Reforma psiquIatrIca e psicanaLise Gilda Paoliello A Cezar Rodrigues Campos in memorian Há uma necessidade urgente de resgatar a clínica tragada pelas neurociências e cada vez mais distante da escuta, do olhar e de suas próprias raízes. Em relação a isso, a psicanálise deve responder a algo até então negligenciado, pois ela também tem responsabilidade nesse distanciamento entre a psiquiatria atual e a clínica, uma vez que, durante muito tempo, contemplou o sujeito da fala e do desejo e esqueceu que esse sujeito tinha um corpo biológico. Além disso, a psicanálise se afastou da função social que deveria cumprir. Que dispositivos satisfatórios temos para lidar com a loucura? Antes de tentar responder a essa pergunta, é importante ressaltar que se a psiquiatria, as psicologias ou a psicanálise se debruçam sobre a loucura e definem suas intervenções isoladamente sobre o corpo, a pessoa ou o sujeito, sem tomar o universo desses seres como referência de uru trabalho que assuma a responsabilidade de cuidá-los, elas propõem algo fadado ao fracasso. Jamais haverá um modelo hegemônico para tratar da loucura, pois em seu tratamento, mais que nunca, importa a singularidade de cada caso. Aparentemente, há um impasse entre a singularidade do sujeito da psicanálise e o paciente psiquiátrico. A demanda do paciente psicanalítico parte dele mesmo, é uma forma de ele interpretar seu próprio incômodo a partir do que sabe e do que não sabe. A demanda feita ao psiquiatra, principalmente através das instituições, é quase sempre social. No paciente não reside a única, nem sequer a principal razão de sua internação, embora esta seja atribuída à sua doença mental. Como aponta Francisco Paes Barreto em Reforma psiquiátrica e movimento lacaniano: abstraí-lo de seu mundo e considerá-lo um indivíduo isolado é reforçar sua cisão. E necessário incluir pelo menos os familiares e os integrantes do corpo assistencial para tornar a operação equacionável, senão estaremos discriminando o paciente e reduzindo-o a mero objeto de tratamento, na melhor das hipóteses, mas um tratamento fadado a ser malsucedido, pois quase todas as suas possibilidades de se efetivar a sua condição de sujeito ‘Este texto é fruto do trabalho apresentado nas Jornadas das Redes de Pesquisa do Campo Lacaniano “Autismo e Esquizofrenia na Clínica da Esquize”, em julho de 1999. 147 estão bloqueadas: ele não escolhe o seu médico, não escolhe o tipo de tratamento, não remunera, não há com o médico um relacionamento próximo ou duradouro. Então, depois de tudo isso, não pode se sentir responsável pelo resultado do tratamento, seja este de êxito ou de fracasso (Barreto 1999). Na melhor das hipóteses, a escolha da instituição e do psiquiatra é feita pela família ou pela ordem pública, transformando o psiquiatra em um trabalhador social e a demanda psiquiátrica em uma heterodemanda, vinda do outro. Além disso, há uma diferença fundamental entre os sintomas psicanalítico e psiquiátrico: enquanto o primeiro só existe se comunicado pelo próprio paciente, ou seja, marcado pelo discurso, o segundo é aprendido, descrito e nomeado pelo psiquiatra. Usando a definição de Lacan, a clínica é o real impossível de suportar. Este não tem na psiquiatria e na psicanálise a mesma definição: no caso da psicanálise, trata-se de um impossível de suportar para o sujeito e, no caso do psiquiatra, de um impossível de suportar para o corpo social. Há outro impasse gerado pela instituição pública e por suas propostas. Enquanto a psicanálise visa o particular e não faz promessas, a instituição pública visa o coletivo e se constitui com a finalidade de dar respostas a algumas carências da sociedade: tentar restituir a saúde física e mental a quem as perdeu. - O que pode então o psicanalista em um serviço de assistência pública? “E justamente por aí não ter lugar para o psicanalista que a psicanálise deve aí estar. E através dela que circulam os conceitos operativos que marcam uma posição ética em relação ao sujeito” (Leguil apud Montezuma 1997). Não se pode, contudo, negligenciar a observação de Freud a esse respeito em “Esboço da psicanálise”: Descobrimos que devemos renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os psicóticos — renunciar a eles para sempre, ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor (Freud 1938). Nosso trabalho com psicóticos, proposto pela reforma psiquiátrica em Minas Gerais, apega-se a esse pronunciamento, no sentido não da impossibilidade, e sim da criação de um outro plano possível. Seguindo o célebre ditame ético de Lacan, “o analista não dever recuar diante da psicose”, vamos em frente. Uma transformação radical Farei um breve relato histórico da reforma psiquiátrica em Minas Gerais, mostrando que, desde o princípio, ela se delineia no cruzamento de três eixos: a psiquiatria, a psicanálise e a dimensão sociopolítica, estruturando-os, assim como a própria reforma junto à formação de profissionais nas residências de psiquiatria. É importante ressaltar que essa articulação com a psicanálise ofereceu à psiquiatria conceitos fundamentais, usados como instrumentos para marcar uma posição ética com relação ao sujeito. Embora grande parte dos profissionais da área de saúde mental não seja psicanalista, a maioria está familiarizada e é capaz de operar com esses conceitos através de supervjsóes de apresentações de paciente e de suas próprias análises.2 Outro ponto que merece destaque é o recurso à medicação. O medicamento sem dúvida é um aliado da reforma, pois torna possível a permanência de nOSSOS pacientes fora dos hospitais, de forma responsável. Ao prescrever uma medicação, a articulação entre psiquiatria e psicanálise nos permite “fundar um campo que propicie a construção do sujeito que, ao se constituir, constituirá também o laço social” (Lauar 1995). Pois bem, a reforma psiquiátrica em Minas Gerais teve início em 1979, a partir das denúncias de atrocidades ocorridas em hospitais e da vinda, para o estado, de Franco Basaglia. A situação dos hospitais da época era comparável ao inferno de Dante. Os critérios psiquiátricos de internação não eram considerados e os hospitais abrigavam toda sorte de excluídos, de psicótjcos a criminosos, passando por mendigos, mães solteiras, deserdados pelas famílias e alcoólatras Os pacientes viviam amontoados em pavilhões e passavam a maior parte do tempo em pátios imundos e cercados por altos muros, para impedir as fugas e evitar olhares indiscretos. Dormiam em montes de palha espalhados pelo chão, quase sempre cobertos pelos próprios excrementos. A limpeza, esporádica, era feita com jatos de mangueira dirígidos ao mesmo tempo para o ambiente e para o corpo dos pacientes. Os pacientes tinham expressões semelhantes às dos prisioneiros de um campo de concentração. As crianças ficavam misturadas com os adultos, e muitas vezes morriam ali. Esse é um retrato do hospital de Barbacena em 1979, portanto, há cerca de vinte anos, que na época tinha 4 mil pacientes internados, mas é um retrato que serve também para dezenas de hospitais psiquiátricos em todo Brasil. Diante desse quadro, urgia pensar em uma transformação radical do tratamento psiquiátrico. A prioridade era manter vivos, com dignidade, aqueles indivíduos. Assim, o social, em detrimento da clínica, se impôs no processo de desospitalização como primeira prerrogativa da reforma. Logo, entretanto, perceberíamos que se não priorizássemos a clínica, haveria outras internações e voltaríamos à estaca Zero. Assim, estabelecer critérios psiquiátricos claros para a internação e fortalecer o atendimento ambulatorjal tornaramse fundamentais. Nesse sentido, gostaria de expressar minha gratidão a Antonio Quinet, que já há nove anos tem nos prestado uma singular contribuição através da apresentação de pacientes na unidade de psiquiatria do Hospital da Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Com a presença do serviço social, da enfermagem e da psicologia junto ao psiquiatra, foi se esboçando uma equipe multidisciplinar, embrião da atual equipe de saúde mental. Trabalhar em equipe, além de possibilitar que o projeto de tratamento de um paciente seja avaliado por todos, não permite que o poder decisório se concentre em um único profissional. E doloroso, mas é preciso admitir que, tal qual Simão Bacamarte, o psiquiatra foi o representante do poder de uma ciência que encobriu, durante muitos anos, os absurdos que ocorriam por trás dos muros dos hospitais. Como não existe ciência ingênua, desprovida de interesses políticos, econômicos ou ideológicos, apelamos para os interesses políticos e econômicos de nossos administradores, a fim de que pudéssemos levar à frente nossos ideais: tornar possível o resgate dos cidadãos e dos sujeitos perdidos naqueles dejetos da sociedade. Como assinalou Barreto (1999), “desde o princípio, para nós, dizer ‘o louco é cidadão’ equivale a dizer ‘o louco é sujeito’, equivalência de nossa aliança entre psicanálise e reforma”. Assim, o conceito de sujeito foi o primeiro recurso psicanalítico de que lançamos mão em nosso trabalho assistencial — trabalho que, paradoxalmente, tinha e tem caráter público e coletivo. Dos 4 mil pacientes crônicos internados no hospital dc Barbacena em 1979, restam hoje 450. Voltaram para casa os pacientes que ainda tinham laço familiar e que, de acordo com o critério psiquiátrico, apresentavam condições de manter um tratamento ambulatorial ou de hospital-dia. Os que ainda estão internados não possuem qualquer vínculo familiar ou social. Nessa reestruturação, é exemplar o caso de um paciente apelidado de Cabo, considerado mudo durante dez anos. Com a reformulação do serviço, surgiu a possibilidade dc reconstrução do sujeito, e ele começou a falar, assustando a todos. Interrogado, disse: “Eu não tinha nada a dizer, e ninguém me perguntava nada, então ficava calado”. Cabo trabalha atualmente no hospital de Barbacena, prestando serviços na firma de engenharia que o está reformando. Ganha por isso, mostra com orgulho o cartão magnético de sua conta bancária e possui título eleitoral. Tem uma namorada, paciente do hospital, e no momento os internos fazem um mutirão para construir a casa do futuro casal. Outro instrumento fundamental da psicanálise de que lançamos mão é a transferência. E importante lembrar que ela não é um fenômeno restrito aos consultórios. O próprio Freud alertou para o fato de que é precisamente nas instituições que a transferência é manipulada das formas mais indignas. Por sua vez, Lacan, em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1961a), mostrou que Freud reconheceu a transferência como princípio do poder do psicanalista, mas que esse poder só lhe daria alguma saída se não fosse usado como tal. A psicanálise torna possível a direção do tratamento, permitindo ao paciente, pela retificação subjetiva, romper com o imaginário institucional e com a alienação no Outro, assim como perceber que tem algo a ver com as coisas das quais se queixa ou das quais é queixa. Dito de outro modo, que é responsabilidade sua sair dessa posição. Podemos ilustrar essa questão com pacientes funcionários do serviço público, cujo sintoma é o mal-estar institucional. O ambulatório do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado é conhecido como confessionário das professoras insatisfeitas. Escutamos comentários como: “No ambulatório, só dá professora em busca de atestado para licença”. Isso é verdade, mas apenas parte dela. Cabe a quem escuta fazer surgir o que há por trás desse pedido, sua cumplicidade com o sintoma institucional e a singularidade de sua demanda. Essa escuta pode acarretar uma mudança de posição e uma implicação política do sujeito com a coisa pública, no sentido de provocar mudanças. E claro que essas não são questões medicalizáveis, mas é responsabilidade do psiquiatra saber conduzi-las, e a psicanálise fornece instrumentos para tal. A psicanálise, portanto, implica o tratamento pelo discurso. Consideremos o discurso da instituição pública, objeto da reforma. Ela está quase sempre fazendo promessas que não pode cumprir. Por ter posição materna, mas perversa, a instituição facilmente vira um mau lugar para acolher a possibilidade de um trabalho eficaz. Assim, cabe ao trabalhador de saúde mental fazer essa leitura em voz alta, pois o que não é dito fica maldito e nos persegue como fantasma, tendo a força de um retorno do recalcado. Dizemos que a instituição é perversa porque ela recusa suas falhas e, designando o paciente como usuário, utiliza-o como um fetiche. Ela falha porque é usada para além do que pode responder, e essa é sempre a maneira pela qual se justifica. A utilização adequada da transferência pode romper com essa lógica, levando o paciente a sair da posição de usuário e a se pôr no lugar de sujeito. Devemos estar atentos para não fazer do sintoma da instituição nosso próprio sintoma, como era comum nos serviços antes da reforma, com psiquiatras que se cronificavam com os pacientes e não se responsabilizavam pelas conseqüências decorrentes de seu trabalho. A psicanálise novamente nos auxilia, pois, por princípio, ela é a arte de liberar aquilo que força o sujeito a submeter-se a uma certa conformidade. Esta é a proposta ética da reforma: não nos sujeitarmos. Ir além da transformação do hospital psiquiátrico, substituí-lo gradativamente por um modelo de saúde mental que estimule os ambulatórios, hospitais-dia, serviços de urgência, unidades psiquiátricas em hospitais gerais, centros de convivência e pensôes protegidas. Em resumo, pode-se definir brevemente a marca da reforma psiquiátrica em Minas Gerais dizendo que a articulação dos três eixos básicos — psiquiatria, psicanálise e dimensão sociopolítica — tem permitido criar um modelo que talvez possa superar as disparidades existentes entre especialistas, tratamento, sujeito e contexto em uma clínica geradora de sentido para quem nela opera: o paciente, o trabalhador e a instituição. Assim, talvez se torne possível que o sofredor mental passe da posição de dejeto da sociedade ou de simples objeto da ciência para a de sujeito desejante e cidadão.