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Informação Genética, Privacidade, Autonomia Pessoal e o Dever de Indenizar
Alex Lino Silva
Bacharel em Direito pelo UNISAL - Lorena
Pós-Graduando em Direito Civil e Processual Civil pelo UNISAL - Lorena
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito
Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação
Penal e Processual Penal Especial na Graduação e na Pós - Graduação da Unisal e Membro do
Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
RESUMO
O presente trabalho discute a natureza da informação genética bem como os danos
decorrentes de seu emprego indevido. Suscitam-se algumas das mais tormentosas questões
provenientes do avanço biotecnológico como as consequências da utilização indevida da
informação genética, a privacidade de tais informações e seus limites ético-jurídicos, a
autonomia pessoal do paciente e seu consentimento livre e informado, além da
responsabilidade civil, penal e administrativa consoante Código de Ética Médica. O trabalho é
desenvolvido sob o prisma doutrinário cujo enfoque são os direitos da personalidade. Para tal,
adotou-se o método de estudo bibliográfico envolto no campo bioético, jurídico e comparado.
Palavras-chave: Informação Genética. Privacidade. Consentimento. Dano Indenizável.
Autonomia.
Sumário: Introdução; Informação Genética e Terceiros Interessados; Autonomia Pessoal e
Privacidade; Dano Indenizável; Conclusões; Referências.
1 - Introdução
O presente trabalho discute a natureza da informação genética bem como os danos
decorrentes do uso indevido desta. Destaque-se a dificuldade de enquadramento jurídico,
tendo em vista que o progresso genômico é ainda embrionário de forma que não há norma
específica que o regulamente. Contudo, o tema deve ser discutido tanto em âmbito acadêmico
quanto sob o prisma jurídico. Portanto, este trabalho tem por escopo suscitar discussões em
torno de um tema que a cada dia se faz mais cotidiano. Para tal, adotou-se o método de estudo
bibliográfico envolto no campo bioético, jurídico e comparado.
Um dos maiores problemas enfrentado pela humanidade no século XXI é justamente o
de manter suas informações a salvo de terceiros. São dilemas decorrentes do progresso
tecnológico de forma avassaladora. As violações vão desde imagens registradas por celulares,
câmeras até a alta espionagem por Estados capazes de minar a privacidade de um país inteiro
como a atualmente discutida. Ironicamente, sempre se afirmou que as novas tecnologias
trariam mais liberdade, interação e contato com culturas diferentes sem sair de casa. Tal
afirmação é verdade, mas não quer dizer que haja mais liberdade mediante isso. “Pode-se
dizer então que as teorias de justiça antigas partem da virtude enquanto as modernas começam
com a liberdade” (SANDEL, 2011, p.18). Nunca como atualmente se necessitou tanto de um
consultor de privacidade.
O fato é que a informação adquiriu um status tal que não pode mais ser discutida
apenas sob o prisma jurídico, devem se somar a isso as dimensões moral, ética, política,
econômica e social.
Outra dimensão onde a informação é extremamente interessante a terceiros é a de
natureza genética. É exatamente isso que este artigo discute. Ou seja, as implicações
decorrentes da utilização indevida da informação genética sem o consentimento livre e
informado concedido pelo paciente, tanto para procedência de tratamento quanto para
participação em pesquisa médica. Obviamente, se há consentimento, mas seus limites não são
atendidos, poderá haver configuração de danos passíveis de indenização. Não há dúvidas de
que um complexo debate envolvendo “política de cuidados de saúde, consentimento, pesquisa
médica, (...) privacidade e autonomia em genética” (PERRY, 2012, nossa tradução) deve ser
levado a sério, especialmente, em âmbito acadêmico. Seja como for, “todo sonho tem o seu
preço, e o PGH já começou a cobrar do ser humano novas posições éticas”
(BARCHIFONTAINE, 2004, p.159).
Um grande dilema reside no terreno da conciliação entre “privacidade, autonomia,
informação genética pessoal na Era Digital” (PERRY, 2012, nossa tradução), a exemplo dos
biobancos de informação genética. O problema é que para a maioria absoluta desses dilemas
não há norma específica regulamentando seus trilhos e estabelecendo responsabilidades nas
dimensões jurídicas e administrativas de forma cristalina. Portanto o Código Civil de 2002,
artigo 154 do Diploma Penal, Código de Ética Médica e o Texto Supremo de 1988 são os
guardiões a serem invocados neste trabalho, embora haja imensas limitações diante das
possibilidades inesgotáveis de prospecção no campo gênico.
É possível conciliar pesquisa em Genética e privacidade dos dados genéticos? É
possível manter as informações genéticas a salvo dos terceiros interessados como
empregadores, planos de saúde, seguradoras e o próprio Estado? Quais os limites do
consentimento livre e informado? É possível quantificar os danos provenientes da violação do
citado consentimento bem como da privacidade dos dados genéticos? Questionamentos dessa
ordem são desafiadores e não há uma assertiva singular com certeza plena. Seja como for, a
questão deve ser discutida sob pena de não haver uma justa ponderação de valores tanto em
elaboração de normas na respectiva seara quanto ao se decidir juridicamente casos concretos.
2 - Informação Genética e Terceiros Interessados
Inicialmente, necessário se faz definir a natureza da informação genética, ou seja,
saber se sua natureza é diferenciada e, consequentemente, reclamaria tutela específica ou se
está no mesmo patamar das demais informações. Em outros termos, indaga-se se tal
informação possui um potencial mais cristalino para identificar o indivíduo. Hammerschmidt
(2008, p.87) leciona que
a informação genética pode apresentar dois níveis distintos: primeiro, pode ser uma
informação genética primária, relativa à espécie humana, e como tal, pertence ao
domínio público e não permite uma identificação do indivíduo; em segundo lugar,
pode ser uma informação genética secundária, que identifica plenamente a pessoa e as
patologias que afetam ou que podem afetá-la. Afirma-se sem dúvida que é esse
segundo nível de informação o que requer maior proteção jurídica (...).
Seja como for, “a informação genética é poderosa, pessoal e privada. O
desenvolvimento de políticas adequadas e robustas para proteção contra o mau uso deve ser
contínuo e exigirá o esforço de colaboração dos pacientes, pesquisadores, indústria privada,
[laboratórios] e do governo” (COLLINS, 2014, nossa tradução).
Por razões óbvias, este trabalho se concentra no segundo nível de informação, aquele
com imenso potencial para não apenas identificar o indivíduo como também capaz de trazer a
lume imenso poder discriminatório. Todavia, cabe a menção de que há parte da doutrina
médica e jurídica que vem entendendo que há casos permissíveis de discriminação genética.
Estes seriam de natureza positiva, isto é, casos onde tal discriminação seria benéfica ao
indivíduo. Ilustrativamente, considere-se o caso de atividade laborativa onde se manipula
determinada substância que leve a doenças de ordem gênica, a genotipagem do trabalhador
poderia beneficiá-lo, já que isso revelaria se seus genes são mais sensíveis a tal substância.
Portanto, tal empregado laboraria em outra atividade onde seus genes não seriam sensíveis ao
meio. Interessante e coerente. Contudo, retornamos aos terceiros interessados na informação
gênica e a toda sua gama de dilemas ético-jurídicos.
Entendemos que a informação genética é diferenciada e reclama tutela específica
diversa das demais informações até agora conhecidas, deste mesmo entendimento partilham
Dias (2008), Surbone (2004), Echterhoff (2010), Casabona (1999), Hammerschmidt (2008).
Porém, há quem acresça se tratar apenas de resultados potenciais e não condição já
manifestada e, por isso, não reclamaria nenhuma tutela diferenciada, nesse sentido parecem
estar Fukuyama (2003), Atlan, Botbol-Baum (2009), Rothstein (2009). É preciso salientar que
não há consenso pleno no tocante à natureza da informação genética, se para alguns tal
informação é suficientemente poderosa para tutela diferenciada, outros entendem
opostamente. Não acatamos este último entendimento por motivos óbvios, embora se trate
“apenas” de resultados potenciais, probabilidades de que haja o desenvolvimento de uma
desordem genética, esse potencial é suficiente para desaguar na temida discriminação genética
negativa, isto é, aquela capaz de estigmatizar não apenas o indivíduo genotipado, mas também
seus ascendentes e descendentes. Mas o que vem a ser discriminação genética?
Discriminação genética pode ser definida como sendo o tratamento desigual
concedido a alguém em face de predisposição ou da manifestação de determinada
doença de origem genética ou hereditária que pode decorrer diretamente da
informação genética desse indivíduo ou indiretamente em face de parentes deste
(SILVA, CHACON, 2014).
Consoante já salientado, os terceiros interessados são o Estado, empregadores,
seguradoras e planos de saúde. O que acontecerá se
(...) fornecedores e seguradoras tiverem acesso à informação genética que pode
predizer doenças ou condições onerosas futuras? Se as pessoas tiverem essa
informação reveladora sobre seu próprio futuro, eles estarão mais propensos a
comprar o seguro e distorcer o sistema por meio de seleção adversa? Estas são
questões importantes que precisam de diálogo público e consideração (COLLINS,
2014, nossa tradução).
Não são poucos os casos de discriminação genética apenas com fulcro na
predisposição e não na desordem em si. Diversos países já vêm desenvolvendo normas para
coibir tais práticas, sendo que a norma mais avançada, de caráter federal, é a Lei do Ato de
não Discriminação da Informação Genética (GINA) aprovada em 2008, nos Estados Unidos,
após treze anos de embate no Congresso Norte Americano. Apesar de inúmeras limitações é a
mais avançada no cenário mundial.
Echterhoff (apud CASABONA, 1999, p.55) acresce que
essas informações podem revelar dados biológicos sobre a saúde presente e futura do
indivíduo, não somente identificando eventuais doenças genéticas, mas também
possibilitar informações sobre a própria capacidade reprodutiva e a saúde futura dos
filhos. Adverte, também, que tais informações podem revelar paternidade e
participação em delito [relembre o recém-criado banco de perfil genético para fins
criminais em solo pátrio]. E, ainda pior, podem pressupor certos aspectos relacionados
à personalidade, comportamento, Inteligência, entre outros.
O fato é que a informação genética detém algumas características, além das já
elencadas, que a diferenciam de quaisquer outras, a saber:
(...) características genéticas singulares, (...) acompanha o indivíduo desde o
nascimento até a morte, (...) é involuntária, indestrutível, permanente e singular, (...) é
preditiva, (...) deriva de um conhecimento de probabilidade e aproximativo: a predição
do futuro do indivíduo não é inteiramente certa, porém aproximada e limitada
(ECHTERHOFF, 2010, passim).
Seja como for, “o homem tornou-se, definitivamente, senhor e possuidor da natureza,
inclusive da sua própria, ao adquirir o poder de manipular o patrimônio genético”
(COMPARATO, 2010, p. 562). Em outros termos, já se parte do pressuposto de que
“conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade” (BOBBIO, 1992,
p. 232), neste Século XXI, serão fundamentais não apenas para regulamentação adequada do
conhecimento provido pela informação genética, mas especialmente para que germine a
clareza de que nem tudo que se pode fazer deve ser feito e nem tudo que se deve fazer se pode
fazer. Assim, passa-se a discorrer sobre a autonomia e o direito à privacidade dos danos
genéticos.
3 - Autonomia Pessoal e Privacidade
Neste momento é preciso recapitular o tema, isto é a informação genética e seus
impactos. A medicina do século XXI
será dominada pela genética e são justamente as implicações médicas que fazem
avançar o projeto genoma. Que novos poderes terá então a medicina? A capacidade de
prever, de acordo com um grau de probabilidade e fiabilidade muito viável, um grande
número de determinações genéticas e predisposições próprias de uma pessoa, no que
respeita nomeadamente: a) à sua saúde atual e futura; b) às suas características físicas;
c) às suas características comportamentais e psicológicas; d) às suas filiações étnicas e
genealógicas. (...) é bom não esquecê-lo, é característico do perfil genético de uma
pessoa conter indicações, mais ou menos fiáveis, quanto aos seus familiares: isto é,
quanto à sua família presente, passada e futura. (...) o domínio médico e social das
possibilidades e predição do destino biológico dos indivíduos, atualmente em
desenvolvimento, constitui um dos maiores problemas éticos do mundo
contemporâneo (SILVA, 2002, p. 19).
Isso é uma prova de que tais informações são de imenso impacto não apenas para o
paciente, mas para todos os frutos da árvore genealógica como ascendentes e descendentes.
Somem-se a isso as imensas implicações de ordem econômica, social, filosófica, cultural,
política, bélica etc.
Será que podemos ser considerados doentes, quando somos portadores de uma
anomalia genética que não se exprimiu ainda e que talvez nunca exprima? Estará
alguém totalmente isento de genes mutantes predisposto à doença? Poderá alguém
dizer que é absolutamente são, normal e imune ao sofrimento? Que modelo de homem
persegue afinal a nova utopia do séc. XXI, a da saúde perfeita? (SILVA, 2002, p. 23).
Ora, se há imenso interesse em tais informações acrescido de seus impactos cuja
maioria ainda habita o desconhecido, é evidente que o indivíduo submetido a tratamento,
diagnóstico genético, empregos, planos de saúde, seguros etc., deve ter seus direitos à
informação genética tutelados. Evidentemente, tais informações integram a intimidade, um
direito personalíssimo. Por seu turno, Yussef Said Cahali (2011, p. 522-523) afirma que
o direito à intimidade é a faculdade reconhecida às pessoas de opor-se a interferências
capazes de causar esse mal-estar. É ele que vai permitir ao homem moderno
desenvolver plenamente a personalidade com o mínimo de ingerências em sua vida
privada; trata-se, portanto, de um direito essencial à própria dignidade humana,
reconhecida a sua importância, no campo do direito privado, não somente do ponto de
vista individual, mas, também social e político.
Portanto, “temos o desenvolvimento das possibilidades do ser humano, do poder de
criar e destruir que, superando tudo o que até hoje era habitual, levanta a questão do controle
jurídico e moral do poder” (HABERMAS, RATZINGER, 2007, p.61-62). O controle de tal
poder passa necessariamente pelo respaldo ao direito à intimidade das informações genéticas.
É exatamente neste contexto que há ingresso da dignidade da pessoa humana, isto é “aquela
intangibilidade que só pode ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento
recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas” (HABERMAS, 2010, p.47). Em
outros termos, entendemos que a dignidade humana tem seu brilho lapidado quando há
interação entre os indivíduos no seio social. Mas não é apena isso, há que resultar no
reconhecimento e respeito pelo próximo de que cada indivíduo possui direitos que não podem
ser sobrepujados, sob pena de resultar em mero instrumento e não um fim em si mesmo. Ou
seja
a humanidade ela mesma é uma dignidade, pois um ser humano não pode ser usado
meramente como um meio por qualquer ser humano (quer por outros, quer, inclusive,
por si mesmo), mas deve ser sempre usado ao mesmo tempo como um fim. É
precisamente nisso que sua dignidade (personalidade) consiste, (...) ele se encontra na
obrigação de reconhecer, de um modo prático, a dignidade da humanidade em todo
outro ser humano (KANT, 2010, p.206-207).
Consoante já salientado, o uso indevido das informações provenientes das grafias
gênicas arvora flagrantemente sobre os direitos da personalidade, especialmente a
privacidade. Aliás, tal conceito se desencadeou de um artigo publicado em 1890 por “Samuel
D. Warrem e Louis D. Brandeis (...) sobre o direito à privacidade na lei comum”
(ROTHSTEIN, 2009, p.543, nossa tradução). “O direito à privacidade, disseram eles, é o
direito de ser deixado em paz” (ALPERT, 2000, p.5, nossa tradução). Entender seu
fundamento filosófico é crucial ao desfecho do presente tema.
Anita Allen assevera que essa privacidade pessoal é uma condição de inacessibilidade
da pessoa (...) ou obter informações sobre a pessoa para os sentidos e dispositivos dos
outros. Ruth Gavison (...) fala de privacidade em termos de nossa acessibilidade
limitada para os outros (...) na medida em que somos conhecidos de outros [segredo],
na medida em que os outros têm acesso físico a nós [solidão] e extensão à qual somos
o assunto da atenção dos outros [anonimato]. Jeffrey Reiman descreve a privacidade
como a condição mediante a qual outras pessoas estão privadas de ter acesso a
quaisquer ou algumas informações sobre você (..). James Rachels vê a privacidade
como sendo baseada na ideia de que existe uma estreita ligação entre a nossa
capacidade de controlar quem tem acesso a nós e às informações sobre nós e nossa
capacidade de criamos e mantermos diferentes tipos de relações sociais com pessoas
diferentes. Charles Fried define privacidade como sendo o controle sobre si mesmo
(ALPERT, 2000, passim, nossa tradução).
Nesse contexto é que há ingresso dos princípios da autonomia, confidencialidade e do
consentimento livre e informado. Mas o que significa cada um dos princípios enumerados
anteriormente? Autonomia é a prevalência da “vontade do indivíduo, (...) respeito pelos
outros e pelas suas escolhas e respeito a integridade pessoal e auto-determinação de cada um”
(TELES, 2000, p.71).
A autonomia de decisões na saúde faz parte dos nossos direitos individuais e está
intrinsecamente associada ao respeito pela dignidade dos seres humanos. O seu
cumprimento exige um consentimento que deve basear-se numa informação adequada
a cada situação e que permita uma decisão e é habitualmente transmitida pelo médico
prescritor da medida. É evidente que o seu não cumprimento de forma correta diminui
a beneficência e pode aumentar a maleficência do ato médico (SANTOS, 2012,
p.269).
Por seu turno, o principio da confidencialidade explana que
toda informação concedida pelo paciente ao médico deve ser resguardada de terceiros.
Isso significa que a confiança cingida na relação médico – paciente é imperativo
essencial ao bom exercício da medicina em todas as suas áreas. Portanto, uma vez
rompido esse elo o paciente estará no direito de exigir reparação por danos não apenas
morais, mas também materiais se houverem (SILVA, 2013, p. 55).
Em outros termos,
a garantia da confiança entre médico e paciente é um pressuposto tão central para o
exercício da medicina que esse é um tema regulamentado por inúmeros códigos legais
e éticos nacionais e internacionais. As legislações oscilam entre a total obrigatoriedade
do segredo, na linha argumentativa de Kottow que sustenta ser a confidencialidade um
princípio “tudo ou nada”, até previsões específicas de quebra do segredo, em casos de
risco de vida ou de imposições legais (DINIZ, GUEDES, 2005, p.750).
Em tempo, o Código de Ética Médica, em seu artigo 73
delineia as linhas mestras do sigilo médico proibindo o profissional de revelar fato de
que tenha conhecimento em virtude do exercício da Medicina. Tal qual faz dentre os
Princípios Fundamentais, excepciona os casos em que haja motivo justo para a
revelação do segredo, os quais seriam: a) cumprimento de dever legal (ordem judicial
ou imposição legal); b) consentimento por escrito do paciente; c) para defesa própria
(CABETTE, 2011, p.121).
Finalmente, resta entender o princípio do consentimento livre e informado: o presente
cânone esculpe “(...) uma autorização autônoma dada por indivíduos para uma intervenção
médica ou um envolvimento numa pesquisa” (BEAUCHAMP, CHILDRESS, 2002, p.163).
Isso quer dizer que se trata de um principio que se materializa em um instrumento de
autorização concedido pelo indivíduo ao profissional de saúde de forma expressa ou oral para
determinado procedimento. Obviamente, não pode haver coação e dúvida, devendo ser
voluntário. Tal instrumento é a mola mestra que vai esculpir os trilhos a serem seguidos pelo
profissional de saúde e laboratórios, caso estes não atendam aos seus ditames tal
consentimento será violado e, consequentemente, o profissional e o respectivo laboratório
poderão responder na esfera judicial, quanto ao profissional ainda é cumulável a
responsabilidade administrativa, consoante explanado abaixo.
É preciso tecer algumas considerações sobre o cânone em análise, primeiramente é
salutar afirmar que se trata de um instrumento de proteção do próprio profissional de saúde,
pois atendendo seus contornos, não responderá por qualquer infração. Além disso, há
situações que põem à prova o conhecimento médico onde há um dever legal de quebra de
confidencialidade, isso se procede nas situações expressamente previstas em lei, a saber:
aquelas previstas na “Lei nº 6259/75 com atualização regular pelo Ministério da Saúde
Secretarias da Saúde dos estados” (CABETTE, 2011, p.122). Quais? São as exceções, isto é
“os casos em que haja motivo justo para a revelação do segredo, os quais seriam: a)
cumprimento de dever legal (ordem judicial ou imposição legal); b) consentimento por
escrito do paciente; c) para defesa própria” (op. cit., p.121, grifamos).
Mesmo nesses casos de imperativo legal, há controvérsias quanto à quebra do sigilo e
do princípio da confidencialidade, pois “para determinar quando e sob que circunstâncias a
confidencialidade pode ser rompida, é preciso estabelecer uma matriz de avaliação de riscos,
em que a magnitude do dano e a sua probabilidade de concretização são algumas das variáveis
a serem avaliadas” (DINIZ, GUEDES, 2005, p.752). O problema é que se sustentar
exclusivamente na lei pode tornar a relação médico – paciente injusta, pois o rompimento do
sigilo pode provocar danos maiores que o silêncio, isso poderia sobrepujar não apenas
princípios da Bioética bem como a própria dignidade humana, corolário maior da Carta
Magna, além de ocasionar um completo esvaziamento moral e ético. É exatamente aí que o
termo de consentimento, expresso preferencialmente, se torna o guardião do profissional de
saúde, pois o médico poderá, em equipe, averiguar se os danos provenientes da revelação são
maiores que manter em segredo. Entendemos que se os danos provenientes da quebra da
confidencialidade forem mais graves que o sigilo, o profissional de saúde não deverá quebrar
tal sigilo. São situações onde o profissional de saúde poderá ser responsabilizado se quebrar a
confidencialidade por determinação legal, caso o consentimento estabeleça em contrário, e se
não quebrar poderá responder por omissão. É neste momento que se evidencia que a
literalidade da norma ipsis litteris pode ser desproporcional, necessário assim proceder a um
justo juízo de valores no caso concreto.
4 - Dano Indenizável
Diante do que se expôs até o presente momento, é preciso salientar que só há
indenização se houver dano que nada mais é que
toda desvantagem que experimentamos em nossos bens jurídicos (patrimônio, corpo,
vida, saúde, honra, crédito, bem-estar, capacidade de aquisição) do que resulta o
direito a uma reparação em pecúnia sempre que decorrente da conduta (comissiva ou
omissiva) de outrem (STOCO, 2007, p.128).
Outrossim, tal responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual e no caso em
tela, o dano pode ser de natureza moral ou material ou ainda ambos cominadamente. Seja
como for, leciona o artigo 186 do Diploma Civil que “todo aquele que por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito” (ipsis litteris). Em sequência, o artigo 187 do
mesmo diploma assevera que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes” (ipsis litteris, grifamos). Além disso, os artigos 927 e 932,
inciso III, ambos do Diploma supra, incidem nessa problemática. O fato é que há uma
confiança estabelecida entre o profissional, laboratório e o indivíduo alicerçado na boa-fé que
uma vez quebrada por aqueles cabe a este buscar reparo na seara jurídica. O consentimento
concede ao profissional a titularidade de um direito, enraizado no dever, de proceder ao
diagnóstico, tratamento, pesquisa ou mesmo genotipagem, mas seus limites estão esculpidos
no citado termo que devem ser rigorosamente observados.
Ademais, consoante artigo 154 do Diploma Penal, “revelar alguém, sem justa causa
segredo, de que tem ciência em razão de (...) profissão e cuja revelação possa produzir dano a
outrem” (ipsis litteris) responderá criminalmente. Some-se a isso o artigo 325 do mesmo
Diploma. Nesse ínterim, sinaliza o Texto Supremo de 1988, em seu artigo 5º, incisos, X e
XXXV com a tutela da intimidade e apreciação pelo Judiciário. O fato é que a violação do
consentimento e quebra da confidencialidade dar-se-ão, na maioria dos casos, por ação e isso
fulmina a boa-fé objetiva iluminada entre o indivíduo e o profissional de saúde, isto é,
a boa fé objetiva atua como fundamento normativo, e não propriamente fático, desses
deveres. Por óbvio não poderíamos, nessa linha de intelecção, pretender esgotar todos
esses deveres, uma vez que sua enumeração não é exaustiva. Apenas a título de
ilustração, citem-se os deveres mais conhecidos: a) lealdade e confiança recíprocas, b)
assistência; c) informação; d) sigilo ou confidencialidade. Todos eles, sem dúvida,
derivados da força normativa criadora da boa fé objetiva. São, em verdade, “deveres
invisíveis”, ainda que juridicamente existentes (TST-RR-1686 37.2010.5.18.0006.
Min. Rel. Raymundo de Senna Pires, 3ª Turma. Brasília, 2011).
Não por acaso tal princípio foi abrigado no Código Civil atual 27 vezes e sobre ele
dissertou Miguel Reale
a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que
condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos
mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências. Daí
a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça
ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa,
consuetudinária, jurisdicional e negocial (REALE, 2012).
Isso significa dizer que tal princípio ostenta o caráter de honestidade, transparência,
isto é, “boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de
conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever para que cada pessoa ajuste a própria
conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal” (REALE,
2012). Ou seja, tal baliza é crucial em todas as dimensões onde há relação social seja ela
coletiva ou inter partes. Não se pode esquecer de que “o sigilo das informações médicas é um
direito disponível do paciente e em havendo de sua parte a autorização o médico estará
plenamente desobrigado” (CABETTE, 2011, p. 123), caso oposto, responderá nos limites da
lei1. Consoante se nota, é fundamental que o profissional de saúde, laboratório de análises de
amostras biológicas e demais profissionais envolvidos na situação em análise tenham como
respaldo o consentimento do paciente/indivíduo e atuem em seus termos sob pena de
responsabilidade nas esferas civil, penal e administrativa. Porém, é preciso considerar o alerta
de Garrafa (2000, p. 6), para ele
é sempre preferível confiar mais no progresso cultural e moral do que em
determinadas normas jurídicas. Existem de fato zonas de fronteira nas aplicações das
ciências e para as quais são necessárias as regras jurídicas. Mas, é impossível a
rápida reconstrução de referências ou valores compartilhados, a menos que se insista
na alternativa de imposição autoritária. Trata-se, acima de tudo, de verificar se é
possível trabalhar para a definição de um conjunto de condições de compatibilidade
entre pontos de vista que permanecerão diferentes, mas cuja diversidade não
implique necessariamente conflito ou radical incompatibilidade. Nesse sentido, as
legislações dos diferentes países deverão procurar equilibrar-se entre o respeito à
autonomia e individualidade das pessoas e suas características histórico-culturais
1
Nesse sentido, REsp. 2002.0025859-5. 4ª Turma. Rel. Ruy Rosado de Aguiar. J. 01 out.
2002. DJ 18/11/2002 – RSTJ 168/406).
(incluindo a confidencialidade), além de respeitar a liberdade da ciência
desenvolvida dentro de referenciais éticos internacionais.
O fato é que a “genética [em suas vertentes] não envolve apenas ciência e técnica, mas
dramas humanos, filosóficos, éticos e morais (ZATZ, 2011, p.22). Mas, não é apenas isso, no
caso de diagnóstico, “coletar uma amostra de sangue ou de saliva para um exame genético é
muito fácil. Porém, a lista de questões que uma pessoa precisa considerar antes de decidir
fazer esses testes, cresce a cada dia” (ZATZ, 2011, p.32). Ao que tudo indica, a questão
normativa no tocante à responsabilização dos profissionais que quebram um consentimento
não é o único problema, talvez o problema esteja mais transparente na órbita moral e ética,
anátemas sobre os quais as normas não podem escudar de forma plena. Até porque legislar
especialmente sobre o campo moral “é um anátema para muitos cidadãos de sociedades
liberais, visto que oferece o risco de derivar para a intolerância e a coerção” (SANDEL, 2011,
p.29). Seja como for, estamos na seara de questões de extrema complexidade.
Diante do exposto, suponha-se que um empregado realize seus exames de check-up
médico regularmente, considere a possibilidade de seu empregador solicitar ao laboratório
que faça a genotipagem desse empregado visando descortinar predisposições a determinadas
doenças de ordem gênica. Considere ainda uma situação mais real, o empregado adoece e
consequentemente é demitido por apresentar doença genética, dramatizando, suponha que seja
a mais temida delas: câncer.
Na primeira hipótese, consideremos que o laboratório o faça conforme solicitou o
empregador. Há dúvidas de que houve violação da boa-fé entre as partes, laboratório e o
supramencionado empregado na figura de consumidor do serviço do citado laboratório?
Entendemos que essa quebra contratual deságua impactos na dimensão ética, moral e jurídica,
ainda que não haja perda material. A questão é que sem o agir ético, zeloso, probo, honesto e
justo entre as partes quaisquer valores humanos esculpidos inclusive na Norma Constitucional
são praticamente anulados. Isso concede azo à tutela amparada do Diploma Civil acima
explanado. A segunda hipótese é, certamente, realística. Desnecessário mencionar os
impactos psicológicos, especialmente depressivos, de um problema dessa ordem: perda do
emprego culminado com doença impactante para a qual não há culpa do empregado. Todavia,
há outra questão a ser suscitada: os reflexos da genotipagem com fito discriminatório.
Conforme já salientado, os ascendentes e descendentes (árvore genealógica) são reflexamente
atingidos, portanto podem ser discriminados probabilisticamente por predisposição ao mesmo
problema. É exatamente por isto que a informação genética ostenta, em nosso entender,
natureza diversa das demais, haja vista os ilimitados reflexos dela jorrados cientificamente
fundamentados.
O fato é que
quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, como é o caso de
hoje, homens e mulheres lutam para articular seu mal-estar. Nas sociedades liberais,
buscam primeiro a linguagem baseada nos conceitos de autonomia, justiça e direitos
humanos. Essa parte de nosso vocabulário moral, no entanto, não nos equipou para
abordar temas mais difíceis colocados pelas práticas de clonagem, crianças projetadas
e engenharia genética. É por isso que a revolução genômica induziu a uma espécie de
vertigem moral (SANDEL, 2013, p.22).
Em síntese, “todos estes avanços estão trazendo e trarão junto inúmeras questões de
ordem ética, moral, legal, filosófica, cultural e religiosa” (RASKIN, 2012). Não por acaso,
Collins, Mckusick, Jegalian (2013) lecionam que “praticamente todos os males humanos,
exceto, talvez, trauma, tem alguma base genética”, se isso é verdadeiro o tempo dirá, porém
as implicações crescentes, em todas as áreas do saber humano, decorrentes do progresso da
genética não podem ser ignoradas.
Não se pode esquecer de que a dignidade humana, um dos fundamentos do Estado
brasileiro bem como uma sociedade justa e solidária, objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, são alguns dos supedâneos sem observância dos quais não haverá justo
progresso em quaisquer áreas especialmente sob o prisma humano. Afinal, a ciência genética
em si mesma não é um mal, todavia os fins onde a empregam podem ser questionáveis em
diversos aspectos se não beneficiam as pessoas. Isso porque todo progresso científico deve
visar exclusivamente ao benefício humano, pois não se pode esquecer de que
respeitar as pessoas é reconhecer que elas possuem uma inviolabilidade fundada na
justiça, que não pode ser sobrepujada nem mesmo pelo bem estar da sociedade como
um todo. É afirmar que a perda de liberdade por parte de alguns não pode ser
justificada pelo maior bem estar desfrutado por outros. As prioridades lexicais da
Justiça representam o valor das pessoas que, segundo Kant, estão acima de qualquer
preço (RAWS, 1997, p.653).
A questão é: como conciliar dramas humanos, poder econômico, barreiras éticojurídicas, política em matéria de ciência e saúde humana nos trilhos da dignidade humana?
Qual a coisa certa a se fazer?
5 – Conclusão
O consentimento é de suma importância na atividade médica, inclusive laboratorial,
servindo não apenas para delinear os contornos da relação médico-paciente, mas também
como um instrumento de tutela do próprio profissional de saúde.
Todavia, há imensos conflitos entre a imposição legal de quebra de sigilo e o
consentimento expresso do paciente. Nesses casos, entendemos que o “bom senso” do
profissional de saúde deverá imperar, de forma que a este caberá decidir se cumpre a norma
imperativa ou o constante no termo de consentimento.
Entendemos que uma vez que o profissional verifique serem as consequências da
quebra do sigilo desaguadoras em danos maiores que o silêncio, o segredo deverá ser
mantido. Justo juízo de ponderação de valores.
Ironicamente, o termo de consentimento, aparentemente limitador das ações do
profissional de saúde, laboratório de analises etc., é também um guardião da liberdade destes,
pois determina as águas a serem navegadas de forma tranquila sem incorrer em iatrogenia,
danos e responsabilidade nas searas explanadas anteriormente.
Além disso, cabe a menção de que se intimidade é, pelo menos em uma de suas
vertentes, aquilo que está escondido no interior do ser humano de forma que não pode ser
“pilhado” sem que o indivíduo o externe voluntariamente como a materialização do
pensamento, o mesmo não se pode dizer a respeito do DNA. Baixos custos, facilidades de
obter amostras biológicas e facilidade da genotipagem têm provocado o que se denomina
“banalização dos testes genéticos”.
Finalmente, é interessante acrescer que não se trata de excesso de paternalismo a
exigência do termo de consentimento, mas de respeito pelo paciente sem o qual não há
medicina justa nos termos do juramento de Hipócrates.
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