Título: "Marketing Verde: Vida ou morte para as Florestas Tropicais?" I. Introdução A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro em Junho de 1992, representou um evento único no âmbito das relações internacionais. Também chamada de "Cúpula da Terra", a CNUMAD reuniu mais chefes de estado que qualquer outro evento antes realizado. O produto mais abrangente da Conferência foi um documento de 600 páginas denominado Agenda 21, o qual estabelece as instruções a respeito de como, sob a liderança das Nações Unidas, os governos e empresas ao redor do mundo devem prosseguir em seu crescimento econômico ao mesmo tempo mantendo a qualidade ambiental. Dois anos antes da Cúpula da Terra, em abril de 1990, comentaristas já especulavam que o mundo estaria entrando "na década - ou mesmo era - do meio ambiente."1 Central para esse processo têm sido os debates sobre o papel da atividade comercial na preservação do meio ambiente e, em particular, da biodiversidade, da qual dependem os sistemas econômicos e climáticos mundiais: "Enquanto o desenvolvimento como crescimento econômico e a comercialização vêm sendo agora reconhecidos como estando na raiz do problema ambiental no Terceiro mundo, ambos são paradoxalmente oferecidos como a cura para a crise do meio ambiente sob a forma de desenvolvimento sustentável."2 O presente trabalho examina a teoria adotada por várias estratégias de desenvolvimento atuais, ou seja, de que a economia de mercado salvará a biodiversidade mundial. O raciocínio atesta que a conservação da biodiodiversidade deve ser coordenada com a utilização de seu potencial de gerar renda e que esta seria a melhor forma de convencer as comunidades locais e os empresários a preservarem a biodiversidade. 1 Goldfarb, Theodore: "Taking Sides: Clashing views on Controversial Environmental Issues" 7th ed. Dushkin/McGraw-Hill Co, 1997. 2 Shiva, V.: "Revovering the real meaning of sustainability" em Cooper & Palmer (eds): "The environment in question: Ethics and global Issues", Routledge, London, 1992 p.188 A preocupação com a relação entre a exploração dos recursos da biodiversidade e a atividade humana tem sido crescente. A cada ano, aproximadamente 17 milhões de hectares de florestas tropicais são perdidos globalmente, como resultado da exploração das florestas para extração de madeira e combustível e da abertura de clareiras para a agricultura e pastagens. Evidências crescentes demonstram que tais usos convencionais das florestas tropicais não são somente devastadores do ponto de vista ecológico, como também pouco viáveis do ponto de vista econômico. Essas novas descobertas têm inspirado abordagens inovadoras para salvar as florestas tropicais mantendo, ao mesmo tempo, a sua capacidade de gerar renda para as populações locais. A estratégia é, portanto, criar incentivos financeiros para encorajar os habitantes locais a serem guardiões eficientes das florestas. Alega-se que esta estratégia promove soluções do tipo ganha-ganha: Os ambientalistas ganham pela preservação da floresta e os habitantes locais ganham um melhor padrão de vida, que é gerado pelo desenvolvimento sustentável. A "Colheita de Floresta Tropical" (CF) é uma das estratégias orientadas para o mercado que pretende conciliar a conservação com a utilização da natureza. A CF envolve a extração sustentável de produtos não-madeireiros da floresta, de forma a não interferir no ecossistema, enquanto mantém o equilíbrio das cadeias alimentares. O princípio da Colheita de Floresta Tropical é, portanto, o de que se puder ser demonstrado que as florestas possuem mais valor quando deixadas de pé do que quando são derrubadas, elas terão mais chance de serem preservadas. O presente artigo tem por objetivo relatar a experiência da CF em dois casos no Brasil. Ele está dividido em seis partes. A primeira parte do artigo considera o despertar da preocupação pública com a qualidade ambiental nos países industrializados. Serão apontadas as principais conferências e acordos internacionais que estabeleceram o contexto para novos debates sobre o uso e conservação da biodiversidade. Ênfase será dada ao conceito de desenvolvimento sustentável da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), também conhecida como Comissão Brundtland. Na segunda parte do artigo, será apontada a importância histórica da biodiversidade para a humanidade e as principais linhas de argumentação a favor de sua preservação. A seguir, serão considerados alguns dos itens do debate sobre conservação e desenvolvimento sustentável. A Quarta parte abordará as propostas da "Colheita de Floresta Tropical" e sua aplicação como alternativa de desenvolvimento sustentável das florestas tropicais. A seguir, dois exemplos demonstrarão as práticas mais conhecidas de CF na Amazônia Brasileira. A última parte conclui o trabalho. II. A opinião pública e a crise do Meio Ambiente: Uma abordagem histórica A preocupação com a degradação ambiental possui raízes históricas profundas, mas sua natureza , escala e importância política, vêm crescendo de forma considerável, desde a onda de protestos em defesa do meio ambiente que varreu os países industrializados nos anos sessenta. Nos anos que se seguiram à devastação da Segunda Guerra, os Estados Unidos e outras nações experimentaram um período explosivo de industrialização, acompanhado por um aumento rápido do uso de combustíveis fósseis e da produção e uso de produtos químicos sintetizados. O desenvolvimento, impulsionado por importantes invenções, como a televisão, os computadores, as máquinas copiadoras, medicamentos, entre outros, criou oportunidades para o aumento do investimento e emprego. O aumento da capacidade produtiva provocou freqüentes acúmulos de estoques e capacidades excedentes nas indústrias da época. Havia a necessidade constante de aumentar a demanda por seus produtos. O elevado padrão de vida alcançado pelo consumidor, propiciciado pela oferta de produtos e serviços que lhe proporcionavam conforto e bem-estar, é inegável, porém não impediu o aparecimento de problemas que levaram determinados segmentos da sociedade a questionar os limites da atividade de consumo. Nos anos sessenta, a chamada contra-cultura questionou a ética ambiental da sociedade industrial, tomando inspiração, em parte, de livros como "Primavera Silenciosa", de Rachel Spring e do relatório do Clube de Roma, "Limites do Crescimento". Determinadas parcelas da sociedade passaram a cobrar das empresas maior responsabilidade sobre aspectos como: os processos de extração irresponsável de recursos naturais não renováveis, como o petróleo, os impactos decorrentes da utilização e disposição do produto sobre a qualidade do ambiente (poluição do ar, da água e o acúmulo de detritos sólidos, etc.). A tendência se manteve pelos anos setenta. Os graves problemas ambientais enfrentados pela humanidade na década de setenta associados às questões como o tratamento dispensado por algumas empresas aos consumidores, refletidos pela propaganda enganosa, por práticas fraudulentas, pela desinformação, criaram a necessidade de mudanças urgentes, no sentido de adaptar a atividade das empresas e a legislação à uma nova e desafiadora situação de mercado. Foram criados mecanismos de defesa e proteção aos consumidores nos Estados Unidos, inicialmente através da introdução de legislação para o controle da poluição. A Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972, foi um marco importante e muito se progrediu em termos de conscientização nos anos que se seguiram à sua realização. A Conferência enfatizou a urgente necessidade de se criarem novos instrumentos que tratassem das questões que afetavam o planeta, mas não questionou o modelo de desenvolvimento até então adotado, sendo a preocupação ainda centrada no fato de que recursos naturais finitos impediriam o desenvolvimento, visto como crescimento da renda per capita. No final dos anos oitenta, a atenção internacional se concentrava numa iminente crise ambiental global. O meio ambiente estava na agenda de líderes políticos, cientistas, ambientalistas e da mídia ao redor do mundo. Questões como os custos invisíveis do desenvolvimento ganhavam peso nos discursos desenvolvimentistas. Havia sinais de uma crescente percepção das relações entre pobreza e degradação ambiental e de que o desenvolvimento vinha na verdade agravando os problemas que deveria solucionar, ou seja a pobreza e o subdesenvolvimento. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estimou que, só em 1978, mais de 12 milhões de crianças com menos de cinco anos morreram de fome. 3 O Relatório Brandt4 atesta que no começo da década de oitenta havia 800 milhões de pessoas vivendo em pobreza absoluta e que esse número estava aumentando. A essa situação somava-se o reconhecimento de que recursos naturais escassos vinham sendo 3 Brandt et al.: "North-South: A programme for survival" Report of the Independent Commission on International Development Issues, Pan Books London 1980 4 Idem desperdiçados de forma predatória. Em resposta, governantes e lideranças empresariais perceberam a necessidade de desenvolver um discurso alternativo onde crescimento econômico e a preservação ambiental pudessem ser combinadas. Em 1987, a Comissão sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMD), ou Comissão Brundtland lançou o termo "Desenvolvimento Sustentável". A expressão já havia sido usada anteriormente em 1980 no documento denominado World Conservation Strategy, produzido pela IUCN e World Wildlife Fund. Para a CMMD, desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de futuras gerações de atenderem às suas próprias necessidades.5 Um dos aspectos do modelo de desenvolvimento sustentável é a necessidade de que, em termos gerais, o estoque de capital natural - florestas, solo, água - seja mantido constante. Isso significaria que futuras gerações teriam acesso a aproximadamente a mesma quantidade de recursos naturais que a geração anterior, atendendo ao objetivo de igualdade entre gerações. O objetivo do caráter sustentável do desenvolvimento econômico é assegurar o bem estar de futuras gerações garantindo-lhes um estoque básico de recursos naturais. O relatório Brundtland foi denominado Nosso Futuro Comum e ofereceu propostas para uma estratégia de desenvolvimento sustentável. Buscou retomar o crescimento econômico como condição necessária à erradicação da pobreza ao mesmo tempo em que contestou a qualidade desse crescimento para torná-lo mais justo. Teve como objetivo satisfazer necessidades básicas de alimentação, emprego, energia, água e saneamento, mantendo uma base populacional sustentável. Procurou conservar e aumentar a base de recursos naturais porém enfatizando a reorientação no uso da tecnologia para melhor gerenciar riscos. Finalmente, buscou integrar a questão ambiental ao planejamento econômico. Além disso, o Relatório enfatizou a necessidade de modificar as relações econômicas internacionais e de estimular a cooperação internacional a fim de reduzir a distância entre países ricos e pobres. 5 WCED (CMMAD): "Our Common Future" Oxford University Press, 1987 p.43 Apesar de suas inegáveis boas intenções, o conceito de desenvolvimento sustentável oferecido pelo relatório Brundtland ainda é controverso. Alguns autores, como Redclift6 argumentam que o relatório não analisa especificamente o que são necessidades humanas. O autor entende que necessidades básicas à sobrevivência estão obviamente incluídas - nutrição, saúde e abrigo, mas segundo Redclift, não está claro quão mais que sobrevivência está incluído em "necessidades". Em Junho de 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) utilizou as recomendações e realizações da Comissão Brundtland, a fim de responder aos crescentes problemas ambientais globais, formando acordos importantes sobre Biodiversidade, Mudanças Climáticas e Desmatamento. A CNUMAD, também denominada Cúpula da Terra, consagrou as linhas mestras do relatório Brundtland, mencionando, entre outras questões, a relação entre pobreza e degradação ambiental e a necessidade de buscar novos padrões de produção e consumo sustentáveis para a atual e futuras gerações. Durante a CNUMAD, ficaram claras as diferenças fundamentais em termos de prioridades entre países do Norte e do Sul: Enquanto os países do Norte insistiam na sustentabilidade ecológica, os países do Sul demandavam seu direito ao desenvolvimento. Esse conflito impôs sérias dificuldades aos acordos fechados naquela Conferência. Os documentos oficiais aprovados na CNUMAD foram: A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção sobre mudanças climáticas, a Declaração de princípios sobre Florestas, a Convenção sobre a Biodiversidade e a Agenda 21. A Convenção sobre a Biodiversidade (CB) nos interessa aqui particularmente já que a biodiversidade é provavelmente um dos palcos onde mais se evidencia o confronto de interesses entre os países ricos e pobres. Os estados signatários concordaram que as reservas biológicas do planeta estavam diminuindo como conseqüência da atividade humana e que mudanças significativas eram necessárias em nível global a fim de promover a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. A CB também procurou abordar ítens relacionados à Propriedade Intelectual (PI). 6 Redclift, M. Em: The Earthscan Reader in Sustainable development" Earhscan, London 1995 A CB é um tratado legal sobre Biodiversidade que procura conservar as espécies, genes e ecossistemas estabelecendo regras para seu uso. Os Estados Unidos, a princípio, protelaram a assinatura do acordo, temendo restrições sobre a biotecnologia. Outros países, apesar de signatários, estavam inquietos em comprometer grandes somas ao pagar por programas de proteção à biodiversidade. A importância da CB ao estabelecer, como responsabilidade global, a proteção da biodiversidade e de seus componentes foi inegável. No entanto, a CB não priorizou a questão dos direitos das populações locais sobre sua diversidade, deixando de criar mecanismos que obrigassem os países signatários a reconhecer tais direitos. A importância da participação das comunidades locais é, na visão desse artigo, primordial para o sucesso de iniciativas para preservar a biodiversidade. A questão sobre a importância do conhecimento tradicional será abordada na quarta parte deste artigo. A parte seguinte aborda o conceito de biodiversidade, as taxas de extinção, sua importância na manutenção da vida no planeta e o debate sobre seu valor econômico. Nosso objetivo é estabelecer o pano de fundo sobre o qual repousam as teorias de preservação orientadas para o mercado. III. Biodiversidade Biodiversidade é um termo que abrange a totalidade de genes, espécies e ecossistemas em uma determinada região. O número total de espécies no planeta é ainda desconhecido, mas existem cálculos7 de que o número absoluto estaria entre 5 e 30 milhões. Cientistas respeitados estimam que em média 137 espécies estariam sendo levadas à extinção por dia, ou 50.000 espécies por ano.8 Salvar a biodiversidade significa adotar medidas de proteção a genes, espécies, habitats e ecossistemas. Uma das maneiras de manter espécies é proteger seus habitats naturais e já existe consenso que a maior causa da extinção é a destruição dos habitats. De forma simplificada, quando o habitat é reduzido, espécies desaparecem. Um estudo recente do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) aponta alguns fatores como principais causadores da presente diminuição da biodiversidade: Mudanças de uso da terra (sendo o desmatamento nos trópicos úmidos talvez a mais 7 Wilson, E. (ed): "Biodiversity" National Academy Press, Washington D.C. 1988 conhecida), exploração desenfreada de espécies individuais, introdução e invasão de espécies novas de plantas e animais, o aumento no nível de poluentes e o envenenamento do ambiente por substâncias tóxicas. Uma quinta causa, ainda a ser comprovada, seria mudanças climáticas. O caso da perda das florestas tropicais particularmente nos interessa. As florestas tropicais são um dos mais ricos ecossistemas do planeta em termos de biodiversidade. As florestas tropicais apenas 7% da superfície terrestre mas abriga cerca de 40 a 50% de todas as formas de vida em nosso planeta - aproximadamente 30 milhões de espécies de plantas, animais e insetos. As florestas tropicais podem ser consideradas como a mais bela manifestação da vida em nosso planeta. As florestas tropicais têm desaparecido a uma taxa de 31 milhões de hectares por ano globalmente9; No Brasil, a média no período entre 1979-1990 foi de aproximadamente 2,15 milhões de hectares por ano.10 O caso dos povos indígenas também é ilustrativo. Em 1500, havia entre 6 e 9 milhões de índios nas florestas tropicais brasileiras. Em 1992, restavam menos de 200,000.11 O desaparecimento da biodiversidade significaria a extinção de centenas de milhares de espécies, ainda desconhecidas pela ciência. É inegável que a biodiversidade é essencial para a manutenção da vida no planeta, em formas que muitas vezes não são profundamente entendidas. Durante milênios, as pessoas têm se voltado para a farmácia da natureza em busca de tratamento para seus males. A indústria farmacêutica moderna se valia inicialmente de recursos naturais até que as técnicas para desenvolvimento "racional" de medicamentos veio à tona na década de sessenta. Com o avanço das tecnologias de pesquisa e coleta, a busca por produtos diretamente da natureza ficou mais acessível e, ao redor do mundo, plantas, animais e microorganismos são coletados de florestas, recifes de coral e comunidades locais em busca da droga do milênio. 8 Wilson, E.: "The diversity of Life" Harvard University Press, Cambridge 1992 De acordo com: Rainforest Action Network, 1998, 1999. Valores abrangem destruição total, incluindo desmatamento e a estimativa de degradação. 10 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Dados fornecidos por Norberto Henninger em 1992 para o World Resources Institute, Washington D.C 11 Caufield, C.:"In the Rainforest" University of Chicago Press, Chicago 1984 9 Conforme mencionado anteriormente, a causa principal da perda da biodiversidade é a perda de habitats. À medida que os habitats desaparecem, levam junto toda a riqueza cultural e natural que abriga. Essa riqueza é muitas vezes irrecuperável e com isso nossa própria sobrevivência estaria em perigo. Muitos dos argumentos em defesa da conservação tendem a apontar o que retiramos da biodiversidade e o que perderemos devido a seu desaparecimento. Alguns dos benefícios que obtemos da biodiversidade incluem: alimentos, agentes de controle biológicos, pesticidas naturais, medicamentos e genes para a agricultura, entre outros. Essa visão é antropocêntrica, colocando a natureza como um instrumento para os objetivos do homem, que é quem lhe confere valor. Também obtemos outros serviços "gratuitos" como as funções ambientais, vida selvagem e opções de uso futuro. Existe ainda dentro do debate em favor da conservação, uma visão chamada de Ecologia Profunda (Deep Ecology) que argumenta que a Terra possui valor intrínseco de existência, sendo os homens parte "dela. A Deep Ecology confere à Natureza um valor de existência que não depende do homem. Muitos dos argumentos em favor da conservação discorrem sobre os benefícios da utilização da biodiversidade como fonte de alimentos para a humanidade: "Obtemos 85% de nossa alimentação direta ou indiretamente de apenas vinte tipos de plantas, e quase dois-terços de apenas três: mandioca, trigo e arroz."12 O valor comercial da biodiversidade para a indústria farmacêutica tem sido também um importante foco de interesse. Atualmente, aproximadamente 25% das receitas médicas emitidas nos Estados Unidos são preenchidas para remédios cujos princípios ativos são derivados ou extraídos de plantas.13 A Organização Mundial de Saúde estima que 80% das pessoas em países em desenvolvimento dependem da medicina tradicional para suas necessidades médicas. A tabela 2.1 demonstra a quantidade de ingredientes de plantas utilizados como medicamentos globalmente. A indústria farmacêutica participa ativamente da extração de recursos das florestas para pesquisa de novos componentes químicos para os medicamentos. A floresta é uma 12 Raven, P.: "Our diminishing tropical forests" em: Wilson, E.: "The diversity of Life" Harvard University Press, Cambridge 1992 13 Reid, Walter: "The economic realities of biodiversity" Winter 1993-1994 em: http://nightshade.cit.cornell.edu fonte importante para uma indústria que necessita de novos e cada vez mais complexos medicamentos. O potencial para a descoberta de novos compostos medicinais na natureza tem sido um dos mais poderosos argumentos por sua preservação: "O retorno potencial de uma droga espetacular fornece um argumento convincente para a identificação de preservação dos ecossistemas mais ricos em espécies do mundo." A indústria de medicamentos é mais dependente dos produtos naturais do que se pensa normalmente. Cerca de 121 remédios prescritos são derivados de plantas: Estes medicamentos incluem a morfina, quinino, codeína, entre outros. A despeito disso, o tesouro da natureza continua a desaparecer literalmente antes que tenhamos a chance de acessá-lo e novas drogas milagrosas continuam a ser descobertas. Alguns programas de conservação involvem cooperação com grupos conservacionistas locais a fim de isolar e identificar espécies para teste. Um exemplo interessante é o acordo entre a companhia farmacêutica Merck & Co. Com o Instituto Nacional de Biodiversidade (INBIO) da Costa Rica. A Merck estabeleceu um acordo com conservacionistas do INBIO que abrange tanto a obtenção de derivados de plantas para pesquisa e apoio para programas de conservação das florestas. A Merck se propôs a pagar US$ 1.135 milhões por 10.000 extratos de plantas.14 Os parceiros também estabeleceram um sistema de repartição das royalties, caso algum dos materiais seja comercializado. A Merck também fornece equipamentos para pesquisa ao INBIO e fundos para treinamento de pessoal em pesquisa e manejo das plantas. Em retorno, a Merck recebe amostras de plantas e insetos cujos componentes são examinados para utilização em novas drogas. Desta forma, o INBIO recebe fundos para a conservação e a Merck se beneficia dos processos de seleção natural em funcionamento na floresta. O que a Merck e a Costa Rica estão buscando é facilmente explicado por um caso famoso em Madagascar. Pesquisadores da Eli Lilly Farmacêuticos investigaram uma planta tropical chamada rosy periwinkle em 1958, seguindo conselhos de um xamã de uma tribo. As vendas globais do achado, duas drogas anti-cancer renderam a Eli Lilly 14 The Crucible Group:"People, Plants, and Patents: The impact of intellectual property on trade, plant biodiversity, and rural society" IDRC, Canada 1994 cerca de US$ 100 milhões por ano.15 O tratamento com os dois alcalóides (vinblastine e vincristine) tem aumentado em 70% as chances de cura para o mal de Hodgkin (um tipo de câncer) e em 99% para leucemia infantil. Cálculos sobre os benefícios econômicos gerados pela biodiversidade têm sido em sua maior parte baseados em nossa capacidade de gerar lucros através de atividades que produzam resultados mensuráveis em termos de valores de mercado. O turismo e os medicamentos são exemplos desta postura. No entanto, existem benefícios adicionais da biodiversidade que não são tão facilmente incluídos nas análises econômicas tradicionais, e estes podem ser chamados de serviços ambientais. Dada à dificuldade em transferir os serviços ambientais para valores de mercado, eles são freqüentemente ignorados em decisões políticas. Os serviços dos sistemas ecológicos e o estoque de capital natural que os produz e mantém são essenciais para a vida no planeta. Cálculos estimam o valor dos serviços ambientais como estando entre US$ 16 trilhões e US$ 54 trilhões por ano.16 A melhor estimativa está em US$ 33 trilhões. Isto representa quase o dobro do valor de toda atividade econômica humana por ano - o PNB de todas as nações do mundo é de cerca de US$ 18 trilhões. Estimar valores para serviços ambientais é uma tarefa complexa e as técnicas existentes de valoração nos permitem calcular somente o valor de uso conhecido de um recurso. Mas seu valor pode muito bem exceder aquilo, já que valores adicionais estão imbutidos num determinado recurso natural. Um valor adicional, aplicável a formas de vida, é seu valor intrínseco enquanto seres vivos. Outra fonte de valor, é a incerteza quanto a seu valor de uso futuro, e a sua perda irreversível. Por exemplo, a cultura e o conhecimento dos povos que dependem da floresta que desaparece é também um outro valor irrecuperável. Pode-se afirmar, portanto, que as incertezas que permeiam as estimativas de valor para a natureza e a dificuldade em formar preços de mercado que reflitam de forma justa todos os seus valores representam um obstáculo para os que defendem o mercado como a solução para a preservação da natureza. 15 Bryant,P.: "Values of Biodiversity" University of California, Irvine, 1997 Constanza et. Al.: "The value of the world's ecosystem services and natural capital" em Nature vol. 387 p. 253 14/05/1998. 16 IV. Conservação e Desenvolvimento Sustentável Grande parte da biodiversidade que resta no planeta concentra-se em países em desenvolvimento, especialmente naqueles onde ainda existem florestas tropicais. Dado o valor crescente da biodiversidade para a indústria e seu estoque decrescente, não é de surpreender que países ricos em biodiversidade procurem lucrar com a situação. Pode-se argumentar que iniciativas de preservação da biodiversidade deverão levar em consideração as necessidades de desenvolvimento econômico por parte do país de origem, contribuir para a manutenção das funções ambientais da fonte de recursos, ao mesmo tempo em que gera lucros para a indústria. Esta seria uma situação do tipo "ganha-ganha" para a biodiversidade, apesar de as chances de atingir esse estado sejam ainda remotas. As chamadas alternativas "sustentáveis" de desenvolvimento e conservação, sugerem a criação de um sistema econômico mais equilibrado, onde a integridade dos ecossistemas seja mantida, ao mesmo tempo em que as necessidades humanas presentes sejam atendidas sem comprometer as necessidades humanas futuras. Muitos autores defendem o papel importante das populações tradicionais na busca por um tipo de desenvolvimento menos predatório e mais em harmonia com a natureza. A explicação pode ser dada pelo ajustamento de cada espécie viva a seu meio, adaptando-se às condições ambientais do lugar em que vive: "Todas essas pessoas, que vivem totalmente na floresta e em sua dependência, são as únicas que dominam a arte de explorar a floresta tropical em uma forma realmente sustentável, graças a uma enorme quantidade de conhecimento prático..."17 A indústria farmacêutica já demonstra reconhecimento crescente do papel do conhecimento tradicional para a medicina. A Shaman Pharmaceuticals Inc., tem seu nome inspirado nos homens shamans da floresta, os quais possuem um vasto conhecimento sobre o uso de plantas com fins medicinais. Através do conhecimento desses shamans, os cientistas esperam reduzir os custos de pesquisa para identificar plantas com propriedades medicinais. Como resultado de seus esforços de pesquisa nos últimos anos, a Shaman 17 World Resources Institute 1991-1992: "Conserving Cultural diversity" Washington, D.C. 1992 Pharmaceuticals patenteou duas drogas anti-vírus para um mercado-alvo de mais de US$ 1 bilhão/ano.18 Pode-se afirmar que a adaptação do homem aos diversos ambientes que ele ocupa na Terra é também cultural. Cada povo, vivendo em um determinado meio físico e biológico, desenvolve sua própria cultura, como forma de adaptação ou ajuste às peculiaridades de seu meio. De acordo com Posey19, a criação de ilhas nas florestas (apêtê) pelos Gorotire Kaiapó da Amazônia é um exemplo de como os índios podem alterar e manejar um ecossistema para aumentar a diversidade biológica. À medida que o conhecimento tradicional e a biodiversidade tornam-se cada vez mais reconhecidos como fenômenos complementares na busca pelo desenvolvimento sustentável, novas estratégias de conservação passam a incentivar uma maior participação das comunidades locais no manejo de seus recursos naturais. Deve ser observado, no entanto, que muitas dessas estratégias tendem a assumir que o incentivo financeiro é suficiente para convencer as comunidades a preservar a biodiversidade: "Muitas ações que podem ser tomadas a fim de evitar a perda da biodiversidade fornecem benefícios econômicos de curto-prazo - diga-se, manter as florestas naturais para que espécies selvagens possam ser colhidas para alimentação, remédios e produção industrial ou estabeler áreas de proteção para que turistas as visitem."20 Alguns ainda consideram o comércio como forma de ajudar na otimização da eficiência com que os recursos naturais são usados, no que consideram um requisito crucial para alcançar o desenvolvimento sustentável. A argumentação seria que o comércio proporcionaria maiores influxos financeiros para custeio de atividades ambientais e de tecnologia, o que incentivaria o desenvolvimento de novas tecnologias "limpas". Para Cooper, o problema da ênfase excessiva sobre a conservação dos recursos naturais é que aqueles que mais têm se beneficiado de sua utilização não são os guardiões 18 Goldfarb, T.: "Taking sides: Clashing views on controversial environmental issues" ed.(7) Dushkin/McGraw-Hill Companies, 1997 19 Posey, D.:"Alternatives to forest destruction: Lessons from the Mêbêngôkre Indians" The Ecologist, 19 (6) Nov/Dec 1989 pp. 241-244. Uma crítica ao trabalho de Posey foi feita por Eugene Parker: "Forest Islands and Kayapó resource management in Amazônia: A reappraisal of the Apêtê" American Anthropologist, 94 , 1992 pp.406-427 20 WRI (1989) citado em Gray, A: "Indigenous peoples and marketing of the Rainforest" Friends of the Earth, 1990 dessa biodiversidade, mas sim aqueles que possuem a tecnologia e acesso aos mercados necessários para desenvolver e lucrar com ela. Nas florestas tropicais do mundo, os povos indígenas ainda lutam pelo reconhecimento de seus direitos sobre a terra que ocupam e por autonomia. Eles são os descendentes dos habitantes antes da colonização cujos direitos ainda não estão totalmente reconhecidos. Eles não estão sozinhos na floresta. Pelo contrário, dividem terras com novos assentamentos, trabalhadores rurais, madeireiros, garimpeiros e mineradoras. É importante lembrar que o comércio não é um componente estranho à maioria sociedades indígenas. De fato, os povos tribais vêm comercializando e trocando há séculos. No período colonial, as florestas tropicais já representavam uma fonte importante de matérias-primas para os mercados europeus. Não havia preocupação com a conservação e o aumento da demanda no mercado internacional resultou na extração de recursos até a extinção. A extração desenfreada da borracha e do marfim, por exemplo, praticamente erradicou os seringais e elefantes em áreas extensas. Os povos da Amazônia foram inicialmente atraídos para a economia de mercado durante o ciclo da borracha de 1894 a 1914. A fim de atender à crescente demanda por pneus, esses povos foram forçados por dívidas ou escravidão. Naquele sistema, mercadorias eram fornecidas a preços altos através de crédito em troca da borracha. Pode-se afirmar que os impactos do ciclo da borracha sobre os povos indígenas foram mais sérios que seus danos ambientais. Expulsão, assassinatos, e doenças causaram a perda de noventa e sete por cento da população.21 Quase dois séculos de colonização destruíram aquelas sociedades ao tornar economias de subsistência baseadas na produção de alimentos em economias totalmente voltadas para a extração de matérias-primas para o mercado. O desenvolvimento e implementação de estratégias eficazes para reduzir ou reverter a destruição da floresta tem sido foco de controvérsia. Entre as propostas estão muitas estratégias de "marketing verde" cujo objetivo é aumentar o valor de produtos que podem ser produzidos da floresta de uma maneira sustentável. Esse seria um meio de incentivar empresários a preservar a floresta ao invés de derrubá-la. A próxima parte examina uma das chamadas estratégias de marketing "verde": A Colheita da Floresta (CF). O marketing de produtos florestais sustentáveis oriundos de reservas extrativas tem sido colocado por algumas agências ambientais e de desenvolvimento como a chave que conciliaria os interesses de conservação e desenvolvimento econômico nas florestas tropicais. V. O marketing verde na Floresta: O Conceito da "Rainforest Harvest" A "Sustainable Harvest" ou "Colheita da floresta" baseia-se no princípio do extrativismo. Produtos florestais extraídos de forma sustentável são produtos que podem ser extraídos causando menor ou nenhum impacto sobre o ecossistema, tais como frutas, plantas medicinais, látex, castanhas, resinas e óleos. Os produtos florestais sustentáveis, ou produtos não-madeireiros (PNM's), têm sido investigados como uma alternativa à outras formas de geração de renda não sustentáveis, como a exploração da madeira.22 Alguns consideram a "Colheita da Floresta" como a solução para o problema da destruição das florestas tropicais: "Sem dúvida, a extração sustentável de recursos não-madeireiros representa o mais imediato e lucrativo metódo para integrar uso a conservação das florestas da Amazônia..."23 Apesar de já existir um certo consenso sobre a necessidade da sustentabilidade, a comercialização dos PNM's ainda têm sido foco de controvérsia. O debate é comandado por dois grupos sediados em países desenvolvidos e líderes na área de direitos indígenas, Cultural Survival e Survival International. Com o objetivo de auxiliar as comunidades indígenas em seus esforços por garantir seus direitos à terra, autonomia e cultura, Cultural Survival - uma organização não governamental sediada em Boston - criou a Cultural Survival Enterprises (CSE) em 1989. A CSE promove ativamente o marketing e o consumo de produtos da floresta como forma de gerar a renda necessária para as comunidades locais ao mesmo tempo em que protege o meio-ambiente. A CSE acredita que desenvolver mercados para produtos oriundos de 21 Posey, D.:"Alternatives to forest destruction: Lessons from the Mêbêngôkre Indians" The Ecologist, 19 (6) Nov/Dec 1989 pp. 241-244. 22 O estudo de Poore et al para a ITTO concluiu que "menos de um oitavo de um por cento das florestas tropicais onde a exploração de madeira é feita comercialmente está sendo explorado de forma sustentável." Em: "No timber without trees: Sustainability in the tropical forest : A study for ITTO" Earthscan, London 1989 p.18 reservas extrativas cria um incentivo econômico convincente para produtores locais, governos, ONG's, agências financiadoras e bancos de desenvolvimento. A CSE acredita, portanto, que as florestas precisam ser utilizadas econômicamente para que sejam preservadas: "Ao desenvolver e expandir mercados para os PNM's esperamos fornecer um exemplo financeiramente convincente para produtores locais, governos do primeiro e do terceiro mundo, ONG's, agências financiadoras e de desenvolvimento internacionais, mostrando que as florestas são melhor protegidas ao dar a seus residentes fontes de renda sustentáveis."24 A CS decidiu não trabalhar com produtos madeireiros, alegando que ainda se preocupa com a questão da sustentabilidade da extração de madeira. Da mesma forma a organização decidiu não comercializar plantas medicinais até que a questão os retornos financeiros à comunidades de origem - atráves de patentes e royalties - sejam negociados. Do outro lado do debate, a Survival International expressa sérias restrições sobre o marketing "verde" na floresta. De acordo com Stephen Corry da Survival International, a moda dos produtos florestais sustentáveis desvia a atenção pública de questões mais críticas, como por exemplo, o direito histórico de posse dessas comunidades sobre a terra que ocupam: "Até o momento, a colheita da floresta não fez nada para capacitar os povos indígenas ou para proteger as florestas; pelo contrário, a colheita tem desviado a atenção pública de problemas mais críticos, como a demanda por seu direito à terra."25 Terence Turner, da Universidade de Chicago, acusa a estratégia de marketing verde de ser uma síntese de liberalismo de mercado com ativismo em defesa do meio ambiente e da sobrevivência das culturas e dos povos da floresta.26 Jason Clay, ex-diretor da Cultural Survival, argumenta que a renda obtida da floresta raramente ultrapassa uma fração do que seria possível. Clay defende o marketing 23 Peters et al.: "Valuation of an Amazonian Rainforest" Nature - vol. 339 nr.29 Junho de 1989 pp. 655-656 Clay, J.: "Some general principles and strategies for developing markets in North America and Europe for non-timber forest products" Lessons from Cultural Survival Enterprises 1989-1990 in Advances of Economic Botany, 9 pp.101-106 The New York Botanical Garden, 1992 25 Corry, Stephen: "The Rainforest Harvest: Who reaps the benefit?" The Ecologist, vol.23 (4) July/August 1993 pp. 148-153 26 Turner, T.: "Neoliberal Ecopolitics and Indigenous peoples: The Kayapo, the "Rainforest Harvest, and The Body Shop" Yale F& ES Bulletin number 98 Yale University, New Haven, 1995 24 verde como forma de propiciar a essas comunidades mercados e incentivos, ao mesmo tempo em que leva aos consumidores em potencial o conhecimento sobre a existência desses produtos. Para Stephen Corry da Survival International, o mercado não substitui mudanças políticas: "Vamos realmente deixar que as empresas e o lucro imponham estratégias e objetivos de conservação e direitos humanos?"27 Corry argumenta que estratégias de comercialização só terão chance de sucesso se partirem da própria comunidade, a quem cabe julgar quais iniciativas mais se adaptam à sua situação econômica e social. Tais empreendimentos seguiriam o padrão já existente, ou seja, projetos de pequena escala e que fornecem mercadorias e artesanato a um mercado local. Corry argumenta ainda que a estratégia de marketing verde implica necessáriamente a produção para um comprador externo que controla o projeto e que utilizará a matériaprima na produção de doces, cremes condicionares para cabelo, e até comida de cachorro. Corry continua defendendo os projetos locais de pequena escala ao afirmar que "ninguém jamais propagou a idéia atraente de que projetos de comercialização regionais e de pequena escala ajudarão a preservar a floresta tropical."28 Torna-se claro, portanto, que no campo da teoria o futuro da "Colheita da Floresta" ainda é incerto. Apesar do senso comum quanto à necessidade de sustentabilidade, o palco da discussão é controverso. Faz-se importante, porém, ouvir as opiniões das comunidades envolvidas na questão. A próxima parte examina dois casos na Amazônia brasileira; O primeiro refere-se a um acordo comercial iniciado em 1989 entre a Body Shop e duas minúsculas aldeias Kaiapó e o segundo caso aborda a estratégia de marketing da Ben & Jerry's, ao lançar seu sorvete, o "Rainforest Crunch". 27 Press Release from Survival International: Rainforest projects harm, not help indian communities" Junho 15, 1992. Para a resposta da Body Shop às acusações de Corry ver: Roddick, Gordon. Carta ao editor, "The Body Shop repplies" The Ecologist, v.23 n.5 Set/Out 1993 pp. 198-200 28 Corry, Stephen: "The Rainforest Harvest: Who reaps the benefit?" The Ecologist, vol.23 (4) July/August 1993 pp. 148-153 6. Estudos de Caso A Body Shop e os Kaiapó A história da Body Shop no Brasil se inicia em Fevereiro de 1989, durante o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, realizado em Altamira, Pará. Cerca de 700 índios, na sua maioria Kaiapós, e representantes de outras 20 nações indígenas da Amazônia, do México, Canadá e Estados Unidos pressionavam o Banco Mundial a cancelar o financiamento ao governo brasileiro para a construção de duas usinas hidrelétricas no Rio Xingu, o qual corta o território Kaiapó. O líder dessa campanha era o carismático Paulinho Payakan, que viajou pela Europa e Estados Unidos em 1988 na tentativa de obter fundos e apoio político para o evento. A campanha em Altamira foi um sucesso de mídia. Como observadores do encontro participaram jornalistas das agências Associate Press, UPI e France Press, além de outros órgãos de comunicação do Brasil e do exterior, parlamentares brasileiros e europeus, representações brasileiras, organizações não-governamentais e ainda empresários da Europa e dos Estados Unidos interessados na causa indígena e na preservação da Amazônia. A fundadora da empresa britânica de cosméticos The Body Shop, Anita Rodick, esteve também presente ao evento. Rodick doou dinheiro, em nome da Body Shop, para financiar ONG's brasileiras cuja atuação foi importante para fazer de Altamira um sucesso. De volta a Inglaterra, Anita criou a Fundação Body Shop, iniciando uma campanha de arrecadação de fundos para ajudar Paulinho Paiakan, que naquele momento alegava estar sendo jurado de morte por fazendeiros. De imediato Anita recebeu US$ 800 mil em doações.29 Com o dinheiro das doações Anita criou a Fundação Body Shop, comprou um avião monomotor Cessna 206 para a aldeia de Payakan (A-Ukre) e financiou os investimentos iniciais para a montagem da unidade de produção de óleo de castanha da aldeia A-Ukre, contratou um consultor para seus negócios no Brasil e fez algumas doações para ONG's no Brasil. O objetivo era ajudar os índios a ganhar dinheiro sem destruir os recursos naturais de suas terras e criar uma alternativa à exploração ilegal de ouro e madeira. 29 Petean, S.: "Body Shop no Brasil: Se ficar o bicho come e se correr o bicho pega!" Instituto SocioAmbiental, Outubro 1997 Muitos autores questionam as reais intenções da Body Shop ao firmar acordos comerciais com os Kaiapó. Christoffersen e outros,30 num artigo para a revista Dinamarquesa Mânedsbladet Press, sugerem que a enorme exposição dos Kayapó na mídia na época incentivou a Body Shop a associar sua imagem à causa daquele povo. O fenômeno "Kayapó" na época fica claro num artigo do "The Wall Street Journal": "No final dos anos 80 os caiapós saltaram no centro do debate internacional sobre o meio ambiente. Adotando uma posição apaixonada contra um projeto de hidrelétrica que poderia Ter submergido uma vasta extensão da floresta tropical, os caiapós emergiram como ícones do movimento verde em todo o mundo..."31 A Survival International, em um relatório preparado para o Ethical Investiment Research Service (EIRIS) em 1994, também questiona as reais intenções da Body Shop ao escolher os Kayapó para seus projetos. De acordo com a Survival International, os Kayapós já eram um grupo indígena privilegiado, com certa renda financeira obtida através da exploração de madeira e minérios, e já possuía um avião. "Os Kayapó eram (e são) o único grupo indígena no Brazil que possui um avião bem como o único grupo que tem uma considerável renda. Então porque, imaginamos, escolher os Kayapó?.."32 Os Mebengokre (Kayapó) são aproximadamente 4.500 índios distribuídos em 20 aldeias ocupando sete reservas que cobrem uma área de cerca de 120.000 quilômetros quadrados ao sul do estado do Pará e norte do estado do Mato Grosso. Cada aldeia corresponde a uma unidade política e econômicamente independente. Eles se autodenominam "men bengokre" que significa "gente do espaço dentro da (s), ou entre a (s) água (s)". Sua organização social é caracterizada pela residência matri-uxorilocal e a oscilação entre expedições de grupos de caça e aldeias de base e instituições com ênfase em categorias de idade, associações comunitárias e estrutura de metades. A produção deste 30 Christoffersen, N., Lund I., Mulvad, E.: "The dream company: The Body Shop" Mânedsbladet Press, vol. 101 Abril 1994 31 FSC Social Working group Brazil: "Presentation of a case-study: The Brazil nut oil production and exportation by the Mebengokre indians of Pukanu village" 25-26 de Abril de 1997 32 Survival International: "Survival International's contacts with the Body Shop" Documento preparado a pedido do Ethical Investiment Research Services (EIRIS) Outubro de 1994 sistema de relações é orientada pela busca de valor pessoal por parte dos indivíduos mebengocrés homens e mulheres. Antes do contato com a sociedade envolvente na década de 50, os mebengocrés utilizavam a castanha como alimento. O óleo da castanha era usado para massagem corporal como tratamento para o esgotamento físico e nervoso. Os frutos da castanheira são coletados nos meses de fevereiro e março depois que caem no chão da floresta. Nas últimas décadas, os contatos comerciais com o mundo externo se intensificaram. Serrarias e madeireiros começavam a avançar em áreas indígenas na época da chegada da Body Shop, unindo-se a garimpeiros já instalados. A atividade madeireira e o garimpo causaram inúmeros impactos negativos sobre o meio-ambiente, a estrutura social, cultural e a saúde dos índios. A busca por novos caminhos de desenvolvimento dentro da economia externa com a qual os índios se relacionam de uma forma ou outra tem surgido como um desafio importante. Vários grupos e organizações indígenas sugerem a busca por alternativas econômicas - e por isso querem dizer alternativas à venda de terras, madeiras duras preciosas e minerais, especialmente ouro. Em meados de 1990, Saulo Petean, o representante administrativo e consultor da Body Shop no Brasil, iniciou o processo de criação de duas fábricas para a produção do óleo de castanha para exportação, trabalhando inicialmente com a aldeia A-Ukre e em seguida com a Pykany. Em termos gerais, os processos de implementação das duas fábricas foram semelhantes. Cumpridas as providências administrativas que asseguram o funcionamento das empresas no Brasil (registro nos órgãos federais, estaduais e municipais), o conjunto de atividades envolvendo a produção e comercialização do óleo de castanha, bem como os investimentos e a distribuição dos lucros obtidos com esse trabalho é regulado pelas regras próprias da organização social da comunidade. O estabelecimento das fábricas exigiu assistência técnica externa, e os custos referentes aos salários do representante no Brasil e do pessoal na Inglaterra, bem como as despesas correntes foram financiados pela Body Shop. Ambas as empresas são constituídas por pessoal administrativo, mas os mais importantes são o "Presidente" (Payakan na A-Ukre e Pukati-Re da Pykany) e os "diretores" - rapazes das respectivas aldeias. De acordo com um estudo de caso em Pykany, 33 a organização da produção, comercialização e o gerenciamento dos recursos é comunitária e a distribuição individual dos lucros é realizada segundo a participação de cada membro no trabalho de coletar a castanha na floresta (medida em sacos coletados), na produção de óleo de castanha, na exportação e gerenciamento do negócio (medido em dias de trabalho). O projeto da Body Shop com os Kayapó é o foco de sua estratégia batizada de "Trade, Not Aid" (Comércio, ajuda não) que se insere no conceito da "Colheita da Floresta". O interesse comercial da Body Shop está em divulgar o marketing de empresa ética e socialmente responsável. O rótulo impresso do condicionador de cabelo feito à base de óleo de castanha vendido pela empresa enfatiza, "ao comprarmos óleo de castanha dos índios kayapós estamos possibilitando-lhes um ingresso de dinheiro que os ajuda a defenderem suas terras e o seu meio ambiente". A eficiência desta estratégia de mercado é contabilizada nas vendas do "Brazil nut conditioner", um condicionador para cabelo. O produto está entre os quatro mais vendidos da empresa desde o seu lançamento. A Body Shop figura vendas na Inglaterra de US$ 8.273.600 entre 1991 e 1996 e um lucro de US$ 1.241.040. As vendas em outros países trouxeram para a companhia um lucro aproximado de mais de US$ 3 milhões no mesmo período.34 Os objetivos dos projetos "Trade not Aid" da Body Shop incluem: a independência dos habitantes através do controle da produção e distribuição da renda dos projetos, sua integração justa como parceiros iguais no comércio internacional, e a oportunidade de uma alternativa econômica que os torne independentes de atividades que destroem o meio ambiente, como a extração e venda de madeira e o garimpo. 33 FSC Social Working group Brazil: "Presentation of a case-study: The Brazil nut oil production and exportation by the Mebengokre indians of Pukanu village" 25-26 de Abril de 1997 34 Idem Os projetos da Body Shop extendem-se a comunidades em várias partes do globo. A imagem propagada pela Body Shop de empresa ética e socialmente responsável tem sido alvo de constantes ataques: "A Body Shop não merece a imagem de 'uma das companhias mais socialmente responsáveis do mundo'"35 Os ataques à estratégia de "Trade, not Aid" (Comércio, Ajuda Não") da Body Shop se direcionam a diversos pontos. Um deles se refere à política de preços praticada pela Body Shop junto às comunidades onde atua. Segundo os críticos, a empresa não paga "salários de primeiro mundo" conforme declara em sua publicidade. De acordo com Entine, 36o projeto da Body Shop com os Nañuhu no México é um exemplo interessante. O antropólogo da organização não governamental Mexicana que administra os projetos afirma que a empresa paga menos que outros compradores, insistindo em um "disconto por volume". O relatório independente do Ethical Investiment Research Services (EIRIS)37 revelou que a Body Shop pagou cerca de 0.3 % do total de suas vendas mundiais de 438 milhões de libras esterlinas para seus produtores dos programas de "Comércio, Ajuda Não". O EIRIS compara esse valor com os 31% pagos pela Tradecraft, uma companhia importante na área de Fair Trade (Comércio Justo) na Inglaterra. No caso de seu projeto com os Kayapó no Brasil, a Body Shop estabeleceu o preço de US$ 35 por quilo do óleo e o volume máximo de 2.000 quilos por aldeia. De acordo com Saulo Petean, num depoimento que escreveu após desligar-se de suas tarefas com a Body Shop em 1995,38 a promessa inicial da Body Shop aos índios foi a de que compraria anualmente a quantidade produzida, qualquer que fôsse essa quantidade. Petean afirma existirem vídeos produzidos pela Body Shop onde Anita Rodick confirma a promessa. O teto foi, conforme já mencionado, fixado em 2.000 kg por ano e a Body Shop se recusou a atender o pedido da aldeia Pycany de elevar o teto para 3.500 kg em 1995. A Body Shop também foi criticada por utilizar uma fração ínfima de seus ingredientes dos projetos "Trade, Not Aid" em seus produtos, apesar da publicidade pesada 35 Moberg, David: "Skin Deep" In These Times, 19 de Setembro de 1994 Entine, J.: "Shattered Image" em Business Ethics Magazine, Set/Out 1994 pp. 23-26 37 Zagor, K.: "Fairly Green but not Pristine" em The Guardian 10 de setembro de 1994 p.23 38 Petean, S.: "Body Shop no Brasil: Se ficar o bicho come e se correr o bicho pega!" cópia da carta gentilmente cedida pelo Instituto SocioAmbiental, São Paulo. 36 sobre esses projetos. A própria Body Shop admite isso, "Apesar do fornecimento direto dessas comunidades representar atualmente uma percentagem pequena de nossos negócios, nós pretendemos aumentar essa prática assim que possível."39 Richard Adams, da organização inglesa de pesquisa New Consumer, criticou a Body Shop por utilizar em seus produtos uma fração muito pequena de ingredientes vindos das comunidades onde atua. Baseado nos números fornecidos pela Body Shop, Adams calculou que apenas 0.165% do valor bruto das vendas retornavam aos bolsos dos produtores dos projetos "justos".40A quantidade desses ingredientes já foi criticada por ser de eficácia nula. Adam calcula que apesar da publicidade pesada sobre seus projetos com os Kayapó, o óleo de castanha constitui apenas 1% dos ingredientes em produtos da Body Shop que contém óleo de castanha.41 Adams revela ainda que uma grande parte desse óleo é fornecido por fontes comerciais normais e não dos Kayapós ou outros grupos indígenas. Uma outra grave acusação sobre as estratégias e intenções da Body Shop refere-se ao uso da imagem dos índios em sua publicidade. Alguns alegam que o objetivo do projeto da Body Shop com os Kayapós era utilizar o potencial de relações públicas propiciado por sua associação com os Kayapós. O valor principal dos Kayapós para a Body Shop seria, portanto, a publicidade que eles oferecem , não a quantidade relativamente pequena de óleo que produzem. A nota quatro de um estudo de caso premiado em Novembro de 1996 pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola das Nações Unidas (FIDA) na conferência eletrônica Fidamérica, é esclarecedora: "Enquanto a Body Shop obteve com a venda do "Brazil nut conditioner" um lucro líquido de aproximadamente US$ 4 milhões durante os quatro anos de negócios com as aldeias AUkre e Pycany, as duas comunidades obtiveram um lucro líquido em torno de US$ 400 mil. A conta de quanto a Body Shop obteve através da campanha publicitária com a marca 39 Bavaria, J., Becker, E. e Billeness, S.: "Body Shop scrutinized" tirada de Insight, 15 de setembro de 1994, publicada por Franklin Research 40 Idem 41 Moberg, David: "Skin Deep" In These Times, 19 de Setembro de 1994 kayapó é difícil de ser contabilizada. Estima-se que é superior aos lucros obtidos com a venda do ' Hair nut conditioner'."42 Para Terence Turner, da Universidade de Chicago, o trabalho da Body Shop com os Kayapós não passa de um jogo de relações públicas que promove a imagem da Body Shop enquanto oferece pouco em troca aos índios. A Body Shop tem usado de forma extensiva a imagem dos índios em suas lojas e panfletos. Em resposta às acusações sobre o uso indevido da imagem dos índios, a Body Shop afirma que paga preços acima de mercado que compensam os índios pelo uso de sua imagem e pelo uso de seu conhecimento tradicional de recursos com potencial de mercado. Turner argumenta que não existe um preço de mercado para o óleo da castanha já que existe somente um produtor mundial do óleo da castanha brasileira no mundo. A Body Shop é o único comprador conhecido para o óleo da castanha.43 A questão da dependência dos índios é importante. Os índios produzem um único produto para o qual a Body Shop é provavelmente o único comprador. O relatório comissionado e surpreendemente não publicado pela Body Shop nas aldeias Pykany e A-Ukre em setembro de 1995 afirma que: "Em um momento, a Body Shop propôs que do preço pago (na época em US$ 35), US$ 15 seria para o óleo e US$ 20 para o uso do nome e da imagem dos Kayapós no marketing mas o acordo não foi implementado. Pelo que os índios sabem, o preço pago é somente para o óleo."44 Os desentendimentos quanto aos direitos dos índios sobre o uso de sua imagem e a questão da propriedade intelectual têm sido uma constante. Para Turner, a Body Shop falhou ao não remunerar os índios de forma justa pelo uso de sua imagem e por não deixar clara a importância do uso dessa imagem para seus projetos. O relatório commissionado em 1995 pela Body Shop admite que, "na verdade, parece haver pouco entendimento entre os líderes indígenas entrevistados - com exceção de Paiakan - sobre o que significam "Direitos à Propriedade Intelectual..."45 42 Gamboa, A., L'Amoreaux,C., Dotô Takak-ire, Pykati-re Kayapo, Athias,R., Petean, S.;"Pycany Trading Company: A comercialização de castanha pelos mebengocrés (caiapós) da aldeia Pucanu, área indígena Mecranoti, Brasil" Texto premiado em 1 de novembro de 1996 na Fidamérica. 43 PIB/CEDI 1991 citado em: "Povos indígenas do Brasil 1991/1995" Instituto SocioAmbiental, São Paulo 44 Stocker,P., Almeida,R., Ferraz, I.: "An evaluation of the trade not aid links between The Body Shop and the Kaiapó communities in Pará and Mato Grosso states - Brazil" Setembro de 1995 45 Idem. Nota 3.52 pp. 26 Poucos discutiriam o fato de que o retorno de imagem obtido pela Body Shop através de sua associação com a causa dos índios tem sido substancial. O crescimento da influência dos "consumidores verdes" para preservar as florestas tropicais e proteger as populações locais sugere uma explicação mais que óbvia para o interesse da Body Shop em negociar com essas comunidades. Calcula-se que Anita Rodick faturou US$ 600 mil pelo anúncio que fez para a American Express Cards, enquanto os quatro índios que a acompanhavam embolsaram juntos US$ 1.632,50 pelo uso de suas imagens.46 Em maio de 1993, na conferência sobre "Direitos à Propriedade Intelectual, Culturas indígenas, e Conservação da Biodiversidade", em Oxford, Inglaterra, a Body Shop anunciou a criação de seu contrato de parceria entre os índios Kayapós e a Body Shop plc. Uma nota da Fundação para Etnobiologia afirmou: "A Body Shop International lança um plano corajoso de ser a primeira empresa a assinar um acordo de Direito à Propriedade Intelectual com um grupo indígena - neste caso, os índios Kayapó do Brasil... Este contrato ... tem como objetivo proteger os produtos e moléculas retirados pelos Kayapós, e desenvolvê-los comercialmente em seu benefício."(divulgação da Fundação para Etnobiologia, 14/5/93) De acordo com Turner, esse contrato formal nunca foi assinado pelos Kayapós. Saulo Petean, o gerente da Body Shop no Brasil afirmou que apesar dos anúncios feitos pela Body Shop sobre ser ela a primeira empresa a assinar um contrato que incluía os direitos à propriedade intelectual dos índios, o contrato formal nunca existiu e nenhum pagamento relativo a tais direitos foi feito aos índios. Alguns questionam as reais intenções da Body Shop ao anunciar suas intenções de proteger os direitos à propriedade intelectual dos índios. A Body Shop já havia revelado que não tinha intenção de expandir seus projetos a outras aldeias Kayapó e que não compraria quantidades adicionais de óleo de castanha porque não poderia usá-las, mas que ajudaria os Kayapós a encontrar novos parceiros comerciais. Para Turner, a Body Shop pretende fazer esse "favor" aos Kayapó em troca de ser o intermediário entre as comunidades e seus novos parceiros comerciais. Conforme mencionado anteriormente, por vários anos tem havido uma corrida mundial pela 46 Petean, S.: "Body Shop no Brasil: Se ficar o bicho come e se correr o bicho pega!" cópia da carta gentilmente cedida pelo Instituto SocioAmbiental, São Paulo. descoberta e controle comercial de produtos valiosos para a medicina. Essa corrido está sendo provocada pelo desenvolvimento da Biotecnologia e da Engenharia Genética. O projeto da Body Shop também tem sido acusado de promover rupturas internas nas aldeias. Apesar de já haver tensões anteriores à entrada da Body Shop, as atividades da empresa causaram impactos sobre a organização social dos grupos envolvidos. Um exemplo foi a obtenção de privilégios por parte dos homens mais jovens em detrimento dos mais velhos. Os Mekranyre, ou homens mais jovens, são considerados pelos Kayapó como um grupo etário "inferior". A despeito disso, eles se tornaram diretores das empresas em AUkre e Pycany, com acesso a dinheiro e competem com os homens mais velhos ou guerreiros, que são aqueles que tradicionalmente organizam a sociedade Kayapó. O relatório commissionado pela Body Shop em 1995 admite que a criação das empresas comerciais nas aldeias não foi uma iniciativa tomada após uma discussão cuidadosa com os índios - somente com alguns de seus líderes. Ao examinarmos as críticas e a troca de acusações entre a Body Shop e seus "inimigos" fica claro o silêncio dos índios no debate. A Body Shop afirma que seus parceiros na Índia, Nepal e México estão claramente satisfeitos com seu contato com a empresa: "Se a Body Shop saísse e não nos desse mais trabalho, as famílias e comunidades envolvidas ficariam com sérios problemas."47 A declaração acima nos deixa com a clara impressão de que essas comunidades já estão com sérios problemas e desesperadas por qualquer fonte de renda extra. Como afirmou o chefe Kayapó Pykati-Re: "Nós queremos fazer o óleo porque precisamos do dinheiro e estamos desesperados. Mas meu povo está com raiva porque os benefícios do trabalho duro da colheita das castanhas chegaram a uma minoria."48 Até Paulinho Payakan, um dos iniciadores do acordo com a Body Shop, afirmou durante um encontro com outros caciques em 1996: "Nós pensamos que o acordo seria uma alternativa econômica para nos ajudar a preservar nosso ambiente e nos tornar economicamente independentes de nossos velhos inimigos. Mas não foi assim. Nós vemos 47 The Body Shop Social Statement - 1995, The Body Shop Inc. London, 1995 Gamini, Gabriela: "Sacked crusader for tribes wins Body Shop case " em The Times Saturday, 7/06/1997, London 48 esse acordo como negócios com pessoas que querem tirar lucro de nós. É só outra forma de exploração do homem branco."49 Para muitos autores, a tentação dos madeireiros e do garimpo é irresistível para os índios. Christoffersen e outros sugerem que será difícil que o projeto com a Body Shop supere os totais US$ 16 milhões obtidos pelos Kayapós pela exploração do ouro e da madeira. A existência de mercados estimula a exploração predatória de espécies valiosas como o mogno. Os índios vendem uma tora de mogno de 2,5 a 4 metros cúbicos por R$ 40 ( cerca de US$ 20). Essa mesma tora de 4 metros cúbicos beneficiada vale US$ 6 mil no mercado internacional.50 Ben & Jerry's : O sorvete "Rainforest Crunch" A iniciativa da fábrica de sorvetes americana Ben & Jerry's é um outro exemplo de implementação do conceito da "Colheita da Floresta". A Ben & Jerry's começou a produzir seu sorvete sabor tropical, o "Rainforest Crunch", em 1989. Conforme mencionado anteriormente, essa foi época em que o interesse pela preservação da Amazônia e de suas população explodiu nos países industrializados do Norte. A idéia de criar a Community Products Inc. em 1989 foi de Ben Cohen com o objetivo de aumentar a demanda para produtos da floresta tropical. As castanhas usadas no sorvete eram colhidas pelos integrantes da cooperativa dos povos da floresta na Reserva Xapurí. Essa cooperativa foi fundada com o intuito de melhorar os meios de produção e, conseqüentemente, a quantidade produzida. A Cultural Survival compra as castanhas dos produtores em Xapuri e os revendia para outras empresas, como a Rainforest Products Inc - que utilizava o produto em seu cereal matinal - e para a Community Produts. A Community Products Inc. declarou destinar 60% de seu lucro bruto51 para salvar a floresta tropical. Com relação ao fornecimento, a Ben & Jerry's também sofreu críticas. A alegação é de que no primeiro ano, a empresa comprou 100% das castanhas de fornecedores 49 Idem "Mercado estimula clandestinidade" em O Globo - Domingo 8/03/98 51 "Ben & Jerry's and Brazil" em http://www.gurukul.ucc.american.edu 20/08/98 50 comerciais normais, e não da reserva Xapuri.52 O mesmo artigo declara que no decorrer dos anos, a Ben & Jerry's comprou mais de 95% das castanhas de fornecedores comerciais normais. A Ben & Jerry's segue a estratégia de marketing da Body Shop nos pontos de venda. Na embalagem do sorvete está impresso que o sorvete "Rainforest Crunch" ajuda a mostrar que as florestas tropicais são mais lucrativas quando suas castanhas, frutas e plantas medicinais são cultivadas por métodos tradicionais de colheita do que quando suas árvores são derrubadas para ganhos imediatos. O caráter educacional da embalagem do sorvete da Ben & Jerry's também foi criticado. A empresa usa o termo "habitantes da floresta", que parece vago. De acordo com a Survival International, os consumidores são levados a acreditar que comprando o sorvete estariam ajudando tribos indígenas na Amazônia. Neste caso, os "habitantes da floresta" não são índios. Entine afirma em seu artigo53 que a "Colheita da Floresta" nunca atendeu às expectativas que criou e que a situação piorou quando grandes interesses comerciais passaram a inundar o mercado com castanhas, expulsando os pequenos produtores brasileiros e bolivianos do mercado. A diretora Michele McKinley, da Cultural Survival admitiu que a "Colheita de Floresta Tropical" da Ben & Jerry's fracassou.54 Em 1997, a Community Products declarou falência e foi comprada pela Rainforest Company, sediada em St. Louis, Missouri. De acordo com o relatório social da Ben & Jerry's de 1997, a Rainforest Company se comprometeu verbalmente a continuar comprando as castanhas dos produtores de Xapuri para a preparação do "Rainforest Crunch" para venda no varejo e para o sorvete da Ben & Jerry's. VI. Conclusão Restam poucas dúvidas de que a atividade econômica, integrada ao princípio da sustentabililidade, tem o potencial de gerar mudanças positivas, ao preservar a natureza e 52 Entine, J.: "The messy reality of socially responsible business" Magnet, Better World & BWZ 1995 disponível em http://www.betterworld.com 53 Idem 54 Ibidem melhorar a qualidade de vida das comunidades locais. Deve-se levar em conta, no entanto, a complexidade da questão de envolver empresas com fins lucrativos em projetos dessa natureza. O sucesso de estratégias sustentáveis dependerá em grande parte do comprometimento dos empresários com as seguintes considerações: 1 - A atividade comercial deverá ser mantida numa escala que não prejudique o equilíbrio do ecossistema. 2 - Os empresários deverão estar aptos a adaptar suas estratégias aos valores sociais e culturais da comunidade envolvida. Isso pode ser realizado através de convênios com instituições locais de pesquisa e profissionais especializados. 3 - Se empresas pioneiras forem bem sucedidas, novas empresas poderão ser atraídas para a região, exercendo maior pressão sobre ecossistemas fragilizados. 4 - A dependência da disponibilidade do consumidor em pagar um "prêmio verde" por um produto sustentável poderá não ser mantida por muito tempo. Além disso, o empresário deverá antecipar os efeitos do aumento da oferta de produtos da floresta no mercado, que reduzirão seus preços e conseqüentemente a parcela dos lucros repassada aos produtores. 5 - O empresário deve procurar evitar os custos decorrentes de formar longas cadeias de distribuição e outros custos. Isso poderá ser feito, por exemplo, através da formação de alianças com empresas locais e com o treinamento da mão de obra local. Um problema comum em muitas iniciativas de mercado é que a comunidade local não é preparada para assumir o controle das operações, ficando na dependência de um só comprador. 6 - O uso da imagem e do conhecimento tradicional dos povos locais deverá ser adequadamente remunerado e reinvestido na comunidade. 7 - Deve ser evitada, sempre que possível, a preferência por determinadas pessoas ao discutir os problemas da comunidade e ouvir sugestões. A opinião da maioria deverá ser a base das decisões relativas ao projeto. Pode-se afirmar que, as estratégias de mercado aqui examinadas falharam ao não considerar os direitos dos índios de decidirem seu próprio caminho de desenvolvimento. Ao invés de ganharem maior autonomia através da venda de seus produtos para um mercado internacional, os povos locais se tornaram ainda mais dependentes de forças de mercado fora de seu controle. Além disso, parece haver pouco conhecimento por parte das empresas da realidade social e culturar das comunidades onde atuam. A probabilidade de que tais projetos sejam aplicados de forma bem sucedida a outras comunidades é ainda remota. Isso pode ser explicado pelo pouco interesse demonstrado pelas empresas envolvidas em aumentar o número de comunidades participantes, comprometendo seriamente a sustentabilidade de tais projetos. Conforme mencionado anteriormente, empresas como a Body Shop e a Ben & Jerry's não procuram estender seus projetos a todas as comunidades, e sim a apenas aquelas cujo potencial de gerar publicidade seja significativo em determinado momento. Uma outra questão importante é que não existe absolutamente nenhuma garantia de que haverá um mercado eterno nos países importadores para produtos na moda, como sorvete tropical, guaraná e condicionar para cabelos de castanha do Pará. Em última instância, são produtos supérfluos sujeitos às variações de humor dos consumidores. Cabe aqui mencionar que, em nenhum momento, as reais forças propulsoras da destruição das florestas tropicais e as mudanças políticas necessárias à solução do problema são mencionadas. Uma válida pergunta seria como convencer os habitantes locais, cujo interesse principal é alimentar suas famílias, a sobreviver da pequena renda ainda gerada por alternativas econômicas sustentáveis? Alguns dos maiores responsáveis pela destruição do meio ambiente são, entre outros, as empresas transnacionais, madeireiras, serrarias, mineradoras, que, indiretamente, nós, consumidores, apoiamos quando adquirimos seus produtos. Iniciativas interessantes por parte de algumas organizações que apóiam o chamado "Fair Trade" (Comércio Justo), apontam para novas abordagens na busca de soluções econômica e ambientalmente sustentáveis para comunidades até então deixadas à margem do progresso. Bibliografia Goldfarb, Theodore (ed). Taking Sides: Clashing views on controversial enviromental issues. Dushkin/MacGraw-Hill, 7 ed. 1997 Carson, P & Moulden, J. Green is Gold: Business talking to business about the environmental revolution. Harper Collins Publishers Ltd., Toronto 1991 World Commission on Environment and Development. Our Common Future. Oxford University Press, 1987 Kirby & O"Keefe (eds). The Earthscan Reader in Sustainable Development. Earthscan, London 1995 Copper & Palmer (eds). 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