MONONUCLEOSE INFECCIOSA I. CONCEITO O vírus Epstein-Barr (EBV), quando infecta adultos e adolescentes, costuma apresentar um quadro clínico bastante característico, conhecido como mononucleose infecciosa (MI). Em crianças pequenas, a doença nem sempre é característica, podendo evoluir subclinicamente, sendo assintomáticas ou apresentar manifestações inespecíficas como febre, sinais de infecção das vias aéreas superiores ou apenas dor de garganta. A mononucleose infecciosa é uma doença de baixa mortalidade e letalidade, de manifestações agudas e geralmente benignas, apresentando um grande polimorfismo clínico. II. EPIDEMIOLOGIA Cerca de 80 a 100% das crianças entre 3 e 6 anos de idade já apresentam sorologia positiva para o EBV em áreas subdesenvolvidas com precárias condições de saneamento. Nas regiões mais privilegiadas, a infecção ocorre predominantemente na adolescência e no início da idade adulta. Esta doença pode ser encontrada em todas as idades, mas raramente aparece em crianças com menos de 4 anos (quando a maioria das infecções por EBV é assintomática) ou em adultos com mais de 40 anos (quando a maioria dos indivíduos já foi infectada pelo EBV). O EBV é transmitido nas secreções orais por contato íntimo (beijo ou troca de saliva entre crianças) de pessoas com mononucleose infecciosa ou que alberguem o vírus de maneira assintomática. É necessário um contato muito próximo para a transmissão do vírus, o que justifica o nome popular de “doença do beijo”. O EBV também é encontrado no trato genital das mulheres e pode se disseminar por contato sexual. Desta forma, é importante salientar que o contato nãoíntimo, fontes ambientais ou fomites não contribuem para a disseminação do EBV. O período de incubação varia de 10 a 60 dias, com prazo médio de 30 a 45 dias. A excreção pode ocorrer por até meses após a infecção aguda e, em seguida, intermitente durante toda a vida. Não há predomínio sazonal ou por sexo no aparecimento da doença, exceto que os casos tendem a ocorrer mais precocemente em meninas. III. ETIOLOGIA EBV: causa mais de 90% dos casos de mononucleose infecciosa. Citomegalovírus, Toxoplasma gondii, adenovírus, vírus da hepatite, HIV e, possivelmente, o vírus da rubéola: causam 5 a 10% das doenças similares à mononucleose infecciosa. OBS: Na maioria das doenças semelhantes à mononucleose infecciosa negativas para EBV, a causa exata permanece desconhecida. IV. PATOGENIA Após a aquisição na cavidade oral, o EBV infecta as células epiteliais orais, contribuindo para os sintomas de faringite. Após a replicação viral intracelular e lise celular com liberação de novos vírions, o EBV dissemina-se para as estruturas contíguas (glândulas salivares), com eventual viremia e infecção de linfócitos B no sangue periférico e todo o sistema linforreticular, incluindo o fígado e o baço. Os linfócitos atípicos característicos da mononucleose infecciosa são os linfócitos T CD8+, que exibem tanto funções supressoras quanto citotóxicas. Este aumento relativo e absoluto de linfócitos T CD8+ resulta em uma reversão transitória da relação normal dos linfócitos CD4+/CD8+. Após a doença primária, o EBV estabelece uma infecção latente durante toda a vida. V. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A maioria dos casos de infecção primária pelo EBV em lactentes e crianças mais novas é clinicamente silenciosa. Já em pacientes de mais idade, o início da doença em geral é insidioso e vago. Após um período de incubação variável, o paciente pode apresentar um período prodrômico (uma a duas semanas) constituído basicamente por mal estar geral e astenia que duram em torno de dois a cinco dias, seguindo-se o quadro clínico característico da doença. Febre: sinal predominante na doença (cerca de 87,3% dos casos), durando cerca de 7 a 14 dias, podendo prolongar-se por até 4 semanas. Dor de garganta: um dos sintomas mais freqüentes e precoces, freqüentemente acompanhada de aumento acentuado das amígdalas, ocasionalmente com exsudatos. Exame físico: nota-se faringite difusa, com amígdalas hipertrofiadas e hiperemiadas e em metade dos casos, nota-se escudato cinza-claro que permanece por 7 a 10 dias. Petéquias no palato ocorrem em cerca de 30% dos pacientes. Adenomegalia: achado mais característico (mais de 90% dos casos), acometendo principalmente as cadeias cervicais, mas podendo ser generalizada. A linfadenopatia epitroclear é particularmente sugestiva de mononucleose infecciosa. O aumento é rápido (atingindo 1 a 4 cm de diâmetro) e é mais pronunciado entre a segunda e a terceira semana de doença. Não é habitual a dor local. Esplenomegalia: (50 a 75% dos pacientes) está presente em especial crianças com idade inferior a quatro anos, atingindo o máximo entre a segunda e a terceira semana de evolução. Pode ser suficientemente rápida para causar desconforto abdominal e hipersensibilidade dolorosa à palpação do quadrante superior esquerdo. Hepatomegalia: menos freqüente (15 a 25% dos casos), contudo, as alterações de transaminases são muito comuns (80%), com algum aumento que pode demorar semanas até a normalização. Icterícia: rara (5 a 11% dos doentes). Dor abdominal: em 20% dos pacientes. Erupção maculopapular: apenas 10% dos pacientes apresentam logo no início da doença sendo predominante no tronco e nas raízes dos membros. Este é muito variável, podendo ser muito tênue ou até escarlatiniforme. Mais freqüente em crianças pequenas. Ao usar inadvertidamente ampicilina no tratamento, a ocorrência da erupção na pele é muito mais freqüente e intensa, sendo denominada “erupção causada por ampicilina”. Sinal de Hoagland: edema bipalpebral muito característico da mononucleose infecciosa, ocorrendo em um terço dos casos. Deve ser sempre pesquisado, pois nem sempre as mães notam esta alteração. OBS1: Em crianças, principalmente abaixo dos 5 anos, o quadro clínico pode ser atípico, sob forma de pneumonia, diarréia, otite média, bronquite, epilepsia, infecção do trato urinário e etc... associados ou não à hepatoesplenomegalia, amigdalofaringite e linfoadenopatia. OBS2: Infecção congênita pelo EBV → rara, mas o EBV acometendo a grávida na quinta ou sexta semana de gestação pode infectar o contracepto intra-útero, acarretando uma síndrome de múltiplas anomalias congênitas (micrognatia, criptorquidia e catarata), hipotonia, trombocitopenia, monocitose persistente, proteinúria e matafisite ao nascimento. VI. DIAGNÓSTICO 1. Exames inespecíficos: a) Hemograma: auxilia muito no diagnóstico, pois nota-se uma leucocitose (10.000 a 20.000 células/mm3) com aumento de linfócitos e presença de atipia linfocitária (20 a 40% do número total ou mais de 1.000 linfócitos atípicos – células de Downey), que alcança o máximo entre duas e três semanas de doença. Granulocitopenia com desvio à esquerda é freqüente. A anemia, quando ocorre, em geral é devido à hemólise. Trombocitopenia (50.000 a 200.000 plaquetas/mm3) pode ser encontrada em mais de 50% dos casos, nas primeiras quatro semanas. Mais raramente, ocorre púrpura. b) Transaminases: podem ocorrer alterações em mais de 80% dos casos não-complicados entre a segunda e a terceira semana de doença, mas geralmente é assintomática. 2. Sorologia: a) Anticorpos heterófilos (de Paul-Bunnel): são anticorpos da classe IgM. Considera-se positivo o exame quando os títulos de anticorpos contra as hemácias de carneiro são superiores a 1:56 e, após a absorção com as hemácias de boi, os títulos diminuírem quatro diluições ou se negativarem. Devido às possibilidades de resultados falso-positivos e falso-negativos freqüentes em crianças com idade inferior a quatro anos, quando a maioria das infectadas não produz anticorpos à detecção, este exame esta sendo substituído gradativamente pelas sorologias específicas. b) Anticorpos anti-EBV específico: são úteis para confirmar a infecção aguda por EBV, especialmente em casos heterófilos negativos ou para confirmar infecção pregressa e determinar a susceptibilidade à futura infecção, podendo ser utilizados contra diferentes antígenos virais. No momento do aparecimento dos primeiros sintomas e sinais, os títulos de anticorpos, tanto os da classe IgM quanto os da IgG dirigidos contra o antígeno da cápsula viral (anti-VCA), são altos. Os anti-VCA IgM diminuem progressivamente de título e desaparecem por volta do terceiro mês, sendo que em crianças de pouca idade desaparecem no primeiro mês de doença. Os anticorpos IgG em geral permanecem detectáveis o resto da vida do paciente. Se houver uma reativação da infecção, o anti-VCA IgG é encontrado em títulos altos. Também são encontrados anticorpos IgG contra antígeno precoce que permanecem positivos por 6 a 12 meses. No início da doença, anticorpos contra o antígeno nuclear do EBV (anti-EBNa) não são detectáveis ou o são em baixo título. Há aumento progressivo dos títulos ao longo do tempo e permanecem detectáveis ao longo de toda a vida. A pesquisa da avidez dos anticorpos é utilizada para diferenciar os anticorpos antigos dos recentes em caso de uma reativação da doença. Os anticorpos de baixa avidez estão relacionados com aumento recente de IgG ou de IgA contra o EBV, enquanto os de alta avidez são mais com os anticorpos antigos. c) Imunofluorescência: pesquisam-se as partículas virais no interior das células em pacientes nos quais a sorologia para o EBV não é esclarecedora. d) Biologia molecular: estudo do genoma do vírus em tecidos ou em fluidos corpóreos através da técnica de hibridização in situ (em tecidos) ou de reação em cadeia de polimerase (PCR), em casos de dúvidas ou em pacientes com imunodepressão nos quais a pesquisa de anticorpos não é confiável. VII. TRATAMENTO Ainda não existe tratamento específico para a mononucleose infecciosa, sendo apenas uma terapia sintomática acompanhado de repouso no leito (quando o paciente tem fadiga debilitante). A febre e o mal estar podem ser amenizados com o uso de antitérmicos. Corticosteróides (prednisona) por um curto tempo (menor que duas semanas) podem ser utilizados em pacientes com muita dor de garganta ou com aumento exagerado das amígdalas e de adenóides que, apresentem-se com desconforto respiratório alto. Aqueles pacientes com esplenomegalia devem ser orientados para evitar esportes de contato ou outras atividades que o coloquem em risco de rotura de baço (neste caso, proceder à laparotomia). Em obstruções de vias aéreas superiores por adenomegalias, proceder à traqueostomia. Alguns antivirais como aciclovir e o ganciclovir só são utilizados em caso de infecções agudas atípicas graves ou infecção crônica com manifestações clínicas de disfunção de múltiplos órgãos, mas os resultados são muito pouco favoráveis na maioria dos casos. Os antibióticos não estão indicados para tratamento da mononucleose infecciosa sem infecção bacteriana secundária. VIII. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Mononucleose símile: são heterófilo-negativas, dentre as quais, pode-se destacar: Citomegalovirose: patologia que mais se assemelha à mononucleose infecciosa, sendo causa comum em adultos. Amigdalite estreptocócica: pode causar dor de garganta e linfadenopatia cervical indistinguíveis daquelas observadas na mononucleose infecciosa, porém não está associada à hepatomegalia. A ausência de melhora em um paciente com faringite estreptocócica dentro de 48 a 72h sugere mononucleose infecciosa. Difteria: na apresentação amigdalofaringeana. Toxoplasmose adquirida da forma linfoglandular Leucemia: em pacientes com leucopenia ou leucocitose extremamente alta, trombocitopenia moderada e anemia hemolítica, são necessários o exame da medula óssea e a consulta hematológica para excluir a possibilidade de leucemia. IX. COMPLICAÇÕES Poucos pacientes com mononucleose infecciosa apresentam complicações, sendo estas: Hemorragia esplênica subcapsular ou ruptura do baço: mais frequentemente durante a segunda semana da doença em menos de 0,5% dos casos em adultos, sendo a taxa de crianças desconhecida, mas acredita-se que muito menor. Obstrução das vias respiratórias: ocasionada pelo edema das tonsilas e do tecido linfóide orofaríngeo. Ocorre em menos de 5% dos casos, sendo uma das indicações mais comuns para internação na mononucleose infecciosa. Cefaléia: está presente em cerca da metade dos casos, com manifestações neurológicas graves (convulsões e ataxia) em 1 a 5% dos casos. Síndrome “Alice no País das Maravilhas”: metamorfopsia, cursando com distorções da percepção de tamanhos, formas, cor e posições de objetos, atribuídas ao dano em lobo temporal. Meningite, paralisia do nervo facial, mielite e encefalite. Pancreatite, apendicite, parotite e orquite: raras. Eczema atópico de início tardio e alergia alimentar Síndrome hemofagocítica: febre, esplenomegalia, função hepática alterada, coagulopatia, hiperplasia histiocitária com eritrofagocitose e hipocelularidade medular no sangue periférico, com evolução grave e freqüentemente fatal. Oculares: edema, fotofobia, celulite periorbitária, dacriocistite, dacrioadenite, glaucoma, retinocoroidite e hemorragias retinianas. Hepáticas: são raras, sendo hepatite ictérica, insuficiêrncia hepática e necrose hepática fulminante fatal. Cardíacas: miocardite e pericardite. Renais: glomerulonefrite. Hematológicas: anemia hemolítica, granulocitopenia e anemia aplásica. X. PROGNÓSTICO A recuperação completa é excelente se não houver complicações durante a fase aguda da doença. Os principais sintomas perduram por 2 a 4 semanas, seguidos de recuperação gradual. A persistência ocasional de fadiga por alguns anos após a mononucleose infecciosa é bem reconhecida, não havendo, porém, evidências convincentes que liguem a infecção/reativação pelo EBV à síndrome da fadiga crônica. XI. PROFILAXIA O isolamento não é essencial, visto que só o contato íntimo é necessário para a disseminação da doença. Não é recomendado sangue de doador que tenha tido mononucleose infecciosa pelo menos seis meses antes, visto que o vírus pode ser demonstrado no sangue periférico muitos meses após a recuperação da doença. Ademais, tem sido investigada vacina anti-EBV viva ou atenuada potencialmente.