O ESTADO E O DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO (elementos para uma orientação da leitura) por João A. Ramos Estêvão (CEsA - Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento do ISEG/UTL - Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa) Lisboa Fevereiro/1999 2 Introdução O papel do Estado e a sua relação com o mercado constitui um tema central e controverso em toda a literatura sobre o desenvolvimento económico. Para uma síntese dos principais aspectos, podemos considerar três grandes momentos na evolução da discussão teórica: a) O período que vai do segundo pós-guerra até ao final dos anos 60, período de afirmação de uma heterodoxia estruturalista influenciada quer pelo keynesianismo dominante quer pelo pensamento económico clássico, de que resulta a defesa de uma intervenção activa do Estado para corrigir a incapacidade do mercado influenciar adequadamente a formação do capital. b) Os anos 70 e 80, marcados por “duas vagas de ataque neoclássico” (Shapiro e Taylor 1990; Taylor 1993), revelam o ressurgimento e a supremacia da economia neoclássica e, com ela, a colocação do tema da afectação dos recursos no centro da teoria do desenvolvimento económico. c) O final dos anos 80 e os anos 90, em que se desenvolvem duas perspectivas de análise da relação Estado-mercado no processo de desenvolvimento económico: por um lado, emerge uma nova reacção heterodoxa à “Economia Política Neoclássica”1 (EPN) que, apoiada em interpretações sobre o sucesso das economias asiáticas, recoloca a ênfase na acumulação do capital como motor do crescimento económico e retoma a importância da política económica activa do Estado; por outro lado, os economistas do Banco Mundial empreendem uma revisão das suas posições teóricas dos anos 80, passando a defender a ideia de que a intervenção do Estado é essencial para o desenvolvimento económico desde que complementar e “amiga do mercado” (market friendly). O que há de novo nos anos 90 é o esgotamento das “vagas de ataque neoclássico” e um percurso em que as diferentes reconsiderações acerca do papel do Estado permitem evidenciar alguns sinais de convergência mas, sobretudo, uma reinterpretação da ideia da participação do Estado no processo de desenvolvimento económico. O centro da discussão começa a deslocar-se da dimensão para a natureza da intervenção. 1. A abordagem tradicional da Economia do Desenvolvimento A defesa do activismo do Estado constitui uma das principais bases teóricas da Economia do Desenvolvimento emergente no segundo pós-guerra e reflecte o modo como a nova disciplina tinha combinado a herança do pensamento económico clássico com as fortes influências do keynesianismo dominante. Três aspectos são aqui essenciais: a) a consideração da acumulação do capital como o motor do desenvolvimento económico; b) a crítica ao mecanismo dos preços; e c) a defesa da acção reguladora do Estado no funcionamento da economia. O primeiro aspecto evidencia o retorno aos principais temas desenvolvidos pelos economistas clássicos ingleses, enquanto que os segundo e terceiro aspectos revelam a influência da revolução keynesiana. Os primeiros economistas do desenvolvimento afastaram-se da tradição neoclássica, que tinha colocado o problema da afectação dos recursos no centro da teoria económica, e restabeleceram a proeminência da formação do capital. A dimensão e a composição dos investimentos2 transformaram-se, então, no problema central da teoria do desenvolvimento económico o que, nas condições dos “países subdesenvolvidos”, dava uma importância particular ao estudo das condições especiais que bloqueavam a formação do capital. Um conjunto de insuficiências estruturais (baixo nível de rendimento real per capita, insuficiência da poupança privada, declínio dos termos de troca dos produtos primários, carência de empresários, baixas qualificações do trabalho, desemprego oculto, etc.) impediam que o mercado livre tivesse capacidade de responder adequadamente às necessidades da criação dos investimentos, pelo que a “política económica activa” se tornava indispensável para maximizar a quantidade e optimizar a composição dos investimentos (Rosenstein-Rodan). 2 3 Fortemente influenciados pela corrente de crítica ao mecanismo neoclássico dos preços, que vinha dos anos 30 e que correspondia a um dos pilares da revolução keynesiana, os primeiros economistas do desenvolvimento também começaram por criticar os mecanismos de mercado, considerando-os como sendo ineficientes, falíveis e mesmo irrelevantes para os problemas do desenvolvimento que eram próprios dos países menos desenvolvidos. Estavam de acordo que o sistema de preços apenas existia de forma muito rudimentar nesses países e que os mecanismos de mercado eram demasiado fracos para realizarem as mudanças necessárias à aceleração do crescimento económico. Criou-se, assim, entre os economistas do desenvolvimento, um consenso intelectual sobre o poder da mão visível do Estado na promoção e regulação do processo de desenvolvimento económico. Os pontos de vista sobre a promoção e a regulação do processo de desenvolvimento são, em grande medida, influenciados pela postura teórica emergente com a revolução keynesiana. Quer a influência que decorre da perspectiva do activismo do Estado na condução da política económica, quer a que resulta da defesa da necessidade de regulação do processo de crescimento económico, implícita no modelo de Harrod-Domar. De facto, a literatura da Economia do Desenvolvimento enfatiza tanto o problema da criação das condições para a industrialização como a necessidade das políticas económicas activas para regular o processo. Neste sentido, Albert Hirschman fala de duas funções principais que o Estado deve desempenhar no processo de desenvolvimento3. Para que a sua acção seja efectiva, o Estado deve começar por iniciar o crescimento através de acções que sejam capazes de criar incentivos e pressões para desencadear novas acções; e, depois, deve estar em condições de poder reagir activamente, balanceando as suas pressões em diferentes áreas, de forma a manter a dinâmica do crescimento. Segundo Hirschman, estas funções estão sempre presentes, muito embora uma ou outra possa predominar em cada momento. A primeira função prende-se com a iniciação do processo de desenvolvimento e é designada pelo autor como função indutora ou de desequilíbrio. De desequilíbrio, no sentido em que as acções do Estado devem favorecer os sectores que tenham maior poder de arrastamento na economia, atraindo novas actividades e dinamizando o processo de crescimento económico. Mas, continua o autor, nas economias subdesenvolvidas não é suficiente a adopção de sequências de acções permissivas do crescimento. Nestes casos, o Estado deve dar os primeiros passos e adoptar sequências “mais compulsivas”, por exemplo, liderando o processo de industrialização — a promoção do desenvolvimento. A segunda função corresponde ao desenvolvimento de acções reguladoras do processo de crescimento e desenvolvimento económico. O autor fala em função induzida ou equilibradora. Induzida, no sentido em que se trata de acções de reacção do Estado desencadeadas pelo próprio processo e que procuram responder aos bloqueamentos que se vão revelando ou à necessidade de incentivos em determinadas áreas, de forma a coordenar e dinamizar o processo de crescimento — a regulação do processo de desenvolvimento. O objectivo da “política económica activa” é, portanto, a assunção pelo Estado de responsabilidade directa tanto no aumento dos recursos da economia que podem ser investidos como na criação dos mecanismos de transferência desses recursos para o investimento produtivo (Wade 1990), num processo que implica a indução de acções reguladoras. Os instrumentos da política económica tanto podem ser indirectos (políticas monetária, fiscal e comercial, fornecimento de informação sobre tendências económicas, incentivos, etc.) como directos (investimento público). 2. A Economia Política Neoclássica A crítica ao activismo estatal, iniciada nos anos 70 e desenvolvida nos anos 80, esteve, desde logo, associada ao ressurgimento do pensamento neoclássico e à sua participação no debate sobre as questões do desenvolvimento. Começa por ser uma crítica à ineficiência da intervenção do estado (a 1ª vaga de ataque neoclássico), com incidência especial no proteccionismo e na industrialização por substituição de importações (ISI), destacando-se os trabalhos de Little, Scitovsky e Scott, Balassa, Krueger e Bhagwati. Estes autores estavam, sobretudo, influenciados pelo sucesso das economias orientadas para a exportação, como as da Coreia do Sul ou Taiwan, então considerados como exemplos de estados não intervencionistas. O rápido crescimento dessas economias parecia fornecer uma validação empírica para a ideia de que os ganhos de comércio obtidos através do comércio livre constituem factores dinâmicos do crescimento e do desenvolvimento. Contrariamente, o insucesso dos países que tinham optado por estratégias de substituição de importações revelava todo o fracasso das políticas intervencionistas. 3 4 Segundo aqueles autores, a opção pela ISI conduziu, na maior parte dos países em desenvolvimento, a um elevado nível de proteccionismo, criando situações de poder de monopólio e, consequentemente, possibilitando o aparecimento de rendas económicas sob diversas formas. Referindose, em particular, às restrições quantitativas impostas pelo estado no comércio internacional, Anne Krueger (1974) considerou que elas geram uma forte competição em torno das rendas que proporcionam e que essas actividades de “procura de renda” (rent seeking) impõem custos adicionais e desperdícios de recursos para o crescimento económico. Jagdish Bhagwati (1982), procurando unificar o objecto de estudo associado às consequências do intervencionismo do estado, propôs a noção de “actividades directamente improdutivas de procura de lucro” (DUP activities) como conceito geral que abarcasse um conjunto amplo de actividades, incluindo o subconjunto de “procura de renda” estudado por Krueger. Essas actividades são desenvolvidas por vários grupos de interesse que procuram não só rendas económicas mas, também, poder de monopólio, protecção tarifária, subsídios, etc. Os dois autores procuraram mostrar que a intervenção na economia pode ser mais ineficiente do que aparece à primeira vista. Assim, ao bem-estar que se perde nas condições de monopólio, licenciamento, subsídios, etc., deve ser acrescido o desperdício de recursos pelos indivíduos que competem para obter os benefícios permitidos pelas distorções de mercado. Uma segunda vertente de crítica à ineficiência da intervenção do Estado relaciona-se com o problema da chamada “repressão financeira”. Segundo as análises de McKinnon e Shaw (1973)4, existe “repressão financeira” quando se impede o sector financeiro de funcionar de acordo com mecanismos do mercado. Concretamente, as baixas taxas de juro nominais, em conjugação com elevadas taxas de inflação, produzem taxas de juro reais muito baixas, ou mesmo negativas, criando fortes obstáculos ao crescimento económico, na medida em que: a) desviam as poupanças para activos reais e reduzem a poupança financeira disponível para o investimento da economia, dificultando o aprofundamento do sistema financeiro; e b) criam excesso de procura de fundos de investimento, apelando para mais intervenção governamental através do racionamento do crédito, o que se torna favorável ao desenvolvimento de actividades de “procura de renda”. A consequência deste processo de “repressão financeira” é o desperdício de recursos para o crescimento económico e o não desenvolvimento do sistema de financiamento da economia. Esta análise transformou-se no suporte teórico da defesa da liberalização financeira, enquanto elemento crucial para a promoção do crescimento e do desenvolvimento económico. Nos anos 80, esta crítica à ineficiência da acção do Estado acabou por se transformar numa posição verdadeiramente anti-intervencionista, de defesa da minimização do activismo do Estado (2ª vaga de ataque neoclássico). Um trabalho fundamental nesta evolução foi The Poverty of Development Economics de Deepak Lal, publicado em 1983. Neste trabalho, o autor apresenta e caracteriza o que designa por dogma dirigista que, depois, submete a uma crítica vigorosa. A questão central em relação à aplicação do dogma dirigista aos países em desenvolvimento é que, se algumas formas de dirigismo podem ter efeitos positivos, no entanto, as políticas dirigistas normalmente adoptadas conduziram a resultados que, numa perspectiva de second-best, foram bem piores do que o laissez-faire. A hipótese da imperfeição dos mercados assumida pelos economistas do desenvolvimento deu, então, lugar à assunção da imperfeição do Estado como elemento central da análise. Segundo Krueger (1990), não podemos entender o Estado como uma espécie de “guardião social da benevolência” nem considerar que os indivíduos no sector privado actuam no seu próprio interesse, enquanto que os indivíduos no sector público são motivados por objectivos de justiça social. Pelo contrário, é necessário reconhecer que o Estado é constituído por um grande número de actores (políticos, burocratas, tecnocratas, etc.) que se associam em diferentes grupos e com interesses próprios. Dado que não existem indivíduos ou grupos altruístas, é mais realista assumir que os indivíduos agem por interesses próprios, estejam no sector privado ou no público. Deste modo, a dinâmica criada pela intervenção do Estado e pelo proteccionismo tende a ser, nos países em desenvolvimento, uma dinâmica associada ao comportamento de “procura de renda”, à pressão dos “interesses pessoais” e de “grupos de interesse” conflituantes, à burocratização e à corrupção. A acção do Estado também é analisada em termos de vantagens comparativas. Sendo o Estado uma organização não-mercantil e com acções, em geral, de grande dimensão, apresenta vantagem comparativa em actividades como a lei e a segurança, a provisão de informação e a provisão dos serviços públicos básicos de grande dimensão, em que o Estado não tem desvantagens e em que a iniciativa privada pode defrontar algumas desvantagens. Segundo Krueger (1990), dada a natureza dos serviços fornecidos pelo Estado, grande parte das suas actividades exige um volume considerável de organização e de administração, ambas utilizando indivíduos com nível educacional elevado. Mas, no contexto de uma 4 5 economia em desenvolvimento, em que a oferta de trabalho qualificado é limitada e os recursos são escassos, em particular os recursos para a educação, o crescimento da dimensão do Estado tem custos significativos para o funcionamento da economia. Deste modo, o empreendimento de qualquer actividade no sector público tem custos elevados porque implica uma grande drenagem de recursos administrativos e organizacionais escassos, tanto do sector privado como de outras actividades públicas. Além disso, a participação do Estado em actividades em que não tem vantagens comparativas corresponde a um desvio de recursos prejudicial para o seu adequado desenvolvimento. O fracasso do Estado consiste, então, numa incapacidade para fornecer à economia as infraestruturas em que tem vantagem comparativa, ao mesmo tempo que não revela capacidade para fornecer outros bens e serviços em que não tem vantagem comparativa. A EPN trouxe uma contribuição importante para a análise do papel do Estado através do conceito de fracasso do Estado. No entanto, a tendência para considerar que os fracassos do Estado são comuns enquanto que os fracassos do mercado são raros e excepcionais teve dupla consequência: a) transformou a intervenção do Estado na causa principal da ineficiência e do atraso no desenvolvimento económico; b) fez do objectivo dos “preços correctos” o aspecto central das propostas de políticas de desenvolvimento. Estes dois aspectos são evidentes nos programas de reformas estruturais construídos durante os anos 80 e 90, cujos aspectos centrais são, exactamente, a defesa da redução drástica da dimensão do sector público (e do activismo do Estado), a ampliação do sector privado da economia e a “liberalização” do mercado, transformando-o no mecanismo de afectação dos recursos e de formação dos preços. 3. As novas teorias do Estado desenvolvimentista Análises da experiência de países da Ásia Oriental foram bastante utilizadas, como já foi referido, em muitos dos trabalhos da EPN. Mas essa experiência também sustenta o ressurgimento da teoria do estado desenvolvimentista, a partir de um conjunto de economistas que têm defendido que o sucesso do Japão e de outros países da Ásia está fortemente associado às actividades de um Estado interveniente. Mais do que isso, afirma Wade (1990), de “um certo tipo de papel do Estado na economia que conduz a uma forma nova e mais eficaz de combinar as instituições do capitalismo” (pp. 4-5). Para os autores desta corrente, o activismo do Estado, ou activismo político esclarecido (Chowdhury e Islam 1993), é a principal responsável pelo sucesso das economias asiáticas. Mas, a questão central que todos colocam é a criação de sinergias entre o Estado e um sistema de mercado predominantemente privado, que resulta num elevado nível de produtividade da economia e numa acentuada dinâmica de crescimento económico. Por um lado, o Estado fixa as regras e influencia a tomada de decisões, de acordo com uma determinada orientação estratégica para o conjunto da economia; e, por outro, a articulação com o funcionamento do mercado permite que as vantagens de mercados descentralizados se combinem com as vantagens que resultam de processos produtivos parcialmente isolados das instabilidades próprias de mercados livres e dinamizados por investimentos em indústrias seleccionadas pelo Governo como estratégicas para o crescimento económico do país. O ponto de partida desta corrente que questiona a EPN é a ideia de que toda a literatura sobre as actividades directamente improdutivas e sobre a procura de renda explica essencialmente as situações de fracasso e não as de sucesso, tais como nos casos de industrialização conduzida pelo Estado que se observam em países da Ásia Oriental. As principais características do modelo asiático de Estado desenvolvimentista foram sintetizadas, do seguinte modo, por Islam (1992) e Chowdhury e Islam (1993): a) uma elite burocrática apoiada pelos melhores talentos de gestão no sistema; b) um sistema político autoritário em que a burocracia tem suficiente liberdade de acção para tomar iniciativas políticas; e c) uma estreita cooperação entre o governo e os grandes negócios no processo de tomada de decisão5. Os vários autores desta corrente enfatizam uma ou outra dessas três características, muito embora se possa considerar que a terceira é aquela que mais unifica o conjunto das teorias sobre o Estado desenvolvimentista. Uma interpretação importante é a de Wade (1990) que, apoiando-se nas ideias sobre o estado desenvolvimentista asiático e nas tradições da Economia do Desenvolvimento, propôs o conceito de 5 6 mercado governado para sintetizar a relação que se estabelece entre o Estado e o mercado mas num quadro de efectiva liderança política pelo primeiro6. Segundo Wade, a superioridade do desempenho económico dos países da Ásia Oriental pode ser analisado a três níveis. No primeiro nível, estão as causas próximas: a) “níveis muito elevados de investimento produtivo, contribuindo para a transferência rápida das novas tecnologias para a produção corrente”; b) “mais investimento em determinadas indústrias estratégicas do que ocorreria na ausência de intervenção governamental”; c) “exposição de muitas indústrias à concorrência internacional nos mercados externos e, mesmo, nos mercados internos” (Wade 1990, p. 26). No segundo nível, estas causas próximas são, elas próprias, resultados de um conjunto de políticas económicas que, através de incentivos, controlos e mecanismos para prevenir riscos, permitiram ao Estado orientar os processos mercantis de afectação de recursos e, deste modo, influenciar níveis e tipos de produções e investimentos. E no terceiro nível de causalidade, Wade destaca a forma específica de organização do Estado e do sector privado (corporativismo autoritário) que forneceu as bases para a governação do mercado. As novas teorias do Estado desenvolvimentista podem ser diferenciadas das abordagens de base neoclássica em três níveis fundamentais de análise: a) Enfatizam a acumulação do capital como o principal motor do crescimento e realçam o nível e a composição do investimento como causas primeiras dos diferentes níveis de desempenho económico entre os países em desenvolvimento. b) Destacam as políticas económicas como instrumentos importantes para orientar a afectação dos recursos e estimular o comportamento dos agentes de mercado, influenciando, deste modo, o nível de investimento produtivo e a inovação tecnológica. c) Realçam a importância dos arranjos políticos para suportar as medidas de política económica necessárias para estimular a afectação dos recursos, numa óptica de longo prazo. Da nova abordagem desenvolvimentista resultam dois aspectos importantes, que acabam por influenciar decisivamente toda a discussão sobre as funções do Estado no processo de desenvolvimento. Por um lado, a importância que se deve atribuir ao modo de organização do Estado e, em particular, aos arranjos políticos necessários para garantir a adopção das medidas de política económica mais adequadas; e, por outro, dada a natureza realmente intervencionista da generalidade dos Estados, a necessidade de se enfatizar cada vez mais a qualidade e não tanto a dimensão da intervenção. 4. As “revisões” dos economistas do Banco Mundial A produção literária dos economistas do Banco Mundial sobre o papel do Estado no processo de desenvolvimento económico sofreu modificações importantes nos anos 90, pelo menos em termos de abordagem teórica. Também aqui, as análises sobre a experiência dos países da Ásia Oriental influenciaram significativamente as “revisões” operadas pelos economistas daquele banco e que se encontram materializadas em três relatórios importantes: World Development Report 1991 (World Bank 1991), The East Asian Miracle, 1993 (World Bank 1993) e World Development Report 1997 (World Bank 1997). As ideias fundamentais expressas em cada um destes relatórios podem ser sintetizadas do seguinte modo: a) O Relatório de 1991 faz uma síntese da discussão dos anos 70-80 realizada no quadro do Banco Mundial (e do FMI), que aponta para a seguinte ideia básica: o Estado não deve intervir prejudicando, ou seja, criando situações que conduzam a fracassos (proteccionismo, repressão financeira, controlo dos preços, actividades DUP, etc.); a sua intervenção deve ser complementar e “amiga do mercado”. b) O Relatório de 1993 sintetiza a leitura que os economistas do Banco Mundial fizeram dos processos de crescimento e de desenvolvimento económico de países da Ásia Oriental, leitura que evidencia influências significativas das novas teorias desenvolvimentistas e um relativo afastamento em relação à ortodoxia neoclássica. Uma ideia básica que fica é a seguinte: intervenções selectivas (que vão além das intervenções funcionais) no mercado podem beneficiar o seu funcionamento e ter efeitos positivos no crescimento económico. 6 7 c) O Relatório de 1997 reflecte um aprofundamento das análises elaboradas anteriormente e estabelece uma nova síntese sobre o assunto. Os economistas do Banco aceitam que o Estado é “central para o desenvolvimento económico e social” (World Bank 1997, p. 1) e reconhecem que as diferenças significativas que existem na organização dos Estados entre países com mesmos níveis de desenvolvimento são importantes para explicar o porquê e o como das diferenças de desempenho na promoção do desenvolvimento. Mais do que a dimensão é a qualidade e a eficácia da governação que deve ser compreendida e estimulada. Com o Relatório de 1991, observa-se uma mudança qualitativa na posição dos economistas do Banco Mundial e que, de certo modo, reflecte uma “revisão” apoiada em leituras de experiências concretas. O problema central já não é a minimização do activismo do Estado mas a necessidade de um complementaridade “saudável” entre o Estado e o mercado, como se reconhece no Relatório: “Uma das lições de experiências concretas mais importantes relaciona-se com a interacção entre o Estado e o mercado no fomento do desenvolvimento. A experiência mostra que o sucesso na promoção do crescimento económico e redução da pobreza é mais provável quando os governos complementam os mercados; quando divergem, resultam fracassos dramáticos” (World Bank 1991: p. iii). O resultado dessas leituras é a apresentação de um modelo em que a intervenção do Estado deve ser complementar e “amiga do mercado” (market friendly). Mas a intervenção, mesmo quando incide sobre o mercado (protecção à indústria nascente, por exemplo), pode ser bem sucedida. Foi, segundo os economistas do Banco, o que aconteceu nas economias da Ásia Oriental ou no início do processo de industrialização do Japão. E por três razões fundamentais: porque foram intervenções moderadas, submetidas à disciplina da concorrência internacional e doméstica e porque os governos tiveram o cuidado de assegurar que não acabariam por distorcer indevidamente os preços relativos. A intervenção é essencial para o desenvolvimento e “amiga do mercado”, quando o Estado: a) intervém com relutância deixa o mercado funcionar a não ser que a vantagem da intervenção seja claramente melhor; b) fiscaliza e harmoniza submete continuamente a intervenção à disciplina dos mercados internacionais e domésticos; e c) intervém com abertura torna a sua intervenção simples, transparente, mais sujeito a regras do que ao arbítrio oficial (World Bank 1991, p. 5). Este modelo, como reconhecem os próprios economistas do Banco Mundial, foi desenvolvido “na perspectiva neoclássica” e corresponde a um modelo de “activismo governamental efectivo mas cuidadosamente limitado” (World Bank 1993, p. 10). Analisando as experiências das “economias asiáticas de elevado desempenho” (EAED)7, o Relatório de 1993 retoma a abordagem market-friendly e procura desenvolvê-la com a elaboração de uma abordagem funcional para a análise do crescimento económico8. Esta abordagem procura estabelecer ligações entre o crescimento e a realização de três funções: acumulação, afectação eficiente e captura de tecnologia. Essa realização depende da combinação de políticas, que vão de políticas orientadas para o mercado até políticas conduzidas pelo Estado, as quais variam no tempo e de país para país. As políticas económicas podem ser fundamentais ou selectivas. As políticas fundamentais são definidas deste modo porque afectam a realização das funções de crescimento sobretudo através dos mecanismos de concorrência baseados no mercado. Procuram promover a estabilidade macroeconómica, investimentos em capital humano, sistemas financeiros estáveis e seguros, distorções limitadas de preços e a abertura à tecnologia estrangeira. As políticas selectivas correspondem a formas de intervenção que alteram os incentivos do mercado e, por essa via, podem melhorar o seu funcionamento. Permitem criar uma forma de competição que combina a concorrência com os benefícios da cooperação entre empresas e entre o Governo e o sector privado. A competição pode ir de simples regras de afectação não mercantil (acesso a crédito racionado para exportadores) até formas bem mais complexas de coordenação do investimento privado. Incluem a repressão financeira moderada, crédito directo, promoção industrial selectiva e as políticas comerciais que promovem exportações não tradicionais. A abordagem funcional constitui um avanço em relação à estratégia market-friendly, na medida em que vai mais longe do que o reconhecimento da importância das políticas que exploram a complementaridade Estado-mercado, numa óptica em que o Estado apoia mais do que substitui o mercado. O Relatório de 1993 aceita que as intervenções selectivas possam alterar os incentivos e influenciar positivamente o comportamento dos agentes do mercado. A necessidade dessas intervenções resulta do fracasso na realização da função de coordenação que o mercado desempenha e que pode acontecer em determinadas situações: mercados incompletos, informação imperfeita, externalidades ou economias de escala. Nestas situações, as intervenções selectivas podem ir além do apoio ao desempenho 7 8 do mercado, guiando e, mesmo, ultrapassando o seu funcionamento, tal como aconteceu em algumas EAED, onde as acções do Estado influenciaram significativamente os incentivos de mercado. O World Development Report de 1997 faz a síntese das novas posições teóricas dos economistas do Banco Mundial sobre as funções do Estado na economia: desde o reconhecimento da importância da complementaridade entre o Estado e o mercado, passando pela aceitação de intervenções selectivas, até à assunção de que a ênfase deve ser colocada na qualidade e não na quantidade, ou seja, na eficácia e não na dimensão do Estado. O Relatório distingue três níveis de funções para o estado: a) Funções mínimas: provisão dos bens públicos e protecção dos pobres b) Funções intermédias: resposta aos fracassos do mercado c) Funções activas: coordenação da actividade privada e redistribuição O desempenho adequado dessas funções pressupõe que o Estado seja mais credível e um parceiro eficaz no desenvolvimento do país. Dois conceitos são importantes para compreender a natureza do Estado eficaz: capacidade e eficácia. A capacidade é “a aptidão para empreender e promover acções colectivas com eficiência”, tais como a lei, ordem, saúde pública ou infra-estruturas básicas; e a eficácia “é um resultado da utilização da capacidade para fazer face à procura social dos bens públicos”9. O Estado pode ser capaz mas não ser eficaz, se a capacidade não for utilizada para responder aos interesses da sociedade. Neste sentido, o Relatório defende a necessidade de o Estado aumentar a sua capacidade através de um processo que corresponde a uma estratégia em duas fases: em primeiro lugar, deve adequar as suas funções às capacidades que possui e, em segundo lugar, deve procurar aumentar essas capacidades através do fortalecimento das instituições públicas. Como foi dito na introdução, uma característica essencial dos anos 90 é o esgotamento das “vagas de ataque neoclássico” e um percurso em que as diferentes reconsiderações acerca do papel do Estado permitem evidenciar alguns sinais de convergência mas, sobretudo, uma reinterpretação da ideia da participação do Estado no processo de desenvolvimento económico. Como afirma Stiglitz (1998), não só existe um consenso crescente em relação à importância do papel do Estado no esforço de desenvolvimento económico mas, também, o reconhecimento de que uma forma errada de intervenção pode ser fortemente prejudicial. A questão fundamental é, portanto, o objectivo e a eficácia das acções do Estado. Algumas referências bibliográficas Amsden, Alice H. (1994) — “Why Isn’t the Whole World Experimenting with the East Asian Model to Develop?: Review of the East Asian Miracle”. World Development, vol. 22, nº 4: 627-633. Appelbaum, Richard P. e Henderson, Jeffrey (eds.) (1992) — States and Development in the Asian Pacific Rim. Newbury Park, London, New Delhi, Sage Publications, 320 p. Balassa, Bela (1984) — “Adjustment Policies in Developing Countries: A Reassessment”. World Development, vol. 12, nº 9: 955-972. Balassa, Bela (1988) — “The Lessons of East Asian Development: An Overview”. Economic Development and Cultural Change, vol. 36, nº 3 (supplement): S273-S290. Bardhan, Pranab (1990) — “Symposium on the State and Economic Development”. The Journal of Economic Perspectives, vol. 4; nº 3: 3-7. Bhagwati, Jagdish — “Directly Unproductive Profit-Seeking Activities”. Journal of Political Economy, vol. 90, Outubro 1982: Buchanan, James M. (1986) — Liberty, Market and State: Political Economy in the 1980s. New York, New York University Press. 8 9 Block, Fred (1993?) — “The Roles of the State in the Economy” in Neil Smelser e Richard Swedberg (eds.), The Handbook of Economic Sociology. Princeton e New York, Princeton University Press e Russel Sage Foundation, 1993, pp. 691-710. Chowdhury, Anis e Islam, Iyanatul (1993) — The Newly Industrialising Economies of East Asia. London, New York, Routledge, 288 p. Colander, David (ed.) (1985) — Neo-classical Political Economy: The Analysis of Rent-Seeking and DUP Activities. Cambridge, MA, Ballinger. Colclough, Christopher e Manor, James (1992) — States and Markets: Neo-Liberalism and the development Policy Debate. New York, Oxford University Press. Datta-Chaudhuri, Mrinal (1990) — “Market Failure and Government Failure”. The Journal of Economic Perspectives, vol. 4, nº 3: 25-39. Fishlow, Albert (1990) — “The Latin American State”. The Journal of Economic Perspectives, vol. 4, nº 3: 61-74. Israel, A. (1991) — “The Changing Role of the State in Development”. Finance & Development, June. Krueger, Anne O. (1974) — “The Political Economy of the Rent-Seeking Society”. The American Economic Review, vol. LXIV, nº 3, June: 291-303. Krueger, Anne O. (1990) — “Government Failures in Development”. The Journal of Economic Perspectives, vol. 4, nº 3: 9-23. Kwon, Jene (1994) — “The East Asia Challenge to Neoclassical Orthodoxy”. World Development, vol. 22, nº 4: 635-644. Lal, Deepak (1983) — The Poverty of ‘Development Economics’. Cambridge Mass, Harvard University Press, 1985. Lall, Sanjaya (1994) — “The East Asian Miracle: Does the Bell Toll for Industrial Policy?”. World Development, vol. 22, nº 4: 645-654. Lee, C. H. (1992) — “The Government, Financial System and Large Private Enterprises in the Economic Development of South Korea”. World Development, vol. 20, nº 2: 187-197 Lewis, W. A. (1955) — The Theory of Economic Growth. London, Allen and Unwin. Little, I. (1982) — Economic Development: Theory, Policy and International Relations. New York, Basic Books. Myrdal, Gunnar (1957) — Economic Theory and Underdeveloped Regions. London, Duckworth. [Tradução francesa a partir do inglês: Théorie Économique et Pays Sous-Développés. Paris, Présence Africaine (“Enquêtes et Études”), 1959]. Nurkse, Ragnar (1953) — Problems of Capital Formation in Underdeveloped Countries. Oxford, Blackwell. Perkins, D. H. (1994) — “There Are at least Three Models of East Asian Development”. World Development, vol. 22, nº 4: 655-661. Rosenstein-Rodan, Paul N. (1943) — “Problems of Industrialisation of Eastern and South-Eastern Europe”. Economic Journal, Jun.-Set. 9 10 Shapiro, Helen e Taylor, Lance (1990) — “The State and Industrial Strategy”. World Development, vol. 18, nº 6, pp. 861-878. Soon, Cho (1994) — “Government and Market in Economic Development”. Asian Development Review, vol. 12, nº 2: 144-165. Stiglitz, Joseph E. et al. (1989) — The Economic Role of the State. Oxford, Basil Blackwell Ltd. Stiglitz, Joseph E. (1998) — “Redefining the Role of the State”. The World Bank Group (www.worldbank.org). Streeten, Paul (1993) — “Markets and States: Against Minimalism”. World Development, vol. 21, nº 8: 1281-1298. Streeten, Paul (1996) — “Governance” in M. G. Quibria e J. Malcolm Dowling (eds.), Current Issues in Economic Development. An Asian Perspective. Hong Kong, Oxford University Press para Asian Development Bank, pp. 27-66. Taylor, Lance (1993) — “Stabilisation, Adjustment and Reform” in Lance Taylor (ed.), The Rocky Road to Reform. Cambridge Mass, The MIT Press, pp. 39-94. Wade, Robert (1990) — Governing the Market. Economic Theory and the Role of Government in East Asian Industrialisation. Princeton, Princeton University Press. Westphal, Larry E. (1990) — “Industrial Policy in an Export-Propelled Economy: Lessons from South Korea’s Experience”. The Journal of Economic Perspectives, vol. 4, nº 3: 41-59. World Bank (1991) — World Development Report 1991. The Challenge of Development. New York, Oxford University Press (para o Banco Mundial). World Bank (1993) — The East Asian Miracle. Economic Growth and Policy. New York, Oxford University Press (para o Banco Mundial). World Bank (1997) — World Development Report 1991. The State in a Changing World. New York, Oxford University Press (para o Banco Mundial). Yanagihara, Toru (1994) — Anything New in the Miracle Report? Yes or No. World Development, vol. 22, nº 4: 663-670. 1 A Expressão Economia Política Neoclássica é utilizada por autores como Colander (1984) ou Srinivasan (1985). Segundo Colander, esta nova área de pesquisa destaca-se da teoria económica neoclássica porque considera que o Estado não é uma força exógena procurando actuar correctamente mas, pelo menos, parcialmente endógena, sendo que as suas políticas reflectem sempre interesses adquiridos. Cf. Colander, D. (1984) — Neoclassical Political Economy. Cambridge Mass, Ballinger; Srinivasan T.N. (1985) — “Neoclassical Political Economy, the State and Economic Development”. Asian Development Review, vol. 3, nº 2: 3858. Outros autores preferem utilizar a expressão Nova Economia Política, distinguindo-a directamente do resto da teoria económica neoclássica. São os casos, por exemplo, de John Toye (Dilemmas of Development. Oxford, Basil Blackwell, 1987 e 1993) ou de Barbara Ingham (Economics and Development. London, McGraw-Hill, 1995). 2 Ver o debate sobre take off, big push, crescimento equilibrado, crescimento desequilibrado, etc. 3 Hirschman, Albert O. (1958) — The Strategy of Economic Development. New Haven, Yale University Press (Cf. Capítulo 12). 4 Cf. McKinnon, Ronald I. (1973) — Money and Capital in Economic Development. Washington DC, Brookings Institution. Shaw, Edward S. (1973) — Financial Deepening in Economic Development. New York, Oxford University Press. 5 Chowdhury e Islam (1993), página 48. 6 Wade (1990) — Governing the Market, capítulos 1, 10 e 11. 7 HPAE no original: High-Performing Asian Economies (World Bank 1993). 8 Os autores distinguem esta abordagem de duas outras que designam de perspectiva neoclássica (a análise neoclássica dos anos 80) e de perspectiva revisionista (as novas teorias do Estado desenvolvimentista). 9 Cf. World Bank 1997, p. 3, caixa 1. 10