Salvador, BA, 30/01/03 A CIÊNCIA E A SARÇA ARDENTE1 Marlon Régis O que é ciência, afinal? Quais os critérios para se distinguir um conhecimento científico de um não-científico? Há um método especificamente científico? O autor faz uma análise desses temas, incluindo um panorama histórico da Ciência, o que nossa civilização ocidental entende por ciência, desde os tempos da Grécia Antiga e aos tempos atuais da Relatividade e da Mecânica Quântica. I. CIÊNCIA E MÉTODO: CONCEPÇÕES HISTÓRICAS BERTRAND RUSSELL, matemático e filósofo, prêmio Nobel de 1950, afirmou que “a filosofia começa quando alguém faz uma pergunta de caráter geral, e o mesmo acontece com a ciência. Os primeiros a evidenciarem esse tipo de curiosidade foram os gregos. A filosofia e a ciência, como as conhecemos, são invenções gregas...A filosofia e a ciência começam com Tales de Mileto, no início do século VI a.c....Tanto o Egito como a Babilônia legaram certos conhecimentos, mais tarde aproveitados pelos gregos. Mas nenhum desenvolveu ciência nem filosofia...O significativo é que a função da religião não conduziu ao exercício da aventura intelectual”2 (grifo nosso). Eis, aí, uma questão a qual o nosso autor do texto em apreço não se referiu: a questão da religiosidade, um traço cultural universal, que, no início da civilização, também representou uma tentativa de responder e solucionar dúvidas e dificuldades, mas quando passou a ser instrumento de dominação da classe sacerdotal a serviço do poder do Estado, impediu o desenvolvimento da filosofia e da ciência no Egito, Mesopotâmia, Índia, China e em outras civilizações eminentemente agrícolas. Continua ensinando BERTRAND RUSSELL “ no Oriente, o elemento místico reinava, soberano. O que salvou os gregos de serem dominados por esse fascínio exclusivo foi o advento das escolas científicas da Jônia...O necessário é buscar apaixonadamente a verdade e a beleza. Para Sócrates, a filosofia é um modo de viver...de início a palavra grega teoria 1 2 Trecho de trabalho sobre metodologia científica / Direito/UFBA História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 13.. 1 significava algo como 'ato de contemplar'. Heródoto a utiliza neste sentido. Uma viva curiosidade, apoiada numa investigação apaixonada, embora desinteressada, eis o que garantiu aos gregos antigos o seu lugar único na História”3. A verdade é que a Grécia antiga talvez seja a primeira civilização eminentemente comercial, tendo se beneficiado da imigração cretense – homens do mar e negociantes que fugiam da destruição de Creta pela ação de terremotos e erupções vulcânicas – e do contato com fenícios – com quem aprenderam o alfabeto – , babilônios e indianos – com quem aprenderam noções matemáticas e arquitetônicas. Note-se que a língua grega, as sumerianas e sânscrita (norte da Índia) são de raízes indo-arianas ou , como é corretamente político falar, indo-iraniana. A palavra ária no grego antigo designava a região e os habitantes do atual Irã. A Grécia, situada em meio a montanhas rochosas e estreitos vales férteis, desenvolveu atividade comercial com os povos vizinhos, ao mesmo tempo em que, dadas as condições geográficas, surgiram centenas de cidades-estados – o que dificultou sobremaneira a instituição de um poder centralizador – um imperador e toda sua coorte de sacerdotes – facilitando a vida urbana, o artesanato, a metalurgia, a troca de experiências, a liberdade de expressão – associadas ao acúmulo de riquezas do lucrativo comércio. Mileto era nessa época, séc. VI a.c., um ativo centro de negócios da Jônia, localizada numa verdadeira encruzilhada: a sudeste Chipre, Fenícia e Egito; ao norte, os mares Egeu e Negro; a oeste, a Grécia continental e a ilha de Creta.Tales, filho de um rico homem de negócios, passou para a História como fundador de uma das primeiras escolas filosóficas que se tem notícia. Ainda BERTRAND RUSSELL nos revela que “ 'todas as coisas são feitas de água', teria dito Tales de Mileto.E assim começam a filosofia e a ciência...é muito duvidoso que, na geometria,ele tenha estabelecido os teoremas referentes à semelhança dos triângulos...é certo que ele aplicou o método do polegar, usado pelos egípcios para determinar a altura de uma pirâmide, a fim de descobrir a distância dos navios no mar e de outros objetos inacessíveis. Isso indica que ele tinha alguma noção de que as regras geométricas são de aplicação geral. Esta noção do geral é original e grega”4.(grifos nossos) Portanto, como ressalta o autor do texto sub judice, a ciência grega não tinha um caráter quantitativo, sendo mais uma especulação racional filosófica – uma filosofia da natureza. Embora, seja bom lembrar que a geometria do grego Euclides seja de trezentos anos antes de 3 4 Opus cit., pp. 18 e 19. Ibidem, p.20. 2 Cristo, bem como, Eratóstenes de Alexandria (250 a.c.) calculou - com base nos ângulos dos raios solares incidentes - o diâmetro da Terra com uma precisão fantástica para época, faltando apenas 16% para a medida exata!!! (O seu nome foi encontrado rabiscado nas anotações de Copérnico)5. Isso para não lembrarmos de Pitágoras – para quem tudo no universo poderia ser descrito em termos de números! – inclusive a própria música. De modo que vejo, com uma certa reserva, a observação de que os gregos não estavam preocupados com as medidas quantitativas. Talvez, Aristóteles, com o seu método silogístico e descritivo, apesar de ser considerado o pai de muitas ciências, através das obras de Tomás de Aquino, tenha influenciado por demais o pensamento medieval, com o total apoio da Igreja Católica. Haja vista a perseguição sofrida por Galileu na Itália... Com a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico e o advento das grandes navegações, a visão geocêntrica de Ptolomeu e a ciência de Aristóteles – antigo instrumento silogístico do Organon – foram rudemente abaladas: estava aberto o caminho para a entrada em cena da Ciência Moderna com Kepler, Galileu e sir Isaac Newton. No entanto, o grande teórico do método indutivo, que viria a ser considerado por excelência o método científico, foi o sábio inglês Francis Bacon (1561-1629). Bacon imaginou traçar regras empíricas de tal modo que , se seguidas, chegar-se-ia sempre a uma descoberta científica. Por outro lado, René Descartes na França dava partida ao movimento racionalista-dedutivo, para o qual a verdade só seria percebida através da dedução abstrata lógica. Temos, assim, duas escolas de pensamento que iriam se enfrentar por mais de três séculos: o racionalismo continental e o empirismo inglês. Mas, nos anos seiscentos, a invenção da luneta, do relógio, do microscópio, bem como o desenvolvimento dos métodos de destilação (inventado pelos árabes para produzir álcool) iriam propiciar novas experiências no ramo da física (Galileu) e da química: Robert Boyle e as experimentações com gases (ele escreveria um dos primeiros livros científicos com tabulações de dados – O Químico Cético – antes dos Principia de Newton). Desse modo, o método indutivo-empírico passou a predominar e a ser considerado o único possível para se chegar a juízos de verdadeiro ou falso. O emprego da matemática, desde Kepler com a descrição das órbitas planetárias, passando por Galileu com as medidas de velocidade e aceleração e Boyle nas leis das proporções entre temperatura, pressão dos gases até a obra magistral do genial Newton – dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural – iria efetuar 5 Op. cit., p.142. 3 a separação entre Filosofia, considerada cada vez mais “especulação estéril”, e a Ciência – considerada a “dona da verdade”. Anote-se que Newton ainda chamava a física de “filosofia natural”... Newton teve a idéia da gravitação (termo já usado por Galileu) universal ainda jovem, mas por não existir meios matemáticos que o ajudassem a calcular as áreas das órbitas planetárias, teve que desenvolver o cálculo diferencial – o que foi motivo de muitas disputas com o alemão Leibniz – que o acusou de plágio. O fato ainda é motivo de controvérsias no meio acadêmico: Newton era mesmo meio trapaceiro e perseguia os cientistas que fossem amigos de Leibniz ou de quem não gostasse. Também nunca se soube de nenhuma ligação amorosa sua com mulheres – exceto com a própria mãe. Mandou alguns para o paredão – fuzilamento – por corrupção quando assumiu o cargo de tesoureiro–mor do Reino Unido. O sucesso do modelo empírico–indutivo–determinista estava com os dias contados: um jovem judeu alemão de olhar sorumbático e apelidado pelos professores de “cão preguiçoso”, desde os dezesseis anos de idade tinha a mania de se imaginar acompanhando um raio de luz – 300.000 km/s. Experiências de laboratório desenvolvidas com rigor por Mchelson-Morley mostraram que a velocidade da luz era constante, não importando o referencial. Até então, pela física newtoniana, dois objetos que se aproximassem teriam suas velocidades somadas; se se afastassem, teriam suas velocidades diminuídas. Como descreve STEPHEN HAWKING, o homem que ocupa a cadeira lucasiana que pertenceu a Newton em Cambridge, “Einstein partiu do postulado de que o espaço e o tempo devem se encurvar para que se mantenha a velocidade da luz independente do movimento dos referenciais, sendo a mesma em todas as direções...isso exigia o abandono da idéia de que existe uma quantidade universal chamada tempo, que todos os relógios mediriam...muitas experiências comprovam que relógios em satélites ou em aviões em alta velocidade marcam o tempo mais devagar que um relógio situado na Terra...se um dos dois gêmeos viajar em uma espaçonave imaginável próxima à velocidade da luz e o outro ficar na Terra, ao fim de 30 anos, quando o gêmeo da espaçonave regressar, estará 30 anos mais jovem que seu irmão...embora o tempo para ele tivesse escoado normalmente... nossos relógios trabalham mais devagar à medida que nos deslocamos com velocidades próximas à da luz – 300.000 km/s.”6 6 O Universo numa casca de noz. S.Paulo: Mandarin, 2001, pp 10 a 32. 4 II. A SARÇA ARDENTE Após a comprovação de que o espaço-tempo é curvo, isto é, que o tempo passa mais lentamente a velocidades próximas à da luz e que a luz das estrelas é atraída pelos planetas devido à curvatura no tecido do espaço-tempo provocada pela presença de uma grande massa, quer dizer, a menor distância entre dois pontos no espaço-tempo é uma curva e não uma reta; que o universo está em expansão; que tudo teria começado de uma grande explosão primordial – Big-Bang; a constatação do princípio da incerteza de Heisenberg, que diz não se poder afirmar, em distâncias na escala de Planck (da ordem de 10-37 cm) se existe o vazio, ou em outras palavras, do nada pode sair matéria!!! (efeito Casimir)7; a bomba atômica; o câncer incurável; a AIDS; a clonagem de humanos, enfim, hoje a ciência não é mais vista como um saber exato, infalível e o futuro não é mais tão determinado nem risonho como se imaginava no início do século XX: o sonho acabou, a possibilidade do Apocalipse é real: guerras, fomes, epidemias, poluição, desmatamento, efeito estufa, enchentes...a ciência perdeu o mito...de que tudo resolveria e era a chave para a compreensão de todas as coisas...o Deus Acaso. A velha dicotomia ainda persiste: racionalismo versus empirismo; dedução versus indução. Desde KARL POPPER, no entanto, admite-se que alguns critérios devem ser empregados para se determinar o que seja um método científico: observação analítica de determinado problema; elaboração de hipóteses e definição de testes que procurem falsear as hipóteses levantadas ou ensejar novos tipos de comprovação: depois de aprovadas, as hipóteses passam a ser uma nova teoria, a qual ensejará novos problemas a serem resolvidos...e a única certeza é que sempre haverá uma incerteza, é o que chamo de Lei do Principio da Incerteza Macrocósmico. Mas, para levar a vida, o homem sente necessidade de alguma Fé, nem que seja do tamanho de um grão de mostarda... Ex positis, só há uma conclusão: alguma coisa sempre existiu e sempre existirá, porque do nada não pode sair coisa alguma. É como aquela voz que falou da sarça ardente no monte Horebe para MOISÉS: “Diga ao povo de Israel que EU SOU...O QUE VIVE PARA SEMPRE...” (Gênesis) 7 Op. Cit., pp 46-47; 149. Einstein discordava veementemente do Princípio da Incerteza. Ele dizia: Deus não joga dados... 5