Anais do IV Seminário Nacional ESCOLA PÚBLICA E FEMINIZAÇÃO DOCENTE - FACES DO MESMO PROJETO Marta Sueli de Faria Sforni1 RESUMO Com a intenção de compreendermos os objetivos da democratização do ensino, buscamos nas fontes primárias - literatura produzida e/ou publicada no final do século XIX as qualidades consideradas indispensáveis ao professor que deveria assumir a educação nas escolas públicas. Nos discursos da época destaca-se o importante papel atribuído a mulher na educação que se pretendia democrática. Educação para todos, educação da mulher e a mulher na educação estavam tão evidentes nos discursos da época que negligenciar um vínculo entre esses elementos significaria perder um importante veio de análise. Foi a partir desta constatação que a feminização do corpo docente ganhou aos nossos olhos um significado especial, não pelo fenômeno em si, mas pelo que ela permite desvelar do “lócus” em que se concretizou: a escola pública. Parecia-nos paradoxal o fato de a mulher ser, ao mesmo tempo, considerada intelectualmente inferior e exaltada como educadora por excelência. O resultado dos nossos estudos mostra que, na representação dos homens da época, a mulher é naturalmente portadora das qualidades que se deseja reproduzir em cada cidadão-trabalhador, o que foi fundamental para a projeção da mulher no século XIX, enquanto mãe e professora. O argumento discursivo que a legitima como professora não é, portanto, o elemento intelectual, mas seus “instintos” maternais, que são sinônimos de fé, sensibilidade, devotamento, abnegação. Por isso, o paradoxo foi se dissolvendo à medida que a “alma” da instrução popular se explicitava. Sua explicitação, porém, não estava na própria escola, mas no interior da conjuntura social do século XIX. TEXTO COMPLETO No sentido de aprofundar nossos conhecimentos sobre a gênese da escola pública, estimulou-nos a idéia de investigar as qualidades consideradas indispensáveis ao professor que assumia a educação das classes populares no século XIX. Para efetivar este estudo priorizamos as fontes primárias, ou seja, a literatura produzida e/ou publicada no final do século passado. Consultamos livros expressando idéias de intelectuais e publicistas da época, relatórios de congressos e conferências, discursos de formaturas, memórias de professores, projetos educacionais, livros adotados para uso de alunos, dentre outros. Numa primeira leitura desse material, causou-nos surpresa o importante papel atribuído à mulher na educação que se pretendia democrática. Educação para todos, educação da mulher e a mulher na educação estavam tão evidentes nos discursos da época que negligenciar um vínculo entre esses elementos significaria perder um importante veio de análise. Foi a partir desta constatação que a feminização do corpo docente ganhou, aos nossos 1 Professora Assistente do Departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá - PR (Av. Colombo, 5.790) 743 HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” olhos, um significado especial, não pelo fenômeno em si, mas pelo que ela permite desvelar do “lócus” em que se concretizou: a escola pública. Apesar de a feminização do corpo docente consolidar-se plenamente somente no século XX, ela faz parte de um processo que tem início no final do século XIX, concomitante à criação da escola primária de ensino laico e obrigatório, quando podemos encontrar vários defensores da tese da vocação natural da mulher para o magistério. Por mais paradoxal que possa parecer, a mulher, no século XIX, apesar de ser considerada intelectualmente inferior ao homem, foi enaltecida como “educadora por excelência”. Os homens, mais “lógicos”, “objetivos” e “racionais”, colocaram nas mãos das mulheres, mais “intuitivas” e “afetivas”, o ensino público. Nosso estudo partiu, então, para a compreensão dos possíveis significados da vinculação entre a feminização da profissão docente e a democratização do ensino, com base na premissa de que quanto mais compreendermos as lutas levadas pelos homens no século XIX mais as relações entre os dois fenômenos, na sua origem, se esclarecem. O contrário também é verdadeiro. Com base nisso formulamos as seguintes questões para nortear nosso estudo: se o professor é a alma da escola, que alma, os homens do século XIX, pretendiam dar à instrução popular? O que significava feminizar o corpo docente tendo em vista a inferioridade intelectual atribuída à mulher? Educação doméstica: tarefa feminina Podemos observar em toda a extensão da campanha desencadeada em fins do século passado pela democratização do ensino, que a mulher, além de representar economia para o Estado, foi concebida pelas suas qualidades de mãe, como tendo uma natureza mais educadora do que o homem. O consenso em torno da mulher como educadora por excelência pelas suas virtudes democráticas, encontrada na literatura consultada sinalizava a existência de uma cultura já internalizada de exaltação da mãe na educação dos filhos. Apesar de não termos tido inicialmente o objetivo de estudar a vida familiar, fomos percebendo que nela encontraríamos os fundamentos dessa cultura que se manifestava forte nos discursos em favor da incorporação da mulher no corpo docente da escola pública. Parecia-nos que a professora, educadora dos filhos da Pátria, era uma extensão de seu papel familiar de mãe, educadora de seus filhos. Recorremos, então, à literatura sobre a vida familiar, sem a qual aqueles argumentos discursivos careciam de fundamentos. Mais do que na organização da escola, foram nas transformações que ocorreram na família que encontramos a cultura da época sobre o papel que a mãe desempenha nas novas relações familiares e na vida social como um todo. É aí que encontramos a afeição materna como exigência da sociedade moderna que, rompendo com os laços feudais, deu origem à família nuclear (mãe, pai, filhos) unida por laços afetivos, em oposição à grande família feudal, unida por laços de dependência material. 744 Anais do IV Seminário Nacional A natureza do conteúdo dessas publicações oscila de discussão filosófica à manual de instrução sobre o governo do lar, com ênfase nas relações entre pais e filhos, na educação doméstica e no papel da mãe. Em geral, esses discursos enaltecem a família tal como nós a concebemos ainda hoje, apesar de neles os valores familiares, que na atualidade poderiam ser classificados de obviedade, ganharem um sentido de novo, de moderno. Discutia-se a organização da vida privada, com vistas à sua utilidade pública. Em busca da compreensão dos valores que passaram a nortear a organização familiar retomamos o processo de transição da família aristocrática à família propriamente burguesa. Interessamo-nos em observar, neste processo, onde velhos personagens ganham novos papéis, o despontar da mulher para as questões públicas, mesmo quando sua atuação restringe-se ao universo privado. O novo papel feminino somente é definido quando entra em cena o indivíduo, fazendo com que no ambiente doméstico as atenções voltem-se para a educação dos filhos. A plenitude da nova forma de produzir a existência humana, regida pelas trocas, é o cenário explicativo dessas transformações. Contraditoriamente, enquanto nas antigas colônias os homens deixavam de ser escravos ou abandonavam relações de dependência, nas antigas metrópoles os trabalhadores livres, já existentes, eram dispensados do trabalho. Neste contexto, havia, portanto, lugar para a educação desse homem livre, cuja liberdade deveria estar de acordo com a ordem produtiva. As relações de troca entre indivíduos “iguais” têm como princípio fundamental a liberdade. No momento em que a sociedade atinge a forma mais desenvolvida dessas relações passa a se preocupar com a educação do homem livre e a liberdade assume sua forma propriamente burguesa. Entre direitos e deveres prescrevem-se os limites dessa liberdade: o direito de ir e vir, de trocar, de acumular riquezas e os deveres com a manutenção dessa ordem. A intermediação com a sociedade passa a ser feita pelo próprio indivíduo, não mais pelo pai. O relacionamento pai filho muda de natureza; diminuídos ou até rompidos os laços de dependência, o filho deixa de ter deveres de submissão. A ilimitada autoridade paterna passa a representar um entrave à independência fundamental do homem que está em germe na criança-aprendiz. Na exaltação da autonomia do filho, há o enfraquecimento da autoridade do pai. A questão pode parecer traumática mas TOCQUEVILLE observa que há uma espécie de consenso entre ambos. O pai já conhece os limites de sua autoridade e o filho sabe que mais tarde será livre. Politicamente, na democracia, pai e filho, antes de se figurarem como tal, são cidadãos, cujos direitos e deveres são comuns: “...o pai aos olhos da lei, é apenas um cidadão mais velho e mais rico do que seu filho”(1977, p. 447), o que lhes confere uma igualdade formal. Quando os homens não são tão diferentes entre si, a noção geral de superioridade torna-se frágil e pouco clara. A opinião individual sobre os fatos é exaltada, “...os homens adotam por princípio geral que é bom e legítimo julgar todas as coisas sozinhos adotando as crenças antigas como ensinamentos e não como regras, o poder de opinião exercido pelo pai sobre o filho torna-se menor, assim como seu poder legal”(Tocqueville, 1977, p. 448). Ou seja, a figura do pai, como portador da tradição familiar, torna-se desbotada diante da modernidade, diante de uma sociedade que se move aceleradamente e vive sob o império da opinião pessoal. 745 HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” GUIZOT reconhece que o desenvolvimento daquelas faculdades impostas pela vida ao pai de família, na aristocracia, devem ser, agora, desenvolvidas em cada indivíduo. A partir desta educação ...ter-se-ia feito um homem dotado de um caráter individual, capaz de encontrar-se a si mesmo em todas as circunstâncias, e de aplicar em todas as ocasiões toda extensão de todas as suas faculdades que têm como ponto de partida a natureza.(1872, p. 448) O indivíduo que era dependente deve agora autogovernar-se e para isso precisa desenvolver todas as suas capacidades. Para tanto, é necessário que seja oferecida uma formação geral que o prepare para uma sociedade em constantes mudanças. Conforme relata GUIZOT, o antigo pai de família, não tendo o comércio senão como segundo objetivo, aplicava-se ao governo da casa e “não dá seus trabalhos e seu tempo a não ser na medida que não prejudiquem suas funções principais”. Porém, ocupar-se do trabalho e dos negócios vai, aos poucos, sendo a única forma de reprodução da existência; o “comerciante” vai se manifestando nos chefes de família, que passam a ocupar-se inteiramente das questões materiais e “deixam a casa, seus filhos, sua mulher e reservam sua atenção às pessoas de negócio e aos seus servidores”(1872, p. 446). A mãe vai, assim, assumindo a direção do lar. Desta forma, no interior da família o foco muda de direção: do primogênito para todos os filhos e do pai para a mãe. A educação dos filhos passa a ser a grande meta da família. A infância é revestida de zelo. Os filhos emergem e em torno deles a família se mobiliza. Desta nova família outras qualidades são exigidas, ela deve propiciar as condições ideais para que o homem desenvolva-se em plenitude, conforme suas potencialidades naturais, sem contar com privilégios ou poderes preestabelecidos como no antigo regime. Considerando-se que a manutenção social depende do autogoverno de cada um, é preciso que as normas socialmente aceitas sejam incorporadas, os vícios combatidos e, concomitantemente, reforçadas novas virtudes. É necessário que a criança seja acompanhada atentamente para que seus vícios sejam podados e, ainda, transformadas suas inclinações naturais, até que ela mesma, guiada pela razão, possa autogovernar-se. Daí a preocupação com a educação. O ambiente doméstico precisa ser reordenado para este fim. A maneira como a criança é tratada passa a ser considerada determinante de suas qualidades físicas e morais quando adulto. Alimentação precária, falta de exercícios físicos e de higiene, vestuário inadequado, castigos físicos, autoritarismo, falta de amor familiar formariam um indivíduo fraco de caráter, inseguro, com saúde física e moral prejudicadas, exatamente o oposto do que uma sociedade competitiva necessita. Daí porque a infância ganha um espaço inédito na história da humanidade. O trono que era do pai vai, aos poucos, sendo ocupado pelos filhos. A família passa a ser vista como responsável pela ordem social, pois acredita-se que no seu interior é que podem ser ensinadas as virtudes sociais. Para educar o indivíduo neste sentido não se poderia mais permitir que a mãe fosse ausente na educação dos filhos, sem 746 Anais do IV Seminário Nacional amamentá-los, entregando-os às amas-de-leite ou aos internatos. Esse comportamento que, até então, não havia incomodado os homens da época, passa a ser condenado veementemente. Preocupação que não poderia existir antes da nova sociedade tornar-se hegemônica. Acompanhar todos os passos do desenvolvimento da criança, adequar o meio físico às suas necessidades, aproveitar todos os momentos para educá-la, são necessidades que se impõem na educação dessa “nova criança”. Ao lado dela e para ela requisita-se a presença de um “ser especial”, que se responsabilize por este processo educativo: a mãe. A mulher é convocada. Crianças e mulheres entram em cena. Na criança acredita-se que está a semente do futuro cidadão; na mulher, a possibilidade de fazê-la germinar . Assim, se a vida pública mantém estreito vínculo e depende da vida privada, esta perde sua “privacidade”. A quantidade de banhos, a amamentação, a alimentação, a vida sexual e outros temas deixam de ser questões pessoais, ou de foro íntimo, para ganhar status de utilidade pública. Recai sobre as mulheres uma atenção inédita, pois passam a ser uma espécie de intermediadoras do Estado. Estado que vai requisitá-la, ainda mais, a partir do século XIX. Consolidada a sociedade pelo processo de expropriação, na qual a miséria submete o homem ao trabalho, passa-se das virtudes individuais do homem empreendedor às virtudes sociais do cidadão protetor da ordem e das instituições, pela persuasão. Em meados do século passado, os países capitalistas mais avançados já haviam completado sua luta contra a antiga sociedade e começavam a ter à frente os problemas decorrentes não mais do passado, mas da sua própria forma de organização social. Era preciso esquecer o passado e consolidar o presente. Ainda que dificultadas pelas modernas lutas de classes, que demonstram a insatisfação da classe trabalhadora com um modo de produção onde o trabalho é social e a apropriação privada. As relações sociais de produção deveriam fincar seus alicerces em bases sólidas, em instituições que as fomentassem. A democratização destas instituições era a condição para que a superestrutura se adequasse às relações sociais de produção. A maternidade enquanto ato de total doação, sem espera de recompensas, é o maior exemplo moral que a mãe transmite aos filhos e que, por decorrência, a mulher expõe à humanidade. A abnegação, a doação e a humildade são virtudes que a mãe imprime na personalidade do filho sem que sejam formalmente ensinadas. MARTIN diz que no coração da mulher há alguma coisa de republicano, que a chama ao heroísmo e à dedicação. Seu amor e abnegação fazem dela o exemplo de cidadania e de manutenção da ordem pública. No universo privado, a mulher constitui-se no modelo de “homem público”. Sendo assim, o amor materno é capaz de apagar a chama revolucionária. Completa o autor: Quem, melhor do que a mãe, nos pode ensinar a preferir a honra à fortuna, a amar os nossos semelhantes, a socorrer os desgraçados, a elevar a nossa alma até a origem do belo e do infinito? (...) é pelo amor que chega a virtude(1872, p. 446). A maternidade passa a ser entendida não mais como um ato de procriação, mas essencialmente como um ato educativo. A mulher é vista como destinada a inspirar no homem, logo na infância, os sentimentos morais. Desde a mais tenra idade, a criança seria educada no sentido de direcionar sua índole, inclinações, sentimentos e costumes para o amor 747 HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” ao próximo e para o brasileiras: bem público. É este o convite que faz AMERICANA às mães O coração egoísta nada ama na vida senão a si! Não se interessa por ninguém que não lhe pagar bem caro seus serviços ou proteção. Já vês senhoras que brilhante é a missão da mulher no mundo! Não penseis nem por um só instante que os preciosos, e sagrados deveres da maternidade sejam somente conceber, e criar seus filhos! Mas sim formá-los tão preciosos em suas qualidades morais que a sociedade inteira depois tenha glória, e orgulho de os ter no número de seus concidadãos. (1853, p. 365). Elevada à condição de primeira professora dos filhos e visando à sua apropriada inserção na nova ordem, a instrução da mulher é justificada, já que dela dependeria em grande escala a adequação dos futuros cidadãos ao mundo do trabalho. Ao assumir tal função outros valores passam a nortear o ideal feminino, dentre eles a instrução passa a ser requisitada como parte da formação adequada das futuras mães. Neste sentido, a instrução feminina passa a ser um dos itens da pauta do pensamento liberal. Todavia, esta instrução aparece, na maioria das opiniões dos intelectuais do século XIX, como o melhor meio para propiciar o aperfeiçoamento moral da mulher. Devendo, portanto, ser branda. É difícil não perceber, em todos esses discursos, a estreita relação entre uma ordem social ameaçada e o desenvolvimento moral através do fortalecimento das relações familiares e da educação doméstica, agora sob responsabilidade da mulher, considerada superior ao homem quando se trata das virtudes sociais. Nesta família a mãe assume o papel de moralizadora dos novos soberanos. A educação da infância no ambiente doméstico como prerrogativa exclusivamente feminina aliada à baixa expectativa quanto ao seu desenvolvimento intelectual via instrução, pode, portanto, explicitar muitos dos elementos que qualificaram a mulher para o desempenho da função docente. A baixa expectativa quanto ao desenvolvimento intelectual feminino, em contraposição à exaltação das suas características morais, demonstram que a maternidade elemento que justifica o caráter educativo da mulher - pauta-se em valores como: piedade, fraternidade, abnegação, devotamento, cooperação, solidariedade, enfim, em virtudes cívicas-sociais. Valores que extrapolaram o ambiente doméstico, ancorando-se na escola, justamente porque foram gerados fora do lar, à medida que respondiam a necessidades sociais. A educação pública ao encargo da professora Numa sociedade livre, sob o primado da igualdade, da liberdade e da propriedade privada, mecanismos são necessários para manter a ordem sem que os direitos individuais sejam feridos. A escola, enquanto educadora, passa a fazer parte desse processo e por isto abre suas portas a todas as classes sociais. Com a nova clientela, sua fisionomia se transmuda. 748 Anais do IV Seminário Nacional Família e escola se entrecruzam em suas funções. Os mesmos princípios que fazem da mãe educadora, fazem da mulher professora. Ambas participam do mesmo movimento: o de conservação da nova sociedade. Fazer emergir o cidadão no homem de negócios e no trabalhador passa a ser o grande desafio educacional que as instituições sociais devem assumir, mesmo que esse cidadão tenha como valor maior a preservação de uma sociedade organizada para conceder vantagens ao cidadão da primeira classe. Como contar com a razão para tal fim? Somente a sensibilização para as questões públicas poderiam fazer com que a contradição entre as classes não fosse objeto de preocupação dos trabalhadores. A moral cívica é considerada um elemento de unidade entre as classes. A intenção era de se definir e promover uma identidade nacional, unificando, em nível de sentimento, uma população marcada pela desigualdade. Esta era a condição colocada como essencial para se construir uma nação forte. É o argumento utilizado por BARROSO em 1867, para convencer os governantes da necessidade da instrução para o povo. Diz ele que tal como as religiões, a sociedade precisa que seus membros tenham um símbolo comum; e esse símbolo se constrói sob o teto da escola pública: O ensino oficial e a instrução popular é um poderoso elemento de unidade. Porque são tão poderosas e tão imutáveis as religiões? (...) É porque, dando a todos os seus sectários um mesmo pensamento, uma mesma fé, um símbolo unânime, elas formam por assim dizer uma só alma de um povo inteiro, até de uma geração; porque fazem crer, pensar, sentir, orar, agir em comum;(...). A sociedade é também uma religião, e para agir poderosamente sobre os homens é necessário, que lhes dê um símbolo comum... É necessário para que eles possam viver mais tarde em comunhão de idéias, de ação, de virtude e costumes, que tenham vivido primeiramente durante algum tempo em comunhão completa de ensino e de instrução. (1867, p. 2-3). Outorgar um mínimo de homogeneidade à população, formar uma “só alma de um povo inteiro”, estender laços imaginários sobre a heterogeneidade, transmitir uma identidade nacional era papel que a educação primária deveria desempenhar. Através da instrução cívica, da geografia, da história e da própria língua poder-se-iam criar sentimentos pátrios que envolvessem a população em torno de questões nacionais, e não individuais ou de classes. Em torno da idéia de construção da nação se organizou a educação popular, tanto em relação à expansão do ensino quanto ao conteúdo veiculado. As necessidades do sistema capitalista monopolista encontraram na questão educativa a articulação necessária. Ideologicamente atendia aos princípios liberais de igualdade de oportunidades, postulando a obrigatoriedade e a gratuidade escolar para todas as crianças que habitassem o território nacional, sem distinção de raça e sexo. Constituía-se no espaço neutro, democrático, público, onde a identidade nacional deveria ser produzida; e, em nível de conteúdo, disciplinava moralmente cada indivíduo nos preceitos da democracia burguesa. 749 HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” Em conferência realizada na Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro em 1884, CARVALHO aponta os benefícios da instrução pública: Confraternizam todas as classes e, dando ao operário aptidão profissional e hábitos de economia, torna-o interessado na manutenção da ordem de que ele carece para ver garantido o fruto de seu trabalho.(1884, p. 6-7). Seus benefícios são: qualificação da mão-de-obra, moralização dos indivíduos e, conseqüentemente, manutenção da ordem. No sentido de confraternizar as classes, a unidade nacional passa a ser o fôlego do ideário burguês; justamente porque agrega os indivíduos, em nível de identificação, não por classes sociais, mas pela idéia abstrata de nação, de Estado e de leis iguais para todos. Ideologicamente os trabalhadores não deveriam se identificar entre si enquanto assalariados, mas enquanto cidadãos. A unidade deveria ser dada pela idéia supostamente neutra de cidadania. O indivíduo não pertence, assim, a uma determinada classe social, pertence à nação. A escola por si só, passa a representar esse novo espírito, agrega a todos indistintamente, tendo como finalidade não o bem de uma classe ou grupo social, mas o bem da pátria, o bem público. A educação é separada da existência real dos homens, passa a ser justamente oposição à prática. Se na produção da vida em sociedade egoísmo e individualismo predominam, a escola deve trabalhar no sentido de despertar solidariedade, altruísmo, fraternidade, harmonia, cooperação, abnegação; enfim, sentimentos que a prática da vida, marcada pela competitividade, leva a esquecer, mas que são fundamentais para a conservação da ordem social. Ou seja, a escola que se objetiva para as classes populares não tem por compromisso principal a transmissão de conteúdos das ciências físicas e naturais; trata-se mais de uma instituição transmissora de valores, que um “templo do saber”. Seu compromisso é com a educação e não com a instrução em si, motivo pelo qual afirmamos que suas funções aproximam-se das funções do lar. Enquanto a sociedade burguesa se consolidava sem manifestar suas contradições se defendia a instruição - transmissão dos conhecimentos acumulados pela ciência - mantendo-se separada da educação doméstica, mas quando se encarrega de manter a ordem social se preocupa também em educar - agir sobre as faculdades morais e espirituais - ao lado da família. Tendo por objetivo principal a formação do caráter, a instrução, em si, fica em segundo plano; o que mais importa é a sensibilização dos indivíduos para com os compromissos sociais, é a criação de hábitos individuais (benevolência, doçura, abnegação, caridade...) e sociais (associação, disciplina, solidariedade...) e não a transmissão dos conhecimentos acumulados. A instrução, na escola pública, somente se justifica se estiver subordinada à educação moral. Diz CHASTEAU: A instrução mal administrada, quer dizer, sem o concurso duma alta inspiração moral, pode oferecer tristes e lamentáveis resultados. Aqui não tratamos dessa instrução. A verdadeira instrução não dispensa o concurso 750 Anais do IV Seminário Nacional da educação. E assim como facilitamos a ação desta última, desde que iluminamos o espírito pela instrução, também preparamos para a instrução uma base sólida, cultivando a alma pela educação. (1927, p. 24) Em função da necessidade de transmitir as “coisas pelas quais um Estado subsiste” a escola vai redefinir métodos e priorizar alguns conteúdos. Com conteúdos e métodos áridos não se alcança este fim, é através do exemplo, das situações de vida que se atinge o sentimento, e o sentimento é a base da moral. Afirma PÉCAUT: Não se pode negar que a instrução, cujo propósito é dirigir a inteligência somente, e ter nela seu ponto de apoio, não basta para determinar os atos; é necessário a intervenção do sentimento que é o motor por excelência, e o motor do sentimento, por sua vez, não é habitualmente a simples razão, é a crença e, como disse Pascal, a fé do coração. (1945, p. 61). Sem negar a instrução, a educação deve fazer com que os atos de cada indivíduo sejam movidos pelos sentimentos. Os sentimentos precisam ser mobilizados no sentido de valorizar a ordem, a paz, o bem público, a harmonia, a solidariedade. MACEDO acha que conselhos diários, ou um curso específico de princípios morais, mesmo adaptados à compreensão do aluno, teriam pouco proveito. Para ele a educação deve ser “ocasional”, dada a “propósito”, em oportunidade e modo propício. Porém, mais importante que a lição é o exemplo. Sua força é maior que o conselho e a explicação, “o exemplo é o conselho prático e a explicação viva”.(1878, p. 10). A persuasão é o recurso a ser utilizado pelo professor. A disciplina ganha, então, um novo sentido, a autoridade do professor é ainda importante, mas não é sinônimo de imposição ou castigos, mas de uma “severa doçura”(1927, p. 25), como a define CHASTEAU. Ao sobrepor o método de ensino ao conteúdo e o sentimento ao conhecimento, a escola redefine as qualidades consideradas fundamentais ao professor. Enquanto instruir era considerado a função predominante da escola e seu objetivo maior o desenvolvimento intelectual , ao professor cabia ensinar, para isso precisava ter domínio de conteúdo e autoridade, ele era portanto o centro do processo educativo. Quando, porém, a escola abre suas portas à classe trabalhadora, a atenção desloca-se também para a educação da vontade e do sentimento, e o professor deixa de ser visto como aquele que simplesmente ensina para ser o motivador e sensibilizador do aluno; em função disto, outras habilidades lhe são exigidas, devendo apresentar, acima de tudo, conduta exemplar e domínio do método. Como a moralidade deve ser ensinada intuitivamente, mais importam as ações do professor que as suas palavras. Se a escola deve ensinar o altruísmo, solidariedade e a abnegação, e metodologicamente o professor é o exemplo, isto significa que o professor deve ser altruísta, solidário e abnegado. O professor deve ser o “exemplo vivo das mais apreciadas virtudes”(p. 91), é o que afirma REIS durante sua participação na Nona Conferência Pedagógica dos Professores Públicos Primários, em 1886. O educador deve ser neutro nas 751 HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” questões políticas e ter apenas o bem público como aspiração maior: “é no amor da pátria e dos homens que o mestre deve ir buscar as suas inspirações” (p. 107), completa esse autor. Se a educação se propõe a combater os vícios imanentes à prática e o professor deve ser o exemplo a ser seguido, pressupõe-se que este professor deve ser alguém imune aos erros, vícios e imoralidades que toma conta da vida das pessoas, deve ser alguém superior à própria prática. O magistério adquire, assim, um caráter metafísico, sagrado. O antigo mestre-escola não atende às novas exigências educacionais, o professor tem papel mais amplo e relevante, a profissão assume o grau de sacerdócio, o professor é, agora, qualificado de educador. As qualidades requeridas do professor parecem escapar a qualquer formação profissional. Estão ligadas a características subjetivas que compõem a “vocação”. Nesse sentido, mesmo os maiores defensores da Escola Normal, apesar de julgarem importante a formação que ela pode oferecer, reconhecem os seus limites na formação do educador. Fica evidente, em praticamente todos os discursos, que ela é considerada insuficiente por não conseguir promover nos indivíduos as qualidades necessárias ao bom desempenho docente. Essas qualidades, de cunho marcadamente moral, que compõem o que se chama “vocação para o magistério”, não são produzidas, são consideradas como uma emanação natural da personalidade. O professor ideal é alguém altruísta, devotado ao trabalho, mas abnegado em relação aos bens materiais, voltado para o interesse público, para a ordem, com energia empreendedora mas ao mesmo tempo submisso; tudo isto em alguém que vive num mundo competitivo, onde o egoísmo impera, os interesses privados estão sempre em primeiro plano e as pessoas são valorizadas por suas condições financeiras. Chegamos, enfim, ao suporte ideológico da feminização docente: na representação dos homens da época, a mulher é naturalmente portadora das qualidades que se deseja reproduzir em cada cidadão-trabalhador, o que foi fundamental para a sua projeção no século XIX, enquanto mãe e professora. O argumento discursivo que a legitima como professora não é, portanto, o elemento intelectual, mas seus “instintos” maternais, que são sinônimos de fé, sensibilidade, devotamento, abnegação; enfim a maternidade é coração e sentimento. A imagem sacralizada da mãe transpõe-se para a professora. Nos discursos da época repete-se exaustivamente esta relação, enquanto na prática, o magistério vai, gradativamente, adquirindo feições femininas. No momento em que as virtudes cívicas ou morais necessárias à preservação das instituições são priorizadas no processo educativo, abrem-se espaços para a mulher. O desenvolvimento das virtudes sociais, que passa necessariamente pela educação da vontade, tem no aspecto psicológico um dos seus principais pontos de atuação. Questão que reforça ainda mais a vinculação entre a mulher e o ensino. Pois, acredita-se que ela detém o conhecimento da “alma infantil”, um conhecimento empírico, adquirido junto ao berço, enquanto mãe. Com habilidades que são consideradas características exclusiva das mulheres, como carinho, persuasão e moralidade superior, moldariam-se os cérebros infantis. Assim, enquanto na sociedade feudal a obediência foi mantida pela autoridade, no interior da escola o homem - professor - representava a autoridade, os castigos e a força. Quando, porém, a persuasão substitui a força física, a mulher passa a representar este novo 752 Anais do IV Seminário Nacional espírito de autoridade e obediência, uma vez que possui a “severa doçura” da qual fala CHASTEAU, destacando-se pela autoridade moral. A opinião emitida por LIMA, em 1888, na Conferência realizada na Escola Pública da Glória, reforça os argumentos acima: A obediência impõe-se pela força material ou insinua-se pela força moral. A mulher governa empregando a força moral que nasce do amor. A obediência moral nasce da vontade; a vontade nasce do coração; o coração é formado pela mulher: é um jardim, cujas flores são os instintos, as inclinações, os afetos.(p. 31-2) A aceitação da mulher como educadora significa a confirmação mais evidente de que a escola pública, na sua origem, traz consigo um projeto pedagógico onde a educação sobrepõe-se à instrução. Ou seja, que essa escola tem ampla e profunda preocupação com a promoção de um sentimento coletivo que garanta a ordem social em detrimento da formação intelectual. As qualidades consideradas femininas, que compunham grande parte das virtudes sociais, deveriam ser reproduzidas via educação, ou seja, as expectativas que se tinha em torno da mulher eram as mesmas em relação à classe trabalhadora rebelde. Ser educada e educar através do exemplo era reproduzir uma forma de ser. A forma passiva, abnegada, submissa, desinteressada e ao mesmo tempo subjetiva da mulher, deveria ser reproduzida em cada futuro cidadão, aluno da escola pública. Não só a mulher, como principalmente a classe insatisfeita com os caminhos da civilização, deveria ser mais educada do que instruída, deveriam receber um mínimo indispensável de conhecimentos envolvidos em uma grande soma de preceitos morais necessários à manutenção da ordem social. Por isso, a relação que, em princípio, nos pareceu contraditória - inferioridade intelectual atribuída à mulher e sua exaltação como educadora por excelência - foi se esclarecendo à medida que a “alma” da instrução popular se explicitava. Sua explicitação, porém, não estava na própria escola, mas no interior da conjuntura social do século XIX. Bibliografia: AMERICANA, Zaira. Mostra as imensas vantagens que a sociedade inteira obtém da ilustração, virtudes e perfeita educação da mulher como mãe e esposa do homem. Empreza Typographica Dous de Dezembro/ Impressora da Casa Imperial, 1853. ANGIULLE, André. A pedagogia, o Estado e a família (1876). Lisboa: Guimarães & Cia. 1911. BARROSO, José Liberato. A instrução pública no Brasil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1867. CARVALHO, Carlos Leôncio. Educação da infância desamparada. In.: Conferências efetuadas na Exposição Pedagógica. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1884. 753 HISTEDBR - Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” CHASTEAU. L. Lições de pedagogia. Livro para uso dos alunos das escolas normais (1899). Trad. e adapt. António Figueirinhas. 2ª ed. Porto: Casa Editora de A. Figueirinhas Ltda., 1927. COSTA, Jurandir. Ordem médica e norma familiar. 2ª ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. FERREIRA, Félix. Noções da vida doméstica. Rio de Janeiro: Typographia Carioca, s/d. FERRY, Jules. Carta dirigida a los maestros por el Ministro de Instrucción Pública (1883). In: FERRY, J. et al. La escuela laica. Buenos Aires: Editorial Losada, 1945. p.13-27. GUIZOT, F. P. O pai de família: das idéias de Tasse em relação a educação. In.: Meditations et études Morales. Paris. Ditier et Cie, Libraires-Editeurs 1872. LIMA, José de Souza. Educação. A mulher e o amor. Conferências Populares na Escola Pública da Glória. Rio de Janeiro: Typographia Montenegro, 1888. MACEDO, Joaquim Manoel. Mulheres célebres. Obra adotada pelo Governo Imperial para a leitura nas escolas de instrução primária do sexo feminino do Município da Corte. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1878. MARTIN, L. Aimé. Educação das mães de família ou a civilização do gênero humano pelas mulheres (1840). Porto: Typographia Livraria Nacional, 1870. MENDES, Teixeira. A preeminência social e moral da mulher segundo os ensinos da verdadeira Ciência Positiva. (1908). Rio de Janeiro: Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, 1958. OLIVEIRA, A. de Almeida. O ensino público. Obra destinada a mostrar o estado em que se acha e as reformas que exige a Instrução Pública no Brasil. Maranhão: Livraria Popular de Magalhães & Cia., 1871. PAYOT, Jules. Aos professores e às professoras. Trad. Emília de Souza Costa. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1914. PÉCAUT, Félix. La educacion moral (1897). In: FERRY, J. et al. La escuela laica. Buenos Aires: Editorial Losada, 1945. p. 49-67. SFORNI, Marta Sueli de Faria. A feminização do corpo docente na democratização do ensino no século XIX. Maringá-Paraná: 1996. Dissertação (Mestrado) UEM. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: EDUSP, Itatiaia, 1977. 754