A crítica à moral em Humano, Demasiado Humano: o primeiro movimento da critica da moral de Nietzsche Autor: Leonardo Camacho de Oliveira Universidade Federal de Pelotas Orientador: Clademir Luís Araldi Universidade Federal de Pelotas 1. Introdução È possível se dizer que: qualquer reflexão feita contemporaneamente, e que contemple o tema moral, tem uma dívida para com a filosofia de Friedrich Nietzsche. Ainda que seu pensamento divida opiniões, sendo louvado por uns e amaldiçoado por outros, uma atitude incompatível com o mesmo é a indiferença. Devido ao fato de ter Nietzsche, através de sua crítica feita à moral, proposto questões e lançado dúvidas, que permanecem como temas centrais do atual debate em filosofia moral. Através do presente trabalho, tem-se a pretensão de analisar os primeiros passos dados por Nietzsche em sua preciosa crítica à moral. Para tal foi escolhida a obra Humano, Demasiado Humano, como alvo, uma vez que esta representa o trabalho inaugural do pensamento crítico do filósofo alemão. Irar-se-á dialogar com temas de suma importância, como: o rompimento da filosofia de Nietzsche com o pessimismo de Schopenhauer e a música de Wagner, além da posição tomada diante da questão do “Ser” onde será retomada a idéia de “vir a ser” ou “devir”. Não se fugirá, tampouco, a analise do tão importante método empregado pelo pensador alemão em suas reflexões. Ter-se-á como ponto culminante do atual trabalho a desconstrução da idéia de livre-arbítrio e o interessante tema da ausência de liberdade. Com efeito, o que se busca é o estudo da crítica à moral realizada em Humano, atentando-se a como ela se desenrola e observando os resultados de grande importância que dela advém. 2. A transição: de romântico para crítico Humano, Demasiado Humano, obra escrita em 1878, representa um novo momento na filosofia do pensador alemão. Pode-se dizer que inaugura a sua crítica da moral, representando também o rompimento com a filosofia de Schopenhauer e com a música de Wagner. Enquanto no trabalho anterior, O Nascimento da Tragédia, a proposta se aproxima do pensamento romântico e culmina em uma metafísica de artista. O texto agora analisado desenha traços de um filósofo crítico e antimetafísico, que tem como meta cortar em dois pedaços a história da filosofia. Entretanto, existem interpretações que vêem nessa mudança uma evolução das intuições já presentes anteriormente, ao invés de uma quebra total de paradigma. Tal é a visão de Eugen Fink: Mas é precisamente um problema saber se o segundo período significa por assim dizer apenas uma visão do mundo nova e oposta do pensador, a qual extingue os anteriores motivos de pensamento, ou se, num sentido mais profundo, o seu pensamento conhece uma autêntica evolução e a sua intuição inicial se desenvolve1. A interpretação apresentada é um interessante contraponto a uma interpretação biográfica, que busca compreender os movimentos filosóficos de Nietzsche com base em sua vida pessoal. Na passagem a seguir, Fink, mostra um interessante exemplo de continuidade e evolução de um período para outro, ainda que com mudanças importantes: E assim como no primeiro período o sentimento trágico é a tonalidade basilar da existência, também agora é a percepção intensa da dissonância inerente à vida FINK, Eugen. “A Filosofia de Nietzsche”. Editora Presença, Lisboa, 1988. Tradução: Joaquim Lourenço Duarte Peixoto. P. 45. 1 humana que resulta da tensão entre ingenuidade e o saber crítico2. Acredita-se relevante a posição de Fink, mas com a ressalva de que, embora existam importantes continuidades que proíbam a total separação teórica dos períodos, existem também fundamentais diferenças que permitem a constatação de um novo movimento no pensamento de Nietzsche. 3. A questão do “ser” O tema colocado em debate a seguir é a questão fundamental da filosofia, ou da metafísica como colocaria Heidegger, qual seja a questão do “ser”, principalmente no tange a relação entre fenômeno e coisa em si. Inicialmente se apresentava como postura filosófica colocar-se diante do mundo fenomênico como diante de uma pintura e com a devida reflexão e análise tirar conclusões sobre o artista que produziu essa pintura. Em outras palavras, buscar no mundo dos fenômenos indícios da coisa em si. Posteriormente, municiados com o rigor da lógica, se constatou o conceito de metafísico como incondicionado e, por conseqüência, incodicionante, contestando assim qualquer relação entre o mundo da coisa em si, com o por nós conhecido, o mundo dos fenômenos. Nietzsche proporá uma terceira via para tal questão, dirá ele que se deve ver o mundo como algo que gradativamente veio a ser e continua em pleno vir a ser. Logo, não se trata de algo fixo que permita ao homem tirar conclusões definitivas, quanto menos de chegar ao criador, se é que tal existe. Tem-se, então, a idéia do devir que marca a forma como o filosofo se posiciona diante da questão do ser. A passagem seguinte de Humano, Demasiado Humano ilustra essa posição: FINK, Eugen. “A Filosofia de Nietzsche”. Editora Presença, Lisboa, 1988. Tradução: Joaquim Lourenço Duarte Peixoto. P. 53. 2 Mas de ambos os lados se omite a possibilidade de que essa pintura – aquilo que para nós, homens, se chama vida e experiência – gradualmente veio a ser, está em pleno vir a ser, e por isso não deve ser considerada uma grandeza fixa, da qual se pudesse tirar ou rejeitar uma conclusão acerca do criador (a razão suficiente). Foi pelo fato de termos, durante milhares de anos, olhado o mundo com exigências morais, estéticas, religiosas, com cega inclinação, paixão ou medo, e termos nos regalado nos maus hábitos do pensamento ilógico, que este mundo gradualmente se tornou assim estranhamente variegado, terrível, profundo de significado, cheio de alma, adquirindo cores – mas nós fomos os coloristas: o intelecto humano fez aparecer o fenômeno e introduziu nas coisas as suas errôneas concepções fundamentais3. Nesse trecho, além da afirmação do constante devir que em muito nos lembra Heráclito, está um elemento fundamental e constante na filosofia de Nietzsche, que é a afirmação de que o valor (cores) não está no mundo, mas é dado pelo homem. Logo, é inevitável a conclusão que o objeto da filosofia não é o mundo, mas o homem, pois é de acordo com a interpretação que o homem dá ao mundo que o devir se desenrola. Com tal pensamento, Nietzsche, desfere um duro golpe a metafísica, pois mesmo ela não passa de mera interpretação e construção do mundo, portanto, qualquer pretensão de verdade sobre o mundo se resume a uma interpretação em perspectiva. Com efeito, é muito coerente que o debate filosófico se concentre no homem. Resta claro, na passagem seguinte, a sentença do filósofo sobre a coisa em si: Quem nos desvendasse a essência do mundo, nos causaria a todos a mais incômoda desilusão. Não é o mundo como coisa em si, mas o mundo como representação (como erro) que é tão rico em significado, tão profundo, maravilhoso, portador de felicidade e infelicidade4. Entretanto, para Nietzsche, não basta o esforço hercúleo de superar a metafísica, pois, ainda que a mesma se encontre NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 25. 4 NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 36. 3 ultrapassada, não se pode jamais olvidar que a metafísica deu as cores para a pintura do mundo, durante vários séculos. 4. O método de Nietzsche Torna-se oportuno, então, expor o método que o pensador de Röcken utiliza em suas análises. Embora, ele proclame grandes expectativas na ciência5, essa ciência apresentada difere grandemente da idéia usual que se tem do termo. Em linhas gerais é possível dizer que dois serão os elementos fundamentais dessa “ciência”, sendo o primeiro a analise e compreensão psicológica e o segundo o estudo criterioso da história. Pode-se concluir, desta feita, que o método de Nietzsche é histórico-psicológico. O recorte a seguir elucida a questão: Um grau certamente elevado de educação é atingido, quando o homem vai além de conceitos e temores supersticiosos e religiosos, deixando de acreditar em amáveis anjinhos e no pecado original, por exemplo, ou não mais se referindo a salvação das almas: neste grau de libertação ele deve ainda, com um supremo esforço de reflexão, superar a metafísica. Então se faz necessário, porém, um movimento para trás: em tais representações ele tem de compreender a justificação histórica e igualmente psicológica, tem de reconhecer como se originou delas o maior avanço da humanidade, e como sem este movimento para trás nos privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje6. O movimento para trás de Nietzsche demonstra estar ele não apenas preocupado com a destruição da filosofia feita anteriormente, É muito importante ter em mente que a visão de Nietzsche da ciência não se confunde com a idéia de que a mesma pode levar a constatações verdadeiras do real, tal uma ciência positiva. A ciência positiva também contribuiu para a história do erro. Todavia, o pensador alemão elogia a postura científica, de sobriedade e frieza. Mesmo que a ciência não possa superar o erro e permaneça adstrita ao mundo da representação, sua postura é capaz de elevar o homem a uma postura acima, a ponto de ser possível um estudo desses erros, com um distanciamento, que a arte, a religião e a moral não permitem. Nesse sentido se tem como interessante a posição de Gianni Vattimo sobre a questão: “aqui é evidente que Nietzsche não espera da ciência uma imagem do mundo mais verdadeira, mas antes um modelo de pensamento não fanático, atento aos processos, sóbrio, objetivo apenas no sentido em que é capaz de julgar fora da pressão mais imediata dos interesses e das paixões...”.VATTIMO,Gianni. “Introdução a Nietzsche”. Editorial Presença, Lisboa, 1990, tradução: António Guerreiro, p. 39. 6 NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 29. 5 mas convencido de que por mais absurdas que tenham sido as teorias metafísicas e religiosas, foram um passo necessário na escalada da filosofia, sendo mesmo condições de possibilidade para a sua autodestruição. Partindo desse ponto de vista, o filósofo concorda com o progresso da história, mas não o coloca como algo necessário, ainda que sempre possível. Não é permitido esquecer a idéia de devir já apresentada, uma vez que partindo de uma óptica do vir a ser, a análise histórica tem fundamental importância, e como foi visto que o valor não está no mundo, mas nos olhos humanos, uma análise psicológica parece mais que recomendável. Antes de se prosseguir a outro tema de suma importância na obra em análise, acredita-se interessante trazer alguns recortes exemplificativos da aplicação do já apresentado método históricopsicológico de Nietzsche. O fragmento seguinte é um exemplo de como o pensador alemão analisa psicologicamente os conceitos de bem e mal no contexto histórico da antiguidade: O conceito de bem e mal tem uma dupla pré-história: primeiro, na alma das tribos e castas dominantes. Quem tem o poder de retribuir o bem com bem, o mal com mal, e realmente o faz, ou seja, quem é grato e vingativo, é chamado de bom; quem não tem poder e não pode retribuir é tido por mau7. Outro exemplo interessante está no aforismo 84, onde em uma curta passagem se aponta uma relevante característica psicológica do homem: A sutileza da vergonha – Os homens não se envergonham de pensar coisas sujas, mas ao imaginar que lhes são atribuídos esses pensamentos sujos8. NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 48. 8 NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 63. 7 Um terceiro e último recorte se debruça sobre a questão da vaidade e a trabalha de forma interessante, tendo como ferramenta o método supra referido: Apenas quando alguém sem considerar o proveito e o desejo de contentar é que falamos de vaidade. Nesse caso o indivíduo quer contentar a si mesmo, mas a custa de seus semelhantes, induzindo-os a uma falsa opinião a seu respeito ou visando um grau de “boa opinião” em que esta vem a ser penosa para todos os demais (ao suscitar inveja)9. Nesses três fragmentos é possível observar a análise psicológica e histórica que Nietzsche realiza. Sem dúvida é uma forma inusitada de se fazer filosofia, pois se distancia da tradicional argumentação filosófica que, embora apresente argumentos coerentes, paga, muitas vezes, por essa coerência o preço de se afastar da realidade, como ocorre, por exemplo, quando Kant busca fundamentar a impossibilidade absoluta de mentir mesmo que dizer a verdade traga resultados nefastos, cabe se questionar até que ponto Kant acreditava realmente que se deve dizer a verdade sempre, ou se estava apenas tentando salvar a tão buscada coerência de sua teoria. Sob esse aspecto Nietzsche parece mais veraz, pois se propõe a estudar as reflexões morais, da forma já comentada, sem temer as conseqüências de seus estudos. Embora, ele não apresente argumentos exaustivos, sua análise profunda do homem traz conclusões muito mais próximas da realidade, daí se afirmar que Nietzsche realiza uma filosofia da vida. Mesmo que por vezes pareça que ele nos lance informações repentinas e desconexas, fato favorecido pelo estilo aforístico, o pensador alemão consegue navegar neste universo de constatações psicológicas e chegar a conclusões fundamentais para filosofia, tal como a conclusão que passaremos a analisar posteriormente. NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 64. 9 5. A crítica fatal à idéia de livre-arbítrio A implacável dissecação do homem feita por Nietzsche traz resultados terríveis, com os quais é preciso ter muito cuidado, pois parece que sua filosofia caminha no fio da navalha sobre o abismo do niilismo. Embora, o termo niilismo ainda não tenha aparecido na obra de Nietzsche até 1881, pode-se observar que a idéia do mesmo já ronda seus escritos. É fundamental ter em mente que quando se realiza críticas a estruturas tão vitais, é inevitável que sejam abertos vazios, os quais dão margem para imaginar a ausência de sentido da vida. Tem-se na passagem a seguir o vislumbre da ausência de sentido da vida por Nietzsche, e embora neste momento do texto possa parecer deslocado esse anúncio, acredita-se importante referi-lo, uma vez que adquirirá sentido com o desenrolar do trabalho: Portanto, para o homem comum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato e ele se tomar por mais importante do mundo. A grande falta de imaginação de que sofre faz com que não possa colocar-se na pele de outros seres, e em virtude disso participa o menos de seus destinos e dissabores. Mas quem pudesse realmente deles participar, teria que desesperar do valor da vida; se conseguisse apreender e sentir a consciência total da humanidade, sucumbiria, amaldiçoando a existência, pois no conjunto a humanidade não tem objetivo nenhum, e por isso, considerando todo o seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio, mas sim desespero10. A leitura desse fragmento onde se anuncia tão terrível consideração leva ao leitor a indagar: Como Nietzsche chegará a essa conclusão? O método de estudo já foi apresentado, e com sua aplicação a história da moral se observa que a todas as complexas justificações e eruditos postulados subjaz uma relação simples, o homem sempre buscará o prazer e repelirá o desprazer. No mundo animal tal constatação é simples, dada à simplicidade dos próprios animais, NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 38 e 39. 10 todavia, o homem possui sofisticadas formas de buscar seu prazer e afastar o desprazer. Inicialmente, se atribui bom e mal a uma ação tendo em consideração apenas as conseqüências resultantes. É preciso atentar-se ao fato que na ética de Aristóteles a ação só poderia ser valorada depois de sua consumação e da análise das conseqüências geradas pela mesma. Embora Nietzsche não cite expressamente, seu dialogo com a história da filosofia é freqüente. Posteriormente, o predicado de bom ou mal é associado aos motivos internos que levam a ação. Várias teorias éticas serviram-se do motivo como elemento fundamental à valoração. Tal é o caso de Schopenhauer que vê na compaixão o único motivo moral para ação. Nessa trajetória enuncia-se que primeiro o homem foi responsabilizado pelas conseqüências de seus atos, depois pela motivação interna dos mesmos, até chegar a um ponto em que o homem foi responsabilizado pelo mero fato de existir, embora não haja referencia no texto parece interessante ter em mente que essa responsabilidade do homem por ser homem em muito lembra a idéia do pecado original, pois todo o homem nasce responsável por este pecado original cometido nos tempos idos do paraíso, tal prenuncia a religião cristã. A passagem a seguir apresenta essa história da responsabilidade do homem: Primeiro chamamos as ações isoladas de boas e más, sem qualquer consideração por seus motivos, apenas devidos às conseqüências úteis ou prejudiciais que tenham. Mas logo esquecemos a origem dessas designações e achamos que qualidade de “bom” e “mau” é inerente às ações, sem consideração por suas conseqüências. (...) Em seguida, introduzimos a qualidade de ser bom ou mau nos motivos e olhamos os atos em si como moralmente ambíguos. Indo mais longe, damos o predicado bom ou mau não mais ao motivo isolado, mas a todo o ser de um homem, do qual o motivo brota como uma planta do terreno. De maneira que sucessivamente tornamos o homem responsável por seus efeitos, depois por suas ações, depois por seus motivos e finalmente por seu próprio ser11. NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 45. 11 Até esse ponto o que se fez foi uma reconstrução histórica da moral sob a óptica do método psicológico e histórico, mas Nietzsche vai dar um passo a frente nessa trajetória, afirmando que a responsabilidade não está em nenhum desses elementos, em verdade, a responsabilidade não existe, não passa de uma fábula. Nietzsche chegará a esta consideração ao vislumbrar que existem vários elementos determinantes12 para a ação, que são desconhecidos pelo agente, logo, se não há conhecimento pleno do que determina a ação, não há como responsabilidade. se falar De em acordo livre-arbítrio com essa e menos ainda interpretação está em o posicionamento de Gianni Vattimo: A negação da liberdade do querer, que ocorre frequentemente nos escritos deste período, resulta muito logicamente da negação da cognoscibilidade da ação; é a outra faze do mesmo fenômeno. Se nem o agente pode ter uma consciência clara do que constitui a sua ação, é obvio que a escolha que ele fará dela não será completamente livre13. Acredita-se de grande relevância a leitura de Vattimo, todavia, vêse como prudente ter a seguinte ressalva em consideração. A questão do desconhecimento dos fatores da ação, não condiz com um mero conhecimento imperfeito ou como o autor coloca a ausência de clareza, mas de um desconhecimento total de fatores determinantes para o agir, tal se exemplifica quando Nietzsche fala das ações altruístas no aforismo 57, o desconhecimento é fundamental e não apenas obscuro, pois o agente acredita estar agindo apenas para o outro quando na verdade age apenas para si. Quanto aos fatores determinantes para a ação desconhecidos pelo agente, Nietzsche toma como fundamentais a busca pelo prazer e evitar o desprazer. Deve restar claro, todavia, que Nietzsche os utiliza como pontos de partida para seu estudo, como elementos primeiros para a sua analise, não devendo-se confundir essa busca pelo prazer com um hedonismo. Nesse sentido acredita-se de suma importância a interpretação de Vattimo: “identificar com base na moral uma pulsão como instinto de conservação ou a procura do prazer não é como indicar a fonte do valor moral em estruturas estáveis, não em devir, próprias do ser – aquelas estruturas que servem sempre a moral tradicional, metafísica ou religiosa, para justificar os seus sistemas de preceitos. Instinto de conservação e procura do prazer são forças plásticas que permitem precisamente ver a moral como história e como processo” VATTIMO,Gianni. “Introdução a Nietzsche”. Editorial Presença, Lisboa, 1990, tradução: António Guerreiro, p. 45. 13 VATTIMO,Gianni. “Introdução a Nietzsche”. Editorial Presença, Lisboa, 1990, tradução: António Guerreiro, p. 44. 12 Retomando-se a seqüência da analise da crítica em Humano, Demasiado Humano, o fragmento em seqüência anuncia a fábula da liberdade inteligível: E afinal descobrimos que tampouco este ser pode ser responsável, na medida em que é inteiramente uma medida necessária e se forma a partir dos elementos e influxos de coisas passadas e presentes: portanto, que não se pode tornar o homem responsável por nada, seja por seu ser, por seus motivos, por suas ações ou por seus efeitos. Com isso chegamos ao conhecimento de que a história dos sentimentos morais é a história de um erro, o erro da responsabilidade, que se baseia no erro do livrearbítrio14. Vislumbra-se assim a mais importante conclusão de Nietzsche sobre a moral em Humano, Demasiado Humano, qual seja a inexistência de liberdade, as ações humanas são contingentes e necessárias. Tal tese pode soar estranha ou até mesmo absurda, mas note-se o contexto filosófico em que Nietzsche está inserido, ainda se busca lidar com a mudança de paradigma proposta por Kant. O pensador de Königsberg separou o mundo, em duas partes: o mundo da razão pura, que é regido pelas leis da natureza e onde não há liberdade, mas apenas o império de leis necessárias e o mundo da razão prática que é o mundo moral do imperativo categórico, onde o sujeito tem liberdade de ação. Tendo em consideração o fato que para a fundamentação da liberdade através da razão prática, Kant, lança mão do conceito de Deus, torna-se visível o enfraquecimento dos alicerces fundacionais da liberdade de ação. Logo, o que se tem é a terrível constatação da ausência de livrearbítrio, e juntamente com essa constatação a derrocada de todas as teorias morais que tem como fundamento a responsabilidade. Vê-se a profundidade de tal anúncio ao se observar que conceitos tais como a culpa, o arrependimento, a responsabilidade e mesmo o mérito moral são como frutos de uma árvore morta, a árvore do livre-arbítrio. Não há NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 45. 14 sentido em atribuir bom e mau ao que é necessário. No trecho seguinte do paradigmático aforismo 107 a questão é abordada: A total irresponsabilidade do homem por seus atos e por seu ser é a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem que engolir, se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade. Todas as suas avaliações, distinções, aversões, são assim desvalorizadas e se tornam falsas: seu sentimento mais profundo, que ele dispensava ao sofredor, ao herói, baseava-se num erro; ele já não pode louvar nem censurar, pois é absurdo louvar e censurar a natureza e a necessidade15. Nietzsche, todavia, não será mais um notável exemplar do pessimismo, como foi Schopenhauer, mas buscará a superação desse pessimismo. Embora, vislumbre-se constatações terríveis, que solapam tranqüilizantes “verdades” e abrem vazios existências por demais angustiantes, esse é um passo necessário na trajetória da superação desta possível ausência de sentido da vida. Não se pode olvidar que juntamente com a ausência de livre-arbítrio advém a total irresponsabilidade e inocência do homem, que concede leveza a existência. Na passagem a seguir, também do aforismo 107, encontra-se o vislumbre da superação: Compreender tudo isso pode causar dores profundas, mas depois há um consolo: elas são as dores do parto. A borboleta quer romper o seu casulo, ela o golpeia, ela o despedaça: então é cegada e confundida pela luz desconhecida, pelo reino da liberdade. Nos homens que são capazes dessa tristeza – poucos o serão! – será feita a primeira experiência para saber se a humanidade pode se transformar, de moral em sábia. O sol de um novo evangelho lança seu primeiro raio sobre o mais alto cume, na alma desses indivíduos: aí se acumulam as névoas, mais densas do que nunca, e lado a lado se encontram o brilho mais claro e a penumbra mais turva. Tudo é necessidade – assim diz o novo conhecimento: ele próprio é necessidade. Tudo é inocência: e o conhecimento é a via para compreender essa inocência. Se o prazer, o egoísmo, a vaidade são necessários para a NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 76. 15 geração dos fenômenos morais e do seu rebento mais elevado, o sentido para a verdade e justiça no conhecimento; se o erro e o descaminho da imaginação foram o único meio pelo qual a humanidade pôde gradualmente se erguer até esse grau de auto-iluminação e libertação – quem poderia desprezar esses meios? Quem poderia ficar triste, percebendo a meta a que levam esses caminhos? Tudo no âmbito da moral veio a ser, é mutável, oscilante, tudo está em fluxo, é verdade: - mas tudo se acha também numa corrente: em direção a uma meta16. Nietzsche traz nessa magnífica passagem a afirmação de que as terríveis constatações que poderiam levar o homem a noite mais escura do niilismo são na verdade condição necessária para a aurora de um novo dia, dia de libertação dos grilhões da moral. Novamente se observa a menção ao fundamental conceito de devir, pois a moral, tanto quanto a pintura da existência, está em pleno vir a ser. Logo, mesmo a mais terrível das coisas perde sua tragicidade ao se compreender que não passa de mero ponto passageiro no constante devir. Desta forma o que parecia um pessimismo abre-se em um universo de possibilidades e em uma marcha constante em direção a uma meta. Assim consuma-se a poderosa crítica feita à moral por Nietzsche em Humano, Demasiado Humano, atacando o elemento mais fundamental da moral, qual seja, o livre-arbítrio. Abre-se então um vácuo deixado pela moral, mas que desde já, Nietzsche, se propõe a superar, dando um importante passo na história do devir moral. 6. Considerações Finais No presente trabalho se estudou a crítica feita à moral por Nietzsche na obra Humano, Demasiado Humano. Uma vez munido de seu método inovador, que lança mão de estudos psicológicos e sempre inseridos em uma realidade histórica. O pensador de Röcken traz uma posição interessante quanto a questão do “ser”, colocando o homem em posição de destaque, vez que é justamente o homem que irá dar cores a NIETZSCHE, Friedrich. “Humano, Demasiado Humano”. Companhia de Bolso, 2008, tradução Paulo César Souza, p. 77/78. 16 pintura da existência e contribuindo para este constante devir. Por fim, traz o anúncio paradigmático da ausência de livre-arbítrio, demonstrando a existência de fatores determinantes para as ações humanas, que são desconhecidos e não controlados racionalmente. Com efeito, traz uma nova concepção de homem, contrapondo à idéia do ser racional que tem (ou ao menos pode ter) o pleno controle de si, com a noção de um homem que desconhece a totalidade de causas e processos que definiram sua conduta. Ainda que não se tenha tratado a totalidade da crítica à moral de Nietzsche, já é possível se observar os resultados fundamentais que esta alcança. Para se compreender o significado e a repercussão da crítica em analise vê-se uma metáfora com a situação do jogo de xadrez do zug zwang como oportuna. Cabe recordar que o xadrez é um jogo em que dois jogadores se confrontam, ambos dotados de um mesmo número de peças que representam exércitos, onde o objetivo é a captura da peça central do adversário, peça esta que representa o rei. O zug zwang consiste em uma posição na qual qualquer movimento lícito possível para determinado jogador o colocará em uma situação inferior a que se encontrava antes de mover-se. Logo, como no jogo em questão é proibido “passar a vez” sendo obrigatório ao jogador mover-se sempre que for seu turno, se posto em posição de zug zwang, o jogador será obrigado a prejudicar-se, pois todas as possibilidades de um movimento não prejudicial foram fechadas por seu adversário. Acredita-se que a crítica à moral, magistralmente performada por Nietzsche, vai impor à essa moral uma situação similar a um zug zwang. Uma vez que para se dar continuidade as tentativas de construção de uma teoria moral, se terá que abrir mão de certos postulados. A idéia de uma moral fundada na verdade, por exemplo, parece um despropósito após se tomar conhecimento do pensamento nietzschiano. Com efeito, sem a força dos juízos morais verdadeiros, será necessário se assentar uma teoria moral em bases mais modestas, como a idéia de consenso. Resta claro, desta feita, que a crítica à moral feita por Friedrich Nietzsche a coloca em uma situação na qual, para manter-se, é forçada a enfraquecer-se, embora as teorias morais continuem, seus postulados não tem a força absoluta de outrora. Configurando-se, assim, uma situação de zug zwang, que até o presente momento não foi superada. 7 – Referencias Bibliográficas ARALDI, Clademir Luís. Nietzsche como Crítico da Moral. Dissertatio. Pelotas [27 – 28] p. 33 – 51, 2008. ARALDI, Clademir Luís. Niilismo, Criação, Aniquilamento Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Editora Unijuí, 2004. FINK, Eugen. A Filosofia de Nietzsche. Editora Presença, Lisboa, 1988. VATTIMO,Gianni. Introdução a Nietzsche. Editorial Presença, Lisboa, 1990. MARTON, Scarlett. Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. RUBIRA, Luís. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores. 2008. Tese de Doutorado em Filosofia – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.