EXPERIMENTOS DE DESORDENAÇÃO, DECOMPOSIÇÃO E DESMONTAGEM EDUCACIONAL Geraldo Reimão dos Reis1 Este experimento de pensamento educacional não tem nenhum objetivo, nenhuma metodologia, muito menos resultados, ou conclusões. Trata-se de um flerte, um puro devir, um estranhamento que pode servir de combustível para nos fazer pensar. Lança-se cartas como em um jogo e metáforas a modo de provocar e desestabilizar o campo educacional, abrindo possibilidades de revisitar conceitos educacionaisfilosóficos que parecem solidificados e garantidos. Cerca-se e se combate os conceitos de Educação, professor e educar mostrando uma possibilidade autopoiese2 de criação própria. Palavras–chave: desmontagem educacional, educação impossível, professor–devir. Introdução O que chama a atenção nas formulações educacionais é o tabu existente sobre pensar seu próprio estatuto e utilidade. A Educação mostra-se como indicadora/guardadora e construtora de lugares 3, excluindo a possibilidade de desconstrução, de desordenação e desmontagem. Assim, ela segue apontando a direção, a meta, a substância, o aprendizado, por ser caudatária da Verdade. A Educação é escandalosa. A questão escandalizante da Educação são suas promessas impossíveis de serem cumpridas. O QUE FAZEMOS COMO EDUCAÇÃO PODE SER APENAS UM ESTELIONATO, vendemos uma mercadoria que não podemos entregar, emitimos cheques sem provisão de fundo4 em virtude de prometermos o impossível: o educar. Damos a garantia do êxito, da completude, da totalidade, do domínio do caos... o que não pode ser alcançado, mas renovamos constantemente a promessa, perseguimos a miragem, como delirantes no deserto escaldante. Caberia, então, nietzschianamente falando, desmatar os Mestrando em Educação FACED/UFBA. Professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XXIV – XiqueXique-BA. [email protected] 2 Corazza, 2002a, p.16 3 Galeffi (1997) faz raciocínio semelhante em relação à tradição de filosofar clássica metafísica, especialmente a partir de Kant. 4 Devo os préstimos desse raciocínio do cheque sem fundos as leituras que fiz de Stein (2002b, p.33) o mesmo fala que a filosofia hoje não pode mais emitir esses grandes cheques sem provisão de fundos. 1 1 desertos. Isso significa dizer sair do pensamento metafísico, do modo de pensar objetificante da ciência e caminharmos para pensar o impensado no esteio do que Heidegger formulou5. Constitui um grande entrave paralisante a visão e o modo de funcionar objetificante da Educação. Nesse discurso moralizante, sério sisudo, não cabe a interrogação: o que significa Educação? O professor educa? Em que momento o professor é professor? Ele existe antecipadamente ou só no seu momento de atuação? A certificação professoral não poderia ser a autorização de exercício da perversão? A Educação não poderia ser, a partir de suas falas de certeza, um delírio? Um discurso fora de si? 6 Poderíamos ver desta maneira, A EDUCAÇÃO COMO UM DISCURSO FORA DE SI? Ou seja, da mesma maneira como Lacan via os escritos de James Joyce, e que Sérgio Laia, apropriadamente chama “Os escritos fora de si? São questões que não necessitam de uma resposta, mas que podem servir de combustível para novas formas de imajar, de fazer experimentos de pensamentos educacionais. Experimentos Estranhantes Ao criarmos uma abertura para a experimentação do pensar educacional, poderíamos ficar livres da culpa de mexermos nos dogmas, no secularmente estabelecido como sendo Educação. Poderíamos, então, com cautela, não somente tocar como COMER AS VACAS SAGRADAS DA EDUCAÇÃO, o que significa revirar tudo o que pensamos e fazemos até agora como sendo Educação, o que envolve desde a nossa certeza de educar até mesmo a suspensão da própria Educação, inclusive a sala de aula, os exames, os concursos, as liturgias escolares, os currículos etc., que servem para encorpar o vazio de seu fazer. Corazza (2002a, p.112), exemplifica bem, nesse caso se referindo ao currículo, esta possibilidade de fazermos de outro modo isso que chamamos de “educação”: importa perguntar se tudo que vimos, até agora, nas propostas curriculares, é tudo o que pode ser visto, e se tudo o que dissemos é tudo que pode ser dito. Fabricar outros óculos e outra linguagem para ver e dizer as coisas e as palavras de “nossos” currículos. Sabendo que, se o seu traçado chegou até aqui, assim, é porque, como tal, foi criado. E se foi criado assim, poderá ser traçado de outros modos (grifos nosso). 5 6 Vide Stein 2002a, p. 63-68, 140-141. Alusão ao Livro de Sergio Laia (2001), “Os escritos fora de si – Joyce, Lacan, e a Loucura”. 2 Queremos a emersão de perguntas e respostas que sempre estiveram subsumidas pelas nossas defesas de certezas, e, assim, possamos cogitar: se o que fazemos não poderia ser outra coisa que não a tal Educação. Se não for, então, o que é isso que fazemos? Talvez precisemos de tantas garantias no campo educacional, para esconder nosso ser assustado diante do absurdo da tarefa educativa. Não conseguimos enxergar nenhuma colagem entre aquilo que fazemos com o nome de educar e esse signo chamado educar, ou, que a tarefa que realizamos nas dependências, ou não, das instituições com o nome de Educação corresponda ao signo educação. Fazemos uma coisa e a nomeamos de uma outra. Cabe novamente perguntar o que é isso que fazemos com o nome de Educação? Com o nome de educar? Com o nome de ensino – aprendizagem? Um grito, um desespero pode nos invadir, mas a pergunta insiste tal uma dor dilacerante nos toma: O que é isso que fazemos? Nós sabemos o que fazemos? Ou caberia a máxima para a Educação: “eles não sabem o que fazem?”. Na perspectiva que estamos apontando, acreditar que o que fazemos, nosso ato, corresponde ao signo Educação ou educar, equivale ao posicionamento realista de correspondência entre a coisa e seu nome. O problema é que fazemos algo que nomeamos metafisicamente de Educação e que não tem haver com este fazer educacional. Nós fazemos muitas coisas no campo educacional? Sim! Isso fazemos, chamá-la de Educação, de educar é o problema. É precisamente um problema porque não se sustenta, não se justifica, trata-se de uma miragem, para não nomeá-la - um delírio. Talvez isso seja um bom saque: A EDUCAÇÃO COMO UM DELÍRIO! O que é a Educação? Ela é “dois mortos em um caixão”, diria um mestre Zen. A EDUCAÇÃO COMO UM ABSURDO. Uma provocação de Deleuze (2003, p. 139) parece significativa para o caso “se tu tens um bastão, diz o Zen, eu te dou um, se não o tens, eu te tomo”. Por isso, DIZER QUE SOMOS “EDUCADORES” NOS PARECE UMA TOLICE DESMEDIDA. Nós, devir de professores, estamos mais para um saco furado tentando encher outro saco furado do que qualquer outra coisa, o ponto de compreensão é aceitarmos que o saco não pode nem ser cheio, nem tamponado. Os adolescentes nossos estudantes têm razão, somos transliteralmente um saco! Abrindo Caminhos 3 A NOSSA INTENÇÃO É ESVAZIAR A EDUCAÇÃO, frente ao esforço secular que parecia lhe dar um conteúdo, é mais ou menos como se dar conta do trabalho de Sísifo no campo educacional. Isso significa provocar, com uma proposta de Mutação Educacional reações de estranhamento. O estranhamento produz perturbação, poderíamos, então, sustentar uma “educação” do estranhamento, uma pedagogia do estranhamento, UMA PEDAGOGIA NA PERSPECTIVA DA COISA (DAS DING), uma PEDAGOGIA DO SINISTRO, uma “educação” da incompletude, UMA “EDUCAÇÃO” DO NADA PARA LUGAR NENHUM, uma “educação” seminal, uma “educação” na perspectiva da angústia. Contemplando o sinistro da “educação”. Assumindo a melancolia, o perturbador, o pessimismo do educacional. Estaríamos diante da possibilidade de uma Viragem Educacional? Que sentido teria esta viragem? E que viragem seria esta? Ou seria apenas uma vertigem? O campo educacional pode também ser visto como uma fonte de inquietude, mas o que fazemos constantemente com a burocracia, o disciplinamento e a obediência é parar este movimento inquietante, porque o mesmo se apresenta, em nossa visão estreita, como ameaçador. O campo educacional pode ser tomado como uma empreitada de experimentos em constante devir, onde renunciaríamos ao disciplinamento, ao ideal acético que nos aponta Nietzsche. Essa ameaça é sentida, falando em termos rortyano, como resistência a novas redescrições de nós mesmos, do mundo e do outro. O que estamos tentando fazer são experiências na produção de conceitos educacionais, e, conseqüentemente, do que se chama tradicionalmente de filosofia da educação7. Revisitando Conceitos Nessa invenção o professor pode ser visto não tipo um papel, uma função profissional, mas uma função estética, uma função [f (x)] indeterminada. Na Educação sempre partimos da ordem tentando disciplinar, amansar, dominar o caos. Podemos PENSAR O CAMPO EDUCACIONAL NÃO DA ORDEM PARA O CAOS, MAS DO CAOS PARA O PRÓPRIO CAOS. O professor pode ser visto também tal um maestro-de-cerimônia e não na condição de mestre e, se tomado na condição de mestre poderia ser o mestre-cuca. Uma outra mostra dessa não determinação do professor seria a sua equiparação a um Ornitorrinco, aí sim, 7 Corazza 2002b; Gallo, 2003. 4 parece-me que colocaríamos em apuros toda fixidez que tenta apreendê-lo, seria ele, em nossa simulação, usando palavras de Lacan (1998, p.254) uma façanha derrisória uma situação de descaminho. Sairíamos do binômio Professor X aluno, caminhando para outras possibilidades, onde eliminaríamos o aluno, resgatando o estudante em seu lugar, aí teríamos professor e estudante como sinônimos, professor = estudante, do mesmo modo que Dewey e Rorty pensam na filosofia e na educação como se fossem sinônimas – desconfiamos que esta oposição entre alunos de um lado e professor do outro tem a ver com esta separação entre filosofia e educação. Nessa invenção que apresentamos existiria um par professor–estudante feito um par de cumplicidades, como o de dois estudante–professor–estudante–professor... amantes, Vale formaríamos, ressaltar que assim, este uma acontecer série do encontro–desencontro–encontro, não está sob o domínio ou vontade do professor. A carga de interesse, disposição, abertura, investimento, etc., está dividida por todos os envolvidos na realização da “aula”, o que acabaria com a onipotência e arrogância de muitos professores de acharem que está somente em suas mãos o poder de fazer a “aula acontecer”. Em nossa visão constitui um grande equívoco pensar que o professor existe antecipadamente. Temos forçado a sua existência através da certificação, de uma formação–deformante. Nessa atitude cometemos todo tipo de atrocidade e instituímos o exercício da perversidade educacional. Considerar que o professor existe a priori, tem haver com o resultado da impregnação, do ranço metafísico e essencialista existente no campo educacional. Acreditamos que o professor, sendo uma função, só exista depois que seus estudantes o nomeiem como tal, fazendo uma demanda, uma suposição de saber para ele. Achando que tem algo a partilhar e por isso quer a sua companhia, a sua conversa, os seus posicionamentos, as suas indicações etc. A partir desta “simulação” que apresento, podemos aprender com o infernal Ghiraldelli (2000e, p. 71) que “na concepção pós-moderna a aula é um momento perigosíssimo, no qual muitos jamais suportariam” (grifo nosso). O ponto de inflexão é o fazer – acontecer dessa “aula”, onde as certezas, a mesmice, o automatismo, a representação, a liturgia, a dureza e a insensibilidade não estariam mais presentes. O seu acontecimento dependeria de uma disposição viva, de uma troca de olhares humanos. Esta aula ocorre quando há “sedução recíproca entre mestre e discípulo [..] não ocorre quando mestre e discípulo não se abre a tal possibilidade” (Ibidem).. Nessa nossa visão, caí por terra toda garantia de que a aula vai acontecer. O que chamamos de “aula” não passa em quase sua totalidade de um constrangimento mantido pela 5 ameaça, a coação, o disciplinamento, a falta de interesse recíproco e a obediência servil. Por isso, em nossa significação, não pode existir uma metodologia ou uma didática, que nos proteja, ou nos salve, dessa situação caótica, imprevisível, desconhecida (por mais que a achemos conhecida) da sala-de-aula. A metodologia ou a didática (como as conhecemos classicamente, a partir de uma vontade de educar, de controlar, de ordenar) não servem simplesmente porque são ferramentas inadequadas para a questão. Poderíamos pensar na construção de uma semântica ad hoc. e perguntarmos qual seria(m) a(s) semântica(s) possível(is) para a sala de aula. Onde caberia, também, considerarmos a possibilidade de invenção de uma gramática(s) educacional(is) o que, certamente, nos forçaríamos a pensar na sala de aula como se fosse uma hermenêutica8, um sistema semiótico, um rizoma9 e tantas outras formas. Na sala de aula podemos lançar mão de instrumentos mais úteis como a sedução? A sedução visceral, onde todo o nosso ser fique exposto e não defensivo como costumeiramente o fazemos frente às possibilidades desses encontros–desencontros. Neste rastro podemos vê a(o) professora(o) tal um profissional do erotismo e do amor, feito pura sedução. Nós pensamos, desejamos uma metodologia que possa resolver os problemas educacionais, que ao aprendermos um certo instrumental didático, algumas receitas, poderíamos controlar o sintoma educacional, ou conforme pensa Sandra Mara Corazza, o inferno da Educação. Não é à-toa que Educação é identificada com uma certa liturgia do sagrado, pureza, abnegação, vocação, sacerdócio, todos valores ligados à religiosidade em oposição ao tesão, ao desejo, a volúpia, a paixão, ao erotismo. O erotismo, na visão de Bataille (Leite, 1991, p.122), teria como sentido último “a fusão, a supressão dos limites e, portanto, o rompimento dos tabus”. Ao contrário do analista ou mesmo do psicólogo, o professor pode provocar e aceitar a “transferência”, comprometendo-se e se expondo, inclusive pessoalmente, com seus estudantes e isso significa dizer que ele pode se permitir conhecer, mantendo relações pessoais de afeto e de ternura, ou mesmo de birra e de briga, desde que não se mantenha em uma posição de se achar com um discurso superior ao dos seus estudantes. Deve, portanto, por mais títulos que tenha, descer do salto alto. Ele pode/deve ser sincero, inclusive sobre seus sentimentos de amor ou de ódio, aceitando que sua profissão não encarna a figura do redentor que tem que amar a todos, mesmo que seu coração não diga isso. Seu trabalho assemelha-se mais a de um antropólogo, que respeita a cultura na qual vai fazer sua pesquisa precisando se adaptar e se 8 9 Vide Hermann (2002). Vide Deleuze & Guattari (2000) e Reis (2002) 6 integrar a ela e não, como geralmente ocorre em sala de aula, adotar uma postura de catequizador, do messias possuidor da salvação escolar. Urge, então, revisitarmos os conceitos do campo educacional. Encarar a tarefa educacional na condição de produção conceitual. O que significa professor? Eis uma pergunta filosófica. Precisamos visitar, revisitar, repensar e revirar o conceito de professor, de aula, de Educação etc. Acreditamos que o professor não pode ser uma ovelha nem um pastor que forma ou toca algum rebanho. Um professor não pode se confundir com um aulista, apesar de constantemente ser solicitado a ocupar este local. O que significa professor? Abrir-se a possibilidade de encontrar o fio condutor, de nos inventarmos e reinventarmos constantemente. Um professor precisa ser plástico, não podendo ser rígido se não quebra a si mesmo, precisa se autorizar, ter seu discurso próprio e, assim, construir sua autoridade semântica10. Ao pensar, o professor pode se dar conta de ser apenas um conjunto vazio e a Educação simplesmente não existir. Referências CORAZZA, Sandra. O que quer um currículo?: Pesquisas pós-críticas em Educação. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002a. 150 p. ______. Para uma filosofia do inferno na Educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins. Belo Horizonte: Autêntica, 2002b. 104 p. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, vol.1 Trad.: Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000.96 p. 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