O alicerce grego na construção de uma Filosofia

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FILOSOFIA DO DIREITO NA ANTIGÜIDADE
O alicerce grego na construção de uma Filosofia do Direito
Hilda Helena Soares Bentes
Notas do Professor Roberto
Kennedy
Doutora em filosofia do Direito
e do Estado da PUCSP,
Professora
assistente
do
Programa de Pós-Graduação
em Direito da UGF.
O sentido utilizado aqui para
“pensamento reflexivo” é
justamente o que podemos
chamar de filosofia.
Pouco a pouco, lentamente.
Sem controvérsia.
Colher, obter, lucrar.
Práticos e desorganizados.
“Milagre grego” é como os
estudiosos do mundo helênico
chamam ao desenvolvimento
cultural dos gregos que,
segundo estes, não teriam
recebido nenhuma influência
exterior. Todo o
desenvolvimento intelectual,
como a filosofia, teria sido
fruto exclusivo desse povo. Há,
contudo, controvérsias que não
cabem aqui o debate.
Que não remetem a nenhum
ordenamento religioso, mas
absolutamente civil.
Penetrante, profundo.
Essa experiência “radical” não
tem o sentido de extremismo,
mas de raiz; de origem; de
principio.
Unida, ligada, contraída.
“Polis” é o termo cunhado
pelos gregos para denominar a
experiência coletiva do
agrupamento das famílias
(demos).
A história da Filosofia do Direito deve percorrer os mesmos
caminhos onde o pensamento reflexivo começa a desenhar os
seus primeiros sinais. É pela admiração que o homem passa a
desenvolver a sua capacidade racional de decifrar os mistérios
da natureza e do mundo que o circunda, tal como assinalam
Platão e Aristóteles, respectivamente, no Teeteto (155a) e na
Metafísica (Livro I, 982b). E esse canal possibilitador de
interrogação e problematização do saber filosófico encontra-se
nos primeiros passos dados pelos pensadores pré-socráticos
em vários âmbitos do conhecimento. A singularidade do grego
reside na capacidade de forjar um pensamento paulatinamente
liberto das crenças e dos mitos rumo a um patamar de
racionalidade que irá abrir caminhos fecundos para a criação
de vários campos de investigação: a Ciência, a Ética, a Política,
o Direito, a Estética, a Filosofia. Para os gregos, a palavra
filosofia possui um sentido abarcante (etimologicamente:
amizade, amor à sabedoria), englobando todos os saberes
como centro de indagação especulativa.
Conquanto seja incontroverso que os gregos auferem
inúmeros ensinamentos da sabedoria oriental, constitui fato
notável que esses conhecimentos, caracterizadamente
empíricos e assistemáticos, penetram na Grécia para receber aí
um impulso racional extraordinário, fruto de um gênio
particularmente helênico que vinha gradativamente
manifestando-se nos setores da atividade humana. Forçoso é
constatar que o milagre grego surge em decorrência de um
longo processo de fermentação de ideias que culmina com um
nível de racionalização propício para o advento da reflexão
filosófica. Importa salientar que o aparecimento de formas
secularizadas de pensamento sinalizam a passagem de uma
estrutura mítica da realidade para uma concepção mais
racional. A passagem do mito à razão corresponde a uma
evolução histórica, marcada por fatos sociais, políticos e
econômicos, que irá transformar substancialmente as formas
de pensamento.
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Dito de outra forma, a
experiência de cidade, que os
romanos chamarão de urbis. A
palavra ‘política’ deriva de
polis (grego) bem como, a
palavra ‘urbano’ deriva de
urbis (latim) .
Separação; corte.
Legalidade=qualidade ou
estado do que é legal (conforme
com a lei); Intrínseca=que está
dentro de uma coisa que lhe é
essencial; interior; íntimo;
inerente. Portanto o termo quer
dizer algo que é inerente à
legalidade definida,
convencionada. Um exemplo
dessa postura foi a de Sócrates
que condenado à pena capital
(de morte) negou-se a fugir da
prisão ainda que seus
discípulos houvessem facilitado
a mesma por suborno da
guarda (para maiores detalhes
veja o diálogo de
Platão‘Criton’).
Aqui cabe dizer que para o
homem grego dessa época não
existia a ideia de
individualidade tal como
passará a ocorrer no homem
moderno. O homem grego se
confunde com a polis nesse
período, só passará a ocorrer
uma mudança quando
Alexandre da Macedônia tomar
as cidades-estado gregas sob
seu império. Então, a
importância de saber
expressar-se em público
justifica a importância dos
sofistas para esse período posto
que esses ‘sábios práticos’
detentores da arte da retórica,
tinham o preço der seus
ensinamentos na mais
Trata-se de explicar como essa transmutação se opera, uma
vez que implica um novo modelo de sociedade e novas
articulações discursivas, capazes de enfrentar os desafios de
um espaço público aberto, segundo apreciação percuciente de
Jean-Pierre Vernant. A palavra é destituída de suas conotações
mágico-religiosas, míticas, para se converter em logos (λόγος;
palavra, razão), em discurso filosófico. A contraposição mýthologos (μύϑος; mýthos, mito, palavra, narrativa) traz implícita a
necessidade de fundar uma nova linguagem, baseada em
conceitos que expressem a racionalidade emergente.
A experiência radical dos gregos concentrada no logos permite
admitir que a Grécia antiga elabora uma fundação original e,
consequentemente, a Filosofia do Direito é uma particular
invenção helênica. Contudo essa construção está limitada a um
fator específico, na análise de Jean-Cassien Billier: “ela
constitui uma história da Filosofia do Direito adstrita ao
Direito ocidental, sem embargo da produção de normas e da
reflexão, principalmente no que se refere à Moral, sobre elas
realizada no Oriente, na China e Índia”. Outro traço deve ser
ressaltado na construção grega dos alicerces de uma Filosofia
do Direito: a concepção de completitude na abordagem do
Direito, que abarca todos os aspectos da vida humana e, em
especial, a inserção do indivíduo na coletividade, donde se
conclui que o Direito está intrinsecamente ligado à política e à
ética; e que se estende até o sentido de legalidade das leis
positivas, fazendo o contraponto com a doutrina do Direito
Natural, reconhecendo-se, em larga medida, a amplitude
conceitual da dicotomia phýsis (Φύσις; natureza) e nómos
(νομος; norma, convenção) a ser esboçada nos quadros de uma
Filosofia jurídica marcadamente nascente no pensamento
grego.
A Completitude do Direito na Polis
O sentido de completitude do Direito marca profundamente o
pensamento helénico a ponto de criar-se uma cisão entre o
mundo grego e o dos bárbaros, ou melhor o dos não gregos. No
que tange especificamente ao Direito, os gregos vangloriam-se
de possuir uma percepção nítida da legalidade intrínseca, vale
dizer, do dever de obediência à Lei estatuída, ao contrário dos
bárbaros, que necessitam de um conjunto de prescrições sem
conceber um verdadeiro elo com o dever legal. Esse espírito de
defesa das leis constitui uma das peculiaridades do
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Alto valor comercial ($).
Cobravam valores altíssimos
por seus ensinamentos e eram
tratados como seres divinos.
Qualidade do que é histórico;
relativo à historia; verdadeiro;
digno de figurar na História.
Tornar tudo o que outrora era
sagrado, coisa civil, portanto,
susceptível a leis dos homens.
Força que afasta, ou procura
desviar-se do centro.
Um estado em que boas normas
estabelecem a harmonia entre
os opostos circunstanciais.
O oposto da eunomia, então se
esta remete à harmonia, a
dysnomia remete ao caos; a
desorganização; a desharmonização.
Particularmente eu discordo da
forma como a anarquia é
comumente pensada. Nessa
forma, dizer que algo é
anárquico é dizer que ele não
possui absolutamente
ordenamento algum, mas,
mesmo o caos possui em seu
interior uma certa organização
e, nesse sentido, uma
civilização, uma sociedade, do
tipo anarquista envolve toda
uma preparação (utópica, é
bem verdade) que depende
intrinsecamente da educação
dos homens para que eles não
dependam de leis para os
obrigarem a fazer o que é certo
para o todo e não apenas para
ele próprio.
pensamento grego, encarnado em diversas expressões
literárias e filosóficas, tal como é ilustrado por Heródoto pelas
palavras pronunciadas por Demáratos no diálogo com Xerxes:
“De fato, sendo livres eles [os helenos] não são livres em tudo;
eles tem um déspota – a lei – mais respeitado pelos
lacedemônios que tu pelos seus súditos” (História, livro VII,
104, p. 368).
Enfatize-se que o Direito está vinculado à consolidação da polis
(πόλις) grega, principio de afirmação do homem livre apto a
deliberar sobre os assuntos públicos. A polis representa o
aperfeiçoamento do logos, liberto de qualquer influência
sobrenatural ou naturalista: na verdade, a polis qualifica-se
pela historicidade, posto que criação racional do homem, capaz
de elaborar convenções e julgá-las. A outrora fala do poeta, do
adivinho e do rei de justiça ainda é uma palavra mágicoreligiosa, expressão usada por Marcel Detienne na sua obra Os
mestres da verdade na Grécia arcaica, portadores de uma
memória sagrada. Por isso, são os Mestres da Verdade e a
palavra por eles proferida assume um estatuto soberano: ela é
eficaz, pois a verdade anunciada não comporta refutações.
Todavia, paralelamente à palavra mágico-religiosa, delineia-se
uma nova forma de palavra: a palavra-diálogo, emergindo das
decisões compartilhadas publicamente por um grupo. Deve-se
enfatizar que o processo de laicização da palavra mágicoreligiosa coincide com o advento de um novo sistema de
pensamento: na esfera pública da polis, a verdade como
Aletheia (verdade revelada, desvelamento) enfraquece e surge
um discurso baseado no diálogo, instrumento eficiente para a
configuração das bases da Política, do Direito, da Retórica e da
Filosofia.
O Direito e a Ética
Merece destaque o reconhecimento de que o direito é produto
humano, cultural, intimamente imbricado com as esferas ética
e política, construindo um esforço conjunto para o alcance do
ideal grego de ordem, de um princípio unificador das forças
centrífugas e irracionais, instauradoras do caos, visando a
construção de um cosmo bem ordenado que aflora como
medida de valor, julgando todas as manifestações do homem.
Estado político que converge para a eunomia (εύνομια) que, na
visão de Sólon (século VI a.C), se refere a um quadro político
de perfeita harmonia; ao revés, a dysnomía (δυσνμία)
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Estes termos remetem a uma
forma de justiça que se submete
aos desígnios dos deuses e eram
interpretadas pelos mestres da
verdade, conforme já colocado
no texto acima, que por essa
condição eram homens de
grande notabilidade e
importância na sociedade.
Surge como fenômeno para
fora de si mesmo; aparece. É
um termo relacionado à
hermenêutica, que, por sua vez,
remete a um exercício de
interpretação rigorosa e estrita
do sentido originário da
palavra.
Uma condição fundamental
para o entendimento do
ordenamento em todos os
tempos é a realização de uma
hermenêutica, isto é, uma
investigação do sentido
original que as palavras
tinham e que servem como
chave de leitura e
entendimento do significado e
do sentido. Daí a importância
da Etimologia, isto é, origem de
uma palavra; parte da
gramática que trata da origem
das plavras.
Esse termo evoca um
fundamento do pensamento
grego antigo, que as coisas não
se encontram necessariamente
em estado de oposição, isto é,
bem versus mal; certo versus
errado, e tc., mas sim uma
completando a outra. Acredito
que, nesse sentido, o ocidente se
encontra com o oriente na
forma do pensamento grego –
eis um motivo para a negação
do milagre grego
configura um estado em que prevalece o caos, ou seja, a total
desagregação da vida política e jurídica e em que os males
proliferam de forma avassaladora prejudicando o convívio
social, conforme exame detalhado de Martin Ostwald.
Nesse sentido, Jean-Cassier Billier afirma que os gregos
descobrem a legalidade (op. Cit., 2001), ou seja, a consciência
da lei e as vantagens decorrentes de seu estrito cumprimento
na medida em que a ausência de leis, ou sua observância,
acarretaria a anarquia. A evolução do Direito, por meio da
consolidação do nómos, irá entronizar a lei como ícone
definitivo da conquista da democracia. De fato, em vez de Zeus,
do rei ou do tirano, a lei converte-se em rei, como comenta
Werner Jaeger (Paidéia: a formação do homem grego, p. 97)
sobre a célebre frase de Píndaro, símbolo de uma nova era em
que a lei será a soberana distribuidora das penas e dos
prêmios para todo o dêmos (δημος; povo).
Seria errôneo considerar que a cristalização do nómos o
pensamento grego anula as antigas concepções relativas a
Thémis (Θέμις) e Díke (Δίκη), como sentido de justiça divina e
de prescrição imperativa, referências importantes na
elaboração de um discurso de validade universal. O sentido
consagrado de Thémis e Díke exsurge com mais nitidez na
medida em que se investiga a origem etimológica dessas
palavras: Thémis provém do sânscrito rta correspondente ao
vocábulo latino ars, que significa ordem, e também de dhaman,
em grego thémis, sentido de lei, cuja raiz dhe quer dizer
estabelecer, colocar, ou seja, Thémis passa a representar a lei
posta que tem por base uma ordem divina. Díke, por seu turno,
deriva da raiz deik, resultando em grego deíknumi (δείκνυμι;
mostrar) e em latim dico (dizer), donde o significado de
mostrar verbalmente, com autoridade, uma prescrição
normativa. Assim, percebe-se que nómos não está em oposição
a Thémis e Díke; ao revés, cuida-se de uma relação de
complementariedade entre as noções, conferindo ao nómos o
estatuto de uma ordem natural harmônica, peculiar ao
pensamento grego.
Cabe enfatizar que o conceito de harmonia desempenha um
papel capital na formação do ideal grego de justiça, de
equilíbrio, fixando as premissas básicas da Política, do Direito,
da Ética e da Estética. A doutrina sobre a harmonia aparece em
Pitágoras (acme entre 540-537 a. C), geralmente associada à
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do milagre grego, isto é, que o
pensamento grego foi
absolutamente original sem
sofrer influência de nenhum
outro povo da antiguidade.
Que está sob interdição, isto é,
proibido, privado de reger a
sua pessoa e bens no sentido
jurídico. Aqui, no caso, trata de
algo que se encontra
convencionado e que não pode
ser, portanto, rompido sem
significar o prejuízo (dolo) de
outra pessoa, ou do Estado.
questão da afinação musical, relacionada à razão numérica. A
ideia de harmonia como um princípio fundamental para a
ordenação do universo fascinou não somente Pitágoras como
também filósofos de diferentes orientações: vemos o conceito
triunfar no pensamento de Anaximandro (610-540 a. C.,
aproximadamente), de Heráclito (acme 504-501 a. C), de
Platão (427-347 a. C), de Aristóteles (384-312 a. C), e
outrossim de célebres legisladores, como Sólon. Com efeito, a
busca do justo equilíbrio é basilar no pensamento grego,
norteando a concepção de Direito e Justiça. Funcionando como
par antitético a Díke aparece a noção de híbris (ΰβρις;
desmedida, excesso), que está associada à prática de um delito,
de um ato criminoso que exige reparação, pois implica
necessariamente “ ‘usurpação’ sobre um terreno interdito”,
consoante Louis Gernet, constituindo uma invasão na esfera
alheia.
Logo, hýbris significa a violação do nomos, do equilíbrio que
cabe a cada um na partilha social e política, fundamentalmente
do princípio da isonomia (ϊσονομία), que tal que eunomia,
provém da raiz némein, némesthai (νέμειν, νέμεσθαι),
significando dar e receber em partilha, e não do vocábulo
nómos; deve-se frisar, contudo, que nómos possui o significado
de divisão de território, região, distrito, ou seja, daquilo que é
atribuído a alguém numa partilha, sendo eunomia
precisamente a distribuição equitativa dos bens numa
determinada comunidade, oposta à ação destrutiva da hýbris
que pode ser concretizada em diversas violações (roubos,
assassinatos), pondo em risco a ordem social. De Hesíodo a
Aristóteles, assistimos à condenação da desmedida e à busca
incessante da sophrosýne (σωφροσύνη; moderação), para a
consecução do ideal de um estado ético. Missão que cabe aos
poetas, legisladores e filósofos executar, no papel de
educadores do edifício ético-jurídico-político grego, exigindo o
pleno exercício da função do sophós (σοφός; sábio), hábil nas
atividades teoréticas e práticas.
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