35 Aula: 22/4/2008 Disciplina: Introd. à Filosofia Curso: C. Sociais Docente: Luiz Paulo Rouanet Santo Agostinho (354-430 d.C.) Santo Agostinho foi o grande sistematizador da filosofia cristã, nos primeiros séculos do cristianismo. Nasceu no momento de dissolução do Império Romano do Ocidente, que se concretizou com a invasão de Roma por Alarico, em 410 d.C. O período pode ser caracterizado como o fim da Antiguidade e o início da Idade Média. Tendo vivido num momento de transição, portanto, Sto. Agostinho foi capaz de efetuar uma síntese entre a filosofia pagã, basicamente, a dos gregos, Platão (sobretudo) e Aristóteles, por intermédio dos neoplatônicos, entre os quais Plotino (203/204-269/270 d.C.) e a emergente filosofia cristã, via Orígenes, os evangelhos sinópticos (João, principalmente), São Paulo, passando pelos oradores Romanos, Sêneca e Cícero. De sólida formação clássica (mas com deficiência, segundo ele próprio admite, no conhecimento da língua grega), quando finalmente se converte, por volta dos 32 anos, vai utilizar essa bagagem intelectual para sistematizar o pensamento cristão. Professor, deixa o magistério para se dedicar à meditação e à elaboração da filosofia cristã, assumindo posteriormente, a contragosto, cargos na estrutura eclesiástica, entre os quais o de Bispo de Hipona, cidade na África. Lecionou em Cartago (de onde saiu devido aos "alunos turbulentos"), depois em Roma e em Milão. Narra este e outros assuntos em As Confissões, escrito por volta de 397. Após a invasão de Roma pelos bárbaros, em 410, escreve a obra A Cidade de Deus, onde contrapõe a este mundo materialista e pagão, o mundo espiritual e refúgio seguro do Reino de Deus. Seu primeiro contato com a filosofia ocorre através da leitura de uma obra de Cícero, hoje perdida, intitulada Hortensius, que consiste em um elogio da filosofia. Teve, 36 nessa época, preocupações mais "mundanas", como a obrigação de anhar o próprio sustento, devido ao falecimento do pai. Torna-se professor. Teve também uma ligação da qual resultou um filho, Adeodato, falecido ainda na adolescência (personagem do diálogo De magistro - Do mestre). Inicia sua carreira de professor em Tagaste (África), onde funda uma escola, transferindo-se depois para Cartago. Lá, desencanta-se com os alunos, e mira para a Itália, onde irá lecionar, sucessivamente, em Roma e em Milão. Em Cartago, A maior parte dos alunos (...) fazia os cursos apenas para cumprir obrigações familiares e sociais e, conseqüentemente, não se interessava muito pelas aulas. Cansado de ser irritado por uma juventude turbulenta, depois de quase dez anos Agostinho resolveu mudar para Roma.1 O próprio Agostinho descreve do seguinte modo as razões que o impeliram a Roma: O motivo principal e quase único assentava em ouvir dizer que os rapazes aí estudavam mais sossegadamente. (...) Em Cartago, (...) a liberdade dos estuantes é vergonhosa e destemperada. Precipitam-se cinicamente pelas escolas adentro e com atitude quase furiosa perturbam a ordem que o professor estabeleceu como necessária ao adiantamento dos alunos. Com uma insolência incrível, cometem mil impropérios que deviam ser punidos, se o costume os não patrocinasse. 2 Essa motivação inicial acaba tendo um efeito benfazejo sobre a carreira do jovem professor. Em Cartago, tomara contato com a doutrina dos maniqueus, que dividem o mundo em princípios contrários, governados pelo bem e pelo mal. Tendo porém se desiludido com esse pensamento já em Cartago, vai encontrar na Itália elementos para refutar os maniqueus, com apoio do pensamento cristão. Particularmente decisiva será a 1 "Vida e Obra", in Agostinho, Santo, Confissões; Do mestre, 2a. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores), p. VIII. 2 Agostinho, Confissões, op. cit., Livro V, cap. 8, p. 79. 37 influência de Sto. Ambrósio, a cuja direção estará submetido ao ser nomeado professor de retórica em Milão. Por volta dos 32 anos, como já foi afirmado, ainda "pecador" e errante, tem uma revelação, uma "voz" tendo-lhe apontado uma passagem de São Paulo: "Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e emulações, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis da carne com demasiados desejos".3 Depois disso, afasta-se do magistério, passando a refletir e a sistematizar o pensamento cristão. Aspectos da doutrina de Sto. Agostinho Segundo Etienne Gilson, "é um fato capital para a compreensão do agostinismo que a sabedoria, objeto da filosofia, sempre se confundiu, para ele, com a beatitude [i.é, a felicidade]. O que ele busca é um bem tal que sua posse satisfaça todo desejo e confira, por conseguinte, a paz".4 Neste ponto, portanto, e talvez somente nesse ponto, Agostinho se aproxima de Aristóteles, para quem, como vimos, o Supremo Bem se identifica com a felicidade, que é o objetivo de todo homem. Nesse sentido, a filosofia de Sto. Agostinho também é eudemonista (ou seja, que põe a felicidade como fim). Segundo Gilson, ainda, o que interessa a Agostinho, principalmente, "é o problema de seu destino; procurar conhecer-se, para saber o que é preciso fazer para ser melhor e, se 3 Citado em "Vida e Obra", op. cit., p. VI; cf. Rm 13,13. 4 Gilson, E., Introduction à l'étude de saint Augustin, Paris, Vrin, 1943, p. 01. 38 possível, para estar bem, eis para ele toda a questão".5 Vemos também que Agostinho se inspira em Sócrates: é necessário, em primeiro lugar, conhecer-se a si mesmo. Agostinho considera, como os estóicos, que a filosofia deve ser voltada para a prática. "Pode haver, e há, em Sto. Agostinho, uma grande abundância de especulação, mas ela visa sempre a fins práticos e seu ponto de aplicação imediata é o homem."6 Outro aspecto a ser destacado, em Agostinho, é sua preocupação com a busca de realização concreta da felicidade. Pode-se ver nisso, também, uma preocupação social, mas seria um anacronismo atribuir tal implicação a Sto. Agostinho. Este visava sobretudo ao indivíduo. Gilson resume do seguinte modo o seu raciocínio: "todo homem que não é feliz é miserável e (...), por conseguinte, aquele que não tem o que deseja é miserável. O problema da beatitude consiste, portanto, em saber o que o homem deve desejar a fim de ser feliz, e como pode adquiri-lo".7 Que a felicidade é um fim desejável não constitui, portanto, problema. O mais difícil é saber o que desejar e como fazer para alcançá-lo. Não se trata, porém, da felicidade a qualquer custo, ou por qualquer meio. É importante que ela esteja atrelada à verdade, que é sinônimo de uma vida reta, justa: "ainda que Agostinho deseje a verdade em vista da felicidade, ele jamais concebeu a felicidade como possível independentemente da verdade. A posse do verdadeiro absoluto é a condição necessária da beatitude".8 A vida reta e a obediência, ou temor a Deus, se equivalem e correspondem: "todo homem que faz o Deus quer, vive bem, e todo homem que vive bem faz o que Deus quer".9 5 Ibidem. 6 Ibidem. 7 Idem, p. 02. 8 Ibidem. 9 Ibidem. 39 A fé e a razão em Sto. Agostinho, encontram-se intimamente relacionadas. Diferentemente de Tertuliano, para quem a fé e a filosofia eram inimigos, e que podia afirmar "Creio ainda que seja absurdo (credo quia absurdum)", a filosofia e a teologia se complementam em Agostinho: "Crer para compreender, compreender para crer" (credere ut intelligere, intelligere ut credere). Como ele dirá, não compreendo em tudo o que creio, mas creio em tudo o que compreendo. Logo, a compreensão auxilia a fé. Mas a compreensão, no entanto, ocupa um papel de preparação. Nas palavras de Gilson: a especulação racional, que nada mais é, no agostinismo, senão a condução perfeita da vida, desempenhará o papel necessário, mas unicamente preparatório, de um guia da alma em direção à contemplação mística, , mero esboço, por sua vez, da beatitude eterna e, uma vez que essa doutrina se orienta inteiramente para a união da alma a Deus, ela não poderia ter outro centro a não ser Deus.10 E Gilson acrescenta: desde o início, o Deus agostiniano aparece com seu caráter distintivo de Deus que se dá a conhecer de modo assaz evidente para que o universo não possa ignorá-lo, mas que só se deixa conhecer na medida do necessário para que o homem deseje possuí-lo ainda mais e se esforce para procurá-lo.11 Outros pontos a destacar são a sua precedência sobre Descartes na obtenção da primeira certeza: eu sou e sei que sou. Mesmo que duvide de tal afirmação, ao fazê-lo, já demonstro minha existência. Esta é portanto a primeira certeza. A partir daí, pela razão, posso chegar até o conhecimento do supremo bem, ou Deus. Até o próprio cogito (penso), 10 Idem, p. 10. 11 Idem, p. 11. 40 da famosa frase de Descartes "Penso, logo existo" (cogito ergo sum) é objeto da reflexão de Agostinho.12 Cabe destacar ainda que Sto. Agostinho não lia a Bíblia de modo literal, seguindo nisso a seu mestre Sto. Ambrósio. Como diz Gilson, em outra obra, A Filosofia na Idade Média, "será ouvindo o bispo de Milão [Ambrósio] comentar alegoricamente a Bíblia que Agostinho descobrirá que a letra mata e o espírito vivifica".13 Para terminar, é preciso destacar o platonismo de Agostinho, que ele foi obrigado a adaptar para adequá-lo ao cristianismo. É importante notar que Agostinho não compartilha com Platão a visão negativa em relação à matéria: "Por mais profundamente que tenha sofrido a influência do platonismo, Agostinho não admitiu um só instante que a matéria fosse ruim, nem que a alma estivesse unida ao corpo em castigo ao pecado".14 Nas palavras de Sto. Tomás, segundo Gilson, a filosofia de Agostinho se apresenta como "um esforço para 'seguir os platônicos tão longe quanto a fé católica permitisse'".15 Permitam-me citar este longo trecho da obra de Gilson para concluir a análise, para os fins de nosso curso, da obra de Sto. Agostinho: 12 Agostinho, Confissões, trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, 2a. ed., São Paulo: Abril CulturL, 1980, Livro X, cap. 11, P. 180: "a inteligência reinvindicou como próprio este verbo (cogito), de tal maneira que só ao ato de coligir (colligere), isto é, ao ato de juntar (cogere) no espírito, e não em qualquer parte, é que propriamente se chama 'pensar' (cogitare)". 13 Gilson, E., A Filosofia na Idade Média, trad. E. Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 126. Cf. p. 143: "Visitou o bispo da cidade, Ambrósio, cujas pregaões seguiu, nelas descobrindo a eistência do sentido espiritual escondido sob o sentido literal da Escritura". 14 Idem, pp. 152-153. 15 Idem, p. 157. 41 A dose de platonismo que o cristianismo podia tolerar permitiu-lhe dotar-se de uma técnica propriamente filosófica, mas as resistências opostas pelo platonismo ao cristianismo condenaram Agostinho à originalidade. Uma vez que seu gênio lhe permitia vencer essas resistências, ele teve êxito na obra teológica em que Orígenes fracassara, mas, dado que essas resistências se localizavam em certos pontos invencíveis, certas indeterminações inerentes à sua filosofia subsistiram depois dele, como um chamado a alguma nova reforma do pensamento católico e a um novo esforço para superá-las. Nem essa reforma, nem esse esforço podiam ter êxito sem Aristóteles. Platão se aproxima da idéia de criação tanto quanto se pode fazê-lo sem atingi-la, mas o universo platônico, com o homem que contém, não são mais que imagens apenas reais da única coisa que merece o título de ser. Aristóteles havia-se afastado dessa mesma idéia de criação; no entanto, o mundo eterno que ele descrevera gozava de uma realidade substancial e, se assim podemos dizer, de uma densidade ontológica dignas da obra de um criador. Para fazer do mundo de Aristóteles uma criatura e do Deus de Platão um verdadeiro criador, era preciso superar a ambos por alguma interpretação ousada do Ego sum do Exodo [Ex 3,14]. O grande mérito de santo Agostinho é ter levado essa interpretação até a imutabilidade do ser, pois essa interpretação é bastante verdadeira, e dela deduzir, com gênio, todas as conseqüências que comporta. Para ir mais longe ainda, outro esforço de gênio era necessário; seria a obra de santo Tomás de Aquino. 16 16 Idem, pp. 157-158. Cf. Ex 3,14: "Deus disse então a Moisés: 'Responderás o seguinte: Eu sou Aquele que sou'. E acrescentou: 'Assim falarás aos israelitas: Eu sou envia-me a vós!'".