COGNITIO: Revista de Filosofia ISSN 1518-7187 Indexação: The Philosopher`s Index; Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (CLASE) Banco de Traduções Tradução de artigo publicado no número 3 – novembro de 2002 PEIRCE SOBRE CIÊNCIA E METAFÍSICA: VISÃO GERAL DE UMA VISÃO SINÓPTICA C. F. Delaney Universidade de Notre Dame – EUA [email protected] Original em inglês. [Tradução para o português de Cassiano Terra Rodrigues [email protected] ] A prioridade explicativa da ciência natural é uma marca distintiva do pragmatismo na tradição de Peirce. Em seu caso, o lugar de destaque concedido à ciência natural referiase, em primeiro lugar, à ciência concebida concretamente como uma metodologia hipotético-dedutiva constrangida empiricamente em vez de a qualquer instância específica da teorização científica, mas este privilégio alastrou-se para explicações científicas efetivas concebidas como se convergindo, no limite, para uma explicação completa. Da perspectiva de Peirce, contudo, tal privilégio da ciência natural não exclui a especulação metafísica, mas antes, a requer. Entretanto, o tipo de metafísica que a visão de Peirce requer, uma ‘metafísica científica’ moderada, é delimitado em estatuto cognitivo e tem vários papéis distintos no acabamento de sua visão da empresa cognitiva como um todo. Na tradição de seu mentor espiritual, Immanuel Kant, Peirce distinguiu o estilo de metafísica que era aceitável do estilo que era inaceitável, embora a linha traçada por ele não fosse nem extensional, nem intensionalmente equivalente à traçada por Kant. Peirce foi devastadoramente crítico do que ele chamou de metafísica “ontológica” ou “a priori”. Essa designação pretendia identificar aquela tradição racionalista na metafísica que se propunha demonstrar verdades acerca da natureza da realidade a partir de princípios a priori. Foi esta tradição metafísica que deu origem a comentários tais como “as demonstrações dos metafísicos são todas fantasias” [C. P. 1.7], e cujas conclusões ele descreveu como “futilidade metafísica” [C. P. 8.191]. Peirce via essa tradição na metafísica como efetivamente eliminada pela máxima pragmática: “ela servirá para mostrar que quase toda proposição da metafísica ontológica é ou palavrório sem sentido – uma palavra sendo definida por outras palavras e estas ainda por outras – ou mais, é francamente absurda” [C. P. 5.423]1. Peirce, contudo, não era um positivista. O ataque à metafísica ontológica pretendia ser em nome de uma metafísica purificada no espírito e usando a metodologia de observação das ciências naturais. Seu primeiro ponto é que a metafísica científica “está comprometida com a investigação de assuntos de fato, e o único caminho para os assuntos de fato é o caminho da experiência” [C. P. 8.110]. O segundo ponto é que o único caminho para investigar a experiência é com ‘uma atitude científica’ e usando ‘o método científico’. A atitude científica é um lance cognitivo de mente dominado pelo desejo de descobrir a verdade qualquer que possa ser (em contraste com a ‘atitude de seminário’ que é aquela de preservar ou defender a verdade a todo custo), e o método científico é uma metodologia hipotético-dedutiva constrangida empiricamente e socialmente incorporada. Essa combinação de atitude e metodologia é os tijolos da definição central de ciência de Peirce: “ciência deve significar para nós um modo de vida cujo único propósito vital seja encontrar a verdade real, [um modo de vida] que persiga este propósito com um método bem considerado, fundado sobre uma familiaridade completa com tais resultados científicos já assegurados por outros conforme possam estar disponíveis, e que busca a cooperação na esperança de que a verdade possa ser encontrada, se não por qualquer dos investigadores efetivos, ultimamente por aqueles que vierem depois deles e que deverão fazer uso de seus resultados” [C. P. 7.54]. Com essa definição de ciência em mente, ele continua a insistir que a menos que construamos a metafísica como uma tal “ciência de observação, apliquemos a ela os métodos universais de tal ciência sem dar a mínima para que tipo de conclusão alcancemos ... , mas apenas sinceramente aplicando a indução e a hipótese, não poderemos obter fundamento algum para esperar que as disputas e obscuridades do tema possam por fim desaparecer” [C. P. 6.5]. Seu terceiro ponto, entretanto, é que a despeito dessas continuidades a metafísica científica seria bem diferente das ciências especiais tanto quanto à generalidade de suas reivindicações quanto aos tipos de experiências, das quais extrai, para sustentá-las: “a única diferença essencial entre a metafísica e a meteorologia, a 1 Todas as citações de Peirce no texto são para os Collected Papers of Charles Sanders Peirce, 8 vol(s)., lingüística e a química, é que ela não se vale de microscópios, telescópios, viagens ou outros meios de adquirir experiências recônditas, mas contenta-se em assegurar tudo o que pode ser assegurado de uma experiência tal como a que cada homem passa em cada dia e hora de sua vida” [C. P. 8.110]. Antes de explorar os vários papéis que esta metafísica científica tem na empresa cognitiva completa de Peirce, em pouco mais deve ser dito metodologicamente sobre os traços distintivos da metafísica. Em sua arquitetônica das ciências filosóficas (que as ciências especiais em diferentes sentidos ‘pressupõem’) Peirce situa sua metafísica científica como a quarta na ordem de prioridade lógica, atrás da matemática, da fenomenologia e das ciências normativas (inclusive a lógica) e descreve a metafísica como uma abordagem científica superabrangente dos perfis mais gerais da realidade, ao mesmo tempo matéria e mente na medida que essa abordagem possa ser sustentada pela observação ordinária [C. P. 1.186, 1.282]. ‘Observação ordinária’ é a noção axial. Ao passo que as observações invocadas nas ciências especiais são minuciosas, engendradas e recônditas (a noção de ‘um experimento’), aquelas que guiam a especulação metafísica são “observações tais como sucedem dentro do âmbito da experiência normal de todo homem ... observações que escapam ao olho destreinado porque permeiam nossas vidas todas, assim como um homem que nunca tira seus óculos azuis logo cessa de ver a matiz azul” [C. P. 1.241]. Peirce sustenta que essas distinções de nosso mundo experienciado são difíceis de discernir por causa de sua onipresença; não temos contexto de fundo contra o qual observá-las. Assim como não estamos normalmente conscientes do nosso batimento cardíaco, não estamos normalmente conscientes das características mais penetrantes do mundo em que vivemos. Adicionalmente a esses perfis onipresentes da experiência há também “idéias e crenças do senso comum que a situação de um homem absolutamente força sobre ele” [C. P. 1.129], idéias e crenças das quais nem duvidamos, nem com as quais assentimos, e que Peirce conjetura foram consolidadas por seleção natural. Esses dois conjuntos de fatos cotidianos guiam a construção de um relato descritivo dos traços mais gerais da realidade que Peirce identifica como ‘metafísica científica’. Além do mais, essa imagem metafísica do mundo não apenas faz parelha com a imagem do mundo transmitida pelas ciências Ed(s).: C. Hartshorne, P. Weiss e A. Burks, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1931-1958. especiais, mas suplementa ou mesmo fornece uma base sólida de diversos modos importantes: “as ciências especiais são obrigadas a admitir como certo um número das mais importantes proposições porque seus modos de trabalhar não fornecem meios de submeter essas proposições ao teste; em suma, elas sempre repousam sobre uma metafísica ... só o filósofo é equipado com as facilidades para examinar tais ‘axiomas’ e determinar o grau em que a confiança pode seguramente ser depositada neles” [C. P. 1.129]. De fato, a metafísica científica de Peirce desempenha uma variedade de papéis fornecendo uma base sólida para e estendendo sua imagem científica global do mundo. Em primeiro lugar e antes de tudo está questão do estatuto de nossas crenças ordinárias acerca do mundo baseadas na percepção face à abordagem científica do mundo. Parece claro que Peirce é um realista tanto relativamente a entidades quanto relativamente a leis, no que concerne a teorias científicas: “as coisas que a ciência descobre estão além do alcance da observação direta; não podemos ver a energia, nem a atração da gravitação, nem as moléculas voadoras dos gases ... nem as explosões nas células nervosas – são apenas as premissas da ciência, não as suas conclusões, que são diretamente observadas” [C. P. 6.2]. Em contraste com o empirismo extremo de James, Peirce aceita realisticamente “as tentativas de explicar elementos dados fenomenalmente como produtos de entidades mais profundamente enraizadas” [C. P. 8.60]. Já que é a natureza da explicação científica explicar os perfis do mundo que estão mais diretamente disponíveis a nós em termos de entidades, estruturas e processos subjacentes, se tais devem ser explicações reais, nós estamos comprometidos com suas postulações como perfis reais do mundo. Além do mais, Peirce claramente reconhece que esta imagem científica do mundo pode ser bem diferente do mundo familiar do senso comum: “a ciência moderna, com seus microscópios e telescópios, com suas química e eletricidade ... nos colocou em um mundo todo outro, quase tanto como se tivesse transplantado nossa raça para outro planeta” [C. P. 5.513]. Essa visão realista das leis e entidades científicas afirma uma questão crucial – essa imagem científica do mundo, constituída pela construção realista de suas entidades, estruturas e processos postulados, compromete-nos com a falsidade de nossa imagem de mundo do senso comum que aparentemente envolve traços bem diferentes? As duas tábuas de Eddington lembram-nos que nossos juízos perceptivos ordinários podem ser bem diferentes de crenças científicas. Essa questão é particularmente aguda para Peirce, já que sua demarcação do método científico relativamente a outros métodos de fixar a crença depende crucialmente de juízos perceptivos ordinários monitorando o mecanismo de retroalimentação que guia a autocorreção da ciência. Em conformidade, o método científico parece depender da confiabilidade, se não da verdade, dos juízos perceptivos ordinários sob condições padrão. Logo, se nossa imagem científica do mundo colocasse em questão nossos juízos perceptivos ordinários sobre o mundo, seríamos confrontados com uma tensão interna que ameaçaria desenredar a visão toda. Minha sugestão é que este é o primeiro lugar onde a metafísica científica de Peirce fornece bases para a sua imagem científica do mundo. A relação da concepção ordinária de mundo constituída pela percepção com a concepção científica do mundo não é aquela da falsa com a verdadeira, mas antes a da vaga com a precisa. Ambas são confiáveis em seu próprio nível simultaneamente, em uma maneira que permite a Peirce manter sua demarcação empírica do método científico relativamente a outros métodos de fixar a crença, enquanto ao mesmo tempo acolhe uma interpretação realista da teorização científica. A habilidade de Peirce para se movimentar entre os extremos de um empirismo e de um cientificismo redutivos está em sua abordagem da formação dos conceitos, que abrange tanto a percepção quanto teorias científicas. Em sua abordagem, nossas várias conceitualizações do mundo não são simplesmente dadas, mas são o resultado de processos mentais construtivos, processos que têm os mesmos traços formais tanto no caso de crenças perceptivas normais quanto no de construção de teorias científicas. Em ambos os casos a questão é pensar um simples predicado (seja ele “vermelho” ou “elétron”) que reduza o múltiplo da experiência a algum tipo de unidade. Os processos mentais que geram todas as nossas conceitualizações do mundo, da mais geral a mais precisa, são inferenciais por natureza e a forma específica da inferência envolvida nesse momento gerativo é a abdução: “juízos de percepção devem ser considerados como o caso extremo de inferências abdutivas das quais diferem por estar absolutamente além da crítica” [C. P. 5.181]. É com essas considerações em mente que Peirce fala de juízos de percepção ordinários e de teorias científicas como ambos sendo hipotéticos por natureza. É claro que há enormes diferenças entre o reconhecimento imediato de cores e formas e abordagens científicas da carga de um elétron ou da estrutura do gen, mas a diferença não é uma de forma lógica; os processos envolvidos em ambos os julgamentos têm a mesma estrutura inferencial abdutiva. Trata-se apenas de que as ‘inferências’ de percepção são inconscientes, indubitáveis e não estão diretamente sujeitas à crítica constante. Como produtos hipotéticos de processos abdutivos ambas as ordens de ‘conceitos’ são obviamente falíveis, mas há um sentido claro para Peirce em que nossos juízos perceptivos ordinários são indubitáveis e confiáveis. São indubitáveis porque estão abaixo do nível de reflexão crítica, e são confiáveis porque estão fundados sobre “a totalidade da experiência cotidiana de muitas gerações de numerosas populações” [C. P. 5.552]. Claro que não segue do fato de que são indubitáveis que são incorrigíveis (relatos de percepção posteriores podem entrar em conflito com eles de tal modo em que posso inferir que os primeiros estavam errados), nem do fato de que são geralmente confiáveis que são verdadeiros. Não obstante, são indubitáveis e confiáveis e como tais são as pedras de toque da inquirição. O estatuto epistêmico positivo desses juízos perceptivos ordinários é circunscrito por dois fatores: primeiro, que seu papel primário está em guiar nossas interações ordinárias com nosso meio, e segundo, seu estatuto como “invariavelmente vagos” [C. P. 5.446]. Sua esfera própria de autoridade epistêmica é com respeito aos mais toscos perfis da vida ordinária e obscurece conforme perseguimos a especulação esotérica. Por outro lado, se o estatuto epistêmico de nossos juízos de percepção ordinários é circunscrito por sua vagueza, aquele de nossos juízos científicos é circunscrito por sua idealidade. Peirce entende que ‘explicar é simplificar’, e nos insta a ter isso em mente ao formarmos nossas atitudes para com as conclusões das nossas ciências: “devido à necessidade de fazer teorias muito mais simples do que os fatos reais somos obrigados a ser cautelosos ao aceitar quaisquer de suas conseqüências extremas, e também a estar em guarda contra suas refutações aparentes baseadas em tais conseqüências extremas” [C. P. 7.96]. Dadas essas advertências, é razoável aceitar juízos de percepção em sua vagueza e ainda acreditar que nossas teorias científicas, em sua idealidade, nos dão sim acesso às estruturas reais das coisas. Como isso é possível? A perspectiva parece ser a de que juízos perceptivos ordinários em condições normais são guias confiáveis para os perfis gerais do mundo no qual vivemos. Apesar de toda sua vagueza, “eles respondem aos nossos propósitos gerais” [C. P. 6.494] e dentre tais propósitos estão a identificação de dados temas de inquirição científica e a identificação de âmbitos de fenômenos que possam confirmar ou falsificar nossas teorias científicas. A teorização científica, entretanto, vai além dessas identificações vagas em termos tanto de discriminação quanto de precisão. Na teorização, um novo nível de análise é obtido e as categorizações, para as quais temos boas razões para pensar que são confiáveis em um nível macroscópico, podem não se aplicar em um nível microscópico, por exemplo, “é totalmente aberto à dúvida razoável se os movimentos dos elétrons estão confinados a três dimensões” [C. P. 5.445]. Segundo esta perspectiva, do fato de que a abordagem científica completamente diferente, porque mais precisa, é verdadeira, não segue, absolutamente, que a conceitualização original guiada pela percepção seja falsa. Ao contrário: cada uma delas é verdadeira (ou ao menos confiável) em seu nível, e dado o papel da percepção na origem e na confirmação das teorias científicas, o sucesso da ciência pareceria depender de o mundo ter “a característica de poder ser explorado e progressivamente entendido por meio de idéias vagas, sob somente a condição de que elas possam ser tornadas suficientemente precisas; nesse sentido a vagueza é uma característica tão patente do mundo objetivo quanto a precisão” [C. P. 5.552]. Além do mais, é crucial para a ciência que isto seja assim. A teorização científica desenvolve-se dentro de nossas interações ordinárias com o mundo guiadas pela percepção, de um modo tal que o estatuto epistêmico de ambas está inextricavelmente entretecido. Seu papel ao provisionar esta fundação para uma visão sinótica parece-me ser o modo básico em que a metafísica científica de Peirce sustenta as condições de possibilidade da ciência. O segundo ponto em que a metafísica científica de Peirce suporta sua abordagem da explicação científica é com respeito ao discernimento criativo e com respeito àqueles princípios regulativos que guiam a seleção abdutiva antecedente da teoria. Peirce distingue dois momentos da abdução: primeiro, o momento puramente criativo em conexão com a origem das conjeturas que produzirão a lista das possíveis explicações do âmbito de fenômenos sob consideração. Esse momento de ‘descoberta’ é basicamente um assunto da imaginação criativa de algumas pessoas. Alguns indivíduos excepcionais, ao serem confrontados com uma disposição intrincada de fenômenos, são capazes de imaginar estruturas tais que os fenômenos em questão tornar-se-iam inteligíveis fossem essas estruturas as causas subjacentes. Peirce considera essa habilidade em termos de instinto natural, e não pensa que ela possa ser reduzida a fórmulas ou regras de procedimento. Mas se concebermos a abdução como a proposta de uma hipótese explanatória para consideração séria, há mais na abdução do que ‘descoberta’ estritamente construída. O segundo momento surge do fato de que podem muito bem emergir diversas hipóteses sugeridas que igualmente bem ‘expliquem’ os fatos. Se devermos avançar com a tarefa da ciência, devemos selecionar da lista de possíveis explicações aquelas que devemos considerar seriamente e então efetuar uma ordenação delas segundo a preferência. Peirce pensa que este momento do processo abdutivo, o momento da escolha teórica antecedente, é guiado por princípios e ainda mais especificamente que “é à luz de uma metafísica própria... que alguém considera quais hipóteses diferentes têm alguma pretensão à investigação” [C. P. 7.83]. Aqui Peirce propõe seus ‘princípios de economia da pesquisa’, o primeiro dos quais é o princípio da simplicidade, interpretada não como simplicidade lógica, mas como simplicidade natural, pela qual ele quer dizer que aquelas hipóteses que “naturalmente recomendam-se a si mesmas à mente e forçam sobre nós a impressão de simplicidade – que aqui quer dizer facilidade de compreensão pela mente humana – de aptidão, de razoabilidade, de bom senso” [C. P. 7.220]. Assim como Peirce considerava o momento inicial em termos do instinto natural para adivinhar corretamente, ele invoca esta mesma noção de instinto natural como operativa no momento da seleção teórica antecedente, com a diferença sendo que, no último caso, esse instinto natural pode ser posteriormente delineado em termos de princípios dirigidos para a descoberta eficiente da verdade em longo prazo. Peirce ‘fundamenta’ tal instinto natural cognitivamente crucial em uma história metafísica amplamente evolucionária. Dados os instintos de sobrevivência no restante do reino animal, e dado que a habilidade de adivinhar corretamente têm óbvio valor de sobrevivência para criaturas cognitivas como nós, o primeiro pensamento de Peirce é que não seria inconcebível pensar que nossa espécie também teria aqueles instintos necessários para a continuação efetiva de nosso modo de distintivo de vida e que nós, os sobreviventes, teríamos essa habilidade de adivinhar corretamente em um grau considerável [C. P. 6.476]. Seu segundo pensamento mais refinado é que essas habilidades cognitivas tornar-se-iam melhor inteligíveis se suspeitarmos que as disposições da mente inquiridora sejam constituídas pelo desenvolvimento evolutivo da natureza: “se o universo conforma-se com qualquer aproximação à exatidão para certas leis altamente penetrantes, e se a mente do homem desenvolve-se sob a influência dessas leis, é de se esperar que ele deva ter uma ‘luz natural’, ou ‘luz da natureza’, ou ‘discernimento instintivo’, ou gênio tendendo a fazê-lo adivinhar aquelas leis acertadamente ou quase acertadamente” [C. P. 5.604]. Sendo produtos da natureza, teríamos pronto acesso a seus segredos. Esta visão metafísica total é recomendada por sua habilidade em tornar inteligível este perfil da inquirição científica. O terceiro ponto em que a metafísica científica de Peirce fornece as bases de sua abordagem da inquirição científica diz respeito à questão geral ‘realismo’ em todas as suas aparências. Peirce sentiu fortemente que a abordagem anti-realista de leis, forças, disposições e modalidades, proferida por positivistas tais como Pearson e Mill, tornava ininteligível a estrutura efetiva da explicação nas ciências. Ele mantinha que a prática científica efetiva exigia a distinção entre generalizações empíricas e leis científicas reais, e que sem um comprometimento metafísico com a realidade de disposições e modalidades seria impossível manter uma tal distinção. Ele usa sua própria ilustração precoce da máxima pragmática (onde ele argumentava que não fazia sentido real chamar de “duro” um diamante que nunca esteja em uma posição para ser colocado à prova) como um exemplo de uma disposição mental positivista que não se ajusta bem à prática científica. Sua visão madura, com respeito a esse caso familiar, é que o diamante ‘resistiria’ à pressão se testado, e que esta condição contrafatora produzia a conclusão de que “o diamante é duro como um fato positivo” [C. P. 8.207]. Identificar um certo objeto como um diamante é concebê-lo como um certo tipo de coisa tendo uma estrutura definida, tendo certas propriedades essenciais, das quais “acredita-se que a dureza seja inseparável” [C. P. 5.457]. Qualquer diamante tem de fato uma estrutura que fundamenta propriedades dispositivas reais que, manifestas ou não, envolvem possibilidades e necessidades objetivas reais no mundo. Estas, por sua vez, fundamentam leis científicas reais em oposição às meras generalizações empíricas. A análise proposta pela máxima pragmática não elimina ou reduz disposições, forças ou modalidades, mas simplesmente nos dá um modo de expressar nossos conceitos delas de maneira em que possamos diferenciar suas instâncias reais de ficções. Ele indica um ponto similar com respeito às probabilidades. Dizer que um certo lance de um dado tem uma certa probabilidade é prescrever ao próprio dado um certo ‘seria’ que possa ser pensado em analogia com um hábito ou disposição que nós, como agentes, poderíamos ter. O fato de tal propriedade dispositiva dever ser explicada em termos de comportamento “não implicará em si mesmo que o ‘seria’ do dado consista em tal comportamento” [C. P. 2.664]. Assim, as leis da ciência, tanto as necessárias quanto as probabilísticas, convidam a uma visão metafísica do mundo como não meramente a soma de particulares, mas como contendo “modalidade real, inclusive necessidade e possibilidades reais” [C. P. 6.457]. É a metafísica científica de Peirce que explica e suscita a ocasião para essas noções modais para a nossa imagem enriquecida do mundo natural. Estes primeiros três pontos em que a metafísica científica de Peirce fornece as bases para, ou completa, a sua abordagem da investigação científica, podem ser pensados como se se dirigindo às ‘condições de possibilidade da ciência’, mas se nutríssemos tal pensamento, teria de ser de uma forma moderada, em comparação ao mais heróico projeto kantiano. A menos que estejamos tentados a considerar esses postulados metafísicos como ‘condições a priori’ ou ‘pressuposições indispensáveis’, Peirce nos adverte contra uma tal construção. Elas não são ‘crenças’ plenas, mas antes, esperanças. Filósofos desonrosos de inclinação transcendental, ele observa: “eu reduzo a indispensabilidade de seus postulados completamente desde a universalidade até o caso singular que aconteça de aparecer; e mesmo então, não admito que a indispensabilidade seja algum fundamento de crença” [C. P. 2.113]. O estatuto desses postulados metafísicos que forneceriam as bases à inquirição científica, ele compara às assunções relativas à distribuição de cartas feita no jogo de bridge, em favor de um jogador preparando sua única possibilidade de ganhar a rodada: ‘tudo o que a lógica garante é uma ‘esperança’ e não uma ‘crença’” [C. P. 2.113]. O quarto ponto em que sua metafísica figura em sua visão ampla é muito mais geral, nomeadamente, como a extensão especulativa da ciência em uma superabrangente visão de mundo. Ao passo que os três primeiros pontos da reflexão metafísica podem ser pensados como ‘prévios’ à ciência, este quarto poderia ser visto como ‘posterior’ à ciência à medida que prioridade ou posteridade sejam consideradas em um sentido lógico, e não construídas de qualquer maneira rápida e tosca. Peirce descreve este momento de especulação metafísica como segue: Assim brevemente minha filosofia pode ser descrita como a tentativa de um físico de fazer tal conjetura acerca da constituição do universo quanto os métodos das ciências possam permitir com a ajuda de tudo o que já foi feito por filósofos anteriores. Devo sustentar minhas proposições com tais argumentos conforme possa. Prova demonstrativa não deve ser considerada. As demonstrações dos filósofos são todas fantasias. O melhor que pode ser feito é fornecer uma hipótese, não isenta de toda probabilidade, na linha geral de crescimento das idéias científicas, e capaz de ser verificada ou refutada por observadores futuros [C. P. 1.7]. Sua objeção aqui não é à metafísica, mas à pretensão de demonstrações, e seu propósito é que a especulação metafísica, no sentido da construção de uma visão de mundo completa, deveria “tomar nota de todas as idéias de valor em cada ramo da ciência, deveria observar em que sentido cada uma teve sucesso e onde falhou, de modo que, à luz da completa familiaridade assim alcançada dos materiais disponíveis para uma teoria filosófica e a natureza e a força de cada uma, ele possa proceder no estudo de em quê o problema da filosofia consiste e na maneira apropriada de solucioná-lo” [C. P. 6.9]. Para encontrar sentido em nós mesmos, no universo em que habitamos e no nosso lugar nele, temos de ir além da ciência para construir uma perspectiva metafísica que provesse uma tal visão interpretativa. Isso absolutamente não seria contrário à ciência, mas em vez disso, uma extensão especulativa da ciência, onde a extensão seja guiada pelas outras dimensões de nossa experiência que estão além do alcance da ciência, mas nas quais a inquirição científica está embutida. Isto inclui não apenas nosso mundo comum da percepção, mas também nosso mundo vivido multidimensional, inclusive nossos sentimentos e aspirações. É importante sublinhar o ponto de que, para Peirce, esta superabrangente imagem metafísica da realidade não é absolutamente ‘contrária à ciência’, mas antes uma extrapolação enriquecida a partir da ciência: “a metafísica vale-se de algumas das mais grandiosas generalizações da física, ou mais freqüentemente da psicologia, não como um princípio governante, mas como um mero dado para uma ainda mais vasta generalização” [C. P. 3.428]. Além do mais, não é meramente uma ‘generalização’ a partir da ciência porque alguns dos traços mais gerais da visão metafísica de mundo são extraídos da visão do senso comum conceitualmente prévio, mas esses traços são completados pela inferência a partir da melhor informação científica disponível. Peirce passou seus últimos anos desenvolvendo exatamente uma tal vasta visão metafísica de mundo. Em termos os mais gerais, a perspectiva de Peirce é claramente uma de um processo evolucionário por meio do qual “todo o universo está se aproximando no futuro infinitamente distante de um estado cujo caráter geral é diferente daquele para o qual olhamos para trás no passado infinitamente distante” [C. P. 1.362]. Os traços mais gerais dessa metafísica evolucionária, ele nomeia com os termos ‘tiquismo’, ‘sinequismo’ e ‘agapismo’. Por “tiquismo”, ele entende simplesmente a visão de que “o acaso absoluto é um fator no universo” [C. P. 6.201], e ele defende essa caracterização geral do universo contra várias formas de mecanicismo e determinismo que foram pressupostos ser parte da imagem científica de mundo estritamente construída. O ponto geral de Peirce é que o caráter de lei do universo não é um explicativo irredutível, mas ele mesmo algo a ser explicado, e que simultaneamente o ‘acaso’ ele mesmo não é a explicação da lei, é uma precondição necessária de uma abordagem evolucionária do desenvolvimento das leis no tempo. Em busca de um modelo para a noção da formação gradual das leis no tempo, Peirce agarra-se ao fenômeno psicológico da formação de hábitos em que um padrão de comportamento previsível gradualmente se solidifica, reduzindo, mas não eliminando a liberdade genuína. Sobre esse modelo ele constrói o desenvolvimento das leis da natureza como um processo a partir de uma indeterminação primordial para fixidez, no limite ideal, com o elemento do puro acaso presente em qualquer tempo dado. Ele “usa o acaso para dar espaço ao desenvolvimento da lei por meio da lei dos hábitos” [C. P. 6.606]. Ele reforça este argumento explicativo geral para o tiquismo com a consideração empírica de que todas as nossas observações do universo em um nível macroscópico sugerem que os eventos do universo são do feitio da lei apenas em um certo grau de aproximação [C. P. 6.46], uma conclusão alcançada ainda mais surpreendentemente no nível microscópico, onde temos boas razões para “a dúvida séria de se as leis fundamentais da mecânica valem para átomos singulares” [C. P. 6.11]. Finalmente, ele considera que a variedade e a diversidade óbvias no universo podem ser mais bem explicadas pela hipótese do tiquismo: “por assim admitir a pura espontaneidade, ou vida, como uma característica do universo, agindo sempre e em todo lugar e, embora restringida dentro de fronteiras estreitas pela lei, produzindo saídas infinitesimais da lei continuamente e saídas grandes com infreqüência infinita, explico toda a variedade e diversidade no universo no único sentido em que o realmente sui generis e novo pode ser dito ser explicado” [C. P. 6.59]. O “sinequismo” como uma tese metafísica (também é uma tese metodológica) é definido como a doutrina segundo a qual “todas as coisas fluem em contínuos” [C. P. 1.171], uma generalização do coração da idéia do cálculo que é “a chave mestra que destranca os arcanos da filosofia” [C. P. 1.163]. Peirce especifica esta tese metafísica em termos da continuidade do espaço, da continuidade do tempo, da continuidade da consciência e finalmente da continuidade de todas as coisas. A via de acesso de Peirce à continuidade do espaço é por meio dos paradoxos de Zenão; ele argumenta que os paradoxos surgem de uma concepção inadequada da continuidade radical do espaço. Dizemos que o espaço é contínuo, mas continuamos a pensá-lo como um agregado de unidades discretas. Na concepção de Aquiles passando por uma série determinada de segmentos de linha é presumida uma métrica em cujos termos a posição de Aquiles é sucessivamente definida. Mas visto que uma métrica é um sistema de valores discretos, ela introduz a ficção de que há pontos discretos sobre a linha correspondendo aos seus valores. É essa ficção que gera os paradoxos, já que solicita à perspectiva segundo a qual o espaço é um contínuo composto de partes últimas: “todos os argumentos de Zenão dependem de supor que um contínuo tem partes últimas – mas um contínuo é precisamente que cada parte dele tem partes no mesmo sentido” [C. P. 3.335]. Longe de reduzir ao absurdo a visão de que o espaço é um contínuo, os paradoxos nos lembram justamente quão radicalmente contínuo é o espaço. O argumento de Peirce para a continuidade do tempo está no mesmo espírito. Tendo argumentado que devemos estar imediatamente conscientes do passado, visto que a visão de que todo o nosso conhecimento do passado é uma questão de uma inferência a partir do presente que gera um regresso, ele continua a argumentar que a continuidade do temp0o é uma condição necessária para o fato de que estamos imediatamente conscientes do passado. Se o tempo fosse composto de instantes discretos, seguir-se-ia que a consciência imediata de qualquer instante passado envolveria a consciência imediata de todos os instantes passados, uma capacidade claramente contrária aos fatos. Isso seguiria porque, se o estado precedente ao presente, digamos, por meio segundo, estivesse ainda imediatamente presente ante a mim, então, segundo o mesmo princípio, o estado precedendo-o também estaria imediatamente presente e assim sucessivamente ad infinitum. Teríamos de ter uma consciência imediata de cada estado mental que seja passado por algum número finito de unidades de tempo. O único modo possível de um estado passado não mais estar ipso facto presente seria para ele ser mais passado do que qualquer número finito de unidades de tempo. Isso seria possível apenas se o tempo fosse contínuo: “aqui, então, parece-me, temos uma razão positiva e tremendamente forte para acreditar que o tempo realmente é contínuo” [C. P. 1.169]. O outro lado da tese da continuidade do tempo é a continuidade da consciência, visto que o argumento de que o tempo é contínuo é um argumento para o efeito de que “estamos imediatamente cônscios através de um intervalo infinitesimal de tempo” [C. P. 6.110]. De fato, Peirce sustenta que percebemos diretamente a continuidade da consciência: “minha noção é que nós percebemos diretamente a continuidade da consciência e se qualquer um objetar que aquilo que não é realmente contínuo pode ‘parecer’ ser assim, eu replico ‘mas não poderia parecer assim se não houvesse alguma consciência que assim seja’” [C. P. 6.182]. Visto que a distinção entre aparência e realidade não pode ser invocada neste caso, devemos reconhecer que a consciência é contínua. Dada a continuidade do espaço, do tempo e da consciência, Peirce conclui para o efeito de que “a realidade da continuidade uma vez admitida, razões há, diversas razões, algumas positivas, outras apenas formais, embora não desprezíveis, para admitir a continuidade de todas as coisas” [C. P. 1.169]. O “agapismo” é a terceira das visões de metafísica especulativa de Peirce, e ele a define como “evolução por amor criativo” [C. P. 6.302]. Isso é uma especificação do tipo de processo evolucionário pelo qual o universo como um todo está passando. Dos três possíveis modelos para a evolução geral do universo, por exemplo, (1) evolução por variação fortuita, (2) evolução por necessidade mecânica, e (3) evolução por amor criativo, Peirce defende a última. Esse modelo de evolução é uma síntese de criatividade e legibilidade em uma estrutura teleológica geral que sugere um ponto e um objetivo a todo o processo cósmico. Tiquismo, sinequismo e agapismo claramente apontam a direção de algum tipo de idealismo, e Peirce é descarado ao caracterizar sua perspectiva metafísica total como ‘idealismo objetivo’: “a única teoria inteligível do universo é aquela do idealismo objetivo, a de que a matéria é mente efetiva, hábitos inveterados tornando-se leis físicas” [C. P. 6.25]. As considerações que motivam o assentimento parecem ser estas: já que o dualismo corre contra seu princípio de continuidade e ele pensa que a tese do ‘emergentismo’ é misteriosa, as opções são reduzidas ao materialismo ou ao idealismo. Visto que nosso acesso ao conceito de ‘material’ se dá por meio de leis, a questão central torna-se a da redução. O idealismo de Peirce, então, desce à reivindicação de que as leis psíquicas são primitivas e as leis físicas derivadas, em vez de vice-versa: “ao invés de supor que a mente é governada pela cega lei mecânica, [o idealismo] supõe que a única lei original é a lei da mente, da qual as leis da matéria são consideradas como meros resultados especiais” [C. P. 6.277]. Enquanto essa grandiosa visão metafísica é especulativa ao extremo em termos de seu conteúdo, é ‘modestamente’ especulativa em termos de grau de assentimento. Seu estatuto é o de uma hipótese explicativa extremamente falível, uma conjetura, um palpite sobre o enigma da esfinge: “a tentativa de um físico de fazer tal conjetura acerca da constituição do universo quanto os métodos das ciências possam permitir” [C. P. 1.7]. A visão considerada de Peirce é que a metafísica, moderada na maneira em que ele delineou, não pode ser evitada; pode-se apenas comprometer-se com ela, refletidamente e bem, ou irrefletida e pobremente: “então, ao invés de meramente escarnecer da metafísica como outros prope2-positivistas, seja com paródias há muito esvaziadas ou de outra maneira, o pragmatista extrai dela uma essência preciosa que servirá para dar vida e luz à cosmologia e à física” [C. P. 5.423]. 2 N.T.: o prefixo é latino, e pode ser funcionar tanto adjetiva quanto prepositivamente. Em ambos os casos tem o sentido de “próximo, perto de; proximamente; quase”, seja no tempo ou no espaço.