco orações entre o termo antecedente e o acusativo anafórico 25. O estabelecimento desta medida ocorreu com base na observação dos dados do corpus em estudo. Em primeiro caso, ponderou-se sobre a possibilidade de a distância ser instituída em função da paragrafação das redações, tendo em vista a correlação mais próxima das ideias contidas em um parágrafo. Assim, seria considerada “perto” a ocorrência de termos antecedentes e anafóricos em um mesmo parágrafo; “longe” a referência estabelecida entre parágrafos diferentes. No entanto, como as redações aqui investigadas não apresentaram uma paragrafação regular, uma vez que algumas se compuseram em um parágrafo único enquanto outras foram compostas por vários parágrafos com apenas uma ou duas orações, optou-se por formular a medida em decorrência do número de orações que separaram um e outro termo. Dessa forma, considerou-se “perto” o máximo de cinco orações de distância entre os termos; “longe”, por sua vez, a retomada exercida em uma distância superior a esta medida. Nesse caso, trabalhou-se com a hipótese de que, se o termo antecedente estivesse mais distante do acusativo anafórico, provavelmente o aluno optaria por utilizar um SN anafórico, para que sua referência ficasse mais clara, como apontou Xavier (2015). Em contrapartida, supõe-se que haveria mais chances de o aluno substituir o antecedente por um pronome quando houvesse uma distância menor entre os termos. i) A ordem do clítico Ordem do clítico Próclise a formas Liz sem saber o que fazer, sai pelas ruas sem rumo, quando se da simples conta é atingida por um carro que a joga há metros de distância. Ênclise a formas Ela ficou inconformada que a boneca era muito pálida e decidiu simples colocá-la no sol. Próclise ao verbo Léo cresceu sem conhecer o pai. Ele o havia abandonado por auxiliar 25 algum motivo desconhecido. Embora um critério mais preciso de controle de distância fosse a contagem do número de sílabas entre um e outro termo, a opção por utilizar o critério de número de orações decorre da distância no encaminhamento das informações no texto do aluno: um novo conteúdo proposicional, nova grade argumental, remete a certa dispersão do raciocínio informativo, o que direciona a uma distância mais acentuada. 115 Ênclise ao verbo Um menino de 12 anos ligou para o pai para contar que uma auxiliar mulher que ele conhecia ia aparecer na televisão, e ele acaba ficando nervoso pensando que não ia reconhecê-la. Mas, no final, ele fica emocionado por tê-la reconhecido Próclise ao verbo Essas mulheres não eram as mais bonitas e nem de melhor classe principal social, mas tinham corações enormes e poderiam sim fazer Miguel ser uma pessoa melhor, mas com seu orgulho do tamanho de Mercúrio nunca se desculpou com nenhuma e foi as perdendo. Ênclise ao verbo Surpresa com o que o rapaz que ela nem conhecia disse, ela principal chorou e ele limpou suas lágrimas e disse que iria ajudá-la. Primeiramente, cabe salientar que este grupo de fatores não foi controlado como possível variável condicionadora da regra variável em questão. Antes, constituiu tão-somente um grupo de controle dos contextos de uso da variante clítica. Considerando os estudos anteriores, espera-se que a maioria dos clíticos acusativos encontrados no corpus seja verificada em dados de próclise, principalmente com os verbos simples. Os casos de ênclise, por sua vez, devem aparecer em construções com verbos no infinitivo, como verificaram Duarte (1986), Freire (2005), entre outros. Cabe mencionar, antecipadamente, que os exemplos de próclise e ênclise em contextos verbais complexos destacados acima, especialmente os de próclise e ênclise ao verbo auxiliar e próclise ao verbo principal, foram os únicos que ocorreram no corpus. Apenas a ênclise ao verbo principal se verificou em um dado a mais: Um menino de 12 anos ligou para o pai para contar que uma mulher que ele conhecia ia aparecer na televisão, e ele acaba ficando nervoso pensando que não ia reconhecêla. (Redação 154, escola 2, sexo feminino). Além das dez variáveis linguísticas descritas acima, promoveu-se o controle de duas variáveis independentes extralinguísticas, explicitadas em seguida. a) O sexo do informante: feminino vs. masculino. Como o objetivo desta pesquisa envolve a produção textual de turmas inteiras de 9º ano, produzidas para a escola como avaliação bimestral, não foi possível obter um número 116 equivalente de informantes femininos e masculinos, já que dificilmente as turmas possuem o mesmo número de alunos e alunas. No entanto, como Machado (2006) verificou um aumento mais acentuado no uso de clíticos acusativos por estudantes do sexo feminino, ao cruzar os grupos de fatores escolaridade e sexo do informante, buscamos controlar também essa possível correlação tendo em vista a possibilidade de algum resultado significativo. b) A escola do informante: escola 1 vs. escola 2. Alguns estudos já demonstraram a influência da escolaridade na variação do objeto direto anafórico de terceira pessoa. De modo geral, o uso do clítico tende a aumentar e o emprego do pronome lexical tende a diminuir conforme aumenta o nível de escolaridade. Nesta pesquisa, entretanto, investiga-se a produção de apenas um nível escolar (9º ano do Ensino Fundamental) em turmas de duas escolas diferentes. Assim, toma-se como hipótese a possibilidade de ocorrer alguma diferença na influência exercida pelas duas escolas em questão. Em caso de algum resultado que destaque o fator escola na análise sociolinguística, é possível relacioná-lo à análise qualitativa das entrevistas das professoras de tais escolas, observando se há algum contraste significativo na concepção de ensino de Português que transmitem em suas respostas. Por fim, apresenta-se um último grupo de controle desta pesquisa, este de natureza extralinguística: a) O fator correção: corrigido vs. não corrigido. Uma vez que foi coletada uma amostra de redações corrigidas no âmbito da rede pública municipal de ensino, formulou-se o fator “correção” como grupo de controle extralinguístico a fim de identificar as variantes corrigidas pelas professoras entrevistadas. O controle estatístico desse fator, embora não constitua uma variável independente quanto ao tema estudado propriamente dita, permite evidenciar, além de quais variantes são mais ou menos corrigidas pelas docentes, qual a probabilidade de que o sejam. Assim, é possível contrapor esses resultados de correção efetiva ao que as professoras afirmaram e justificaram corrigir ou não na entrevista realizada. 117 Com os treze grupos de fatores descritos acima, foram realizadas rodadas multivariadas com os dados das redações por meio do programa estatístico Goldvarb X. Na seção a seguir, expõe-se o modo como se desenvolveu o tratamento dos dados computados. 3.3.3.2 O tratamento dos dados Inicialmente, foram coletadas duzentas e sessenta redações escolares produzidas no primeiro e/ou no terceiro bimestre do ano letivo de 2015 pelos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental de duas escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, todas do tipo textual narrativo: cento e trinta da escola 1 e cento e trinta da escola 2. A partir disso, fez-se o levantamento dos dados de acusativo anafórico de terceira pessoa encontrados em tais redações. Os dados coletados foram computados para a realização do tratamento estatístico com o Programa Goldvarb X. Primeiramente, fez-se uma “rodada geral”, que gerou a distribuição geral dos dados, com valores absolutos e percentuais, o que permitiu verificar quais as variantes foram mais ou menos utilizadas pelos alunos. Em seguida, foram realizadas rodadas multivariadas com o programa, no intuito de compreender qual a probabilidade de que ocorra o uso de uma ou outra variante, a depender dos grupos de fatores controlados e dos pesos relativos atribuídos a cada fator de tais grupos no condicionamento do fenômeno. Para a primeira rodada multivariada, selecionamos o pronome clítico como valor de aplicação. Na ocasião, houve knockouts (dados categóricos) nos grupos: “estrutura sintática da frase”, não ocorrendo nenhum clítico em construções S V OD OI e S V OD + verbo no gerúndio, e “ordem do clítico”, já que era um grupo de fatores exclusivo da variante clítica. Em vista disso, foram realizados alguns amálgamas e utilizado o “não se aplica” (comando que pede que não se considere determinado fator em certa variável) para que os knockouts fossem eliminados e pudéssemos realizar as rodadas com os pesos relativos. Amalgamaram-se os dados de construções com verbo transitivo direto e indireto (S V OD OI) e verbos que selecionavam um complemento oblíquo além do objeto direto (S V OD + Oblíquo), na variável “estrutura sintática da frase”. Além disso, optamos por dar “não se aplica” aos dados de construções de “dupla função” com a segunda oração na forma gerúndio (S V OD + verbo no gerúndio), na variável “estrutura sintática da frase”. Após realizar esses amálgama e “não se aplica”, fizemos outra rodada multivariada a partir da qual o programa selecionou as seguintes variáveis como relevantes ao emprego do clítico: “animacidade do 118 antecedente”; “distância entre o antecedente e o acusativo anafórico”; o fator “escola”; “função sintática do antecedente”; e “estrutura sintática da frase”. Na ocasião, a melhor rodada selecionada pelo programa obteve significância .00 e input .19 de tendência ao clítico. Como havia três variáveis em que se destacavam os antecedentes proposicionais, pressupomos que este controle em três grupos diferentes, com evidente superposição, pudesse influenciar os resultados. Então, optamos por dar “não se aplica” aos dados de antecedentes proposicionais nas variáveis “animacidade do antecedente” e “especificidade do antecedente”, controlando os dados de antecedentes proposicionais apenas na variável “natureza do antecedente”. Assim, realizamos uma nova rodada multivariada. Na melhor rodada que também obteve significância .00 e input .19, o programa selecionou uma variável a mais dentre as que haviam sido selecionadas anteriormente como relevantes: justamente a variável “natureza do antecedente”. Dessa forma, os grupos de fatores relevantes ao emprego do clítico acusativo, por fim, foram, em ordem de relevância: “animacidade do antecedente”; “natureza do antecedente”; “distância entre o antecedente e o acusativo anafórico”; “escola”; “função sintática do antecedente”; e “estrutura sintática da frase”. Após trabalhar em rodadas multivariadas com o clítico como valor de aplicação, realizamos os mesmos procedimentos com o valor de aplicação pronome lexical, tendo em vista que são as duas variantes mais “marcadas” ou menos neutras quanto ao fenômeno do acusativo anafórico de terceira pessoa. Nesse caso, eliminou-se o controle da variável “especificidade do antecedente anafórico”, pois o uso de pronomes lexicais em contextos de antecedentes específicos foi categórico. Eliminaram-se, ainda, os dados de orações completivas de verbo oblíquas e completivas de nome, na variável “tipo de oração”, pois não houve nenhuma ocorrência de pronome lexical nesses contextos. Além disso, como não houve nenhum dado de pronome lexical em estruturas S V OD + verbo no gerúndio26, amalgamaram-se os dados de tais construções aos dados de S V OD + verbo no infinitivo, considerando que ambas são estruturas de “dupla função”. Feitos o amálgama e as eliminações necessárias, o programa selecionou, na melhor rodada com significância .01 e input .01, o grupo de controle “correção” e as variáveis “animacidade do antecedente” e “estrutura sintática da frase” como relevantes ao emprego do pronome lexical. 26 Em todo o corpus, houve apenas sete ocorrências de estruturas S V OD + Verbo do gerúndio e, nas sete, os alunos utilizaram a variante SN anafórico, como no exemplo: “A melhor hora do dia para o monstro era a hora em que o sorveteiroᵢ passava. Toda vez que ouvia o sorveteiroᵢ se aproximando, o monstro assustava o pobre homem” (Redação 234, escola 2, sexo masculino). 119 Atenção especial foi dada ao fator correção, que, claramente, não condiciona nenhuma variante. Ocorre que o pronome lexical foi a estratégia mais corrigida pelas professoras e, por isso, a correção apareceu como o fator de suposta maior relevância quanto ao estudo dessa variante. A partir disso, cruzamos os fatores “escola” e “correção” tanto para o pronome lexical quanto para o clítico. Com o valor de aplicação pronome lexical, cruzamos também o fator “correção” com a “animacidade do antecedente” e a “estrutura sintática da frase”, além de cruzar esses dois últimos fatores entre si, no intuito de averiguar alguma correlação entre tais grupos em tais cruzamentos. A partir dos resultados obtidos com todas as rodadas multivariadas realizadas, fez-se a análise quantitativa e qualitativa das ocorrências e probabilidades verificadas, as quais se apresentam no próximo capítulo. 120 CAPÍTULO 4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS MATERIAIS DE PESQUISA Em se tratando do fenômeno da retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa, a presente pesquisa associa três diferentes pontos de análise, dentro da temática do ensino de pronomes: materiais didáticos utilizados em sala de aula; entrevista com as professoras que os utilizam; e redações escolares de seus alunos. Dessa forma, este capítulo organiza em duas seções a apreciação crítica dos três referidos materiais de pesquisa. Na primeira, seção 4.1, aborda-se a análise de base qualitativa dos primeiros materiais investigados – os materiais didáticos e as entrevistas com as professoras. Na segunda, seção 4.2, expõe-se a análise sociolinguística variacionista do corpus das redações escolares coletadas. Na última seção deste capítulo, seção 4.3, por fim, apresentam-se algumas reflexões para o âmbito do ensino, promovidas a partir da análise dos resultados obtidos com esta pesquisa, divulgados nas seções anteriores. 4.1 A análise qualitativa: os materiais didáticos e as entrevistas Nesta seção, abordam-se os materiais didáticos e as entrevistas realizadas no âmbito desta pesquisa. Primeiramente, faz-se um exame qualitativo dos três materiais didáticos de que se valem as professoras em suas aulas: os Cadernos Pedagógicos da SME (em 4.1.1); o livro didático Vontade de Saber Português, utilizado pela professora 1 (em 4.1.2); e o Caderno do Futuro da IBEP, utilizado pela professora 2 (em 4.1.3). Em seguida, apresenta-se a análise qualitativa das entrevistas realizadas com as referidas professoras (em 4.1.4). 4.1.1 Os Cadernos Pedagógicos da Secretaria Municipal de Educação (SME) Os Cadernos Pedagógicos fornecidos pela SME, de modo geral, demonstram um forte interesse por atividades de compreensão leitora e produção textual, a partir de diversos textos de gêneros diversificados. Ao analisar as quatro apostilas referentes aos quatro bimestres do ano de 2015 para o 9º ano do Ensino Fundamental, foi possível perceber a intenção de que o aluno amplie continuamente suas habilidades em compreender e produzir textos, principalmente escritos, com finalidades variadas. No entanto, a obra parece carecer de 121 explicações mais contundentes sobre os conteúdos gramaticais necessários ao alcance desse intuito27. No que concerne ao fenômeno gramatical aqui em estudo, a primeira referência explícita encontrada – a tema direta ou indiretamente relacionado ao preenchimento do objeto direto – foi uma menção à função da retomada anafórica nos Cadernos do 1º bimestre. Nesta, o material chama atenção para a “costura” de determinado texto, de modo a evitar a repetição de termos, contribuindo para uma melhor coesão textual: (SME, Cadernos Pedagógicos, 2015, 1º bim., p.44). Na ocasião, aborda-se o uso de dois recursos coesivos: a “substituição lexical” e a “retomada pronominal”, ambos referentes ao mecanismo único da retomada anafórica por meio de formas distintas. O material menciona a existência desse mecanismo em prol da coesão textual, mas não trata especificamente nenhum fenômeno gramatical variável nesse âmbito. Não há qualquer referência explicativa sobre o uso do objeto direto anafórico de terceira pessoa, tampouco às variantes possíveis no sistema linguístico do PB para sua representação. Além da explicação exibida acima, há mais três observações feitas sobre o referido mecanismo, cada uma nos Cadernos do 2º, 3º e 4º bimestres, respectivamente: 27 Tal carência é amparada pelos resultados da pesquisa de Luiz Felipe Durval e Jéssica Pegas, divulgados na Jornada de Iniciação Científica (2015) da Faculdade de Letras da UFRJ, na qual os graduandos mapearam e quantificaram o tratamento de temas gramaticais nos referidos Cadernos Pedagógicos da SME, conforme citado no Capítulo 3, referente à metodologia desta pesquisa. 122 (SME, Cadernos Pedagógicos, 2015, 2ºbim., p. 27) (SME, Cadernos Pedagógicos, 2015, 3ºbim., p. 26) (SME, Cadernos Pedagógicos, 2015, 4º bim., p. 14). 123 A primeira menção é uma observação sobre a retomada de um antecedente proposicional exercida através do pronome demonstrativo esse. A segunda, por sua vez, relembra a função da retomada anafórica de forma geral para o desenvolvimento da coesão textual, seguida de um exercício com exemplos de sujeitos anafóricos apenas. No 4º bimestre, há novamente um esclarecimento sobre o mecanismo, mais uma vez, de modo geral, com exemplos de sujeitos e objetos anafóricos (destacados na citação). Essas são as únicas explicações feitas nos Cadernos examinados sobre o fenômeno. Além das alusões conferidas, os Cadernos expõem alguns exercícios que exigem do aluno a compreensão sobre o mecanismo da retomada anafórica e o reconhecimento de elementos referentes. Em geral, tais exercícios se referem à retomada de termos antecedentes como um todo, não se relacionando especialmente ao acusativo anafórico, conforme exemplificam as seguintes citações: 6- A que se refere o termo “ela” no trecho “A rede social se faz num ambiente atrativo para muitas pessoas. Além da comunicação virtual para descontração e interação, ela se tornou uma porta para noticias, troca de ideias e também embate para manifestos, flash mob [...]” no quinto parágrafo? (2º bim., p. 26) 7. A quem se refere a palavra destacada no trecho: “ O grau de envolvimento delas com a internet ainda é mediano e controlado [...]”. (sexto parágrafo) (2º bim., p.28) 11. A quem se refere o pronome “eles” no trecho “Para eles, a velocidade é outra.”? (4º bim., p. 16) Dentre os exercícios mencionados acima, nenhum aborda a diferença entre as possíveis variantes e seus contextos de uso. Nos demais exercícios averiguados, as únicas variantes verificadas foram o pronome demonstrativo e o clítico, tal como evidenciam os exemplos a seguir: [Ouvindo-te dizer: Eu te amo, creio, no momento, que sou amado. No momento anterior e no seguinte, como sabê-lo?] 3- A que se refere o termo destacado em “sabê-lo” no último verso da segunda estrofe? (3º bim., p. 16) 5 – A que se refere o termo destacado em “[...] mas a maneira como expressar isso [...]” (no final da 1ª resposta)? (3º bim., p. 26) 3. No trecho “Os insights e a percepção de um problema por diferentes ângulos demandam o funcionamento conjunto de vários circuitos cerebrais, o que ajuda a mantê-los em forma até a idade avançada”, as aspas foram usadas para ____________________. 124 4. Nesse mesmo trecho, a que se refere o termo destacado? (4º bim., p. 27) 3. No trecho ”Obrigada, meu bom Peri! Tu és um amigo dedicado; mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu; e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez.”, a que se refere o pronome destacado? (4º bim., p. 48). Vale mencionar que não se verificou qualquer explicação que relembre (caso haja nos Cadernos dos anos anteriores) a forma como se utiliza o clítico acusativo, havendo apenas os exercícios que solicitam seu reconhecimento, apesar da pouca familiaridade que os alunos brasileiros costumam demonstrar com relação a essa variante. No mais, além das atividades citadas, há uma questão que aborda o reconhecimento do antecedente de um SN anafórico: Desencontro Chico Buarque/1965 A sua lembrança me dói tanto Eu canto pra ver Se espanto esse mal (...) 1 – A que se refere o termo destacado em “Se espanto esse mal”? (3º bim., p. 28). As atividades observadas nos Cadernos, majoritariamente, enfocam a compreensão e interpretação de textos variados, desde os mais literários, como poemas e alguns contos, até os mais referenciais, como os editoriais, passando ainda por crônicas e artigos de opinião, e, além disso, há propostas também diversificadas de produções textuais aos alunos (contos, textos de opinião, entre outros). No entanto, para que os alunos consigam alcançar o domínio linguístico esperado para a feitura de tais textos, o trabalho com os conteúdos gramaticais (os quais foram abordados de modo muito superficial nos Cadernos analisados) se faz fundamental, já que é através dos processos realizáveis no sistema da língua que é possível mover-se pelos mais diversos tipos e gêneros textuais, tal como os próprios Cadernos requerem. Nesse sentido, entende-se que o material proposto não desenvolve efetivamente o estudo da gramática de modo reflexivo, conforme os pressupostos apresentados em Vieira (2015), sintetizados no Capítulo 2 desta dissertação. Acerca do tratamento dispensado a fenômenos gramaticais variáveis no material em questão, cabe citar uma passagem verificada nos Cadernos do 3º bimestre que alude ao modo como compreendem a variação linguística: 125 (SME, Cadernos Pedagógicos, 2015, 3º bim., p. 59). A obra faz alusão, primeiramente, à música Língua, de Caetano Veloso, na qual o compositor valoriza a pluralidade linguística cultural de nosso país e, em seguida, expõe um texto de Rui Barbosa em que o autor brinca com a diferença entre uma formalidade extrema na fala de seu personagem e o consequente não entendimento desses usos pelo personagem ladrão, o que causa certo humor. O texto se vale de elementos lexicais muito distantes do uso cotidiano (como em “bípedes palmípedes” em lugar de “patos”) e também de variações gramaticais, como o uso da mesóclise com a segunda pessoa (“dar-te-ei” e “reduzir-te-á”) e do próprio uso de formas verbais na segunda pessoa (“adentrares”, “se fazes”, “para zombares”), nada comum na fala carioca, em especial. Ressaltam-se, ainda, duas formas de representação do acusativo anafórico no texto: o clítico em “surpreendeu-o tentando pular o muro”, logo a início do texto, e o sintagma nominal em “eu levo ou deixo os patos”, por último, na fala do personagem ladrão. É interessante perceber a pergunta 2, na qual o aluno é questionado sobre como caracterizaria Rui Barbosa pela linguagem utilizada e, posteriormente, a pergunta 4, que 126 solicita a reescritura da fala de tal personagem de forma mais informal, “adequada à situação”. De forma geral, parece apropriado o modo como é compreendida a variação na obra: intrínseca ao sistema (gramatical) linguístico. Por outro lado, esse trabalho parece ser feito de forma pouco aprofundada, sem evidenciar as distinções entre as variantes, o que acaba por direcionar a um contraste superficial entre formal vs. informal. A mesóclise, por exemplo, é raramente utilizada em textos mais formais, e a concordância verbal com a segunda pessoa, por sua vez, de fato não caracteriza um registro formal no Rio de Janeiro. A depender da mediação exercida pela professora ao trabalhar essa atividade em sala de aula, a noção de continuum entre esses registros pode ficar comprometida, levando àquela ideia dicotômica sobre as normas linguísticas. Essa característica é ainda mais evidente na abordagem feita no Caderno do Futuro utilizado pela professora 2, analisado na subseção 4.1.3. Antes, porém, vejamos o tratamento dispensado ao tema no livro didático utilizado pela professora 1, na subseção 4.1.2, a seguir. 4.1.2 O livro didático Vontade de saber Português, de Romeire Alves e Tatiane Brugnerotto (2012) No livro didático Vontade de Saber Português referente ao 9º ano do Ensino Fundamental, parte-se do princípio de que os alunos, nesse nível escolar, já estudaram o uso dos pronomes pessoais (além dos possessivos e demonstrativos) nos anos anteriores. No entanto, na seção destinada ao estudo da colocação pronominal, os autores relembram especialmente o uso dos pronomes oblíquos átonos e a “classificação sintática desses pronomes”, em seus termos. Assim, antes de abordarem a ordem dos pronomes, expõem o seguinte quadro: Pronomes oblíquos átonos Os pronomes oblíquos átonos funcionam sintaticamente como complementos verbais. Relembre, a seguir, a classificação sintática desses pronomes. Objeto direto – o, os, a, as A violência nas grandes cidades transforma as pessoas em suas observadoras. A violência nas grandes cidades as transforma em suas observadoras. Objeto indireto – lhe, lhes Perguntaram à criança se sentia medo da violência, Perguntaram-lhe se sentia medo da violência. 127 Objeto direto ou objeto indireto (dependendo dos verbos que complementam) – me, te, se, nos, vos Aline convidou Paulo e eu para o protesto contra a violência, Aline nos convidou para o protesto contra a violência. (ALVES & BRUGNEROTTO, 2012, p. 264). Essa é a única referência ao uso de pronomes para a retomada anafórica do objeto direto de terceira pessoa encontrada no referido livro, na qual são mencionados somente os oblíquos o, a, os, as do quadro pronominal tradicional. Entretanto, em uma busca por referências ao fenômeno em questão na coleção Vontade de Saber Português, verificou-se que a abordagem mais específica sobre o tema é feita no livro destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental. Neste, de igual maneira, expõe-se o quadro tradicional de pronomes pessoais: Pronomes pessoais 1ª pessoa 2ª pessoa 3ª pessoa singular plural singular plural singular plural retos eu nós tu vós ele, ela eles. elas oblíquos me, mim, comigo nos, conosco te, ti, contigo vos, convosco o, a, lhe, se, si, consigo os, as, lhes, se, si, consigo (op. cit., 2012, p. 264). Em seguida, os autores exibem outro quadro com informações sobre a formação dos oblíquos em construções enclíticas: Formação dos pronomes pessoais oblíquos Os pronomes oblíquos, o, a, os, as, quando associados a verbos terminados em –r, -s, -z, assumem a forma lo, la, los, las, e os verbos perdem as consoantes finais. Por exemplo: encontrar-os passa a ser grafado encontrá-los. Já os pronomes oblíquos o, a, os, as, quando associados a verbos terminados em –am, -em, -ão, -õe, assumem as formas no, na, nos, nas. Por exemplo: ajudem-os passa a ser grafado ajudem-nos. (ALVES & BRUGNEROTTO, 2012, p. 173). Dessa forma, na seção referente ao ensino dos pronomes, além dos quadros destacados, não há qualquer menção a formas variantes de representação do OD anafórico de terceira pessoa. A partir desses dois quadros explicativos, passa-se à seção Praticando, na qual são propostos alguns exercícios sobre o conteúdo em questão. Dentre os exercícios, 128 somente no primeiro aborda-se a retomada anafórica do objeto direto, com base em três perguntas sobre esse mecanismo em determinado texto: a) Na frase “Dona Geralda foi pessoalmente recebê-lo em Nova York”, a quem se refere o pronome em destaque? Que outro pronome pessoal poderia ser utilizado no trecho? Ao prêmio UNESCO de 1999. / Ele. d) Retire do texto um trecho no qual o pronome pessoal oblíquo não foi destacado, e escreva a quem ele se refere. O que mais a impressionou na cidade foi o que os americanos jogaram fora. Refere-se à dona Geralda. e) Que efeito o emprego dos pronomes pessoais gera no texto? Evita a repetição de palavras às quais os pronomes referem-se. (op. cit., 2012, p. 174). Os trechos destacados em azul, na citação, constituem respostas sugeridas pelo livro. Curiosamente, embora partam apenas do quadro pronominal tradicional, mencionando somente os oblíquos para possíveis representações do objeto direto, os autores apontam o uso do ele acusativo na sugestão de resposta à primeira questão formulada sobre esse conteúdo. No entanto, não há qualquer alusão às diferenças contextuais entre essas variantes, nem em algum box no decorrer do capítulo, nem no manual do professor28, ao final do livro. Já no livro didático referente ao 9º ano, tampouco há novas informações sobre o tema, como elucidado anteriormente. Os autores apenas relembram o emprego dos clíticos (cf. o primeiro quadro aqui citado) para representação do objeto direto anafórico. Não há qualquer referência à variação linguística ou às diferenças entre normas de uso do Português. Entretanto, cabe mencionar que, no manual do professor deste livro, há uma sugestão de atividade que abarca a noção de variação e normas da língua presente na obra. Embora a atividade envolva o conteúdo da colocação pronominal (e não o uso de pronomes), é válido 28 Na seção de orientações ao professor, ao final do livro referente ao 6º ano do Ensino Fundamental, algumas passagens permitem observar a visão polarizada de “linguagem formal, culta e padrão (como se representassem a mesma categoria) vs. linguagem coloquial” presente na obra: “Comente com os alunos que na linguagem coloquial é comum o uso do pronome oblíquo te, peculiar à 2ª pessoa o singular (tu), combinado com o termo você (em vez do tu). (...) Explique aos alunos que em situações formais ou de acordo com a norma-padrão não se deve misturar os tratamentos tu e você” (op. cit., p. 74) (grifo meu). Além disso, a obra ainda se vale de Pasquale Cipro Neto (1998, p. 15) em uma citação no mínimo inquietante, na qual o autor iguala linguagem formal e culta para rechaçar o uso do você como indeterminador do sujeito: “Pelo menos na linguagem formal, culta, é bastante desejável a eliminação desse cacoete. É cansativo, pobre, e enfadonho o uso da palavra “você” como indicador de algo genérico, coletivo”. 129 mencioná-la para compreender a concepção de normas linguísticas que orienta o livro didático em questão. Sugestão de atividade Varal de textos Objetivo Propiciar aos alunos uma reflexão acerca da “real” colocação pronominal no português brasileiro. Materiais Computador. Internet. Papel sulfite. Impressora. Lousa. Fita adesiva. Procedimentos Fazer uma pesquisa na internet em entrevistas e textos de blogs e sites de relacionamento, como o twitter. Recolha fragmentos em que haja o uso da próclise transgredindo as regras da norma urbana de prestígio29 (próclise antes do verbo principal em locução verbal, próclise quando o verbo inicia oração, próclise com verbo no modo imperativo afirmativo, próclise com verbo no futuro do presente e no futuro do pretérito). Digitar os exemplos com letras grandes e legíveis e imprima as páginas. Fixar as páginas na lousa, como se estivessem em um varal. Questionar os alunos sobre qual é a posição dos pronomes oblíquos átonos em relação ao verbo nos exemplos e estimule-os para que façam a relação entre a colocação dos pronomes e o contexto de produção em que foram empregados (contextos informais de produção, em que há baixo nível de monitoramento em relação à norma urbana de prestígio). Pedir a cada aluno que vá até a lousa e adeque a colocação dos pronomes à norma urbana de prestígio. Questionar os alunos sobre qual colocação pronominal está mais próxima ao modo como falam no dia a dia: a dos exemplos ou a das frases reescritas. Propor uma reflexão sobre qual é a “real” colocação pronominal no português brasileiro e quais as situações em que se deve atentar para as regras da norma urbana de prestígio em relação à colocação dos pronomes (textos escritos formais), com exceção da mesóclise. (ALVES & BRUGNEROTTO, 2012, p. 78) (grifo meu). 29 Curiosamente, os autores citam, nesta seção, anteriormente à sugestão de atividade proposta, o linguista Marcos Bagno (2009), a fim de esclarecer o uso da mesóclise restrito a textos ultraformais, nos termos do autor, além de algumas diferenças entre a colocação pronominal nos âmbitos do PB e do PE. No entanto, o conceito de normas urbanas de prestígio adotado na obra demonstra uma clara confusão entre estas e a chamada norma padrão (cf. os esclarecimentos de Faraco (2008)), o que se pode perceber por meio dos próprios comandos da sugestão mencionada. 130 Como se pode notar, fica evidente a correlação dicotômica e polarizada entre, de um lado, “contextos informais de produção” e, de outro, “situações em que se deve atentar para as regras da norma urbana de prestígio”, nos termos dos autores. Mais do que isso, os contextos informais são claramente identificados como o espaço em que se encontram usos “transgredindo as regras da norma urbana de prestígio”, ao passo que essa “norma urbana de prestígio” é compreendida como algo homogêneo, tendo em vista que seu contexto de uso envolveria determinadas regras linguísticas (e não normas no sentido do que é normalmente utilizado em tal situação). Além disso, é nesse contexto de “norma urbana de prestígio” que se inserem os “textos escritos formais”, conforme os destaques feitos na citação. Em outras palavras, é como se apenas o registro informal permitisse a variação “real” da língua, na qual as regras de uma determinada “norma urbana de prestígio” poderiam ser transgredidas; o registro formal e a modalidade escrita da língua, por outro lado, demandariam uma forma única de uso, segundo um padrão idealizado, e não às normas (também variáveis) prestigiosas de uso da língua, em contextos de maior ou menor formalidade, orais ou escritos. 4.1.3 O Caderno do Futuro do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP) O Caderno do Futuro é constituído de exercícios sistemáticos sobre a língua, como os conhecidos exercícios de fixação, e algumas vezes expõe uma ou outra explicação bastante pontual sobre determinados conteúdos, conforme visto no capítulo de metodologia. Assim, os exercícios que fazem referência ao objeto direto anafórico de terceira pessoa no Caderno são formulados exclusivamente em prol da fixação dos clíticos acusativos como aprendizado. Dessa forma, foram verificados dois exercícios de substituição sobre o fenômeno, os quais solicitavam a reescritura de algumas sentenças utilizando os clíticos, como explicita o primeiro exercício destacado abaixo: 14. Escreva as frases substituindo os substantivos objetos diretos pelos pronomes o, a, os, as, e os substantivos objetos indiretos pelos pronomes lhe, lhes. Teleco exasperava o moço. Teleco exasperava-o. a) Ele mandou Luiza embora. b) Contei o caso a Manuel. c) Vejo Cátia e Vera contentes. d) Dei bombons às crianças. e) Convido os pais para a festa. 131 f) Ela amava muito a netinha. (Caderno o Futuro, Língua Portuguesa, 9º ano, 2013, p. 19-20). O segundo exercício, por sua vez, parte de dois lembretes sobre as diferenças de acentuação em formas verbais oxítonas terminadas em i e oxítonas terminadas em a, e, o, para a formação da ênclise: Lembre que: Formas verbais oxítonas terminadas em –i precedido de consoante não devem ser acentuadas. Por exemplo: ouvi-lo. O i de destruí-lo é acentuado por ser tônico e formar hiato com a vogar u. 6. Faça como no modelo, prestando atenção na acentuação dos verbos seguidos dos pronomes oblíquos lo, la, los, las. Precisamos ouvir o encanador. Precisamos ouvi-lo. a) Queriam revestir a parede. b) Vamos seguir o ônibus. c) É bom prevenir os alunos. d) Tentou destruir as provas. e) O professor deve instruir os alunos. f) Esperamos concluir o trabalho hoje. g) Pensou em demitir o empregado. h) Começam a construir a casa pela manhã. i) Você deve restituir o dinheiro. Lembre que: Mandei chamar o médico. Mandei chamá-lo. Acentuam-se as formas verbais oxítonas terminadas em a, e, o, seguidas dos pronomes oblíquos lo, la, los, las. j) Não devemos incomodar os vizinhos. k) Precisamos refazer o concerto. l) Vou compor a música. (op. cit., 2013, p. 32-33). Ao considerar que a obra tem por objetivo principal fixar o aprendizado dos conteúdos gramaticais trabalhados durante o Ensino Fundamental II de modo resumido, não surpreende que haja a promoção de exercícios como estes, mesmo porque auxiliam o aluno a sistematizar a forma como os clíticos são utilizados. Por outro lado, não se menciona quando o são e por que motivos, o que não faz parte dos propósitos dessa obra. Entretanto, na unidade em que se aborda a colocação pronominal, alguns enunciados chamam a atenção pela nomenclatura envolvida no tratamento dispensado às normas linguísticas. A unidade inicia sua abordagem com o texto Papos, de Fernando Veríssimo, que brinca com a variação na colocação pronominal, e, a partir deste, faz as seguintes perguntas: 132 1. Por que as duas pessoas do texto estão discutindo? 2. Que padrão linguístico a pessoa que corrige defende? 3. Sobre que item da gramática os interlocutores discutem? 4. Destaque do diálogo frases em que o pronome oblíquo foi usado na linguagem culta de um modo e na linguagem popular e coloquial de outro. 5. Destaque do texto uma próclise, uma mesóclise e uma ênclise. (op. cit., 2013, p. 113) (grifo meu). Ao observar o destaque feito, fica evidente a noção polarizada das normas linguísticas com a contraposição entre “linguagem culta” e “linguagem popular e coloquial”. Mais do que isso, divulga-se uma ideia de que o coloquial – termo que se relaciona a registro/monitoração – é equivalente ao popular – termo que se vincula a perfil de variedade/norma de uso –, como se fossem simplesmente categorias do mesmo plano; como se a norma culta, a “linguagem culta”, segundo a obra, não pudesse variar também entre os registros formais e informais. As normas são entendidas, assim, como se houvesse dois blocos estanques: de um lado, o que é culto e formal; de outro, o que é popular e coloquial. Essa visão polarizada e dicotômica da variação linguística averiguada nos materiais didáticos analisados é justamente a ideia que parece vigorar no ponto de vista das professoras sobre a língua. Assim, vejamos com mais detalhes, na próxima seção, a concepção que as professoras entrevistadas demonstram ter a esse respeito. 4.1.4 A perspectiva das professoras: as entrevistas Como as perguntas formuladas na entrevista suscitaram respostas subjetivas das professoras, no sentido de que tiveram um espaço livre para dissertar sobre as questões ao invés de optar por uma ou outra resposta predeterminada, faz-se aqui um diagnóstico das respostas dadas, pela docente 1 e pela docente 2, destacando os comentários feitos por elas ao longo da análise. Ao questioná-las sobre o uso de outros materiais em paralelo aos Cadernos Pedagógicos da SME, as professoras afirmaram complementar seu trabalho com os materiais analisados na seção anterior. O motivo pelo qual as duas o fazem é o mesmo: apontam a carência de uma abordagem explícita de componentes gramaticais como uma desvantagem dos Cadernos da SME: 133 Professora 1: Eu utilizo o livro didático “Vontade de Saber Português” da FTD paralelamente com outros materiais. Ele me auxilia muito nas atividades para fixação de conteúdos gramaticais. O Caderno Pedagógico é muito utilizado nas minhas aulas. Gosto dos temas abordados e da seleção de textos. O estudo dos textos favorece o enriquecimento do aluno pela diversidade dos gêneros (poesia; narrativas, crônicas...). Professora 2: Sim. Atualmente tenho usado, no município, os cadernos pedagógicos da SME e o caderno do futuro da IBEP. Sigo a ordem e os conteúdos apresentados nos Cadernos porque estão de acordo com o planejamento. Gosto muito da parte relacionada aos textos. São textos adequados e que servem para desenvolver a leitura doa alunos. Só considero deficiente quanto à gramática. Dessa forma, ambas as professoras reconhecem a qualidade da obra no que se refere ao trabalho com textos de tipos e gêneros diversificados, mas apenas nesse quesito, então, o material atenderia às necessidades do aluno de Língua Portuguesa. A professora 2, ainda, destaca o fato de seguir os conteúdos apresentados nos Cadernos em função de estarem previstos no planejamento da turma. Ocorre que o componente gramatical é essencial ao desenvolvimento da leitura e produção de textos diversos, como explicitado desde os pressupostos adotados no Capítulo 2 com as contribuições de Vieira (2015), Franchi (2006), entre outros, além dos próprios PCN (1998). É importante destacar, aqui, que não se trata de uma crítica ao método empregado na abordagem dos temas gramaticais, mas a ausência de atividades que efetivamente abordem tais temas. No entanto, ao indagá-las especialmente sobre o tratamento de fenômenos gramaticais no material fornecido pela SME, as professoras reforçam a ausência de uma abordagem mais específica de seus conteúdos: Professora 1: Gostaria de encontrar mais abordagens do componente gramatical. Professora 2: Acho que deveria ser mais desenvolvida, com atividades funcionais, aplicadas aos textos trabalhados. Por outro lado, quando questionadas sobre o tratamento dispensado aos fenômenos variáveis nos Cadernos, suas respostas começam, em certa medida, a se distanciar uma da outra. A professora da escola 1 confere uma resposta genérica sobre o tema e afirma estar de acordo com a abordagem feita no referido material: 134 Professora 1: Estou de acordo sim. Os fenômenos variáveis são aspectos da língua que devem ser analisados dentro do contexto. Ao que tudo indica, essa professora parece ter consciência da variação presente na língua de modo geral, mas não demonstra um conhecimento muito aprofundado a esse respeito. A professora 2, por sua vez, responde: Professora 2: Não entendi a pergunta. Demonstra, assim, pouca familiaridade com termos que envolvem a questão da variação linguística, indicando um distanciamento ainda maior com relação ao tema. No decorrer da entrevista, a concepção de variação das professoras vai sendo gradativamente evidenciada. Em dado momento, são questionadas sobre o modo como corrigiriam, em sala de aula, o seguinte exercício, destacado de um livro didático (CEREJA & MAGALHÃES, 2012): Nas frases a seguir, alguns pronomes estão empregados em desacordo com a norma padrão. Reescreva as frases empregando tais pronomes de acordo com essa variedade. a) O livro não está comigo. Emprestei ele para a minha prima. e) Eu não vi elas na festa. Será que elas não foram convidadas? Em sala de aula, ao corrigir este exercício, você apenas informa as respostas fornecidas como corretas no livro do professor ou também aceita outras possíveis respostas dadas pelos alunos? Se aceita, quais respostas você validaria? Por quê? A esta pergunta, a resposta da professora 1 seguiu transmitindo uma ideia de “reconhecimento” da variação linguística. Tal ideia, porém, começa a distanciar todo o espectro da variação do âmbito da norma padrão, colocando-os em dois extremos e, nesse percurso, o domínio da norma padrão seria, então, enfatizado no contexto escolar: Professora 1: Corrijo esta atividade de acordo com a norma-padrão, mas informo que a colocação anterior pode ser vista como uma variante da língua utilizada por alguns falantes. As variantes são aceitas e podem inclusive ser mencionadas em sala de aula, mas, em contraste com a norma padrão, esta carrega as formas ideais da língua, enquanto aquelas refletem as formas usuais, o que realmente está de acordo com a realidade: a norma padrão se 135 refere a um ideal, diferente das normas de uso; são as normas idealizadas e as normas praticadas, conforme os conceitos de norma de Faraco (2008) (citados no Capítulo 2 desta dissertação). Ocorre que, ao que parece, a norma padrão “ideal” é confundida com “a norma correta, alvo do ensino da língua” e, nesse sentido, as normas de uso são afastadas do universo escolar. Professora 1: Acredito que o aluno possui o direito de ser informado sobre a norma-padrão do seu idioma (Língua Portuguesa). Na vida ele utilizará ou não estes conhecimentos. A partir dessa visão polarizada dos conceitos de norma, é muito provável que o aluno absorva a ideia de que o padrão é o correto, embora existam outras formas variadas de uso da língua, em outro polo, no qual ele quase sempre identifica as variantes por ele utilizadas. Dessa forma, a língua com que o aluno tem contato – o que poderia ser uma boa fonte de estudo e consequente conhecimento – é totalmente apartada da língua estudada em sala de aula, o que acaba por dificultar o processo de ensino-aprendizagem, como a própria professora mostra reconhecer: Professora 1: Informo para eles que existe uma forma padrão. Faço a substituição do pronome, embora não há garantia da aprendizagem, visto que o uso cotidiano reforça a outra forma! A “outra forma” mencionada se refere ao uso do pronome lexical para a retomada do OD de terceira pessoa, a qual, segundo a professora, é a forma mais utilizada, de modo geral, pelos seus alunos. É como se houvesse, por essa perspectiva, duas formas possíveis: o clítico acusativo, que seria a forma “correta” por ser a padrão, alvo do ensino, e o pronome lexical, a variante utilizada pelos alunos fora do ambiente escolar30. A entrevista com a professora 1, portanto, reflete uma noção de variação linguística em dois polos: a norma padrão almejada na escola vs. as variantes do uso cotidiano. A professora 2, por sua vez, demonstra uma confusão ainda mais evidente com relação a esses conceitos de norma e variação. Enquanto a professora 1 apresenta uma visão polarizada entre forma padrão vs. formas do uso cotidiano, a professora 2 reúne claramente no primeiro polo o que considera norma culta, norma padrão e norma gramatical, como se 30 No entanto, o pronome lexical sequer é a variante mais utilizada pelos alunos ou pelos brasileiros em geral (cf. estudos anteriores), mas sim a mais estigmatizada e, portanto, mais perceptível às professoras e propícia à correção, mesmo que em poucas ocorrências. 136 fossem o mesmo, o que pode ser percebido a partir das demais respostas conferidas na entrevista. Ao avaliar uma construção como “o bebê ficou doente, então a mãe levou ele ao médico”, a professora 2 informa que a corrigiria com o emprego do pronome oblíquo (o clítico o), porque “faz parte da norma culta”. Em seguida, indagada sobre a maneira como trabalharia com o exercício destacado do livro didático, sua resposta relaciona o pronome oblíquo não mais à norma culta, mas sim à linguagem formal: Professora 2: a) Emprestei-o para a minha prima. Emprestei-o a minha prima. c) Eu não as vi na festa. Eu não vi-as na festa. Obs.: Sempre destaco a linguagem formal. Nota-se, assim, que a norma culta e os contextos de linguagem formal são postos em um mesmo plano, o qual é entendido em oposição aos contextos que, por essa perspectiva, permitiriam as variantes não padrão. Esses contextos, por sua vez, são relacionados às situações de fala, conforme outra consideração feita pela mesma professora: Professora 2: A tendência do aluno é escrever da forma que fala. Por isso, trabalhar exercícios estruturais da língua é fundamental para que ele se acostume a utilizar as variantes formais da língua. Desse modo, as variantes formais da língua são compreendidas em oposição à modalidade oral, como se a fala não variasse em um continuum de monitoração. Além disso, apenas dentro desse plano de formalidade são consideradas as formas da norma culta, que, por sua vez, são diretamente relacionadas à norma padrão. Assim, é possível compreender uma visão bem dicotômica desses contextos: As variantes não padrão do registro coloquial e da modalidade oral X A forma padrão, formal e culta da língua Nesse aspecto, a tal “forma padrão, formal e culta” é objetivada no âmbito escolar, enquanto “as variantes não padrão do registro coloquial e da modalidade oral” encontrariam espaço somente fora da sala de aula. Assim, o trabalho com o fenômeno do objeto direto 137 anafórico de terceira pessoa se limitaria ao contraste entre o clítico acusativo e o pronome lexical. Dessa forma, o ensino acaba por se restringir ao conhecimento das duas variantes mais afastadas entre si, de maneira que uma delas seja a forma almejada (o clítico) e a outra seja a forma usualmente empregada (o pronome lexical), a qual, nesse percurso, é rechaçada no ambiente escolar. Ao que tudo indica, as demais variantes já descritas pela literatura, como o SN anafórico e o objeto nulo, provavelmente não são aludidas em sala de aula, o que pode contribuir para o distanciamento que os alunos sentem com relação ao estudo do Português, uma vez que se almeja a variante mais distante do seu uso cotidiano em detrimento da variante (estigmatizada) de mais fácil entendimento. Nesse processo, as formas “neutras” utilizadas intuitivamente por eles sequer são mencionadas durante o processo de ensinoaprendizagem. Ao solicitar que as professoras corrigissem uma narrativa fictícia de um suposto aluno(a) de 9º ano, as duas ocorrências de pronome lexical foram assinaladas no texto. O quadro abaixo destaca as variantes do acusativo anafórico utilizadas na narrativa e, em cor sobressalente, os exemplos que foram corrigidos. Variantes utilizadas na narrativa fictícia SN anafórico (semelhante e idêntico) Objeto nulo “amava os seus pais” “amava os seus pais” “o príncipe pegou ” “o príncipe pegou ” “achar a Cinderela” “achar a Cinderela” [seu sapato de cristal] [seu sapato de cristal] Prof. 1 Prof. 2 Prof. 1 Prof. 2 Pronome lexical “deixou ela ir” “deixou ela ir” [Cinderela] [Cinderela] “aceitar ela” “aceitar ela” [Cinderela] [Cinderela] Prof. 1 Prof. 2 Quadro 7. Variantes utilizadas na narrativa fictícia para entrevista com docentes. Tanto o exemplo de pronome lexical em estrutura S V OD + verbo no infinitivo (que favorece o emprego dessa variante no PB) quanto o exemplo em uma construção S V OD 138 (que evidencia de modo mais saliente o uso do ele acusativo) foram corrigidos pelas professoras, as quais os substituíram pelo clítico acusativo: “deixá-la ir” e “aceitá-la”. As demais variantes foram normalmente aceitas, conforme mostra o retrato da correção feita por ambas as professoras, em seguida: Professora 1: Professora 2: 139 Acerca da correção retratada, vale ressaltar dois apontamentos em que a professora 2 assinalou o uso da categoria zero, indicando uma suposta carência de nitidez nas informações: Um dia, sua mãe ficou doente e não aguentou ?. O príncipe pegou e, depois, conseguiu achar a Cinderela porque [só ? cabia no pé dela. No primeiro caso, há um suposto objeto nulo sem referente explícito no texto (“as consequências da doença”), o qual foi aqui destacado apenas em função da marcação realizada pela professora. Tal objeto seria selecionado pelo verbo aguentar, transitivo direto que, na verdade, possui valor semântico intransitivo nessa ocasião: “não aguentou” “faleceu”. No segundo, a professora provavelmente relaciona o sujeito do verbo caber ao termo sublinhado “a Cinderela” (o SN mais próximo do sujeito nulo em questão), indicando uma possível incoerência, já que o sujeito não expresso se refere a um termo mais distante (“sapato de cristal”): “Quando deu meia noite ela teve que correr para ir embora e deixou seu sapato de cristal cair. O príncipe pegou e depois conseguiu achar a Cinderela porque [o sapato] só cabia no pé dela”. Ao analisar as considerações das duas professoras entrevistadas, chama atenção a ênfase demonstrada, de modo geral, pela professora 2, especialmente, no intuito de não deixar dúvidas quanto à sua posição acerca do ensino das variantes por ela consideradas formais, cultas e, ainda, pertencentes à modalidade escrita, mais uma vez, ressalta-se, como se tais contextos configurassem uma mesma categoria, a qual envolveria apenas o clítico acusativo para a retomada do OD de terceira pessoa, cujo domínio assim se objetivaria no ambiente escolar. Desse modo, é possível perceber um grau mais acentuado de conservadorismo na perspectiva da professora 2, em comparação à professora 1, embora ambas evidenciem uma concepção dicotômica e polarizada acerca dos conceitos de normas e da variação linguística. A partir das considerações obtidas com o exame qualitativo dos dois primeiros materiais de pesquisa analisados – os materiais didáticos e as entrevistas –, pode-se realizar a análise do terceiro material investigado nesta pesquisa – as redações escolares – de forma a promover um diálogo entre seus resultados e as apreciações feitas nesta primeira seção de análise, o que se busca alcançar na seção 4.2 a seguir. 140 4.2 Análise Sociolinguística Variacionista dos dados: a produção textual dos estudantes Esta seção aborda exclusivamente a análise e interpretação dos dados encontrados nas redações escolares investigadas, de modo a promover uma interseção entre as considerações obtidas com a análise qualitativa dos materiais anteriormente averiguados (materiais didáticos e entrevistas) e os resultados aqui alcançados com a análise sociolinguística variacionista do corpus proporcionado pelas redações. Para tanto, em 4.2.1, expõe-se a distribuição geral dos dados coletados; em 4.2.2, a análise multivariada desses dados; e em 4.2.3, por fim, faz-se uma apreciação crítica dos resultados relacionados à correção das professoras, especialmente. 4.2.1 Distribuição geral dos dados Para o fenômeno variável do OD anafórico de terceira pessoa, o corpus de redações escolares das duas turmas de 9º ano do Ensino Fundamental aqui examinadas indicou a ocorrência das seguintes variantes, no total de 657 ocorrências: SN anafórico, pronome clítico, objeto nulo, pronome lexical e pronome demonstrativo; este último apenas quando retomando um antecedente proposicional. A frequência de uso dessas variantes foi verificada na ordem decrescente apresentada na tabela a seguir: Estratégias de representação do OD anafórico de 3ª p. SN anafórico Pronome clítico Objeto nulo Pronome lexical Pronome demonstrativo TOTAL Valor absoluto Valor percentual 280 / 657 196 / 657 126 / 657 41 / 657 14 / 657 657 42,6% 29,8% 19,2% 6,2% 2,1% 100% Tabela 9. Distribuição geral dos dados de acusativo anafórico de terceira pessoa no corpus de redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental. A tabela evidencia a mais alta ocorrência de SN anafóricos em 42,6% dos dados; o clítico acusativo em um percentual de 29,8%; e o objeto nulo em um percentual também expressivo de 19,2%. Em quarto lugar, aparece a variante pronome lexical com apenas 6,2% de ocorrência. O pronome demonstrativo, por sua vez, foi utilizado somente na retomada de antecedentes oracionais, em 2,1% do total de dados. 141 Os resultados conferidos nessa distribuição corroboram, em geral, o que a literatura vem evidenciando para a escrita de estudantes brasileiros, em especial no que compete a esse nível de escolaridade. No entanto, se comparados aos resultados que Averbug (1998) encontrou para o período do 9º ano do Ensino Fundamental – mais alto emprego do objeto nulo, seguido do SN anafórico, clítico acusativo e, por último, o pronome lexical, nesta sequência –, é possível verificar certa diferenciação. No corpus aqui analisado, o objeto nulo foi apenas a terceira variante mais utilizada pelos alunos, e não mais a primeira como nos resultados de Averbug (1998). A estratégia de maior ocorrência na escrita dos alunos aqui em questão foi, predominantemente, o SN anafórico, que atingiu quase metade do total de acusativos anafóricos encontrados (42,6%), conforme mostra mais claramente o gráfico a seguir: Distribuição geral das variantes do acusativo anafórico de 3ª p. nas redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental 2% 6% 19% 43% SN anafórico 30% Pronome clítico Objeto nulo Pronome lexical Pronome demonstrativo Gráfico 3. Distribuição geral dos dados de acusativo anafórico de terceira pessoa no corpus de redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental. O predomínio do SN anafórico sobre as demais variantes também foi verificado por Xavier (2015) em seu corpus de produções escritas de 9º ano do Ensino Fundamental. Apesar disso, no corpus aqui investigado, também houve um percentual bastante expressivo de clíticos, segunda estratégia mais utilizada pelos alunos. Entretanto, cabe mencionar que esta 142 também foi a segunda variante mais corrigida pelas professoras (fator que está mais bem descrito na seção 4.3), no sentido de que os alunos apresentaram alguns usos irregulares do clítico de terceira pessoa, como já apontava Freire (2005) a partir de exemplos de redações de vestibulares. O predomínio do SN anafórico, por sua vez, também carrega uma informação relevante ao ensino da língua. Do total de SN anafóricos encontrados, apenas 8,7% se referem ao uso de SN sinônimos, estando em primazia, assim, o uso de SN idênticos e semelhantes, tal como evidencia a tabela a seguir: Formas de SN anafórico SN idêntico SN semelhante SN sinônimo TOTAL Valor absoluto 125 / 280 98 / 280 57 / 280 280 / 657 Valor percentual 19% 14,9% 8,7% 42,6% Tabela 10. Distribuição das formas do SN anafórico encontradas nas redações escolares do 9º ano do Ensino Fundamental: SN idêntico; SN semelhante; e SN sinônimo. A maioria de SN anafóricos verificados se fez pelo uso de SN idênticos (125 do total de 280 sintagmas nominais). Os percentuais de SN idênticos e semelhantes, se somados, atingem 33,9% contra apenas 8,7% do total de sintagmas anafóricos (42,6%). Esse resultado comprova que tais alunos não alcançam o intuito de evitar a repetição do objeto, o que contribuiria de fato para uma coesão textual mais variada, uma vez que, em maior escala, eles simplesmente repetem o termo antecedente, por meio de um SN idêntico, ou ao menos o núcleo desse sintagma, modificando somente um determinante ou adjunto, por meio de um SN semelhante. Nas seções seguintes, veremos com mais detalhes os fatores que influenciaram o uso de determinadas variantes, com base nos resultados das rodadas multivariadas realizadas com o programa Goldvarb X. 4.2.2 Análise multivariada dos dados Dentre as variantes averiguadas para o acusativo anafórico de terceira pessoa, o SN anafórico e o objeto nulo são as estratégias mais “neutras” com relação à percepção dos falantes, inclusive à das professoras, pois não sofrem nenhum estigma social, sendo consideradas estratégias de “esquiva” ao uso do clítico, pouco familiar aos brasileiros, e do pronome lexical, mais saliente e estigmatizado socialmente (cf. Silva (1993) e Duarte, 143 (2013)). Em vista disso, foram realizadas rodadas multivariadas dos dados coletados com base em dois valores de aplicação: o clítico acusativo e o pronome lexical, que são, portanto, as variantes mais parciais (no sentido de não imparciais ou mais acentuadas) para a representação do OD anafórico de terceira pessoa. Nas duas subseções a seguir, apresentam-se as variáveis relevantes a cada uma dessas variantes, analisando os resultados obtidos com as melhores rodadas realizadas pelo programa Goldvarb X. 4.2.2.1 Variáveis relevantes ao emprego do pronome clítico Com base no emprego do clítico acusativo, o programa selecionou como melhor nível de interação estatística uma rodada de significância 0.00 e input .19 de tendência ao clítico. Nesta, selecionaram-se seis variáveis relevantes ao uso desta variante – cinco linguísticas e uma extralinguística. Dentre as variáveis linguísticas selecionadas, encontramse: a “animacidade do antecedente”; o “antecedente do acusativo anafórico”; a “distância entre o termo antecedente e o acusativo anafórico”; a “função sintática do antecedente”; e a “estrutura sintática da frase”. O único condicionante externo à língua selecionado foi, curiosamente, o fator “escola”. Na sequência, expõem-se os resultados referentes às seis variáveis em questão, em ordem de relevância, conforme a seleção feita pelo programa. a) Animacidade do antecedente No corpus aqui analisado, a frequência de antecedentes animados foi o fator que mais favoreceu a retomada anafórica pelo pronome clítico, ao passo que os antecedentes inanimados desfavoreceram bastante o uso dessa variante, tal como mostra a tabela abaixo: Animacidade do antecedente Animado Inanimado TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 179 / 394 16 / 185 195 / 579 45,4% 8,6% 33.7% .66 .19 – Tabela 11. Atuação da variável “animacidade do antecedente” quanto ao emprego do clítico acusativo. 144 Ressalta-se que o total de 579 dados expostos na tabela (ao invés de 657, que é o total de dados geral do corpus) decorre da opção por contabilizar, nessa etapa, apenas os traços animado ou inanimado do antecedente para essa variável, excluindo os dados de referentes oracionais, que foram controlados em outra variável, conforme descrito e justificado no capítulo de metodologia. Houve apenas um caso de retomada de oração por meio do clítico acusativo e, por isso, o total de 195 clíticos utilizados na tabela, em lugar dos 196 clíticos encontrados no corpus completo. Assim, os resultados da tabela comprovam que o clítico acusativo ocorreu majoritariamente com referência a antecedentes animados (em 179 do total de 196 dados de clíticos), atingindo 45,4% dos casos de antecedentes animados e peso relativo .66, e apenas 8,6% dos antecedentes inanimados, com peso relativo .19. Tendo em vista que o traço [+ animado] do antecedente, em geral, favorece o uso do ele acusativo na fala brasileira (cf. estudos de Omena (1979), Duarte (1986), entre outros), faz sentido, em se tratando da escrita de alunos no último ano do Ensino Fundamental, que esse traço [+ animado] do antecedente tenha sido o maior favorecedor do emprego do clítico, haja vista o estigma fortemente associado ao uso do pronome lexical, constantemente repelido ao longo dos períodos de escolarização. Nesse sentido, vale mencionar que Averbug (1998) evidenciou uma inversão nas ocorrências do ele acusativo e do clítico justamente no 9º ano do Ensino Fundamental (antiga 8ª série, em sua análise), quando o clítico foi a terceira variante mais utilizada e o pronome lexical passou a aparecer em último lugar, com o menor percentual de ocorrência. É possível, portanto, que a atuação da escola esteja conduzindo a certa inversão: em lugar do ele acusativo, usa-se o pronome clítico, o que remete, de certo modo, a algumas considerações feitas na análise das entrevistas, nas quais as professoras demonstraram abordar, com maior ênfase, as duas variantes em questão, promovendo o uso de uma – o clítico acusativo – em detrimento de outra – o pronome lexical. b) Natureza do antecedente O contexto de antecedente oracional foi o maior desfavorecedor do emprego do clítico, que quase sempre aparece retomando um sintagma nominal. Tal condição coloca esta 145 variável como a segunda mais relevante ao uso do clítico acusativo, conforme mostra tabela a seguir. Antecedente do acusativo anafórico Sintagma nominal Oração TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 195 / 574 1 / 83 196 / 657 34% 1,2% 29.8% .62 .03 – Tabela 12. Atuação da variável “antecedente do acusativo anafórico” quanto ao emprego do clítico acusativo. Embora o antecedente sintagma nominal tenha favorecido o uso do clítico acusativo com peso relativo .62, chama a atenção o forte desfavorecimento condicionado pelo antecedente oracional, com peso relativo .03. Isso sugere que a relevância do condicionamento verificado se destaca muito mais em decorrência do que desfavorece o emprego dessa variante – o antecedente proposicional – do que em função do favorecimento exercido pelo antecedente sintagma nominal. A esse respeito, ressalta-se que Cyrino (1990, 1996, 1997) evidenciou a queda do o proposicional como o primeiro clítico a desaparecer no sistema pronominal do PB. Dessa forma, a ocorrência de um clítico na retomada de um antecedente oracional (exibido em (1), a seguir), neste corpus, pode demonstrar certa preocupação mais elevada com o emprego da variante padrão. (1) Frustrado por ter seu nome sujo, Jack sabia que ninguém jamais [o contrataria de novo]ᵢ. E não oᵢ fizeram (Redação 159, escola 2, sexo masculino). Nesse caso, destaca-se o fato de que a única retomada de antecedente proposicional pelo clítico acusativo ocorreu justamente na redação de um aluno da escola 2, cuja professora se mostra um pouco mais conservadora, como se pôde perceber por meio da análise de sua entrevista no capítulo anterior. c) Distância entre o antecedente e o acusativo anafórico A análise revelou que há maior probabilidade de uso do clítico acusativo quando o termo antecedente se encontra mais próximo (.58) do acusativo anafórico. Caso haja uma distância maior no texto entre os termos, a referência ao antecedente por um pronome clítico (.26) se torna mais difícil. 146 Distância entre o antecedente e o acusativo anafórico Perto Longe TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 168 / 495 28 / 162 196 / 657 33,9% 17,3% 29,8% .58 .26 – Tabela 13. Atuação da variável “distância entre o antecedente e o acusativo anafórico” quanto ao emprego do clítico acusativo. Os resultados da tabela certificam a hipótese de que o clítico dificilmente ocorreria na retomada de antecedentes mais distantes estruturalmente, distância esta que favoreceria a ocorrência do SN anafórico. De fato, cabe informar que a variante SN anafórico foi utilizada em 69,8% dos casos de retomada a um antecedente [+ distante], em contraste ao percentual de 30,2% da soma das demais variantes no mesmo contexto. Esses dados ratificam, ainda, o que Xavier (2015) havia sugerido sobre os resultados obtidos com a análise dos textos de seus alunos (também cursando o 9º ano do Ensino Fundamental): a suposição de que a retomada pelo sintagma nominal, em casos de antecedentes [+ distantes], facilitaria a referência ao antecedente com mais nitidez, evitando qualquer ambiguidade. Além disso, os poucos casos de clíticos encontrados pela autora citada também ocorreram em contextos de antecedentes mais próximos estruturalmente do acusativo anafórico. d) Escola do informante Não é novidade que o uso do clítico acusativo se mostre em progressiva expansão conforme aumenta o nível de escolaridade dos alunos brasileiros (considerando os estudos anteriores de Averbug (1998, 2000, 2008), Machado (2006), entre outros). Nesse sentido, era de se esperar que o fator escola exercesse influência relevante ao emprego dessa variante. No entanto, ao considerar especialmente a instituição na qual estuda o aluno aqui informante a natureza de uma variável de controle, surpreende a diferença verificada na atuação de uma e outra escola: 147 Escola Escola 1 Escola 2 TOTAL Valor absoluto 84 / 305 112 / 35231 196 / 657 Valor percentual 27,5% 31,8% 29,8% Peso relativo .39 .59 – Tabela 14. Atuação da variável “escola” quanto ao emprego do clítico acusativo. Ao mesmo tempo em que a escola 2 condicionou o uso do clítico acusativo com peso relativo .59, a escola 1, em contrapartida, “desfavoreceu” seu emprego com peso relativo .39. Como ambas as escolas estão situadas na mesma região, sem muitas diferenças geográficas ou sociais, essa distinção acaba por direcionar ao contraste na atuação de uma e outra professora junto a seus respectivos alunos, os quais têm o mesmo grau de escolaridade. Obviamente, a professora 1 não teve o intuito de restringir o uso do clítico acusativo, mas a atuação da professora 2, em comparação à primeira, fez com que seus alunos utilizassem o clítico em uma frequência bem mais elevada. Do total de 196 casos de clítico acusativo, mais da metade (112/196; 57%) pertence aos dados da escola 2. Ao traçar um paralelo entre esses resultados e as análises de base qualitativa ora realizadas, destaca-se o estado um pouco mais acentuado de conservadorismo em relação ao ensino da língua evidenciado nas respostas cedidas, em entrevista, pela professora 2. Nesse sentido, tais resultados não demonstram simplesmente um melhor domínio linguístico por parte dos seus alunos, embora revelem positivamente seu aprendizado sobre a forma como se utilizam os clíticos. Os resultados indicam, na verdade, que os alunos dessa professora absorveram com mais expressividade o uso do clítico como estratégia ideal para retomar um termo antecedente. Mais do que isso, talvez seja esta a única forma que eles tenham estudado em sala de aula como possível para essa função, seja por meio dos materiais didáticos utilizados – os Cadernos Pedagógicos da SME e o sistemático Caderno do Futuro do IBEP –, seja pela mediação feita por sua professora. 31 A diferença entre o total de dados de OD anafórico encontrados nas escolas não inviabiliza os resultados, já que o número de clíticos foi maior nos dados da escola 2 até mesmo ao contabilizar somente as redações do primeiro bimestre (antes de completar a amostra com as redações do terceiro bimestre desta escola), quando havia um número menor de dados, no total, para a escola 2. Na ocasião, havia um total de 305 dados para a escola 1 e apenas 173 para a escola 2 (total geral de 478 dados) e, ainda assim, o programa havia selecionado a variável escola como relevante e o favorecimento ao clítico foi verificado pela escola 2 com peso relativo .61, enquanto a escola 1 já o “desfavorecia” com peso relativo .43. 148 e) Função sintática do antecedente De modo a corroborar a hipótese formulada para esta variável, o contexto de antecedente com função sintática diferente do acusativo anafórico foi favorecedor ao uso do clítico, enquanto o contexto de antecedente igualmente acusativo desfavoreceu o emprego dessa variante: Função sintática do antecedente Igual Diferente TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 43 / 273 153 / 384 196 / 657 15,8% 39,8% 29,8% .38 .58 – Tabela 15. Atuação da variável “função sintática do antecedente” quanto ao emprego do clítico acusativo. As pesquisas anteriores sobre o fenômeno revelaram que a referência a um antecedente com a mesma função de objeto direto favorece o uso da categoria zero para a retomada anafórica (cf. estudos de Omena (1979), Marafoni (2004), Freire (2005), entre outros). Em vista disso, supôs-se que a função sintática diferente do antecedente pudesse propiciar o emprego das demais variantes expressas e, possivelmente, do clítico. Os resultados da tabela acima confirmam essa hipótese, evidenciando o favorecimento ao clítico acusativo exercido pelo antecedente de função sintática diferente, com peso relativo .58. Além disso, tais resultados ratificam a baixa probabilidade de ocorrência dessa variante com antecedente de mesma função sintática, com peso relativo .38, o que remete ao favorecimento de tal contexto sobre o emprego do objeto nulo. f) Estrutura sintática da frase A presença da estrutura sintática S V OD foi a única que favoreceu o uso do clítico acusativo no corpus investigado. As demais estruturas controladas, por sua vez, desfavoreceram o emprego dessa variante, principalmente em construções S V OD + verbo no infinitivo, conforme mostra a tabela abaixo: 149 Estrutura sintática da frase S V OD Oblíquo S V OD Predicativo S V OD S V OD V(infinitivo) TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 38 / 142 8 / 23 142 / 458 8 / 27 196 / 650 26,8% 34,8% 31% 29,6% 30,2% .39 .37 .55 .29 – Tabela 16. Atuação da variável “estrutura sintática da frase” quanto ao emprego do clítico acusativo. Destaca-se, primeiramente, que o total de 650 dados exposto na tabela decorre da opção por dar “não se aplica” aos dados de construções de “dupla função” com a segunda oração na forma gerúndio (S V OD + verbo no gerúndio), na variável “estrutura sintática da frase” – de modo a excluir os 7 dados desta estrutura –, tendo em vista a ausência de ocorrência do pronome clítico em tais construções, fato que havia ocasionado knockouts na rodada inicial, tal como explanado do capítulo de metodologia. Do total de 196 clíticos acusativos que apareceram no corpus, 142 ocorreram em estruturas S V OD (as quais constituíram 31% das ocorrências dessa estrutura), em contraste com apenas 54 dados de clíticos nas demais estruturas sintáticas. Esses resultados confirmam a hipótese de que, em construções S V OD, nas quais ainda se verifica o uso desta variante na fala brasileira, segundo Duarte (1986), o emprego dos clíticos seria mais provável na escrita desses estudantes. Não por acaso, também comprovando as hipóteses formuladas, as estruturas de “dupla função”, como S V OD + predicativo e S V OD + verbo no infinitivo, que são fortes favorecedoras ao uso do pronome lexical (cf. estudos de Omena (1979), Duarte (1986), Marafoni (2004), Freire (2005), entre outros), foram as que mais desfavoreceram o emprego do clítico, com pesos relativos .37 e .29, respectivamente. Ao observar os resultados de todas as variáveis relevantes ao clítico acusativo, é interessante perceber que os contextos desfavorecedores ao seu emprego, em geral, foram mais expressivos do que os favorecedores. Os antecedentes sintagmas nominais, por exemplo, favoreceram o uso do clítico com peso relativo .63, ao passo que a presença de um antecedente proposicional desfavoreceu a variante com peso relativo .03. De igual maneira, enquanto a distância curta entre o antecedente e o acusativo anafórico favoreceu o clítico com peso relativo .58, a distância longa entre os termos o desfavoreceu em .26. O traço [+ animado] e a função sintática diferente do antecedente favoreceram o clítico em .66 e .58, respectivamente, enquanto os contextos opostos o desfavoreceram em .19 e .38, na mesma 150 ordem. O favorecimento de estruturas S V OD ao clítico foi de apenas .55; o desfavorecimento das demais estruturas foi de .29, .37 e .39. Em outras palavras, a seleção das variáveis linguísticas relevantes ao emprego do clítico acusativo, na escrita desses estudantes, parece decorrer muito mais dos valores que desfavorecem seu emprego do que do favorecimento exercido pelos contextos opostos. Interpretação diferente, entretanto, é promovida com relação à variável extralinguística “escola”, já que o fato de a escola 1 ter revelado peso relativo .39 ao emprego do clítico não significa de fato um desfavorecimento à variante, demonstrando apenas que a escola 2 propiciou o uso do clítico em maior escala (.59), embora as duas escolas busquem que seus alunos o utilizem. 4.2.2.2 Variáveis relevantes ao emprego do pronome lexical A melhor rodada selecionada pelo programa com base na variante pronome lexical obteve significância .01 e um input, igualmente, de apenas .01, o que já demonstra a raridade de sua ocorrência, restrita a contextos bem peculiares. Nesse sentido, cabe ressaltar que o uso da referida variante com antecedentes específicos foi categórico e, por isso, a variável “especificidade do antecedente”, obviamente relevante,foi eliminada para a etapa de rodadas multivariadas, conforme explicado no capítulo de metodologia. Assim, foram selecionados pelo programa três grupos de controle relevantes ao seu emprego, quais sejam: o fator “correção”; a “animacidade do antecedente”; e a “estrutura sintática da frase”, nesta ordem. Obviamente, a correção dos textos feita pelas professoras não poderia condicionar o uso do pronome lexical (anterior à tarefa da correção), mas a seleção desse grupo de controle dos resultados como o mais relevante mostra a alta probabilidade de que o emprego do pronome lexical seja corrigido pelas professoras, mesmo ocorrendo em uma baixa frequência de uso. A seguir, apresentam-se os resultados dos três referidos grupos selecionados. a) Fator correção De forma a confirmar a hipótese desta pesquisa, o pronome lexical foi a variante mais propícia à correção, embora sua ocorrência seja pouco expressiva, conforme mostra a seguinte tabela: 151 Grupo de controle: correção Corrigida Não corrigida TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 27 / 46 14 / 612 41 / 657 57,8% 2,5% 6,2% .97 .43 – Tabela 17. Resultados do grupo de controle “correção” quanto ao emprego do ele acusativo. Como este grupo de controle revela a correção efetiva das professoras, seus resultados serão explorados especialmente na última seção deste capítulo (4.2.3), que versa especificamente sobre o problema da avaliação das variantes da regra variável. No entanto, pode-se destacar, aqui, que o pronome lexical atingiu mais da metade das correções feitas pelas professoras (57,8%). Em valores absolutos, de um total de 46 dados de correção verificados no corpus, 27 corresponderam ao uso do pronome lexical, os quais serão abordados com mais detalhes, portanto, na próxima seção. b) Animacidade do antecedente O traço [+ animado] do antecedente foi bastante favorável ao emprego do pronome lexical, corroborando os estudos anteriores e confirmando a hipótese de que a maior frequência dessa variante ocorreria em dados de antecedentes animados, tal como evidencia a tabela abaixo: Animacidade do antecedente Animado Inanimado TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 39 / 394 2 / 185 41 / 657 9,9% 1,1% 7,1% .61 .26 – Tabela 18. Atuação da variável “animacidade do antecedente” quanto ao emprego do ele acusativo. Como se pode observar, o traço [+ animado] do antecedente favoreceu o uso do pronome lexical, com peso relativo .61, ao passo que o traço [- animado] o desfavoreceu, com peso relativo .26. Do total de pronomes lexicais utilizados pelos alunos, houve apenas duas ocorrências dessa variante com referência a antecedentes inanimados, os quais são apresentados em (2) e (3), a seguir: 152 (2) A palavraᵢ é “pai”, filho. Diga elaᵢ pra mim, para que eu fique feliz como da primeira vez em que nos vimos, diz. (Redação 210, escola 2, sexo feminino). (3) Ele mergulha até encontrar a bolsaᵢ, pega elaᵢ e volta até a superfície com a bolsa em sua mão. (Redação 214, escola 2, sexo feminino). Embora a literatura aponte o traço [+ animado] do antecedente como forte favorecedor ao uso do pronome lexical e os resultados aqui obtidos tenham evidenciado o mesmo, com o favorecimento de peso relativo .61 (exposto na tabela acima), é válido ressaltar que esse mesmo contexto favoreceu também o emprego do clítico acusativo, com peso relativo .66 (cf. tabela 11), quando contraposto a todas as outras variantes. Como o pronome lexical é uma variante socialmente estigmatizada e, por conseguinte, de menor frequência, os alunos tendem a buscar sua substituição, devido à influência escolar, pela variante considerada padrão. Assim, é possível identificar certa transferência de uma variante à outra: o contexto que, em geral, favorece a variante estigmatizada (principalmente na fala) foi o mais favorável, na escrita dos estudantes, à variante padrão32. c) Estrutura sintática da frase Ainda confirmando as hipóteses formuladas e ratificando os estudos anteriores, os contextos de construções com “dupla função” foram os mais favoráveis ao pronome lexical, ao contrário das estruturas S V OD, que desfavoreceram o uso dessa variante com peso relativo .41: Estrutura sintática da frase S V OD Oblíquo S V OD Predicativo S V OD S V OD V(infinitivo) S V OD OI TOTAL Valor absoluto Valor percentual Peso relativo 17 / 108 4 / 23 12 / 458 7 / 27 1 / 34 41 / 657 15,7% 17,4% 2,6% 25,9% 2,9% 6,2% .61 .75 .41 .84 .73 – Tabela 19. Atuação da variável “estrutura sintática da frase” quanto ao emprego do ele acusativo. 32 De todos os contextos favoráveis ao clítico, o antecedente animado foi o mais expressivo, com peso relativo .66. A variante pronome lexical atingiu 9,9% dos casos de antecedentes animados, enquanto o clítico acusativo constituiu 45,4% das ocorrências desse contexto (cf. tabelas 18 e 11, respectivamente). 153 A tabela acima evidencia o mais alto emprego do pronome lexical em estruturas S V OD + complemento oblíquo (17/108 – 15,7%). Se somadas as estruturas nas quais o verbo seleciona um complemento oblíquo e as estruturas de “dupla função”, os resultados revelam, nestas, mais da metade das ocorrências de pronomes lexicais – 29, em número absoluto, contra 12 usos dessa variante em construções S V OD. A maior probabilidade de uso do pronome lexical, por sua vez, verificou-se em estruturas de “dupla função”: primeiramente, com verbo no infinitivo, com peso relativo .84, e, em seguida, com predicativo, com peso relativo .75. Posteriormente, aparecem as estruturas em que o predicador verbal seleciona, além do objeto direto, um objeto indireto, com peso relativo .73, ou algum complemento oblíquo não dativo, com peso relativo .61. Dessa forma, é possível estabelecer uma escala de favorecimento dessas estruturas à variante pronome lexical, tal como ilustra o gráfico abaixo: .61 S V OD Oblíquo .73 .75 S V OD OI S V OD Predicativo .84 S V OD V(infinitivo) Favorecimento à variante pronome lexical Gráfico 4. Probabilidade de uso do ele acusativo em função da variável “estrutura sintática da frase”. A estrutura S V OD + verbo no infinitivo (exemplificada em (4)) foi o contexto mais favorável ao uso do pronome lexical. Em segundo lugar, aparecem as construções, também de “dupla função”, com predicativo (como em (5)). Em seguida, as demais estruturas favoráveis 154 à variante contêm um predicador verbal que seleciona algum argumento além do objeto direto, seja um objeto indireto, como em (6), seja um complemento oblíquo não dativo, como em (7). Os dados a seguir exemplificam tais ocorrências: (4) A mãe de Melissa ficou tão feliz que elaᵢ ficou em segundo lugar no concurso que deixou elaᵢ viajar pra Disney. (Redação 046, escola 1, sexo feminino). (5) Elaᵢ viu um homem estranho na rua. Ele era alto e usava uma jaqueta e isso deixou elaᵢ com muito medo (Redação 011, escola 1, sexo masculino). (6) A palavraᵢ é “pai”, filho. Diga elaᵢ pra mim, para que eu fique feliz como da primeira vez em que nos vimos, diz. (Redação 210, escola 2, sexo feminino). (7) Então elaᵢ pediu que ele levasse elaᵢ até a casa da Beca (Redação 221, escola 2, sexo feminino). Não por acaso, a maioria dos dados de pronome lexical não corrigidos pelas professoras ocorreu em estruturas como as apresentadas acima (cf. será observado na seção 4.3), que se enquadram no gráfico de favorecimento à variante, talvez por carregarem certo grau de aceitação. A fim de abordar mais detalhadamente o fator correção controlado nesta pesquisa, a próxima seção aborda as variantes mais ou menos corrigidas pelas professoras, de modo a compreender em que medida o são e, além disso, as diferenças e semelhanças encontradas na correção de cada uma delas. 4.3 O grupo de controle correção Como mencionado anteriormente, o pronome lexical foi a variante mais corrigida no corpus, atingindo mais da metade do percentual total de correção (57,8%). Os 42.2% restantes de correções verificadas se dividiram entre o clítico acusativo (24,4%), o objeto nulo (11,1%) e o SN anafórico (6,6%), tal como expõe o gráfico33 a seguir, de distribuição geral dos resultados encontrados para o fator em questão: 33 A estratégia com o pronome demonstrativo foi categoricamente aceita pelas professoras e, portanto, não aparece no gráfico exposto. 155 Percentual geral de correção do OD anafórico de 3ª p. 11% 7% Pronome lexical Pronome clítico 24% 58% Objeto nulo SN anafórico Gráfico 5. Percentual geral de correção do acusativo anafórico de terceira pessoa. É notória, evidentemente, a predominância da correção feita ao pronome lexical, mesmo que seus usos sejam muito pouco frequentes. No entanto, o clítico acusativo, que é a variante padrão e a segunda mais utilizada pelos alunos, também foi corrigido em um percentual considerável de 24%. Os percentuais de correção do objeto nulo e do SN anafórico, em contrapartida, correspondem a apenas poucos dados corrigidos destas variantes – cinco da primeira e três da segunda –, conforme mostra seguinte a tabela: Estratégias de representação do OD anafórico de 3ª p. Pronome lexical Pronome clítico Objeto nulo SN idêntico SN semelhante SN sinônimo Pronome demonstrativo TOTAL Frequência de correção Valor absoluto Valor percentual 27 / 41 11 / 196 5 / 126 2 / 125 1 / 98 0 / 57 0 / 14 46 / 657 57,8% 24,4% 11,1% 4,4% 2,2% 0% 0% 7% Tabela 20. Distribuição geral do acusativo anafórico de 3ª p. em função da frequência de correção. 156 Para os resultados gerais acima expostos, considerou-se como correção toda e qualquer assinalação feita pelas professoras nos textos de seus estudantes. No entanto, observou-se que os dados de clíticos não aceitos pelas docentes ocorreram em função de questões gráficas, como no exemplo (8): (8) Então elaᵢ tomou coragem e entrou, ao chegar dentro da casa dona Matilda vendo aᵢ, colocou a mãe em seu ombro (Redação 007, escola 1, sexo feminino) – corrigido para “vendo-a”. Nessa ocorrência, a correção foi feita devido à ausência do hífen na grafia do aluno, que (entre outros exemplos abordados mais adiante) demonstra utilizar o clítico sem dominar as regras de representação da ênclise. A assinalação da docente, no caso, não se dá em prol do uso de outra variante em lugar do clítico. De igual maneira, a correção à variante SN anafórico verificada no corpus evidenciou tão somente a busca por evitar a repetição de termos idênticos ou semelhantes, sem remeter à escolha de outra variante em seu lugar, já que as docentes não apontaram, no texto, o uso de outra forma por elas considerada mais adequada, apenas sublinhando os termos antecedente e anafórico, tal como em (9): (9) Ele se despede da amiga e sai correndo até o local da palestraᵢ, porém descobre que a sala estava vazia e acaba pensando que perdeu a palestraᵢ. (Redação 008, escola 1, sexo feminino; corrigido com termos correspondentes sublinhados). Em vista disso, o gráfico a seguir expõe o percentual geral de correção ao uso das variantes do acusativo anafórico de terceira pessoa, excluindo-se as assinalações feitas a estruturas graficamente irregulares e não expressamente substituídas por outras: 157 Percentual geral de correção ao uso das variantes do OD de 3ª p. 16% Pronome lexical Objeto nulo 84% Gráfico 6. Percentual geral de correção ao uso das variantes do OD anafórico de 3ª p. Como se pode observar, é evidente o predomínio da coerção ao uso do pronome lexical, seguido de poucas correções ao emprego do objeto nulo, ambas corrigidas com a substituição pelo clítico, conforme as anotações feitas pelas professoras. Visando a uma apreciação mais detalhada das condições de correção das quatro variantes em questão, faz-se, na sequência, uma abordagem da correção verificada em cada uma delas, separadamente, da variante menos corrigida (a iniciar pelas de uso assinalado porém não substituído por outra forma – SN anafórico e clítico acusativo) à mais corrigida pelas professoras. a) A variante SN anafórico Os resultados apontam que o SN anafórico foi a variante menos corrigida, ainda que tenham ocorrido poucos casos de SN sinônimo, conforme explicitado na seção 4.1 (57, em valor absoluto). Da soma de SN idênticos e semelhantes (125 e 98, respectivamente), que 158 reúnem um total de 223 dados de sintagmas anafóricos iguais ou parcialmente iguais ao antecedente, houve somente três ocorrências corrigidas: (10) Eles marcaram um encontroᵢ em uma praça perto da escola, marcaram o encontroᵢ às 18:00 horas da noite. (Redação 130, escola 1, sexto feminino; corrigido com termo anafórico sublinhado) (11) Ele se despede da amiga e sai correndo até o local da palestraᵢ, porém descobre que a sala estava vazia e acaba pensando que perdeu a palestraᵢ. (Redação 008, escola 1, sexo feminino; corrigido com termos correspondentes sublinhados) (12) (...) e acaba pensando que perdeu a palestraᵢ. Triste, ele caminha para a saída da faculdade porém encontrou um homem que diz que ele estava na sala errada e mostra a ele a verdadeira sala, assim Watson conseguiu dar a palestraᵢ. – termos sublinhados (Redação 008, escola 1, sexo feminino; corrigido com termos correspondentes sublinhados) No primeiro exemplo (10), chama atenção a repetição não só do sintagma nominal como também do predicador verbal, o que provavelmente deve ter influenciado a coerção da professora, além do fato de os termos estarem muito próximos entre si34. Neste caso, poderia ser mais eficiente, para evitar repetições, a omissão tanto do acusativo anafórico quanto do predicador verbal, a qual não causaria prejuízos à compreensão do leitor: “Eles marcaram um encontro em uma praça perto da escola, às 18:00 horas da noite”. Como a professora sublinhou somente o SN anafórico e não o verbo repetido, outra opção seria substituir o verbo por outro que, no enunciado, denotasse o mesmo sentido. Neste caso, o uso do objeto nulo seria uma boa opção, melhor até (em se tratando do âmbito do PB) do que o próprio clítico: “Eles marcaram um encontro em uma praça perto da escola, combinando às 18:00 horas da noite”. Como se pode observar, embora o clítico acusativo seja considerado a variante padrão e, além disso, costume ser utilizado em contextos de escrita mais formal, seu uso nem sempre irá funcionar, necessariamente, como o mais adequado. Ainda assim, não demandaria nenhuma correção, em quaisquer contextos, à exceção dos casos em que se verificam usos irregulares da variante, adiante explorados. 34 Ressalta-se, aqui, a maior ocorrência de sintagmas nominais anafóricos nos casos de maior distância entre o termo antecedente e o acusativo anafórico. Conforme apontado na seção 4.2.2, a variante SN anafórico constituiu 69,8% dos dados do referido contexto. 159 Nos dois outros dados corrigidos, que pertencem à mesma redação, destaca-se o fato de o aluno repetir o mesmo SN por muitas vezes no decorrer do texto. Seria o caso, então, de tentar modificar a estrutura de modo mais amplo, como em: “(...) e acaba pensando que perdeu a palestra. Triste, ele caminha para a saída da faculdade porém encontrou um homem que diz que ele estava na sala errada e mostra a ele a verdadeira sala, assim Watson conseguiu realizar seu trabalho / cumprir seu objetivo”. Nota-se, assim, que os três dados de SN semelhante e idênticos corrigidos demonstram uma repetição mais extensa do que propriamente a repetição de um termo anafórico. Por outro lado, à exceção das três ocorrências corrigidas elucidadas, há usos de SN idênticos ou semelhantes que acarretam um texto intensamente repetitivo e, ainda assim, não se mostraram salientes à correção das professoras. Em alguns casos, o emprego do clítico acusativo tornaria o texto mais elaborado, como nos exemplos (14) e (15); em outros, porém, o objeto nulo poderia ser suficiente para a retomada anafórica, como em (13): (13) Sua mãe não queria falar o nome da sua avóᵢ. Quando ela descobriu o nome de sua avó, resolveu fazer uma história para ela. (Redação 028, escola 1, sexo feminino) (14) Ela viu um homemᵢ maltratando um filhote de cachorro, desesperada ela ligou pra policia, que prendeu o homemᵢ. (Redação 021, escola 1, sexo feminino) (15) Ele morava sozinho e tinha vários amigosᵢ. Quando eles precisavam de ajuda, Ivo sempre dava um jeito de ajudar os seus amigosᵢ. (Redação 100, escola 1, sexo feminino) O seguinte trecho de uma das redações elucida de modo ainda mais evidente essa questão: E as três meninas entraram na água. Um tempo depois elas se afogaram. Lucas entrou na água para salvar as meninas seus colegas vieram e ajudaram ele a salvar as meninas. Mais no final tudo deu certo eles conseguiram salvar as meninas (Redação 012, escola 1, sexo masculino). Acerca do trecho destacado, ressalta-se que, ao passo que a intensa repetição de SN anafóricos não acarretou correção ou qualquer sinalização pelas professoras, o uso do ele acusativo – dado seu estigma em relação ao que se idealiza como norma padrão – não fugiu a sua percepção: 160 (16) Lucasᵢ entrou na água para salvar as meninas seus colegas vieram e ajudaram eleᵢ a salvar as meninas (Redação 012, escola 1, sexo masculino; corrigido para ajudaram-no)35. Entretanto, em outros casos, o uso de SN semelhante não parece provocar uma repetição danosa ao texto, como nos exemplos (17) e (18). Certas vezes, o emprego dessa forma pode até mesmo contribuir para alguma ênfase (como em (19)) e, nesses casos, de fato não haveria razões para correção. (17) Outro dia, mexendo na grama, encontrei uma pedra coloridaᵢ. / Nessa mesma época, eu levei a pedraᵢ para casa e mostrei à minha mãe. (Redação 158, escola 2, sexo masculino) (18) Vários dias se passaram e Hazel continuou sentada ao lado de Gusᵢ. / Ela estava loucamente apaixonada por ele. Nisso ela queria conquistar o Gusᵢ de qualquer forma, e contou com ajuda de uma amiga. (Redação 105, escola 1, sexo feminino) (19) No outro dia Maria chegou na escola e se sentou, logo Axelᵢ chegou e perguntou o porquê dela estar triste. Depois de ter contado, ele percebeu que ela o admirava, ela gostava dele. Ele fez uma cara de assustado e saiu depressa dali. Maria sem entender correu, chorando para sua casa. / Ela já não ia a escola fazia dias, por vergonha de encarar o tão lindo Axel Brandfordᵢ, mas tomou coragem e foi. (Redação 085, escola 1, sexo feminino). b) A variante clítico acusativo Com relação à correção ao clítico acusativo, houve uma diferença bastante significativa entre as redações de cada escola, a qual pôde ser melhor identificada com o cruzamento dos fatores “escola” e “correção”: 35 No exemplo citado, destaca-se que a estrutura sintática que envolve o ele acusativo em questão é um dos contextos que mais favorecem a variante, conforme visto na seção 4.2.2.2, com o gráfico X de favorecimento à variante pronome lexical. Trata-se de uma construção em que o predicador seleciona um complemento oblíquo além do objeto direto (“a salvar as meninas”); contexto que, no entanto, constituiu a maioria das ocorrências de pronome lexical não corrigido pelas professoras. 161 Escola 1 Variante pronome clítico Escola 2 Nº % Nº % 8 / 40 20% 3/6 50% Não corrigidos 76 / 265 29% 109 / 347 31% Total de clíticos 84 / 305 28% 112 / 352 32% Corrigidos Tabela 21. Resultados do cruzamento entre os grupos de fatores “escola” e “correção” sobre o emprego do clítico acusativo. A tabela mostra que mais da metade das ocorrências de clíticos acusativos se verificou dentre os dados da escola 2 – 112, em valor absoluto, em contraste aos 84 dados de clíticos da escola 1. Ainda assim, houve mais casos de usos irregulares (corrigidos) de clíticos acusativos (corrigidos) nas redações da escola 1 (8 dados) do que nas da escola 2 (3 dados). Embora a soma das duas escolas não sugira um número tão expressivo de usos irregulares (11 correções, do total de 196 clíticos), o teor de tais ocorrências chama a atenção, principalmente em se tratando de textos de alunos do último ano do Ensino Fundamental, o que se pode perceber com os exemplos (20), (21), (22), (23) e (24), a seguir. (20) Caroline encontrou sua tia Fátima e ela percebeu que Carolineᵢ não estava bem. Levou-laᵢ ao médico e Caroline estava com anemia. (Redação 010, escola 1, sexo feminino; corrigido para levou-a) (21) A mãe de Léo trabalhava concertando carros, construindo coisas, etc. Às vezes elaᵢ o deixava aᵢ ajuda laᵢ. (Redação 039, escola 1, sexo masculino; corrigido para “ajudá-la”). (22) No sonho ela era bela, formosa e eleᵢ se via nela foi então que ela encher oᵢ de conselhos (Redação 247, escola 2, sexo masculino; corrigido para “encheu-o”). (23) Era uma vez um loboᵢ meio mal cujo seu nome ja começa estranho Alexandre T. Lobo, mas pode chama loᵢ de Alex. (Redação 057, escola 1, sexo masculino; corrigido para “chamálo”). (24) Então elaᵢ tomou coragem e entrou, ao chegar dentro da casa dona Matilda vendo aᵢ, colocou a mãe em seu ombro (Redação 007, escola 1, sexo feminino; corrigido para “vendoa”). 162 Esses dados refletem o estatuto do clítico acusativo como variante de uma gramática ainda em construção por parte dos estudantes em questão, demonstrando a pouca familiaridade que apresentam com relação aos padrões ortográficos que regem seu uso, o que evidencia certa dificuldade em corresponder ao intuito escolar de recuperar o emprego do clítico acusativo. Em outros casos, a correção feita pelas professoras sucedeu da colocação pronominal, como em (25), (26), (27) e (28). (25) Harry aᵢ beija por um longo período, tirando seu fôlego e logo em seguida aᵢ pedindo em namoro. (Redação 032, escola 1, sexo masculino; corrigido para pedindo-a) (26) Elaᵢ tinha inveja de mim. Mais mesmo depois deu aᵢ ajudar ela continuava me ameaçando (Redação 052, scola 1, sexo feminino; corrigido para ajudá-la) (27) Essas mulheresᵢ não eram as mais bonitas e nem de melhor classe social, mas tinham corações enormes e poderiam sim fazer Miguel ser uma pessoa melhor, mas com seu orgulho do tamanho de Mercúrio nunca se desculpou com nenhuma e foi asᵢ perdendo. (Redação 070, escola 1, sexo feminino; corrigido para perdendo-as) (28) Quando eleᵢ se depara com uma luz que brilhava muito intensamente e o atraiu e teletransportando-oᵢ para um lugar desconhecido. (Redação 093, escola 1, sexo masculino; corrigido para o teletransportando) Não foram codificados como corrigidos os dados em que os alunos não acentuaram os verbos em ênclise, como em (31), justamente por se identificarem como uma irregularidade de acentuação36. No entanto, nos dois últimos casos de clíticos corrigidos, os alunos acentuaram o clítico exatamente e, por esse motivo, foram contabilizados como um uso irregular de clítico acusativo de terceira pessoa – expostos em (29) e (30) –, embora não se manifestem da mesma maneira que as ocorrências citadas anteriormente. 36 Verificaram-se, no corpus, dez ocorrências em que apenas a acentuação foi corrigida pelas professoras (não contabilizados, portanto, como clíticos corrigidos), a saber: cura-la (redação 016, escola 1, sexo feminino); busca-la (redação 54, escola 1, sexo feminino); leva-la (redação 54, escola 1, sexo feminino); acompanha-la (redação 74, escola 1, sexo masculino); dispensa-lo (redação 66, escola 1, sexo masculino); salva-las (redação 79, escola 1, sexo feminino); ajuda-la (redação 92, escola 1, sexo masculino); compreende-la (redação 112, escola 1, sexo feminino); cura-la (redação 139, escola 2, sexo masculino); leva-lo (redação 175, escola 2, sexo masculino). 163 (29) Elaᵢ morava com uma tia muito má, depois do falecimento dos seus pais em um acidente de carro. Mais mesmo sua tia àᵢ maltratando, ela ainda tinha o sonho de ser “livre”. (Redação 144, escola 2, sexo feminino; corrigido para “a maltratando”). (30) Dela não gosta de ver Ruthᵢ nesse estado e faz de tudo para ajuda-láᵢ (Redação 225, escola 2, sexo feminino; corrigido para “ajudá-la”). (31) Eles foram conversando por muito tempo até que Aliceᵢ disse seu grande sonho para Jorge que era conhecer uma cidade, ele concordou em ajuda-laᵢ em seu sonho. (Redação 092, escola 1, sexo masculino; corrigido em “ajudá-la”). c) A variante objeto nulo No que tange ao uso do objeto nulo, das 126 ocorrências dessa variante, somente cinco não foram aceitas pelas professoras. Desses cinco dados corrigidos, quatro (exibidos nos exemplos (32), (33), (34) e (35)) se referiam seguramente a um antecedente humano e específico: (32) Ela começou a pedir para a menina parar, mais ela nunca parava, deu um tempo na verdade anos e achou que nunca mais ia ver a meninaᵢ novamente mais viu ᵢ no shopping, mais sozinha e encarando ela. (Redação 052, escola 1, sexo feminino; corrigido para “a viu”) (33) No dia do casamento, o noivoᵢ teve um acidente e não foi no dia do casamento, a noiva foi visitar ᵢ no hospital, felizmente ele só tinha quebrado a perna. (Redação 080, escola 1, sexo feminino; corrigido para “visitá-lo”) (34) Elaᵢ gostava muito de trabalhar como médica, era calma e muito feliz. / Até que um dia a amiga dela Alice chamou ᵢ para ir no grupo de oração. (Redação 087, escola 1, sexo feminino; corrigido para “chamou-a”) (35) Elaᵢ era feliz fazendo isso. Até que o dono do shopping expulsou ᵢ do shopping, porque não estava tendo rendimento. (Redação 107, escola 1, sexo feminino; corrigido para “a expulsou”) O quinto dado de objeto nulo corrigido (36), embora assinalado como referente a um antecedente inanimado, demonstrou certa ambiguidade em sua leitura: 164 (36) Quando suas forças para soltar a corda já tinham se esgotado, apareceu um principe, filho do rei, que soltou dizendo “vamos sair daqui”. (Redação 150, escola 2, sexo feminino; corrigido com sublinhado entre os termos que e soltou) Em uma primeira leitura, a referência do objeto nulo do exemplo (36) é associada ao termo antecedente a corda, inanimado porém específico, único contexto que, segundo a literatura (cf. estudos de Marafoni (2004), Averbug (2008), entre outros, citados no capítulo 1), ainda restringe o uso dessa variante no PB. No entanto, a professora não o corrigiu colocando o clítico a ou qualquer objeto expresso em seu lugar, mas simplesmente sublinhou a ocorrência, indicando alguma incoerência ou irregularidade. É possível que, em uma segunda leitura, esse objeto seja associado a um antecedente mais distante, referente à pessoa que foi solta (antes, presa pela tal corda), o qual foi retomado diversas vezes no texto: Uma bela mulher, que morava em uma simples casa numa cidade qualquer, era amaldiçoada por sua madrasta, que queria sua juventude. A maldição dizia que elaᵢ nunca seria feliz, e por isso saiu da casa de seu pai. As pessoas aᵢ olhavam com estranheza, por isso elaᵢ só saía de casa quando o necessário, quase não tinha despesas. Nunca fora realmente feliz, e ficou sabendo por alguns boatos que seria executada. Foi julgada e condenada. Numa simples tarde aᵢ prenderam numa árvore perto do palácio, passaria a noite lá, e seria morta pela manhã. Quando suas forças para soltar a corda já tinham se esgotado, apareceu um principe, filho do rei, que soltou ᵢ dizendo “vamos sair daqui” (Redação 150, escola 2, sexo feminino). Como a marcação feita pela professora se encontra justamente entre os termos que e soltou, ou seja, assinalando o espaço anterior ao verbo, é provável que sua intenção tenha sido aludir ao uso do clítico acusativo (“a soltou”), o que não solucionaria a ambiguidade, já que os dois possíveis antecedentes são femininos e o pronome utilizado seria o mesmo. Por esse motivo, talvez, a professora deva ter optado por sublinhar a ocorrência sem fazer uma correção explícita em prol do clítico, apenas sugerindo que o uso do objeto nulo, nesse caso, não foi totalmente eficaz. 165 d) A variante pronome lexical Ao que tudo indica, as redações da escola 2, em comparação às da escola 1, demonstram um direcionamento bem maior à aproximação da variante padrão e ao afastamento da variante estigmatizada, muito provavelmente em decorrência do trabalho exercido por suas professoras. Ao comparar os resultados do cruzamento para a variante clítico acusativo (cf. tabela 22) ao mesmo cruzamento – grupo de fatores “escola” e “correção” – para o pronome lexical, essa situação fica ainda mais evidente: Escola 1 Variante pronome lexical Escola 2 Nº % Nº % Corrigidos 25 / 40 62% 2/6 33,3% Não corrigidos 6 / 265 2% 8 / 347 2,3% Total de pronomes lexicais 31 / 305 10% 10 / 352 3% Tabela 22. Resultados do cruzamento entre os grupos de fatores “escola” e “correção” sobre o emprego do pronome lexical. Do total de correções ao acusativo anafórico verificadas no corpus (46, em valor absoluto), quase todas foram conferidas pela escola 1, havendo 40 dados corrigidos em suas redações e somente 6 nas redações da escola 2. A julgar pelas ocorrências corrigidas e pelas entrevistas com as respectivas professoras (analisadas anteriormente na seção 4.1.3), esse resultado mostra não uma coerção menos intensiva da professora 2, mas sim que as redações de seus alunos suscitaram menos usos que demandavam correção. Dos 40 dados corrigidos da escola 1, mais da metade se referiu a pronomes lexicais (62%, que correspondem a 25 dados). Além disso, do total de 41 dados de pronomes lexicais, 31 ocorreram nas redações da escola 1 (dos quais 25, portanto, foram corrigidos). Nas redações da escola 2, houve apenas 10 ocorrências de pronome lexical, das quais 2 foram corrigidas, expostas em (37) e (38): (37) Um homem negro viu Sheldonᵢ doente e carregou eleᵢ até uma caverna. (Redação 220, escola 2, sexo masculino; corrigido para carregou-o) (38) Ele mergulha até encontrar a bolsaᵢ, pega elaᵢ e volta até a superfície com a bolsa em sua mão (Redação 214, escola 2, sexo feminino; corrigido com termo ela sublinhado). 166 Conforme mostrou a tabela 20, no início desta seção, do total de 41 dados de pronome lexical encontrados no corpus, 14 não foram corrigidos e, destes, a maioria ocorreu em estruturas de “dupla função”, seja com um predicativo, como em (39), seja com um verbo no infinitivo (40), ou em construções em que o predicador verbal selecionava um complemento oblíquo além do objeto direto (41): (39) Thomasᵢ morava no Rio de Janeiro com seus pais. Seus amigos chamavam eleᵢ de nerd, porque ele não conseguia viver um segundo sem internet. (Redação 051, escola 1, sexo masculino). (40) Eleᵢ apanhava e não podia fazer nada, porque seu pai não deixava eleᵢ praticar violência. (Redação 131, escola 1, sexo masculino). (41) Até que a avó de Joanaᵢ escreveu elaᵢ em um concurso de natação. (Redação 097, escola 1, sexo masculino). As demais ocorrências não corrigidas, ainda que apresentadas em estruturas S V OD, nas quais a saliência do ele acusativo fica mais evidente, referiam-se a antecedentes não só animados como também humanos, contexto que favorece o uso do pronome lexical (cf. seção 4.2.2.2, tabela 18). A única ocorrência não corrigida com antecedente inanimado encontrada no corpus demonstrou certa ênfase ao objeto, exposta em (42): (42) Hazelᵢ começou a chorar e ficou muito triste, nada alegrava elaᵢ. (Redação 105, escola 1, sexo feminino). Em vista das apreciações conferidas com relação às formas variantes de retomada anafórica do OD de terceira pessoa averiguadas no corpus, sobretudo no tangente à análise das correções realizadas pelas professoras, é possível promover algumas ponderações acerca do ensino de Português, especialmente no que concerne ao tratamento dispensado ao fenômeno gramatical variável aqui em abordagem. Assim, a última seção deste capítulo, a seguir, busca articular algumas reflexões para o ensino a partir da interpretação dos resultados alcançados com esta pesquisa, o que, em última análise, poderá fundamentar propostas pedagógicas a serem futuramente testadas em sala de aula. 167 4.4 Análise dos resultados: reflexões para o ensino As análises anteriormente desenvolvidas permitem refletir sobre algumas questões relevantes para o ensino de Português, sobretudo no que se refere à abordagem do acusativo anafórico de terceira pessoa como fenômeno gramatical variável. Ao que tudo indica, no âmbito escolar, a noção de fenômenos gramaticais encontra-se ainda distanciada da abordagem de fenômenos variáveis, os quais, na realidade, são parte intrínseca do sistema gramatical da língua. A esse respeito, embora as professoras entrevistadas exponham a carência de um tratamento mais efetivo com os componentes gramaticais no material didático fornecido pela SME, a análise de suas entrevistas sugere que a compreensão gramatical por elas almejada para o ensino não ultrapassa o conhecimento de uma norma linguística idealizada. O exame sociolinguístico variacionista das redações escolares, isoladamente, corrobora os estudos anteriores sobre o tema, evidenciando que cada uma das variantes apreciadas encontra certa produtividade em determinados contextos de uso, tal como explicitado na seção 4.2.2. No entanto, a julgar pelas considerações conferidas pelas professoras em entrevista, persiste, no ambiente do ensino, uma concepção ainda redutora e polarizada da variação linguística, a partir da qual se acaba por restringir o estudo da língua à abordagem de apenas duas estratégias de retomada do acusativo anafórico: (i) o clítico acusativo, marcado positivamente no domínio escolar, e (ii) o ele acusativo, relacionado a contextos orais e de maior informalidade, marcado negativamente no espaço da escola. O quadro a seguir sintetiza os resultados alcançados nos três tópicos de análise desta pesquisa no que tange às variantes clítico acusativo e pronome lexical, consideradas “marcadas” ou “não neutras” para o fenômeno em questão. 168 Variantes Menção Considerações Contextos ling. de Julgamento das “marcadas” nos nas entrevistas maior produtividade professoras – status do OD materiais anafórico de didáticos da correção Retomada de 3ª p. Clítico acusativo antecedentes: Animados; sintagmas Registro formal; nominais; Não aceito em 11 modalidade estruturalmente casos de “usos escrita. próximos; de função irregulares do sintática diferente; em acusativo anafórico estruturas SVOD. de 3ª p.” Pronome lexical X37 Amplamente aceito. Específicos; animados; Registro em estruturas de informal; “dupla função”; Não corrigido em 14 modalidade oral. construções SVOD + casos de estruturas comp. oblíquo; ou de “dupla função”; SVODOI. construções SVOD + Amplamente corrigido. comp. oblíquo; ou SVOD com antecedentes humanos. Quadro 8. Síntese dos resultados das análises dos materiais didáticos, entrevistas e redações escolares sobre as variantes clítico acusativo e pronome lexical. Embora os alunos, no 9º ano do Ensino Fundamental, tenham utilizado expressivamente o clítico acusativo em suas redações, apesar dos poucos porém qualitativamente significativos casos de usos irregulares dessa variante (cf. Seção 4.2.3), o quadro evidencia ainda mais a ideia dicotômica das normas linguísticas nas considerações concedidas pelas professoras em entrevista. Dentro dessa perspectiva, é possível questionar 37 Ressalta-se que houve uma única menção à variante pronome lexical no manual do professor da obra Vontade de Saber Português como estratégia opcional de retomada do acusativo anafórico de terceira pessoa, apenas em uma sugestão de resposta a determinado exercício (conforme explicitado no Capítulo 4), sem quaisquer alusões a normas ou contextos de uso. 169 em que medida se dá a aprendizagem do acusativo anafórico como fenômeno variável por parte de seus alunos. Será que esses estudantes compreendem o emprego do clítico acusativo dentro do continuum de variação em que se processa o uso da língua? Ou basta que eles saibam utilizar essa variante para que tenham atingido o domínio linguístico esperado pela escola? Não se questiona, aqui, a necessidade de levar o aluno ao conhecimento das variantes mais formais, principalmente em se tratando da modalidade escrita, haja vista a atuação escolar em prol da compreensão de estratégias mais distantes do vernáculo brasileiro, o que inclui o ensino do clítico acusativo. Entretanto, a compreensão das normas urbanas de prestígio, nos termos de Faraco (2008), mesmo em contextos escritos e de maior formalidade, não implica (ou não deveria implicar) uma visão estereotipada da língua, como se houvesse um Português correto, escrito e formal, ensinado na escola, enquanto todo o espectro da variação abarcaria apenas os usos “possíveis mas não corretos” da modalidade oral e do registro informal, os quais fazem parte do cotidiano dos alunos, mas não fariam parte da “língua da escola”. Se as professoras demonstram uma visão polarizada da língua, no sentido de que haveria uma norma “correta” e outras possíveis fora do ambiente escolar, é muito provável que seus alunos entendam a variante considerada padrão como “A” forma correta da Língua Portuguesa, o que excede o status de forma ideal da norma padrão. Essa visão, por sua vez, não conduz a um conhecimento verossímil sobre a língua. Assim, o uso do clítico acusativo por parte dos estudantes se manifesta, de fato, como uma condição necessária e essencial aos objetivos da escola – considerando os propósitos conferidos nas orientações dos PCN (1998) e nas contribuições de Vieira (2015) acerca do ensino de Português (citados no Capítulo 2) –, mas não configura uma condição suficiente para tanto. Em outras palavras, a compreensão do corpo discente sobre o emprego do pronome clítico indica, realmente, uma ampliação de seu domínio linguístico, mas não revela, para além desse indício, uma melhor compreensão sobre a língua estudada. Nesse sentido, considera-se bastante válido o desenvolvimento de propostas pedagógicas que visem ao ensino de formas linguísticas aprendidas pelos alunos com maiores dificuldades, como o caso do clítico acusativo. Embora o fato de ser esta a variante considerada padrão remeta a um plano de normas idealizadas (cf. as considerações de Faraco (2008) apontadas no Capítulo 2), seu uso se verifica, efetivamente, em gêneros que exigem 170 alto grau de monitoração, escritos ou, em raras ocorrências, até mesmo orais, o que evidencia seu emprego, ainda, em um plano de normas praticadas/de uso. A compreensão do clítico acusativo via escolarização, portanto, não parece inapropriada. Por outro lado, a fim de não comprometer a noção de variação e os conceitos de norma, as demais variantes também deveriam ocupar espaço no âmbito do ensino. Ao considerar os três eixos propostos e sistematizados por Vieira (2015), explicitados no Capítulo 2 desta dissertação, certas questões se mostram claramente relevantes ao contexto do ensino: (i) Compreender e discutir as formas pronominais utilizadas na retomada anafórica do acusativo de terceira pessoa, promovendo atividades que envolvam a participação ativa do alunado no desenvolvimento de um ensino de gramática reflexivo – “eixo 1”. Sem dúvida, cumprir os propósitos no âmbito desse “eixo 1: gramática e atividade reflexiva” implicaria desenvolver estratégias linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas (Franchi, 2006) que levassem o aluno a trazer ao plano da consciência o conhecimento que têm acerca das noções de pronome, pessoa e caso (predicação, sobretudo transitiva), por exemplo. É nesse campo que o conhecimento gramatical pode ser ativado e, até mesmo, explicitado, visto que dele depende a compreensão do fenômeno e o consequente desenvolvimento da capacidade intelectual do aluno. Trata-se de conceber o aluno como um pesquisador em potencial, privilegiado por ter, em sua própria consciência linguística, a intuição necessária para a formalização do conhecimento de que precisam. (ii) Identificar e distinguir contextos de uso das variantes para o fenômeno em estudo já descritas na literatura, de forma a desmistificar a noção dicotômica e polarizada das normas linguísticas, a qual acaba por estereotipar a concepção de variação da língua – “eixo 2”. Relacionar conhecimento gramatical e o estabelecimento de regras variáveis, sistematicamente organizadas e encaixadas linguística e socialmente (Weinreich, Labov, Herzog, 1968), é o grande desafio desse “eixo 2”. Nesse plano, os resultados do presente trabalho, bem como os de estudos anteriores, constituem material fundamental para a elaboração de atividades – igualmente linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas –, não só para promover o reconhecimento das variantes do acusativo anafórico de terceira pessoa, mas também para trazer ao plano da consciência cognitiva os contextos de utilização, bem como o estatuto social de cada uma delas nos domínios e gêneros em que são empregadas. 171 Para auxiliar nessa tarefa, utilizar a noção de contínuos de variação, proposta por Bortoni-Ricardo (2004, 2005), parece ser estratégia produtiva a um ensino que não pretende dicotomizar a complexa situação que envolve uma regra variável, no plano das relações entre escrita-fala; monitorado-não monitorado; rural-urbano. Nesse sentido, cabe destacar que diversos autores – Gorski; Coelho (2009), Cyranka (2013), Gorski; Freitag (2013), Martins; Vieira; Tavares (2014), dentre outros – têm apresentado material relevante para o desenvolvimento das estratégias didáticas eficientes. Ademais, trabalhos diversos no âmbito do Mestrado Profissional em Letras no país têm se esforçado por desenvolver propostas de intervenção pedagógica (Xavier (2015), sobre o acusativo de terceira pessoa, e Souza (2015), sobre a indeterminação do sujeito, por exemplo) que contemplem um trabalho sistemático com regras variáveis. (iii) Reconhecer e empregar as variantes em questão na construção dos sentidos de textos trabalhados e/ou produzidos em sala de aula, aprimorando a coesão textual ao longo da narração de acontecimentos ou da exposição de ideias – eixo 3. É no âmbito desse “eixo 3” que se espera conseguir integrar gramática e texto. Sem dúvida, por se tratar de fenômeno que abrange formas de construção da rede referencial do texto, a desejável relação gramática e produção de sentidos não só é possível, como absolutamente necessária. Trata-se de ingrediente que deve ser trabalhado em prol da promoção de formas de garantir a coesão textual, de forma a um só tempo variável e precisa. Em vista das considerações feitas, julga-se necessário que o aprimoramento das habilidades linguísticas do alunado seja desenvolvido de modo congruente a uma concepção mais realista do sistema da língua e, por conseguinte, da variação linguística, como categorias intrinsecamente relacionadas. Em suma, ao que tudo indica, falta, para o âmbito do ensino, compreender com mais nitidez o fato de que os fenômenos gramaticais são variáveis, e que, portanto, estudar a língua não se restringe ao isolado propósito de promover variantes de prestígio, mas se estende a envolver, em última instância, a complexidade da noção de regra variável, ainda que dentro dos limites do nível de escolaridade com que se lida. Para tanto, o trabalho insistentemente indutivo, para a construção do conhecimento necessário, numa prática insistente de gramática reflexiva, aliado às mais variadas práticas sociais da linguagem – em gêneros orais e escritos diversos, em situações sociocomunicativas variadas – constitui um desafio que não se pode evitar e que precisa ser perseguido. 172 CONSIDERAÇÕES FINAIS Deve haver algo mais no ensino de ciência do que passar em exames, mas esse algo a mais não pode ser um outro objetivo prático (ganhar as graças do professor ou construir um computador mais sofisticado). Esse algo a mais é o que sentimos quando apreciamos o que sabemos hoje em dia sobre o universo, por exemplo, quando de repente nos damos conta de que somos poeira estrelar (literalmente) girando a 1.675 km/h (velocidade de rotação da Terra), viajando ao redor do sol a 107.000 km/h (velocidade de translação); ou quando descobrimos que o Himalaia resultou do movimento das placas tectônicas da Índia em direção ao Tibete; ou quando vemos que as línguas, embora variem enormemente, são altamente regulares e sua variação é regrada e não tem nada de aleatório. A ciência serve para nos deslumbrarmos com a natureza. (BASSO & OLIVEIRA, 2012, p. 19) A pesquisa aqui desenvolvida buscou correlacionar as descrições linguísticas realizadas no âmbito acadêmico ao contexto do ensino de Português, mais especificamente no tangente às estratégias de retomada anafórica do acusativo de terceira pessoa dentro do espectro da variação e da complexidade de normas da língua. Para tanto, investigaram-se os materiais indicativos dos três agentes aqui considerados como diretamente influentes no ambiente escolar: (i) a orientação dos materiais didáticos utilizados em aula, (ii) a perspectiva das professoras sobre o tema (conferida em entrevista), e (iii) a produção textual de seus respectivos alunos. Nesse propósito, tanto as análises de base qualitativa (materiais didáticos e entrevistas) quanto a de cunho sociolinguístico variacionista (redações escolares) permitiram um cruzamento de apreciações críticas, de modo que o fenômeno aqui em estudo – o acusativo anafórico de terceira pessoa – no âmbito do ensino pode ser compreendido de maneira mais abrangente. Os materiais didáticos aqui investigados, de modo geral, instruem os alunos a empregarem o clítico acusativo como sendo a forma única (ou considerada correta e, por esse motivo, destacada exclusivamente nas obras) de retomada do objeto direto de terceira pessoa, tal como se supôs dentre as hipóteses desta pesquisa. Mais do que isso, já contrariando as expectativas, não se verificou qualquer alusão às demais variantes nem mesmo em adendos que pudessem referir-se a uma linguagem informal/coloquial. O tratamento dispensado ao fenômeno gramatical em questão, nas obras averiguadas, não abarca seu estatuto variável. O 173 tema da variação linguística, ao menos no que concerne ao referido fenômeno, parece totalmente desarticulado do conceito de regras variáveis do sistema (gramatical) linguístico. A análise das entrevistas realizadas, por sua vez, demonstrou que, na perspectiva das professoras entrevistadas, as variantes alternantes à forma com clítico poderiam ser aceitas apenas em contextos de maior informalidade, os quais são por elas diretamente relacionados à modalidade oral da língua. Dessa forma, ainda se verifica, por parte das professoras, uma visão polarizada da variação linguística para o contexto do ensino. O espaço da variação é reservado a uma “fala coloquial”, ao passo que a escrita mais formal, focalizada na escola, demandaria os usos “corretos”, com uma suposta norma culta que, na realidade, corresponde a uma forma única segundo um padrão idealizado, e não às normas/variedades cultas efetivamente em uso. Assim, pôde-se constatar uma visão claramente dicotômica das normas, distribuídas em dois planos: de um lado, as variantes linguísticas legitimadas no registro coloquial e na modalidade oral; de outro, a forma padrão ensinada e almejada para o registro formal e a modalidade escrita. No que se refere à produção escrita dos alunos, verificou-se a mais alta ocorrência na soma de SN anafóricos (42,6% do total de acusativos anafóricos coletados). Contudo, ao detalhar o controle dessa variante consoante às formas SN idêntico, SN semelhante e SN sinônimo, foi possível averiguar que seus usos, apesar de amplamente aceitos pelas professoras, não alcançam o intuito de evitar a repetição do termo antecedente, já que a maioria de SN anafóricos utilizados se fez por meio de sintagmas nominais idênticos ou semelhantes (se somados, 223/280 expressões nominais anafóricas). Em segundo lugar, houve um emprego expressivo do clítico acusativo (29,8% do total de acusativos anafóricos), o qual, no entanto, foi a segunda variante mais corrigida pelas professoras, manifestando-se em alguns casos de usos irregulares (11, em valor absoluto), os quais, embora não sugiram um índice tão elevado, se revelam significativos em função do teor qualitativo apreciado em tais ocorrências. Via de regra, esses usos revelam o domínio parcial do contexto de emprego acusativo. O ele acusativo, por sua vez, ratificando o forte estigma associado a seu emprego, foi a estratégia predominantemente corrigida pelas docentes (27/41 dados), ainda que tenha se verificado em uma frequência de uso muito pouco expressiva (6,2% do total de acusativos anafóricos), salvo poucas ocorrências com estruturas sintáticas complexas em que o elemento anafórico exerce “dupla função” ou em que seu predicador verbal seleciona, além do 174 acusativo, algum complemento oblíquo – contextos que favoreceram o emprego do pronome lexical. Seu índice de uso superou apenas o percentual do pronome demonstrativo (2,1%), utilizado somente na retomada de antecedentes proposicionais. Já o objeto nulo obteve um percentual medianamente significativo (19,2%), sendo a terceira estratégia mais utilizada pelos estudantes e, além disso, raramente percebido/corrigido pelas professoras, a exceção de poucas (5/126) ocorrências na retomada de antecedentes com os traços [+ animado, + específico], que configuram, não por acaso, os contextos que podem ainda restringir o emprego da categoria zero para o acusativo no PB, segundo a literatura, sobretudo o contexto de antecedente [+ específico]. No mais, cabe observar que, em se tratando do exame de redações escolares, é comum que o uso do clítico acusativo seja objetivado, tendo em vista o caráter escrito e de maior monitoração dessa circunstância avaliativa. Embora o gênero textual selecionado para a feitura das redações tenha sido um pequeno conto, o qual não exige, por si só, um grau de formalidade muito elevado, a situação de avaliação no ambiente escolar, especialmente na disciplina língua portuguesa, provoca maior preocupação nos estudantes, o que proporciona um caráter de maior formalidade a esta produção discente. Apesar disso, a retomada exercida por meio de um pronome clítico se mostrou pouco eficaz em contextos nos quais o antecedente se encontrava mais distante estruturalmente do acusativo anafórico, conforme explicitado na seção 4.2.2.1. Nesses casos, uma expressão nominal acionaria de maneira mais rápida e pontual o termo antecedente, esclarecendo com mais eficiência a referência anafórica. No entanto, vale destacar, a partir do observado na análise das entrevistas, que o SN anafórico (bem como o objeto nulo) sequer é mencionado no contexto escolar como forma variante do OD anafórico de terceira pessoa. Visando a uma compreensão mais eficiente acerca do fenômeno gramatical variável em questão, ressalta-se que todas as variantes averiguadas podem e devem ocupar espaço no ambiente escolar, não apenas para promover, com base em uma abordagem descritiva (construída reflexivamente e preferencialmente de forma indutiva, a partir de atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas), o conhecimento da língua, mas a fim de contribuir para um estudo mais realista e inclusive mais prazeroso, tendo em vista a extensa gama de descobertas que o alunado pode alcançar com a intermediação de seu professor. É cabível, assim, a promoção de um ensino de gramática mais produtivo, inserido nas práticas 175 sociais da linguagem, conforme propõem os PCN, ainda que sua abordagem demande uma preparação (e um preparo intelectual constante) de maior complexidade. Ao que tudo indica, ainda que de modo não intencional, a escola acaba por reforçar uma cultura do erro e, por conseguinte, da exclusão. Inversamente, compete aos professores de Língua Portuguesa, a tarefa de abraçar a pluralidade das normas linguísticas em sala de aula, envolvendo o estatuto das regras variáveis. Nesse percurso, caberia ao alunado estudar e compreender, de forma ativamente participativa, no decorrer do processo de ensinoaprendizagem, a exuberância dos processos de variação e mudança linguística, tal como, no caso, para o fenômeno do acusativo anafórico de terceira pessoa. Assim, seria possível chegar a um trabalho mais abrangente com a língua materna, no qual o falante-aluno conseguisse ponderar sobre as variantes por ele utilizadas e o domínio de novas formas, incluindo-se, nesse processo, a compreensão das particularidades de tais variantes, seja no sentido da estruturação social que as envolve, seja no conhecimento das especificidades linguísticas que carregam. Ao partir de formas mais próximas, como o pronome lexical e o SN anafórico, e refletir sobre o emprego dessas variantes, a compreensão do clítico acusativo na retomada do OD de terceira pessoa poderia ser mais facilmente acessível. Para o ensino do objeto direto, em sala de aula, além de trabalhar as características que o definem como categoria dentro do sistema da língua (como papel temático de tema ou paciente; primeiro argumento interno do predicador verbal; caso acusativo), faz-se necessário trabalhar, também, suas formas variantes de representação, de forma a contemplar também o aprendizado do clítico acusativo, mas não como a estratégia correta, para além de seu caráter ideal. Nesse sentido, a mudança desejada para o âmbito do ensino, no que tange ao fenômeno gramatical variável aqui em estudo, não se limitaria à (re)formulação das orientações de materiais didáticos, mas se estenderia, especialmente, à atuação e à própria formação do corpo docente, que permitiriam fazer do aluno um co-partícipe da construção do conhecimento, um potencial pesquisador, com capacidade de observar a língua em uso, chegar a conclusões e sistematizar seu conhecimento. Assim, munido de consciência cognitiva sobre a matéria linguística, entende-se que a escola não só colaboraria com o desenvolvimento intelectual do aluno na área dos conhecimentos linguísticos, mas também promoveria sua habilidade no reconhecimento (plano da leitura) e no manuseio (plano da produção textual) das variantes linguísticas. 176 Espera-se, por fim, que os resultados e as reflexões desta pesquisa possam, além de ter contribuído com os estudos científicos sobre o preenchimento do objeto direto e sobre a realidade escolar (com destaque para a questão da avaliação do professor na intervenção no texto do aluno), servir de subsídios para a elaboração de estratégias para a prática pedagógica. Uma prática que, a um só tempo, colabore com a formação dos alunos e com o trabalho do professor. Fica o convite. 177 REFERÊNCIAS AVERBUG, Mayra C. G. Aquisição em português brasileiro: o parâmetro do objeto nulo. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2008. (Tese de Doutorado). _____. 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(Dissertação de Mestrado Profissional - PROFLETRAS). 182 ANEXOS ANEXO A Entrevista – 9º ano do Ensino Fundamental por Juliana Magalhães Catta Preta de Santana Recado da entrevistadora: Olá! Esta entrevista é parte de uma pesquisa em desenvolvimento sobre o ensino de Português no Rio de Janeiro. Agradeço MUITO sua colaboração, que é de suma importância para este projeto. Em condição de estudante de Letras da UFRJ, busco, com este trabalho, compreender melhor o ensino da nossa língua em nossas escolas. Muito obrigada pela compreensão em nos conceder essa entrevista! Sua ajuda fará toda a diferença em nosso trabalho! Obs.: Nem seu nome, nem o nome da escola onde leciona constarão como dados desta pesquisa. Busco mesmo alcançar a sua opinião como professora sobre o ensino de Português, dentro de nossas condições sociais. 1. Você utiliza algum livro didático para suas aulas de Língua Portuguesa? Qual? Em que medida o utiliza: em paralelo há outros materiais de apoio ou usa o livro de forma exclusiva, seguindo estritamente suas orientações? Por quê? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 2. Sobre a apostila de apoio pedagógico elaborada pela Secretaria Municipal de Educação – RJ, a) você a utiliza em sala de aula? Qual a sua opinião sobre esse material? Você acha que atende às necessidades do aluno de Língua Portuguesa? Por quê? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ b) O que você acha da abordagem gramatical feita na referida apostila? Está de acordo com ela ou você acha que deveria haver uma abordagem mais específica do componente gramatical? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 183 c) O que você acha da abordagem de fenômenos variáveis feita na referida apostila? Está de acordo com ela ou você acha que deveria haver uma abordagem mais normativa desses fenômenos? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 3. Considerando a narrativa abaixo como feita por um de seus alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, o que você corrigiria no texto? Poderia apontar no texto tais correções? Cinderela era uma menina doce e gentil. Vivia com seus pais em uma fazenda muito bonita, rodeada de naturesa. Ela amava os seus pais mais do que tudo nessa vida. Um dia, sua mãe ficou doente e não aguentou. Foi um momento muito triste para Cinderela e seu pai. Depois de um tempo, ele se casou com uma moça malvada mas que fingia ser boa para ele. A Cinderela teve que aceitar ela e se acostumar com os caprichos dela. A moça malvada ainda tinha duas filhas, e elas não era nada legais com a Cinderela. Quando o seu pai morreu, ela ficou sendo a empregada da casa e não tinha direito de nada, e também tinha que dar seu quarto para as irmãs novas e dormir no porão. Ela era a única que tinha que fazer todos os afazeres da casa, arrumar os quartos e limpar também, lavar a louça, fazer a comida etc etc etc. Ela fazia tudo. Até que chegou o dia do baile do príncipe do reino e sua madrasta não deixou ela ir. Eles já tinham se conhecido antes e estavam apaixonado um pelo outro. A fada madrinha da Cinderela apareceu e fez um vestido lindo e maravilhozo para ela ir no baile com uma carruagem de abóbora que ela transformou os animais. Mas ela tinha voltar antes da meia noite. Quando deu meia noite ela teve que correr para ir embora e deixou seu sapato de cristal cair. O príncipe pegou e depois conseguiu achar a Cinderela porque só cabia no pé dela. Sobre as correções apontadas acima, você teria alguma observação a fazer? Se sim, qual? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 184 4. Numa construção como “O bebê ficou doente, então a mãe levou ele ao médico.”, escrita por seus alunos, você corrigiria algo? O quê? Por quê? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 5. No livro didático de William Cereja e Thereza Magalhães (2012), há como exercício proposto, em dado momento, a seguinte questão (aqui, reduzida): Nas frases a seguir, alguns pronomes estão empregados em desacordo com a norma padrão. Reescreva as frases empregando tais pronomes de acordo com essa variedade. a) O livro não está comigo. Emprestei ele para a minha prima. e) Eu não vi elas na festa. Será que elas não foram convidadas? Em sala de aula, ao corrigir este exercício, você apenas informa as respostas fornecidas como corretas no livro do professor ou também aceita outras possíveis respostas dadas pelos alunos? Se aceita, quais respostas você validaria? Por quê? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 6. Como você vê essa norma-padrão empregada no livro no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa, em especial com os alunos do 9º ano? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 7. Marque abaixo qual ou quais formas seus alunos utilizam com mais frequência: ( ( ( ( ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora guardou para mim. ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora o guardou para mim. ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora guardou ele para mim. ) Esqueci meu caderno na escola, mas a professora guardou-o para mim. Como você avalia as formas mais utilizadas pelos seus alunos? Por quê? ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ 185 ANEXO B Livro didático Vontade de Saber Português – 9º ano do Ensino Fundamental, de Romiere Alves e Tatiane Brugnerotto (2012). 186 187 ANEXO C Caderno do Futuro – 9º ano do Ensino Fundamental, do Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas (IBEP). 188 189 190 191 192 193 194 195 196 197 198 199 200 201 202 203 204 205