A COBRANÇA PELO USO DOS RECURSOS HÍDRICOS PASSÍVEIS DE OUTORGA COMO VIA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO Luciana Ribeiro Campos Mestranda em Direito pela UFAL Introdução. 1. Direito fundamental ao uso da água. 2. Valoração econômica da água. 3. Identificação dos direitos de uso dos recursos hídricos passíveis de cobrança. 4. Princípio do poluidor-pagador. 5. Tributação Ambiental. 6. Cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos: taxa. 6.1. Taxa de polícia. 6.2. Taxa de serviço. 7. Políticas públicas de recursos hídricos. Conclusão. Referências Bibliográficas. Introdução A Lei 9.433 de 1997 instituiu a política nacional de recursos hídricos e o sistema de gerenciamento dos mesmos. Nela o legislador reconhece que a água potável é um bem escasso e dotado de valor econômico (art. 1°, inc. II) e ao fazê-lo abre o espaço para instituição de uma política de cobrança pelo uso dos recursos hídricos (art. 5°, inc. IV) com vistas à preservação do bem para presente e futuras gerações. O viés econômico da cobrança permite a implementação de políticas públicas voltadas a garantir a disponibilidade de água potável para o presente e para o futuro (cumprindo o mandamento constitucional do art. 225 da Constituição Federal - CF), através da conscientização sobre o real valor da água e sobre a necessidade de racionalização do uso da água. A arrecadação dos recursos financeiros auferidos através da cobrança serão o meio de implementação das políticas públicas, estabelecidas no plano nacional de recursos hídricos (art. 22 da Lei 9.433 de 1997). Nesse momento é preciso fazer uma observação com vistas a compreender melhor a Política Nacional de Recursos Hídricos. Adotou-se no Brasil o modelo francês de gestão de águas1. Assim, em virtude da interdependência de certos cursos de água de uma mesma bacia hidrográfica2, esta foi utilizada como unidade territorial para implementação da política nacional e regional de recursos hídricos (art. 1°, inc. I). Assim, as divisões geográficopolítico-jurídicas do Estado brasileiro não foram consideradas como unidades de gestão, ou seja, não se consideraram as divisões regionais tradicionalmente adotadas (norte, nordeste, centro-oeste, sul e sudeste) ou mesmo as fronteiras políticas dos Estados federados e municípios para gestão dos recursos hídricos em âmbito nacional ou em âmbito estadual, respectivamente. Isto tem repercussões jurídicas importantes, uma vez que os recursos arrecadados através da cobrança deverão ser aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica respectiva e não no ente federado em que se encontra a bacia hidrográfica. São os recursos arrecadados com a cobrança que poderão proporcionar a implementação de políticas públicas voltadas para utilização racional da água e operações de despoluição de mananciais3. Na França esses recursos potencializaram mudança na qualidade da água e no abastecimento, sendo valores suficientes para manter um sistema de autopreservação da água4. 1 Este modelo foi implementado em 1964 com o objetivo de recuperar a qualidade da água e adotar uma política mais equilibrada e sustentável. O território francês é dividido em seis unidades de gestão (bacias hidrográficas), cuja estrutura é composta pelos comitês de bacias e as agências de água são os órgãos gerenciadores e arrecadadores das cobranças (“redevance”) pelos serviços executados. 2 “Definitivamente, em todos os três países visitados [França, Espanha e Inglaterra], não é mais possível avaliar isoladamente o uso da água em detrimento da visão global, pois o planejamento plurianual e a correção/manutenção da quantidade e qualidade da água se fazem obrigatório e necessário para o futuro equilíbrio entre oferta e demanda e para a preservação da potabilidade”. Autor não identificado. Bacias hidrográficas: nova gestão de recursos hídricos. Disponível em: http://www.eco.unicamp.br/ecoeco/artigos/encontros/downloads/mesa3/3.pdf#search='bacias%20hidrogr%C3% A1ficas%20nova%20gest%C3%A3o%20de%20recursos%20h%C3%ADdricos. Acesso em: 2 de jul. de 2005. 3 Basta observar que na França a cobrança permite a recuperação dos mananciais. “A cobrança empregada pelas agências de água francesas a partir de 1969 promoveu um crescimento na oferta de estações de tratamento de água urbana, de cerca de 64 estações no início da década de 60 para algo em torno de 260 estações em 1970. Hoje estão em operação em todo solo francês cerca de 1.900 estações de tratamento de águas urbanas. Através dos recursos arrecadados com a cobrança de despoluição, as agências de água financiaram, sem encargos, os investimentos necessários ao cumprimento dos programas qüinqüenais aprovados pelos comitês de bacias”. Autor não identificado. Bacias hidrográficas: nova gestão de recursos hídricos. Disponível em: http://www.eco.unicamp.br/ecoeco/artigos/encontros/downloads/mesa3/3.pdf#search='bacias%20hidrogr%C3% A1ficas%20nova%20gest%C3%A3o%20de%20recursos%20h%C3%ADdricos. Acesso em: 2 de jul. de 2005. 4 Quadro de investimentos (US$ Milhões) 1982/86 1987/91 1992/96 1997/2001 Financiamento das 2.370 3.100 6.300 8.000 agências Total de 6.000 7.700 15.000 19.000 investimentos O financiamento realizado pelas seis agências de bacias nos seis objetivos da década de 1982-2001, alavancou investimentos no período de 1992/96 em torno de US$ 3,0 bilhões/ano e prevê para o qüinqüênio seguinte US$ 3,8 bilhões/ano. O programa decenal nacional francês prevê a inversão em: 1- melhoria de coleta e tratamento da poluição de água de uso doméstico, 2- despoluição de efluentes industriais, 3- luta contra a poluição de origem Ocorre que o sistema de cobrança não está sendo implementado na maior parte dos Estados5. No âmbito da União, segundo dados da Agência Nacional de Águas6, somente na bacia Rio Paraíba do Sul o sistema de cobrança foi implantado (em 2002), estando em processo de implantação a cobrança na bacia de Piracicaba, Capivari e Judiai (PCJ). Observa-se, assim, que um instrumento necessário à implantação de políticas públicas na área de recursos hídricos não está sendo utilizado. Compete indagar quais os caminhos jurídicos para alcançar a implementação deste instrumento e saber qual seria o papel do Judiciário nesse contexto. agrícola, 4- melhoria da água destinada ao uso alimentar e potável, 5- melhoria da gestão dos recursos naturais hídricos, e 6- reabilitar o meio aquático. Autor não identificado. Bacias hidrográficas: nova gestão de recursos hídricos. Disponível em: http://www.eco.unicamp.br/ecoeco/artigos/encontros/downloads/mesa3/3.pdf#search='bacias%20hidrogr%C3% A1ficas%20nova%20gest%C3%A3o%20de%20recursos%20h%C3%ADdricos. Acesso em: 2 de jul. de 2005. 5 Segundo dados fornecidos pela Agência Nacional de Águas, em resposta a correspondência, a cobrança, no âmbito dos Estados, foi implantada apenas no Estado do Ceará (em 1996) e no Estado do Rio de Janeiro (em 2004). Está em vias de implementação em Minas Gerais (previsão para o ano de 2005). Os Estados de São Paulo e Paraná organizam-se legislativamente para implantação. 6 http://www.ana.gov.br/GestaoRecHidricos/Cobranca/default2.asp 1. Direito fundamental ao uso da água Preliminarmente se faz necessário elaborar um estudo acerca da natureza jurídica do instrumento da cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Parece não haver dúvida na doutrina de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental. Desde 1972 a comunidade internacional consagrou esse entendimento7, que inspirou o legislador constituinte pátrio. Apesar de não ter inscrito no seio do art. 5° da CF o direito ao meio ambiente ecologicamente sustentável, não se pode negar que o seu conteúdo é de direito fundamental, podendo mesmo se afirmar que os preceitos do art. 225 da CF consagram uma política ambiental e um dever jurídico de o Estado preservá-lo8. Nas palavras de Edis Milaré: “A par dos direito e deveres individuais e coletivos elencados no art. 5°, acrescentou o legislador constituinte no caput do art. 225, um novo direito fundamental da pessoa humana, direcionado ao desfrute de adequadas condições de vida em um ambiente saudável ou, na dicção da lei, “ecologicamente equilibrado”9. Para José Rubens Morato Leite resulta desta qualificação como direito fundamental uma dupla natureza jurídica, sendo ao mesmo tempo um direito subjetivo da personalidade de caráter público como um elemento fundamental da ordem objetiva10. Explica o autor: É um direito subjetivo da personalidade no sentido de ser possível a todos os indivíduos pleitear o direito de defesa contra atos lesivos ao meio ambiente, pois a sua preservação ecologicamente equilibrada é condição ao desenvolvimento da personalidade humana. Este direito de defesa subjetivo do meio ambiente, de caráter público, poderá ser exercido a título individual (art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição em vigor, 1988), não relativamente a um interesse exclusivamente individual próprio, mas, sim, atinente a um interesse coletivo ou difuso ambiental. Rota, acentuando o caráter subjetivo do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, diz que este pertence a cada um dos seres humanos, sem que seu exercício coletivo condicione ao plano jurídico, seus instrumentos de tutela. Trata-se de um direito subjetivo com perfil de solidariedade, isto é, não um perfil egoístico, mas, ao contrário, segundo Pureza, configura-se como um direito-função. 7 Declaração de Estocolmo de 1972. Princípio 1 - O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o “apartheid”, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas. http://www.silex.com.br/leis/normas/estocolmo.htm 8 LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 2. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 87. 9 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 3 ed., São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 137. 10 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 2. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 88. A dimensão objetiva do meio ambiente, ou seja, a sua segunda natureza, é logo percebida no § 1º do art. 225 da CF, ao incumbir ao Estado tarefas essenciais na preservação ambiental. Trata-se, como já visto, de incumbências indeclináveis do Estado de Direito do Ambiente, com vista à consecução da eqüidade ambiental. Sendim, ao tratar do tema, reforça este ponto de vista, salientando que a dimensão objetiva é assegurada pelas normas-fins e normas-tarefas, constitucionalmente positivadas, que impõem aos poderes constituídos e, em primeiro lugar, ao legislador, a sua proteção e promoção. Já Fioriolo o qualifica como direito difuso, fugindo à clássica dicotomia do público e do privado, pois não seriam atribuídos a particulares ou ao Estado, mas a “todos” e ao “Estado”, na dicção do art. 225 da CF11. Seriam direitos marcados pelo grau de importância para sobrevivência desta e das futuras gerações12. Assim, também o direito aos recursos hídricos quantitativa e qualitativamente apropriados aos seus usos múltiplos (priorizando nestes o consumo humano e a dessendentação animal) assume essa natureza jurídica de direito fundamental e mais especificamente de direito difuso, por serem integrantes do meio ambiente13. Em verdade, a Agenda 21 declara que “os recursos de água doce constituem um componente essencial da hidrosfera da Terra e parte indispensável de todos os ecossistemas terrestres. (...) A água é necessária em todos os aspectos da vida”14. Assim, o direito ao uso da água pode ser entendido como um direito fundamental da pessoa humana, tendo em vista que sem o referido recurso ambiental nega-se a existência da vida tanto para pessoa física, como em alguns casos para pessoa jurídica, porque essa última no desempenho da atividade econômica muitas vezes depende da água para sua coexistência. A existência do ser humano – por si só – garante-lhe o direito a consumir água e ar. ‘Água é direito à vida’. Portanto, correto afirmar-se que negar água ao ser humano é negar-lhe o direito à vida; ou, em outras palavras é condená-lo à morte. O direito à vida é anterior aos outros direitos. ‘A relação que existe entre o homem e a água antecede o Direito. É elemento intrínseco à sua sobrevivência’15. Deve-se frisar que desde que seja o recurso ambiental suficiente para cumprir a tarefa prioritária de servir ao consumo humano e seguidamente à dessedentação animal, deverá atender aos demais usos. 11 FIORILO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito ambiental brasileiro. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5. 12 SILVA, José Robson da. Paradigma Biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 273. 13 Declaração de Estocolmo de 1972. Princípio 2 - Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planejamento ou administração adequada. Disponível em: http://www.silex.com.br/leis/normas/estocolmo.htm 14 Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. 3. ed., Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001, p. 331. 15 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Recursos Hídricos: Direito brasileiro e internacional. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 13-14. Nesse sentido, ensina Paulo Afonso Leme Machado: “ao Poder Público está explicitamente proibido a outorga de direito de suo que somente possibilite um único uso das águas” 16. Discorda-se em parte do afirmado pelo doutrinador, na medida em que a água pode ter um único uso (o consumo humano) quando este recurso não seja quantitativamente suficiente para outros usos. 2. Valoração econômica da água Assim, tendo em vista que se trata de um direito fundamental, como asseverado, mas também sendo o bem um recurso ambiental limitado e esgotável, a atribuição de valoração econômica foi inevitável. Esta buscará imprimir no usuário a noção do ‘real valor’ da água, que não deve se resumir à quantificação de um valor monetário, vista sob a perspectiva do utilitarismo, mas, sobretudo, um valor vinculado à própria existência de vida no mundo. Acertadamente assevera Paulo Afonso Leme Machado, quando afirma que: “A água passa a ser mensurada dentro dos valores da economia. Isso não pode e nem deve levar a condutas que permitam que alguém através do pagamento de um preço, possa usar a água a seu belprazer. A valorização da água deve levar em conta o preço da conservação, da recuperação e da melhor distribuição desse bem”17. Como se vê a valoração econômica da água permite reconhecer para além do valor monetário a necessidade de preservação e de recuperação da água para presentes e futuras gerações. Nesse sentido a Política Nacional de Recursos Hídricos, com percuciência, determina que os recursos arrecadados com a cobrança de recursos hídricos serão aplicados não só no financiamento de estudos, programas, projetos e obras relacionados especificamente com os recursos hídricos, mas, sobretudo, serão aplicados na própria bacia hidrográfica em que foram gerados. Assim, vinculam-se juridicamente as receitas arrecadadas com a cobrança à bacia hidrográfica em que foram geradas, ou seja, o custo da água financia a sua preservação e a sua recuperação. Vejamos a dicção do art. 22 da Lei 9.433/1997: Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados: I - no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos; 16 MACHADO , Paulo Affonso Leme. Recursos Hídricos: Direito brasileiro e internacional. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 34. 17 MACHADO , Paulo Affonso Leme. Recursos Hídricos: Direito brasileiro e internacional. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 32. II - no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. § 1º A aplicação nas despesas previstas no inciso II deste artigo é limitada a sete e meio por cento do total arrecadado. § 2º Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água. (Grifos não originais). Como se percebe, a implementação de políticas públicas para utilização racional, preservação e recuperação dos recursos hídricos só poderá encontrar um alcance desejado se os recursos financeiros para tanto forem suficientes para empreender um comportamento próativo. Não é difícil perceber que os órgãos públicos, diante da escassez de recursos, primeiramente empreendem uma atividade corretiva, no sentido de verificado o dano procurase corrigi-lo. As atividades preventivas (como a educação ambiental) são deixadas de lado até que aportem recursos suficientes para tanto. No modelo francês o aporte de recursos financeiros é significativo de tal forma que as políticas de recuperação dos mananciais são intensivas, conforme demonstrado alhures. No Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Águas - ANA, na bacia Paraíba do Sul até 7 de janeiro de 2004 foi arrecado com a cobrança o valor de R$ 5.874.995,76 e foi empenhado em estudos e obras de melhoria um total R$ 5.826.336,80. Por esse indicativo apenas monetário, pois os benefícios qualitativos não foram mensurados, demonstra-se a necessidade de se implementar a cobrança de recursos hídricos em todas as bacias hidrográficas. 3. Identificação dos direitos de uso dos recursos hídricos passíveis de cobrança Antes mesmo de se adentrar a questão da judiciabilidade das políticas públicas de recursos hídricos e da exigência da cobrança de recursos hídricos como meio para implementação delas, compete indagar sobre a natureza jurídica da cobrança. Primeira pergunta para desvendar a natureza jurídica consiste em saber quais os direitos de usos de recursos hídricos passíveis de cobrança. Na dicção do art. 20 da Lei 9.433/1997, são passíveis de cobrança os usos de recursos hídricos passíveis de outorga: Art. 20. Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga, nos termos do artigo 12 desta Lei. A Política Nacional de Recursos Hídricos definiu que os direitos de usos de recursos hídricos passíveis de outorga, segundo o art. 12, são: I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo; II - extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo; III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final; IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos; V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de água. A Lei 9.433/1997 marcada pelo reconhecimento da essencialidade do bem para vida determina que alguns direitos de usos estão dispensados de outorga: I - o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural; II - as derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes; III - as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes. Assim, referida lei, através do elenco do §1º do art. 12, busca salvaguardar especialmente as populações carentes que fazem uso dos mananciais próximos para atender suas necessidades básicas, enquanto no caput do artigo discriminam-se os usos que podem gerar poluição, alteração prejudicial do nível do corpo hídrico, etc. Daí a necessidade de serem controlados de perto pelo Estado esses usos, inclusive com a cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos tanto no sentido de política inibitória das atividades predatórias, como também de política educativa, enfim desenvolver uma atividade de preservação18. 4. Princípio do poluidor-pagador Vislumbra-se aqui a aplicação do princípio do poluidor-pagador no sentido orientador das políticas públicas19 e especialmente na justificação da cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos. 18 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário.3 ed., São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 139: “toda política ambiental tem características pedagógicas, no sentido de que é um trabalho mais educativo que propriamente repressivo”. 19 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 54. Esse princípio é mais bem entendido por meio de sua finalidade, qual seja o alcance de um maior cuidado em relação ao potencial poluidor da produção, na busca de uma satisfatória qualidade do meio ambiente20. Adverte Cleucio Santos Nunes que: a produção econômica, em alguns setores, carrega consigo a destruição do meio. Isso é fato notório; não fosse assim, não haveria razão para o desenvolvimento do Direito Ambiental. Não é justo nem ético que o custo dessa destruição venha a ser partilhado por toda a sociedade não tendo o poluidor algum ônus específico na distribuição das perdas ambientais21. Assim, busca-se que os custos sociais que acompanham o processo produtivo sejam internalizados, ou seja, os agentes econômicos devem considerá-los na elaboração de seus custos de produção e, portanto, assumi-los. Cristiane Derani ensina que: durante o processo produtivo, além do produto a ser comercializado, são produzidas ‘externalidades negativas’. São chamadas externalidades porque, embora resultantes da produção, são recebidas pela coletividade, ao contrário do lucro, que é percebido pelo produtor privado. Daí a expressão ‘privatização de lucros e socialização de perdas’, quando identificadas as externalidades negativas. Com a aplicação do poluidor-pagador, procura-se corrigir este custo adicionado à sociedade, impondo-se sua internalização. Por isto este princípio é também conhecido como o princípio da responsabilidade22. Diante dessas considerações é fácil perceber que esse princípio constitucional23 (art. 225, §3º, em sua interpretação moderna que deve fugir da lógica da causa-efeito) ampara a cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos, fundamentando-a e lhe dando substrato e força constitucional. Conforme bem observa Cleucio Santos Nunes, “É por intermédio desse princípio que medidas como a imposição de tributos ambientais (ecotaxes) vêm sendo utilizadas em diversos países do mundo, até – se bem que com muita tibieza – no Brasil”24. Pois, como bem apontou Antônio Herman V. Benjamin as razões para adoção de instrumentos como os tributos e para compartilhamento dos ônus sociais: ao final dos anos 60, ficou claro que os remédios jurídicos tradicionais, de índole privatística, não estavam aptos a estancar ou reduzir a crescente degradação dos recursos naturais planetários: um típico 20 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 49. NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 49-50. 22 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 158. 23 O tratado que estabelece uma constituição para Europa, atualmente em fase de discussão, estabelece em sua Secção 5 – Ambiente, artigo III-233, número 2: “A política da União no domínio do ambiente em por objetctivo atingir um nível de protecção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Baseia-se nos princípios da precaução e da ação preventiva, no princípio da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e no princípio do poluidor-pagador”. 24 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 50. 21 caso de “falha de mercado” (market failure), cabendo à intervenção estatal, nesse caso, combater as extemalidades ambientais25. Mas essas imposições de medidas protecionistas não deixam de vir agregadas de outros custos sociais, pois podem servir para aumentar a exclusão social na medida em que o custo do produto final poderá deixar à margem do consumo determinados grupos sociais. Elucida Cleucio Santos Nunes: A imposição de ônus econômicos (o tributo é um exemplo), como instrumentos de efetividade do princípio, traz por conseqüência o aumento do custo do bem produzido, o que pode gerar distorções no mercado. A principal delas – e mais cruel – é a exclusão de camadas de consumidores menos abastados e que não podem pagar o custo adicionado ao produto pelo ônus tributário ambiental – o que gera mais desigualdade social e econômica, máxime em países com iníqua distribuição de renda, como é o caso do Brasil. Outra conseqüência – e essa se mostra muito remota, porque o mercado tem seus mecanismos automáticos de ajuste – seria o engessamento dos meios de troca, na medida em que os preços poderiam atingir níveis impagáveis. Diante dessas variáveis, dois desdobramentos do princípio do poluidor-pagador despontam como alternativas a serem adotadas, conforme as características locais de cada mercado. Trata-se do “compartilhamento dos ônus sociais e das perdas do meio ambiente pelo processo econômico exploratório e o uso do princípio do poluidor-pagador como instrumento de orientação de políticas públicas ambientais, redutoras dos danos ecológicos”. 26. Assim, como se pode observar, é justamente na previsão do princípio do poluidorpagador que “a inserção de políticas públicas ambientais está em harmonia com a legalidade e, portanto, é ofício da autoridade estatal empregar tais medidas”27, pois a lei existe como o instrumento mais adequado de manifestação social. 5. Tributação Ambiental Também é com subsídio nessa declarada legalidade que a imposição da tributação ambiental ganha respaldo constitucional no princípio do poluidor-pagador como preceito constitucional do tipo aberto. Nesse momento vem a calhar a lição de Ricardo Lobo Torres no sentido de que também o direito tributário, no que tange à proteção ambiental, deve ser submetido ao processo de abertura, mas não no sentido de abandono da segurança jurídica: O direito tributário, como os outros ramos do direito, opera também por conceitos indeterminados, que deverão ser preenchidos pela interpretação complementar da Administração, pela contra-analogia nos casos de abuso do direito e pela argumentação jurídica democraticamente desenvolvida. 25 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 348. 26 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 50. 27 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 51. A tributação ambiental também encontra respaldo na teoria econômica da correção de Arthur C. Pigou (1877-1959), desenvolvida no seu livro Economics of Welfare. Esse autor entende que a intervenção do Estado como agente normativo é fundamental para o desenvolvimento sustentável, no sentido de impor normativamente a internalização dos custos das externalidades negativas através das conhecidas taxas Pigouvianas. Assim, por intermédio da atuação estatal neutraliza-se ou diminui-se o impacto da exploração econômica desequilibrada28. Na medida em que a teoria da correção exige uma atuação normativa (norma jurídica) do Estado, legitima-se a tributação como meio mais adequado para o alcance de uma política ambiental bem sucedida. Assim, para Pigou existe um nível de poluição “ótimo”. O tributo deverá ser equivalente ao custo da externalidade negativa. A dificuldade de se obter a taxa “ótima” está na mensuração dos custos ambientais. Os danos são medidos em unidades físicas como toneladas de poluentes ou concentração no meio físico. Por outro lado, existem efeitos de sinergia entre várias fontes poluidoras, de modo que estimar o valor econômico de uma externalidade específica passa a ser o maior obstáculo. Como há grandes dificuldades metodológicas na mensuração e estimativa dos custos marginais de degradação, na prática, o nível socialmente aceitável de poluição é definido com base em critérios outros que os econômicos. Esta dificuldade metodológica é comum a outras políticas públicas, como a política social, saúde, educacional e mesmo de segurança nacional29. Como bem acentua Cleucio Santos Nunes: Para o alcance do ótimo sócioeconômico, os tributos de Pigou são mais eficientes e, por isso, estão nas preferências dos economistas. Comparando-se a adoção de tributos ambientais com a regulamentação de índices permitidos de poluição, os reflexos no equilíbrio do mercado são pouco perceptíveis e alocam recursos públicos altos. Note-se que para fiscalizar o cumprimento das cotas de lançamento de efluentes em um rio ou no ar, por exemplo, o Estado deve montar uma estrutura técnica e administrativa normalmente dispendiosa, cujos custos de manutenção serão transferidos a toda a sociedade por meio da exigência dos impostos gerais sobre a renda, prestação de serviços e propriedade. Contudo, a grande vantagem dos tributos de Pigou são os resultados extrafiscais. Em um exemplo simples, ao determinar a lei que uma fábrica pagará mais R$ 5.000,00 em impostos incidentes sobre a receita do que aufere da venda de produtos decorrentes de processo industrial poluidor, a tendência do industrial será reduzir ou eliminar esse custo do seu produto, pois o seu concorrente consegue fabricar o mesmo bem, ou outro semelhante, sem o referido encargo, os consumidores certamente optarão pela aquisição deste último bem. Essa regra, inerente ao mercado, força o poluidor a reduzir sua produção para pagar menos ou adotar técnicas depuradoras do meio ambiente que contaminou. Isso é muito mais conveniente ao equilíbrio socioeconômico do que a regulamentação dos níveis ou quotas de poluição, 28 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 135. SOARES, Sebastião Roberto. Gestão e Planejamento Ambiental. Disponível http://www.ens.ufsc.br/~soares/aulaG2.pdf . Acesso em: 9 de jul. de 2005. 29 em: porque estes acomodam o poluidor. Basta saber que, caso não supere os índices legais de poluição, não sofrerá nenhum custo a mais sobre os seus produtos30. Mas pode-se deparar com a situação antes citada de as empresas através da tributação apenas repassarem o custo para o preço de forma a produzir uma exclusão social. Para controlar isso o Ótimo de Pareto tem perfeita sintonia com a tributação ambiental. Por essa idéia (também chamada de ótimo econômico), o produto é um Ótimo de Pareto se, e somente se, nenhum agente ou situação pode estar em uma posição melhor sem fazer com que outro agente ou situação assuma uma posição pior. Assim, “o tributo deverá considerar o valor da perda da sociedade com a poluição, e a expressão monetária corresponde ao custo com limpeza do bem afetado pela degradação. A tributação, pois, deverá considerar esse custo de reparação na mesma proporção ou acima desta”31. Adverte ainda Cleucio Santos Nunes: A aplicação de base de cálculo aleatória, fulcrada num abstrato valor do bem ambiental, é estéril e tende não só a não inibir a prática de condutas poluidoras – já que é fácil repassar o custo do tributo para o preço do produto –, como também não corrobora para a mudança de atitude do poluidor, a fim de ampliar sua visão social do problema 32. 6. Cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos: taxa Com base nessas idéias não é difícil perceber que estamos evoluindo no sentido de afirmar que a cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos é um tributo voltado à preservação ambiental. Em verdade, trata-se de uma taxa. Poderia se indagar: não se trata de cobrança pelo uso de bem público? A resposta sem maiores reflexões seria afirmativa. Mas como no direito a interpretação dos institutos jurídicos deve ser feita à luz dos princípios constitucionais e com base em uma hermenêutica fundada na abertura constitucional e nos métodos de interpretação teleológico e sistemático, vejamos o porquê de se afirmar a natureza tributária da cobrança. O que se busca através da cobrança é a limitação de um direito fundamental com vistas a preservá-lo para presentes e futuras gerações, de tal forma que todo o custo da preservação seja internalizado (princípio do poluidor-pagador). A doutrina fornece dois caminhos para solução da questão. Como foge o intuito desse trabalho, que consiste em identificar na cobrança um mecanismo essencial a implementação 30 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 135-136. NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 140. 32 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 140. 31 de políticas públicas e sua sindicabildiade em juízo, deixamos para aprofundar esta discussão em outro ensaio. Por hora, lançaremos apenas os argumentos que embasaram a assertiva de se tratar de taxa. 6.1. Taxa de polícia Uma primeira abordagem definiria a cobrança como uma taxa decorrente do exercício do poder de polícia. Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que, para fins de fiscalização do uso de bem público por particular (no caso os recursos hídricos), poderia o poder público instituir uma taxa de polícia para assegurar a conservação da coisa: Contudo, outorgado o uso, o usuário fica sujeito à fiscalização do Poder Público, exercida quer no interesse da conservação da coisa, quer para assegurar que o uso se exerça pela forma em que foi deferido, quer para evitar que o mesmo se torne prejudicial ao interesse público. Em decorrência do exercício dessa fiscalização, inerente ao poder de polícia do Estado, pode a lei instituir taxa que venha a incidir sobre o uso privativo. Muitas vezes, a taxa é imposta em razão da atividade a ser exercida pelo usuário, como, por exemplo, no caso de autorização para fazer publicidade na via pública. A atividade está sujeita à fiscalização e, portanto, ao poder de polícia do Estado. Mas essa taxa não se destina a retribuir o uso consentido, tanto assim que, independentemente de sua cobrança, pode o usuário ficar sujeito ao pagamento de importância correspondente ao uso da coisa pública33. (Grifo não original) Recorda a autora que o Município de São Paulo cobra tanto pela fiscalização do uso do bem, através de taxa, como pela utilização propriamente dita, através de preço (Lei 8.944/1979). Entendido nesse sentido a taxa será fundada no exercício do poder de polícia e, portanto, deverá guardar correlação, segundo a doutrina clássica e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com o custo da atividade estatal para exercer o poder de polícia. O princípio do poluidor-pagador e o da proporcionalidade poderão dar substrato para que se fixe monetariamente um pouco além do custo da atividade estatal o valor da taxa quando há uma por trás uma finalidade orientadora, que no caso já realçamos a preservação (e no direito ambiental a preocupação com a política pública de educação ambiental é permanente)34. Afirma José Marcos Domingues de Oliveira, refletindo sobre a teoria da correção de Pigou: 33 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Uso privativo de bem público por particular. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 53. 34 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 60. Assim, pensamos que as taxas ambientais, que devem ser graduadas conforme o custo dos serviços públicos ambientais relacionados à carga poluidora gerada pelos contribuintes, podem representar substanciais receitas públicas para custeio das correspondentes tarefas administrativas; isto sem prejuízo de também poderem produzir efeito indutor do poluidor a buscar alternativas de comportamento menos poluidor visando a diminuir o montante da taxa que lhe cabe pagar 35. Sendo a cobrança uma taxa de polícia e sendo o bem pertencente ao Estado e à União, somente a esses entes federados competiria a sua instituição. Assim, os estudos, projetos e obras deveriam voltar à preservação do bem. Veja-se que a própria Lei 9.433/1997 (art. 22) faz essa vinculação dos recursos arrecadados com a cobrança, conforme foi afirmado. Essa vinculação dos recursos à finalidade específica de preservar e de recuperar o bem também serve para afastar a identificação desta espécie com o imposto, o empréstimo compulsório e contribuições em geral. Trata essa vinculação da expressão da teoria da classificação qualitativa, segundo a qual os tributos poderão ou não estar vinculados a uma atuação estatal. Os tributos vinculados terão em sua hipótese de incidência a descrição normativa de uma atividade desenvolvida pelo Estado em prol do particular atingido direita ou indiretamente por essa ação. É o caso das taxas e das contribuições de melhoria. Ambos os tributos terão necessariamente, na descrição do fato imponível, uma atividade feita pelo Estado36. Diferencia-se a referida taxa da contribuição de melhoria por não ser a cobrança vinculada a uma obra. A experiência francesa demonstra, conforme ilustrado em estudos, que essa cobrança tem exatamente essa vocação protecionista dos recursos hídricos. 6.2. Taxa de serviço Uma segunda abordagem poderia ser defendida no sentido de definir a cobrança como taxa de serviço. Então qual seria o serviço público prestado pelo Estado? O serviço de preservação, imposto ao Poder Público na dicção do art. 225 da Constituição Federal (“impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”). Vejamos o conceito de serviço público, tendo em vista que a tributação ambiental deve ser fundada numa tipologia aberta, conforme Cleucio Santos Nunes: “sucede que a exegese da 35 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito tributário e meio ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 60-61. 36 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 144. norma tributária de incidência, fundamento na tipologia aberta – que deve prevalecer quando o tributo possuir carga extrafiscal – transcende à exatidão ou à ordem dos termos que compõem a redação da lei”37. A doutrina diverge na definição de serviço público, mas em geral tem como ponto de concordância a noção de um facere estatal. Esse não é momento para aprofundarmos o debate acerca do tema, assim optamos pela definição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro por reputá-la a mais completa: “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente de direito público”38. Podemos encontrar no próprio caput do art. 225 da CF a caracterização da atividade de preservação dos recursos hídricos como serviço público. Para caracterizar essa atividade como um serviço público, iniciaremos com o fracionamento do conceito. Diz a doutrinadora que serviço público é “toda atividade material”. Encontramos na legislação ambiental uma definição de preservação, que embora relacionada às unidades de conservação, serve de indicativo do que seja o conteúdo material dessa palavra para ordem jurídica. O inciso V do art. 2º da Lei 9.985/2000 define preservação como: “conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais”. Identificamos um verdadeiro facere estatal nesta atividade. A própria Lei 9.433/1997 também fornece as diretrizes que o Estado e a União devem adotar para agir (art. 3º) no sentido de alcançar os objetivos preservacionista (art. 2º). Art. 2º. São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos: I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável; III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais. Art. 3º. Constituem diretrizes gerais de ação para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos: I - a gestão sistemática dos recursos hídricos, sem dissociação dos aspectos de quantidade e qualidade; II - a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País; III - A integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental; IV - a articulação do planejamento de recursos hídricos com o dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e nacional; V - a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo; 37 38 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 180. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito adminsitrativo. 13. ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 98. VI - a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras. (Destaques não original). A definição continua: “que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados”. A Constituição Federal como já foi anteriormente apontado determina no art. 225: “impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Se a constituição é norma jurídica que fornece fundamento de validade a toda ordem jurídica, não há instrumento normativo mais apropriado que a Norma Ápice para atribuir ao Estado um facere. Seguindo, diz a autora, “com objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas”. A caracterização dessa passagem esta acima de qualquer dúvida, pois a fruição de um ambiente saudável, especialmente o uso da água em quantidade e qualidade suficiente é essencial a vida dos indivíduos e da coletividade, caracterizando em si como um direto fundamental, conforme assinalado em tópico precedente. Finaliza a definição com seguinte passagem: “sob regime jurídico total ou parcialmente de direito público”. A própria Constituição Federal também elucida que a gestão dos recursos hídricos terá o regime jurídico definido em lei, basta para tanto observar o teor do art. 21, inciso XIX: Art. 21. Compete à União: XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso O regime jurídico de direito público foi estabelecido através da Lei 9.433/1997, a qual divide a função de preservação entre os órgãos que compõe o sistema. Caracterizada a atividade como serviço público, podemos afirmar que se abre caminho para caracterização da cobrança do direito de uso dos recursos hídricos como tributação ambiental, e no caso específico a caracterização da cobrança como taxa de serviço. Cleucio Santos Nunes analisa a taxa de preservação instituída em Fernando de Noronha e através de uma tipologia aberta de tributo conclui ser a mesma uma taxa. Vejamos passagem bastante elucidativa: A manutenção das condições ambientais e ecológicas do Arquipélago de Fernando de Noronha consiste em serviço público? Essa resposta só ser obtida interpretando-se o conceito de serviço público para fins de tributação ambiental, sob o viés da tipologia aberta, pois que o facere estatal, neste caso é qualquer atividade que se preste a satisfazer as necessidades coletivas. A preservação do meio ambiente, consoante dispõe o artigo 225 da Constituição Federal, é obrigação de todos, inclusive do Poder Público. Quando este assume a tarefa de realizar os meios à preservação, tal atividade serve aos interesses coletivos, razão pela qual preenche o conceito de serviço público 39. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath são incisivos em caracterizar como taxa a cobrança pela prestação dos serviços de abastecimento de água tratada, que entendemos ser é inteiramente aplicável à cobrança pela água bruta: O caminho adequado para o Poder Público abastecer seus cofres e, em decorrência do que arrecada, prestar as atividades que lhe são próprias é a cobrança de tributos. É através deles que o Estado se aparelha para o desempenho das atividades que lhe são próprias. [...] A só circunstância de o estado assumir forma de direito privado não exonera de cumprir o preceituado na Constituição Federal. Se presta serviço público ou exerce poder de polícia, apenas pode cobrar taxa. Nada mais. Daí por que é inconstitucional a cobrança de tarifa (denominada preço público) nos serviços de água, luz, telefone, transporte, etc. São serviços prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição. Em decorrência deles, só se pode cobrar taxa. A circunstância de criar ou instituir uma sociedade de economia mista ou empresa pública ou fundação não descaracteriza todo o regime jurídico 40. Existe ainda uma teoria jurídica que dar suporte para a definição da natureza jurídica da cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos, qual seja, a teoria dos direitos fundamentais. Ora, se o direito de uso dos recursos hídricos é um direito fundamental, a sua limitação só pode ser feita através de lei. Isso porque a cobrança é uma forma de limitação a um direito fundamental, possível de ser restringido desde que não ultrapassado o núcleo imanente do mesmo que é a proteção da vida humana, em face da necessidade de preservação dos recursos hídricos para presentes e futuras gerações. Assim, a cobrança por esse viés constitucional só pode ser autorizado através de lei, como se exige para instituição de taxa, seja de serviço público, ou de poder de polícia. No que concerne à divisibilidade do serviço público, importante registrar as ponderações de Cleucio Santos Nunes: Tratando-se de serviços de finalidade social, sua execução poderá ser de caráter individual-homogênea. Isso significa que, embora o serviço seja prestado de forma coletiva (uti universi), os beneficiários do serviço são autonomamente individualizados, razão pela qual podem ser destacados da coletividade a que pertencem. O elo de ligação entre os usuários de tal serviço é o benefício comum que o Poder Público entrega a todos41. 39 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 181. Oliveira, Regis Fernandes de. Horvath, Estevão. Manual de direito financeiro. 5. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 46. 41 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 181. 40 Em síntese, a natureza tributária da cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos decorre não apenas da ordem constitucional e legal (Lei 9.433/1997), como também da aplicação da teoria dos direitos fundamentais e das teorias econômicas (teoria de Pigou e Ótimo de Pareto). Esses fundamentos são necessários para que a implementação de políticas públicas protecionistas dos recursos hídricos possa ser exigida em juízo, veremos porque adiante. 7. Políticas públicas de recursos hídricos É tarefa arenosa a conceituação de políticas públicas. Alerta Fábio Konder Comparato que o “conceito de política pública, no sentido de programa de ação, só recentemente entrou a fazer parte das cogitações da teoria jurídica”42. Vamos encontrar em Ronald Dworkin um primeiro conceito de política pública como parâmetro normativo apto a resolver casos difíceis. Assim, partindo de casos em que a solução judicial não decorreu da aplicação imediata de regras, os quais Dworkin designa de casos difíceis, verifica que foram usados padrões que não funcionam como as regras jurídicas, mas que operam como princípios, políticas e outros tipos de padrões. Explica em sua obra que adotará a designação de princípio de maneira genérica para indicar todo o conjunto de padrões que não são regras. Mas não desconhece a diferença entre os diversos tipos de padrões, fazendo uma distinção entre política e princípio. E fornece uma definição de política “aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral como uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas”43. Para Dworkin os argumentos de política destinam-se a estabelecer um objetivo coletivo. As políticas seriam proposições que descrevem objetivos44. Para Fabio Konder Comparato a política não é uma norma, nem um ato, mas como uma atividade entendida como o conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado A política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela sua finalidade. Os atos, decisões ou normas que a 42 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa. Brasília.ano 35, n.138, p. 39-48, abr/jun. 1998, p. 44 43 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36. 44 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 141. compõem, tomados isoladamente, são de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio.45. Eduardo Appio, por sua vez, entende que: As políticas públicas podem ser conceituadas, portanto, como instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidade aos cidadãos, tendo por escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos46. As políticas públicas representam a vontade de planejamento social a partir de projetos consagrados, na área ambiental muitas vezes, no Brasil, são traçadas em lei (Política Nacional do Meio Ambiente, Política Nacional de Educação Ambiental, Política Nacional da Biodiversidade, Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia, Política urbana, Política agrícola, Política Nacional de Recursos Hídricos, etc). Indubitavelmente, diante dos conceitos acima delineados a Política Nacional de Recursos Hídricos traçou em seu art. 2º as metas a serem atingidas, que podem ser, em nosso entender, resumidas como uma política pública de proteção aos recursos hídricos de forma a preservá-los e recuperá-los da atuação predatória do ser humano de modo a garantir quantitativa e qualitativamente o bem para as presentes e futuras gerações. Para realizar essas metas, foram estabelecidas diretrizes (art. 3º) e foi instituída uma série de instrumentos (art. 5º). Entre esses últimos o mais importante para efetiva implementação das referidas políticas é a cobrança dos recursos hídricos, pois é através desta que irão se carrear efetivamente recursos financeiros para atingir os fins idealizados pela sociedade através da Lei 9.433/1997. Todavia, conforme dados fornecidos pela Agência Nacional de Águas, a cobrança não foi instituída na ampla maioria dos Estados e entre as bacias hidrográficas de competência da União só na bacia Rio Paraíba do Sul. Isto é o que Antônio Herman V. Benjamin afirma ser a manifestação do Estado teatral: É comum o Poder Público legislar, não para aplicar, mas simplesmente para aplacar, sem resolver, a insatisfação social. É o Estado teatral, aquele que, ao regular a proteção do meio ambiente, mantém uma situação de vácuo entre a lei e a implementação. Um Poder Público, que na letra fria do texto normativo, não se importa em bravejar, mas que fácil e rapidamente amansa diante das dificuldades da realidade político-administrativa e de poderosos interesses econômicos, exatamente os maiores responsáveis pela degradação ambiental. A teatralidade estatal é a marca dessa separação entre lei e 45 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa. Brasília.ano 35, n.138, p. 39-48, abr/jun. 1998, p. 45. 46 APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. Curutiba: Juruá, 2005, p. 137. implementação, entre a norma escrita e a norma praticada. O resultado é uma Ordem Pública Ambiental incompleta47. As leis prescrevem metas e ideais que a sociedade reputa importante, vociferam as frustrações sociais e propõe ser a tábua de salvação desta, legislação farta no Brasil, especialmente na área ambiental, mas como de fato ocorre com a Política Nacional de Recursos Hídricos não passa de uma lei simbólica. Nem se argumente que a sua implementação requer um tempo, pois a Lei 9.433 está posta na ordem jurídica desde sua promulgação em 8 de janeiro de 1997, cuja publicação ocorreu no dia seguinte (9 de janeiro de 1997), contando atualmente com mais de oito anos de existência sem implementação. Antônio Herman V. Benjamin fornece várias razões para que se proceda a implementação da legislação, tais como a necessidade de: assegurar a efetividade dos programas e políticas públicas destinados à proteção do meio ambiente; alcançar através desta os objetivos e benefícios vis1umbrados pelo legislador e esperados por todos; atingir patamares maiores de credibilidade da lei, essenciais a dissuasão de comportamentos que lhes são contrários48. Adverte o referido autor que a implementação frágil ou inexistente “provoca grau elevado de descrédito nas leis e no Direito e, por conseqüência, grande sensação de insegurança, de desorganização, além de forte tensão social”49. Torna menor também a respeitabilidade do ordenamento, restando inevitável, também, o desprestígio do Legislativo e do Judiciário50. Por fim, há de se fazer menção ao componente de eqüidade e justiça que carreia a implementação. Pois, “é inadmissível que a carência ou deficiência de implementação sirva para beneficiar os violadores do ordenamento, em detrimento dos sujeitos que o cumprem”51. E segue o referido autor advertindo que o desrespeito às normas destrói o sentimento de solidariedade, essencial aos direitos fundamentais de terceira dimensão. “Os sujeitos, principalmente as empresas, mostram-se mais dispostos a respeitar as exigências legais 47 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 338. 48 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 344-345. 49 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 345. 50 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 345. 51 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 345. quando convencidos de que, ao assim se comportarem, não serão postos em situação de desvantagem econômica perante seus concorrentes”52. Diante desse estágio de inércia, o Poder Judiciário vem sendo convocado a intervir nesse cenário. Surge, então, a discussão sobre a própria democracia, uma vez que juízes nãoeleitos estariam interferindo nos processos próprios dos Poderes Executivo e Legislativo. Exige-se no Estado teatral, que hoje vive o Brasil, a alteração nas “funções clássicas dos juízes que se tornam co-responsáveis pelas políticas dos outros poderes estatais”53. Nesse contexto, pondera Andreas J. Krell: No entanto o Judiciário brasileiro (ainda) não quer assumir o papel de arquiteto social e ser responsabilizado por uma possível convulsão financeira nos orçamentos públicos. Ao mesmo tempo já podemos observar um “progresso de erosão da rigidez lógico-formal em razão das exigências de justiça distributiva e, por conseqüência, dos imperativos da racionalidade material” 54. Em prognose entende o professor Andreas Krell que o ativismo judicial através de um processo de interpretação constitucional poderia superar em cada caso “muitos dos óbices e representar uma ‘alavanca dinamizadora’ para a realização dos direitos sociais postegardos”55. Assim, também, na seara dos direitos de solidariedade e difusos. Hoje, o maior problema na área dos recursos hídrico reside na omissão da União e dos Estados em implementar uma atividade protecionista, ocasionada muitas vezes pela carência de um sistema de fiscalização eficiente, pela não realizam obras, pelo não implemento da outorga, que seria o primeiro passo para uma política efetiva de recursos hídricos, etc. Todas essas omissões atingem diametralmente o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, com suas decorrência ao direito de uso dos recursos hídricos, etc., ou sejam não preservam em um mínimo essencial o ambiente. Na doutrina alemã se defende inclusive o “mínimo existencial ecológico”56. E o argumento é sempre o mesmo, faltam recursos financeiros ou o falaciosos argumento da reserva do possível57, ou seja, a 52 BENJAMIN, Antônio Herman V. O Estado Teatral e a implementação do direito ambiental. In: 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental – “Direito, Água e Vida”, 7, 2003, São Paulo. p. 345-346. 53 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um .direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 73. 54 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 74. 55 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 98. 56 KRELL, Andreas J. Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 81. 57 Falacioso segundo Andreas J. Krell porque “essa teoria, na verdade, representa um adaptação de um topos da jurisprudência constitucional alemã (Der Vorbehalt des Müglichen), que entende que a construção de direito subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeito à condição da disponibilidade dos limitação dos recursos públicos é um verdadeiro limite fático à efetivação das políticas preservacionistas dos recursos hídricos. Mas quanto à política nacional dos recursos hídricos é preciso previamente fazer um destaque a um instrumento de grande importância definido na lei de responsabilidade fiscal e que se revela potencializador para uma atuação do Poder Judiciário sem maiores debates quanto a sua legitimidade. Determina a Lei Complementar 101/2000, em seu art. 11 que: Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação. Eis a pedra de toque que poderá diferenciar a discussão em juízo da obrigatoriedade de definirem-se as políticas preservacionista dos recursos hídricos. Ora, estabeleceu-se em momento anterior que a cobrança tem natureza tributária. Portanto, o dispositivo legal da Lei Complementar 101/2000 se aplica à União e aos Estados. Assim, com a instituição do tributo, a cobrança passa a poder financiar todas as políticas públicas de preservação dos recursos hídricos sem que se argumente, quando a execução da política é determinada pelo Poder Judiciário, que despesa não prevista no orçamento é um empecilho legal à atuação judicial. O atual argumento fundado na reserva do possível perde força diante da inação dos demais Poderes em criarem e arrecadarem o tributo de sua competência, pois se há uma fonte de custeio porque não implementá-la desde já. Ademais, enquanto não instituída a tributação ambiental da cobrança, a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece algumas sanções financeiras tal como a vedação de transferências voluntárias, podendo o Judiciário destinar parte das transferências voluntárias para implementação das referidas políticas públicas. Isso decorre de uma interpretação aberta dos institutos financeiros da referida lei, construídas a partir do princípio do poluidor-pagador. mesmo estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, através da composição dos orçamentos públicos.(...) Essa teoria impossibilita exigências acima de um certo limite básico social”. (Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 52) Conclusão Pelo exposto podemos concluir que: 1. O direito de uso dos recursos hídricos é um direito fundamental da pessoa humana e que desde que seja o recurso ambiental suficiente para cumprir a tarefa prioritária de servir ao consumo humano e seguidamente a dessedentação animal, deverá atender aos demais usos (princípio dos múltiplos usos). 2. O reconhecimento do valor econômico da água visa não só a determinação de um valor monetário, mas também fixar a noção de que há um valor intrinsecamente ligado ao direito à vida, no sentido de ser necessário preservá-la e recuperá-la para presentes e futuras gerações. 3. O sistema de outorga salvaguarda especialmente as populações carentes que fazem uso dos mananciais próximos para atender suas necessidades básicas dispensando esses usos da outorga. Os usos passíveis de outorga são todos aqueles que podem gerar poluição, alteração prejudicial do nível do corpo hídrico, etc. Daí a necessidade de serem controlados de perto pelo Estado esses usos, inclusive com a cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos tanto no sentido de política inibitória das atividades predatórias, como também de política educativa, enfim uma desenvolver uma atividade de preservação. 4. O princípio do polidor pagador fundamenta e dá substrato constitucional à cobrança como medida capaz de conferir meios para efetivar políticas públicas protecionistas da água. 5. A tributação ambiental é vista tanto na via jurídica como na econômica, através da aplicação da teoria de Pigou e do Ótimo de Pareto, medida capaz de implementar uma política ambiental eficaz. 6. A natureza jurídica da cobrança pelo direito de uso dos recursos hídricos deve ser definida como tributária, havendo duas possibilidades doutrinárias para qualificar em que espécie tributária a cobrança se encontra, quais sejam: 1 – a taxa de polícia, no sentido de que se cobra pela fiscalização do uso do bem público; 2 – taxa de serviço público, no sentido de ser a preservação dos recursos hídricos um serviço público. 7. Por se tratar de tributo a cobrança encontra reforço para sua sindicabilidade em juízo através da Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, afasta-se o óbice da reserva do possível, pois a cobrança forneceria, como ocorre na França, recursos financeiros para implementação de políticas preservacionistas dos recursos hídricos. Em uma interpretação aberta, podemos afirmar que as transferências voluntárias poderiam ser obstadas enquanto não instituída a cobrança nos Estados da taxa referente ao uso dos recursos hídricos. Referências Bibliográficas APPIO, Eduardo. 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