Os Sinóticos O Evangelho de Marcos

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Os Sinóticos
O Evangelho de Marcos - Pe. Tomaz Hughes SVD
Autor e Local:
Tradicionalmente se atribui essa obra a João Marcos, primo de Barnabé (Cl, 4,10) e
filho de Maria, uma das líderes da comunidade de Jerusalém (At, 12). Acompanhou
Paulo e Barnabé no início das suas viagens, mas separou-se deles (At 13, 4-4.13),
embora encontremos ele de novo junto a Paulo, quando este está na prisão (Cl 4, 10; Fm
14).
Marcos foi o primeiro dos quatro Evangelistas a escrever, provavelmente ao
redor do ano 70, ou em Roma, ou na Galiléia – não há consenso entre os estudiosos.
Tem o grande mérito de ter escolhido o termo “Evangelho” para a sua obra (Mc 1,1), e
assim nos dá uma dica importante sobre a nossa maneira de ler e refletir sobre o escrito.
Pois o termo, que vem do grego, quer dizer “Boa Notícia”. No tempo de Marcos era um
termo bastante usado pelo Império Romano, muitas vezes para anunciar o nascimento
de um filho do Imperador – pois o Império queria reforçar a ideia que o Imperador era
bondoso, protetor do povo, fiador da paz e até Salvador e Senhor. Quando Marcos
escolhe esse termo, ele está, contestando toda a base ideológica do Império opressor,
pois afirma que ele vai contar “A Boa Notícia (Evangelho) de Jesus, o Messias, o Filho
de Deus!” A Boa Nova não vem de um império explorador do povo, nem de César, mas
de Deus, através de Jesus, que mostra presente o Reino de Deus no meio do povo
sofrido.
Então devemos ler o Evangelho com essa ideia sempre nas nossas mentes – não
é “biografia” de Jesus, nem “reportagem” sobre Jesus, mas a “Boa Notícia de Jesus”. A
pergunta que deve sobressair quando lemos um trecho não é se aconteceu o evento
literalmente como está contado, mas “onde está a Boa Notícia de Jesus para nós hoje,
nesse texto”. Assim evitaremos discussões fúteis sobre coisas secundárias e
descobriremos o que o evangelista quer nos transmitir.
Motivo do Escrito:
O escrito é destinado aos cristãos já da segunda e terceira gerações. Jesus foi morto e
ressuscitado mais ou menos quarenta anos antes, e notava-se uma certa vacilação na fé
dos cristãos diante dos sofrimentos da vida e um resfriamento na sua adesão à vivência
do discipulado. Assim Marcos quer conduzir os seus leitores e ouvintes a aprofundar
duas questões fundamentais interligadas – “Quem é Jesus?” e “O que significa ser
discípulo/a dele?” Todos os relatos e narrativas do escrito nos conduzem para que
possamos responder essas perguntas com mais clareza, e continuar a seguir Jesus pelo
caminho hoje. Tenhamos essas perguntas na cabeça quando lemos e refletimos o
Evangelho.
Um Evangelho é uma obra literária, e como tal tem uma estrutura a serviço da
mensagem que deseja transmitir. Como Marcos quer levar os seus ouvintes/leitores a
clarificar duas perguntas básicas, “Quem é Jesus?” e “O que é ser seu discípulo/a?”, ele
organiza o seu material em função desta meta. Olhemos uma possível estrutura do
Evangelho:
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A obra inicia-se com uma introdução, Mc 1,1 -15, que situa Jesus no tempo de
João Batista, com o Batismo de Jesus no Jordão, quando ele recebe a assume a
identidade e missão do Servo de Javé: “Tu é o meu Filho (= Servo), em ti encontro o
meu aprazo” (I, 11). Assim, Marcos nos indica uma chave importante para entender
Jesus – a espiritualidade do Servo de Javé, especialmente como ensinado pelo profeta
Segundo-Isaías (os quatro Cantos do Servo). Também, de uma maneira sucinta ele
proclama o cerne da pregação e atuação de Jesus: “O tempo já se cumpriu, o Reino de
Deus está próximo; Convertam-se e acreditem na Boa Nova” (I, 15).
Continuando, Marcos divide a primeira parte da sua obra em três blocos, a saber:
(I) 1, 16 - 3, 6, que podemos descrever com a frase “As autoridades não entendem
Jesus”
(II) 3,7 - 6, 6ª, que podemos intitular “Os familiares não entendem Jesus”
(III) 6, 6b – 8, 21 que demonstra que “Os discípulos não entendem Jesus”
Assim, de uma maneira bem pedagógica, Marcos leva o leitor a pensar: “se nem as
autoridades, nem os familiares, nem os Doze entenderam Jesus, apesar de acompanhálo, ouvi-lo e observá-lo, será que eu o compreendo? Ou deverei mudar a minha visão de
Jesus e do seu seguimento?”
Com isso chegamos ao centro do Evangelho, ao redor de que gira o documento
todo. Podemos delimitar essa parte como sendo Mc 8, 22 a 10, 52. É um bloco coeso,
pois usa um instrumento conhecido como “inclusão”, quando um texto começa e
termina com histórias bem semelhantes. Esse bloco começa com a cura de um cego (8,
22-26, em Betsaida) e termina com a cura do cego Bartimeu (10, 46-52). No meio deste
bloco encontramos o texto central, o pivô do Evangelho, em Mc 8, 27-35.
Diante da falta do entendimento dos três grupos acima citados, Jesus agora muda
de tática – ele não anda mais com as multidões, mas se dedica à formação dos
discípulos. Também praticamente desiste dos milagres – depois da cura do Bartimeu só
tem mais um, a cura do menino epilético em 9, 14-24. O resto do Evangelho é uma
caminhada até Jerusalém. Nesse caminho, Jesus procura formar os discípulos.
No caminho, ele os provoca, perguntando quem era ele na opinião dos outros.
Vem muitas respostas, pois é o “diz que” – e não compromete. Mas Jesus não deixa por
menos – pergunta “e vocês, quem dizem que sou?”. Somente Pedro se arrisca a
responder, “Tu é o Cristo (Messias)”. Parece que acertou, mas logo Jesus desmascara o
erro de Pedro (e dos outros) quando ele mostra que ser Cristo é ser perseguido por causa
da coerência com o projeto do Pai, até a morte. Pedro não aceita isso, pois para ele ser
Cristo é ter poder, dominar, ser triunfante nos moldes desse mundo, e remonstra com
Jesus. Jesus dirige a ele uma das frases mais duras da Bíblia: “Fique atrás de mim
Satanás, pois você não pensa as coisas de Deus, mas dos homens” (8, 33). Depois de ter
explicado o sentido de ser o Cristo, ele explicita o que quer dizer ser discípulo/a dele:
“Se alguém quer me seguir, renuncie-a si mesmo, tome a sua cruz e me siga “(8, 34)”.
Assim Marcos consegue resumir as respostas às duas perguntas fundamentais de
todo cristão. Deixa claro quem é Jesus, qual é a sua missão e o seu destino, e as
exigências do discipulado. Desta forma ele leva os seus leitores hoje a aprofundar as
mesmas questões. Será que realmente compreendemos Jesus, ou somos como as
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autoridades, os parentes e os Doze, com uma visão errada dele? Estamos prontos para
segui-lo, com as exigências que ele propõe? Ou preferimos um Jesus que nós mesmos
projetamos, que não mexe com a nossa vida, o nosso mundo, a nossa sociedade, e cujo
seguimento não tem conseqüências práticas para a nossa vida no dia-a-dia? Marcos nos
leva a refletir se nós não somos como Pedro, neste texto, pensando não conforme a
visão de Deus, mas dos homens?.
Desde o Capítulo 8, Jesus e seus discípulos estão “no caminho” – uma
caminhada que leva desde Cesaréia de Filipe até Jerusalém e o grande conflito, que
terminará na paixão, morte e Ressurreição de Jesus. Um momento importante nessa
caminhada é o momento da Transfiguração (a tradição a localiza no Monte Tabor) em 9,
2 – 11. A chave de leitura desse evento está nas primeiras palavras: “seis dias depois”,
ou seja, seis dias depois do anúncio da sua futura paixão, morte e ressurreição.
Portanto, a Transfiguração tem ligação íntima com o destino de Jesus. Isso é reforçado
pelo fato que ele leva consigo Pedro, Tiago e João, os mesmos que vão com ele em
Getsêmani. Na Transfiguração, aparecem com Jesus as figuras de Moisés e Elias. Não
quaisquer personagens do Antigo Testamento, mas Moisés, considerado pai da Lei, e
Elias, o pai do profetismo – e devemos lembrar que a Lei e os Profetas significam as
escrituras judaicas. Assim, Marcos mostra que Jesus está na continuidade da grande
tradição das Escrituras e que segui-lo é ser fiel com a tradição judaica. Pedro gostaria
de ficar na montanha, num momento tão gostoso, mas Jesus os leva para baixo, pois
devem continuar o caminho até Calvário.
A partir de Cap 11, estamos na Semana Santa. Marcos dá seis capítulos aos
eventos desses dias, quase 40% do seu Evangelho (em comparação com Lucas que
dedica só 20%). O texto destaca três gestos proféticos de Jesus nesses dias: a sua
entrada em Jerusalém, a maldição da figueira e a expulsão dos vendilhões do Templo.
Para que entendamos bem o sentido do gesto profético de Jesus na sua entrada, seria
bom relembrar um trecho do profeta Zacarias: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite
de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele
é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta...
Anunciará a paz a todas as nações, e o seu domínio irá de mar a mar, do rio Eufrates até
os confins da terra” (Zc 9, 9-10). Zacarias traçava as características do verdadeiro
messias - seria um rei, mas um rei “justo e pobre”; não um rei de guerra, mas de paz!
Estabeleceria uma sociedade diferente da sociedade opressora do tempo de Zacarias (e
de Jesus, e de nós) - onde poderosos e ricos oprimiam os pobres e pacíficos! Um rei
jamais entraria em uma cidade montado em um jumento - o animal do pobre camponês,
mas em um cavalo branco de raça! Então Jesus, fazendo a sua entrada assim, faz uma
releitura do profeta Zacarias, e se identifica com o rei pobre, da paz, da esperança dos
pobres e oprimidos!
A história da figueira que seca (11, 12-14.20-23) está ligada ao destino do
Templo. Como a árvore, que era frondosa, mas não alimentava, assim é o Templo e
seus ritos, bonitos, mas que não alimentavam o povo no seu encontro com Deus.
Assim, como a figueira seco, o Templo será destruído.
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Derrubando as mesas dos cambistas e dos vendedores de pombas, Jesus está
simbolicamente impedindo o funcionamento do Templo. Ele não está contra o Templo
nem os ritos, mas contra o abuso do poder religioso pelas autoridades do Templo, que
fizeram dele “um covil de ladrões”. Ora, o covil não é onde os ladrões roubam, mas
onde se escondem. Assim Jesus denuncia a exploração do povo pelas autoridades, que
escondem a sua opressão através do abuso do nome de Deus.
Esse último gesto foi a gota de água para que as autoridades reagissem.
Entenderam muito bem que o ensinamento de Jesus – que o povo esta aceitando com
muita alegra – ameaçava o seu poder. Assim houve conluio entre o poder religioso,
político, judiciário e econômico para acabar com Jesus e o seu movimento. O desfecho
acontece na noite de quinta feira e na sexta feira. Marcos nos conta de uma maneira
objetiva e sem rodeios o que aconteceu. Jesus é fiel até o fim – ele nos salva, não pelo
sofrimento e dor, pois o Pai não é sádico – mas pela fidelidade até o ponto de entregar a
vida. Embora sentindo-se abandonado por todos, e até pelo Pai, ele ainda confia.
Marcos nos conta: “Jesus deu um forte grito e expirou” (15, 37). Para a nossa surpresa,
agora, pela primeira vez no Evangelho, um homem declara a verdadeira identidade de
Jesus: “O oficial do exército, que estava bem na frente da cruz, viu como Jesus havia
expirado, e disse: “De fato, esse homem era mesmo Filho de Deus”!” O que as
autoridades, os familiares e os discípulos não foram capazes de descobrir através dos
milagres de Jesus, um pagão descobre “vendo como expirou”, e lembremos, ele expirou
com o grito “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (v 34). Assim Marcos
nos ensina que, se quisermos descobrir o Filho de Deus, não devemos correr atrás de
milagres e poder, mas olhar para a figura abandonada e sofrida da cruz, fiel até o fim.
Esta fidelidade é o desafio para todos os cristãos de hoje.
A história não podia terminar assim – seria uma derrota. E não terminou. Pois,
sem que alguém esperasse, Jesus é ressuscitado dos mortos. Jesus venceu a morte para
sempre. A cruz vence a espada, a fraqueza de Deus é mais forte do que a força dos
homens. O jovem vestido de branco nos diz como encontrar-nos com o Ressuscitado:
“..vão para a Galiléia...lá o verão”(cf 16,7). “Ir para a Galiléia” significa voltar à prática
de Jesus, pois foi na Galiléia, entre os pobres, doentes e sem-voz, que ele demonstrava o
amor, a compaixão e a misericórdia do Pai. Nós, para que sejamos discípulos/as dele,
devemos “voltar para a Galiléia”, ou seja, praticar as obras de Jesus, fazer as mesmas
opções, caminhar nas suas pegadas, seguindo o nosso Salvador, Ele que “andou por
toda a parte, fazendo o bem” (At 10,38).
O Evangelho de Lucas – Tomaz Hughes SVD
Como tema do mês da Bíblia de 2013, a CNBB propõe “DiscípulosMissionários a Partir do Evangelho de Lucas." O objetivo da retomada desse Evangelho
seria reforçar a formação e a espiritualidade dos agentes e dos féis através do
seguimento de Jesus, proposto no escrito do Lucas. Este enfoque, na perspectiva de
discípulos missionários, é como pede o Documento de Aparecida (DAp Capítulo IV).
Especificamente, “o discípulo experimenta que a vinculação íntima com Jesus no grupo
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dos seus é participação da Vida saída das entranhas do Pai, é formar-se para assumir seu
estilo de vida e suas motivações, correr sua mesma sorte e assumir a missão de fazer
novas todas as coisas” (DAp 131).
Um bom texto para orientar um aprofundamento de Lucas é Lc 1, 1-4:
“Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se
passaram entre nós. Elas começaram do que nos foi transmitido por aqueles que, desde
o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra. Assim sendo, após fazer
um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi
escrever para você uma narração bem ordenada, excelentíssimo Teófilo. Deste modo,
você poderá verificar a solidez dos ensinamentos que recebeu.”
Assim, podemos ver que Lucas, que não conheceu Jesus, mas é grego das
comunidades urbanas da tradição paulina, se baseia nas tradições orais e escritas que
conhecesse. Porém ele deseja organizar esse material Du uma maneira que formasse
“uma narrativa bem ordenada.” Para que possam aprofundar bem este Evangelho então,
é muito indicado que descubramos qual é o esquema que Lucas usa para formar essa
narrativa.
“O trecho acima citado também menciona o destinatário a quem Lucas está
dirigindo a sua obra – o ‘excelentíssimo Teófilo.” Há diversas explicações possíveis
cerca da identidade deste destinatário, mas parece que podemos descobrir quem foi
examinando bem o nome “Teófilo” que em grego significa “amado de Deus”. Assim
sendo, Teófilo não seria uma pessoa, mas indica a comunidade lucana de discípulosmissionários, que é “amada por Deus”.
Importante é o versículo 4: Lucas fala que através do seu escrito, o destinatário
pode verificar que a sua fé tem fundamento. Assim, lendo nas entrelinhas, podemos
supor que, se precisa dessa verificação, que a fé da comunidade esteja um tanto
vacilante, ou pelo menos, sem muita vibração. Com o tempo ela foi perdendo a
motivação e dedicação missionária. Assim também são muitas das nossas comunidades
– não duvidamos das verdades da fé, mas não vibramos mais em ser discípulos/as de
Jesus e nem nos preocupamos em sermos seus missionários.
Como Lucas afirma que ele pretende escrever “uma narração bem ordenada”,
parece importante descobrir o esquema que ele usa na organização do seu material. Na
verdade ele usa dois esquemas – um é “histórico” e o outro é “geográfico". Nunca,
porém, devemos esquecer que ambos são na verdade “teológicos”, ou seja, não
pretendem ensinar nem história nem geografia, mas, através desses esquemas, nos
ensinarem algo sobre Deus e a sua ação no meio de nós.
No seu esquema histórico, Lucas divida a História da Salvação narrada na sua
dupla obra (Evangelho e Atos) em três etapas: a etapa da preparação da promessa, a
etapa da realização da promessa e a etapa da continuação da promessa, ou, se
quisermos uma estrutura trinitária, a etapa do Pai, a etapa do Filho e a etapa do Espírito
Santo (não que sejam etapas estanques, mas indicam a pessoa da Trindade que foi a
protagonista principal). As primeiras duas partes encontramos no Evangelho e a
terceira em Atos. É interessante notar que a única pessoa humana presente nas três
etapas é Maria – ela aparece na “preparação” (cf. a Anunciação), durante a vida de Jesus
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e no início da Igreja (cf. At 1,14). Isso demonstra que a figura de Maria, quando
trabalhada biblicamente, não é nenhum empecilho ao ecumenismo.
No esquema que denominamos “geográfico”, Lucas trabalha com o conceito da
“caminhada feita pela Palavra”. Jesus, inspirado e impulsionado pelo Espírito, caminha
da periferia do judaísmo – a aldeia de Nazaré – revelando o rosto verdadeiro de Deus,
que ele experimentou na sua vivência entre os pobres da periferia. Ele caminha em
direção ao centro do judaísmo – Jerusalém – que procura eliminar essa caminhada,
matando Jesus. Mas Deus o ressuscita e derrama o mesmo Espírito sobre os seus
discípulos e discípulas, que continuam a “caminha da Palavra”, esta vez da periferia do
Império – Jerusalém – até o centro do mundo, naquela época, a cidade Roma. Quando
Paulo, impulsionado pelo Espírito, chega preso em Roma e consegue o que podemos
chamar de prisão domiciliar, com liberdade de pregar a Palavra a judeus e gregos (cf. At
28,30-31), Lucas termina a sua obra. A caminhada até o centro do judaísmo
encontramos na Evangelho e até o centro do mundo em Atos. Mas ainda resta mais
uma etapa – a Palavra deve chegar aos confins da terra (cf. At 1,8), e isso compete a
nós, como discípulos/as-missionários/as de Jesus.
Também é muito útil usar o conceito de “chaves de leitura”, ou seja, alguns
pontos que devemos sempre ter em mente quando lemos o Evangelho de Lucas.
Sinteticamente podemos indicar como chaves da leitura de Lucas:
É o Evangelho do Espírito Santo
-‘
E o Evangelho da Misericórdia e Compaixão de Deus
É o Evangelho dos Pobres e Excluídos
É o Evangelho da Oração
É o Evangelho da Fraternidade Homem-Mulher
Obviamente, todos esses temas se fazem presentes em todos os Evangelhos, mas
assumem uma importância todo especial em Lucas, e nos fornecem chaves que servem
para que aprofundemos mais a mensagem desta obra, na nossa procura de maior
fidelidade à nossa vocação de discípulos/as-missionários/as de Jesus.
Para que possamos clarificar o que significa para nós sermos “discípulos/asmissionários/as de Jesus”, nada melhor do que meditarmos a experiência do própria
Jesus, que era “Discípulo-Missionário do Pai”. Para isso, Lucas caps. 3 e 4 pode nos
iluminar bastante.
Lc 3, 21-21 relata o Batismo de Jesus. Devemos ter claro que esse batismo de
João Batista não é o nosso batismo cristão. Era um rito de purificação judaico e para
Jesus significava o assumir público da sua missão como o Servo (=Filho) de Deus. A
voz vinda do céu confirma na sua identidade-missão: “Tu és o meu Filho amado! Em
ti encontro o meu agrado” (Lc 3, 22). Jesus faz a sua opção de vida, mas ainda resta
discernir como colocá-la em prática, explicitar o seu sentido e partir para a sua
concretização. Esses elementos são desenvolvidos no quarto capítulo e encontram o seu
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paralelo na nossa vida cristã hoje – fizemos já a nossa opção e compromisso (assumindo
no nosso batismo), mas precisamos discernir como concretizá-los no momento histórico
atual, traçar pistas concretas de ação, e assumir as suas consequências.
Assim o Evangelho segue com o relato das Tentações no deserto. O relato
procura expressar uma experiência interior de Jesus, e não deve ser interpretado ao pé
da letra, de uma maneira fundamentalista. No fundo, Jesus está discernindo (e voltará a
discernir ao longo da vida) qual é a opção mais coerente com a sua identidade e missão.
Olhando bem o texto, encontraremos nele as três grandes tentações da época
pós-moderna: as tentações do “Prazer” do “Ter” e do “Poder”. As tentações de Jesus
não são para coisas que são más em si, mas que causariam desvios do plano do Pai.
Assim é a vida cristã – raramente somos tentados a assumir algo mau em si, mas sim a
fazer opções que seriam incoerentes com o projeto de Deus para nós!
A proclamação em palavra e ação do Reino de Deus nasce do Espírito. Jesus vai
a sua vilarejo natal para explicitar e lançar a sua missão. Fazendo uma leitura no culto,
ele escolhe um trecho do profeta Terceiro-Isaías. A citação não é exatamente como está
no Antigo Testamento, mas uma combinação de Is 61,1-2, e 58.6, omitindo Is 61,1c
(sarar os contritos do coração) e 61,2b-3a..
Nós cristãos, como discípulos/as-missionários/as de Jesus, temos aqui os
elementos essenciais para a vivência da nossa vocação. Precisamos nos perguntar:
“Neste momento da minha vida, com a idade que tenho, a saúde que tenho e a situação
que ocupo, o que significa para mim, “Anunciar a Boa-Notícia aos Pobres”, “Proclamar
a Libertação aos Presos”, “Proclamar aos Cegos a Recuperação da Vista”, “Libertar os
Oprimidos” e “Proclamar o Ano de Graça do Senhor”.
Jesus deixa os seus ouvintes atônitos com a afirmação que “hoje acontece a
realização dessa passagem”. Ele quer dizer que na sua pessoa se realiza o projeto do
Servo de Javé, de Segundo e Terceiro-Isaías. Mostra a sua autocompreensão. Descreve
a sua missão, que também se torna a missão dos seus seguidores – e, portanto, a nossa.
Essa libertação é projeto para “hoje”, não para o além, mesmo que somente lá venha a
acontecer a sua plena realização.
É importante que tenhamos consciência dessa presença do Espírito, que nos dá
força, pois o texto de Lucas nos mostra as reações diante da explicitação da missão de
Jesus ( vv. 22-30). A reação dos vizinhos de Nazaré muda rapidamente – do encanto
diante das suas palavras, à raiva quando ele desafia a sua visão etnocêntrica e estreita.
Essa reação – mais chocante ainda na versão de Marcos (Mc 6,1-6) – encontra eco nas
comunidades de hoje. É o pobre que não acredita no pobre! Jesus é rejeitado por ser
filho de José, um simples carpinteiro do interior, que ousa assumir uma liderança e
questionar o status quo! Quantas vezes hoje acontece que, em lugar de incentivar as
nossas lideranças que nascem das bases, os próprios companheiros e colegas de
comunidade os rejeitam e desprezam, por não serem “doutores”, por não saberem “falar
bonito”, como sabem muito bem os nossos exploradores! Parece que às vezes há gente
que sente prazer em destruir as nossas lideranças! Jesus nos dá o exemplo de como
enfrentar tais problemas práticos – Ele “continuou o seu caminho” ( 4,20). É isso
mesmo – apesar das críticas, das gozações, o cristão tem que “continuar o seu
caminho”. Jesus sofreu com isso, mas não se abalou, pois a sua convicção não se
baseava na aceitação dos outros, mas na oração, na interiorização da Palavra. Oxalá
todos nós cresçamos assim, seguindo o exemplo do Mestre!
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Em Lucas 4,31-44, Jesus desce a Cafarnaum. Ficou ali ensinando, curando e
expulsando os espíritos malignos. O povo insistia para ele não se retirar, mas ele não
deixou que nada, nem o êxito aparente em Cafarnaum, o desviasse da sua missão de
“anunciar a mais cidades a Boa Nova do Reino de Deus” ( vv.43).
Este trecho nos dá um resumo poderoso do ministério de Jesus, que consistiu em
assumir o projeto do Pai, apesar das tentações e dificuldades. Sua pregação envolve
cumprir as promessas de Deus (vv. 16-30), restaurar homens e mulheres à saúde, e
expulsar espíritos malignos. Em vv. 31-38 se frisa que Jesus tem autoridade. Lucas não
descreve Jesus sem enfatizar que nele Deus está libertando toda a criação das forças
malignas que a estrangula. Nos seus exorcismos, ele demonstra a natureza do Reinado
de Deus; o seu ministério todo pode ser descrito como a libertação de todos os que estão
oprimidos pelos poderes do mal. Isso nos leva a nos perguntarmos sobre quais são as
estruturas que são manifestações de “espíritos malignos” que oprimem hoje, na nossa
sociedade consumista e excludente? Que nós cristãos fazemos para ajudar na libertação
do povo e da criação inteira desses males e das suas conseqüências nefastas?
Jesus veio para pregar o Reinado de Deus – e é para isso que existe a missão da
Igreja. Se concretiza na derrota do mal, através do poder libertador de Deus, para
homens e mulheres, excluídos e pobres, cegos e coxos, e as outras categorias de
excluídos do mundo de hoje! Somos convidados a renovarmos o nosso compromisso,
discernir os caminhos a seguir, explicitar a nossa missão e concretizá-la em ação e
palavra, seguindo o exemplo de Jesus no Evangelho de Lucas, pois foi para isso que
Ele – e nós – fomos enviados.
Já mencionamos algumas “chaves de leituras”, ou seja, temas importantes que
perpassam todo o escrito. Podemos recordá-los aqui e tecer algumas considerações.
- É “O Evangelho do Espírito Santo”. Nem precisa dizer que o Espírito Santo
tem papel primordial em todos os Evangelhos. Em Lucas, porém, desenvolve um papel
diferente do que, por exemplo, no Quarto Evangelho. Enquanto em João, a partir do
capítulo 13, o Espírito é em primeiro lugar o “Paráclito” (Advogado da defesa), em
Lucas ele é a força motora movimentando a caminhada feita pela Palavra, desde a
periferia do judaísmo (Nazaré) até o centro do mesmo (Jerusalém) e da periferia do
Império (Jerusalém) até o centro do mundo (Roma), e até “os confins da terra.” É
através dele que Maria engravida com o Messias (1, 35), que Isabel proclama Maria
“bendita entre as mulheres” (1, 42), que Simeão vai ao Templo louvar a Deus (2, m2535), que Jesus volta do Jordão, vai ao deserto (4, 1) e depois com a força do Espírito
proclama a sua missão (4, 14.18), e que os discípulos recebem o mandato missionário
do Ressuscitado: “O Espírito Santo descerá sobre vocês, e dele receberão forças para
serem minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria e até os extremos
da terra” (At 1, 8). Lendo Lucas é importante notar não somente quando aparece o
Espírito Santo, mas qual é a sua função.
- Salta aos olhos que um dos principais temas transversais em Lucas é a
misericórdia de Deus. A caminhada de Jesus se caracteriza pelo fato que ele irradia,
especialmente aos pobres, sofredores e pecadores, o rosto misericordioso de Deus. Isso
ele faz através dos seus ensinamentos, dos seus gestos, e das suas parábolas. Muitos
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dos textos que conhecemos melhor, referentes a este tema, só se encontram em Lucas: O
Magnificat (1,46-55), a história da mulher pecadora (ou “da moça com perfume”,
melhor! 7, 36-50) , de Zaqueu (19,1-10), do “Bom Ladrão” (23,42-43), o Bom
Samaritano (10, 25-37), e parábolas com as três em Cap. 15 (a ovelha pedida e achada, a
moeda perdida e achada e o filho perdido e achado) e a do Fariseu e do Publicano (18,814) , só se acham no Terceiro Evangelho. Talvez essa ênfase se deva em parte ao fato
que Lucas escreve para comunidades nas cidades greco-romanas, onde domina a
religião dos Deuses daquela cultura – muitas vezes cruéis, sem nenhum compromisso de
amor para com a humanidade. Estando mergulhados nesse ambiente religioso pagão, as
comunidades lucanas precisam se convencer que o Deus de Jesus é, em primeiro lugar,
compaixão e misericórdia. Demonstrar isso foi fundamental para Jesus, enquanto
também fez com que ele desafiasse a autossuficiência dos que se consideravam “justos”.
Sendo continuadores dessa missão, nós também precisamos demonstrar sempre esse
rosto de Deus. O documento de Aparecida insiste: “O discípulo-missionário há de ser
um homem ou uma mulher que torna visível o amor misericordioso do Pai,
especialmente para os pobres e pecadores” (DA147).
- É “O Evangelho dos Pobres e Excluídos”. Muito ligado ao tema anterior está o
destaque dado por Lucas à opção de Jesus pelos pobres e excluídos de então – e por
consequência, exigência do seguimento dele no nosso tempo. A misericórdia de Deus
se manifestou em Jesus especialmente para os pobres e excluídos. Encontramo-lo no
meio dos marginalizados pela sociedade e pela elite religiosa, dos que eram
considerados “pecadores” pelos que se vangloriavam de serem “justos”, dos doentes e
impuros, dos leprosos, cegos, coxos, dos cobradores de impostos. Jesus encarnava o
Deus do Êxodo, que diante da realidade do povo no Egito disse que “vi muito bem a
miséria do meu povo... ouvi seu clamor contra seus opressores e conheço os seus
sofrimentos... desci para libertá-los...” (cf. Ex 3, 7-10). Essa descida se Deus se deu de
maneira especial em Jesus, que foi a presença libertadora do Deus compassivo no meio
do sofrimento, pobreza e exclusão. Como Lucas escreve num contexto urbano, o
contraste gritante entre ricos e pobres era a experiência de cada dia e existia também nas
comunidades cristãs. Lucas as (e nos!) desafia para sair de uma religião acomodada
para criar comunidades sem exploração, sem exclusão, baseadas nos valores do Reino e
não de uma sociedade consumista e materialista, dominante no seu e no nosso tempo.
- É “O Evangelho de Oração”. Embora possa passar despercebido, um tema
importante em Lucas é a oração. Como, fora dos Salmos, o livro bíblico que mais canta
é o Apocalipse, o Evangelho que mais enfatiza a oração é Lucas. Logo nas narrativas
da infância, encontramos os Cantos de Maria (1, 46-55), de Zacarias (1,67-79) e de
Simeão (2, 29-32). Temos a versão mais antiga da Oração dos Discípulos de Jesus, a
única que Ele mesmo ensinou (11, 1-4). Mostra-se Jesus em oração, especialmente nos
momentos e de decisão: antes do batismo (3,21), num dia de milagres (5, 16), antes de
escolher os Doze (6,12), antes da confissão de Pedro e anúncio da paixão (9,18), na
Transfiguração (9, 28-29), no regresso dos 72 (10, 21-22), antes de ensinar a Oração do
Senhor (11,1), para a consolidação da fé de Pedro (22,32), na luta por causa da paixão
(22, 41-45) e na Cruz (23,46). Ensina as disposições e sentimentos para uma oração
9
sincera: ser insistente (11, 5-9 e 18, 1-8), vigiar e orar (22, 40-46) com a certeza de ser
atendido (17, 5-6), buscando a conversão interior (18, 13-14), perdoando aos irmãos
devedores (11,4) e querendo cooperar nos desígnios de Deus (22, 40-42). A oração é
sempre integrada com a vida do discipulado, que leva a ela e a partir dela.
- É “O Evangelho da igualdade Homem-Mulher”. Mais do que os outros, o
Evangelho de Lucas enfatiza a importância das mulheres no seguimento de Jesus.
Chega a elencar alguns nomes de mulheres que o seguiam desde Galiléia e ficaram fiéis
até o fim (8,1-3; 23,55-56; 24,1-12;). Quando usa a imagem de um homem para Deus,
também usa de uma mulher (15, 8-10). Talvez o que mais impulsionasse Lucas a
insistir no discipulado de igualdade homem/mulher foi o fato que, na época do escrito,
as mulheres já estavam sendo marginalizadas nas comunidades (cf. I Tm 2, 9-15) e ele
quer lembrar que Jesus não aceitava qualquer discriminação à base de gênero, na
comunidade dos e das discípulos. Uma lição muito relevante para a Igreja ainda hoje.
Lucas (junto com Atos) pode ser denominado “O Caminho Feito Pela Palavra”.
Aprofundemos a sua mensagem, para que possamos continuar o dever missionário de
sermos testemunhas de Jesus “até os confins da terra," impulsionados pelo Espírito,
demonstrando a misericórdia de Deus, especialmente aos pobres e excluídos, num
espírito de oração, construindo comunidades de fraternidade e solidariedade, sem
discriminação por gênero, raça, classe ou qualquer motivo que seja, numa vida de
discípulos/as-missionários/as do Reino.
EVANGELHO DE MATEUS
Ir. Neuza Maria Delazari - ISJ
SITUAÇÃO HISTÓRICA DA COMUNIDADE
A comunidade vivia uma profunda crise de identidade, por causa da
reorganização do judaismo que iniciou depois da destruição do templo de Jerusalém
(70). No ano 66 d.C, os judeus da Palestina revoltaram-se contra a ocupação romana. A
guerra entre judeus e o Império romano acabou por volta de 73, quando a imponente
fortaleza de Massada caiu em mãos dos romanos. A terra estava arrasada. Jerusalém era
um monte de ruínas. Todos os grupos judaicos que tiveram importante atuação política
e religiosa na época de Jesus, como os saduceus, os zelotas e os essênios, tinham
desaparecido. O único grupo que permaneceu organizado foi o dos fariseus, agrupados
em torno das sinagogas. Também existiam as comunidades judaicas da Diáspora, ou
seja, em cidades fora da Palestina, espalhadas pelo Império romano. No meio de tudo
isto, caminhavam as comunidades dos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré.
Essas comunidades de judeus convertidos ao cristianismo buscavam viver a
universalidade da mensagem de Jesus. A situação dessas comunidades era muito
particular: se abrem aos helenistas não apegados à Lei e ao Templo. Por isso o
Evangelho teve que ser escrito de outra maneira.
Os escribas e fariseus, reunidos numa cidade chamada Jâmnia, por volta do ano
85, convocaram os líderes que sobraram do antigo Sinédrio e fizeram uma espécie de
Concílio, buscando reformar e reorganizar a religião de Israel diante do desafio
colocado pela destruição do templo. Não podia mais fazer sacrifícios e holocaustos. No
lugar deste culto, centrado nos sacrifícios, a vivência religiosa passou a ser a
10
observância da Lei e o culto nas sinagogas em torno da Palavra de Deus. Esta
reorganização iniciada em Jâmnia permitiu que o judaísmo sobrevivesse até hoje.
Os escribas e fariseus, agora chamados de rabinos, buscaram uniformizar a
religião judaica. Para isto, tomaram decisões importantes e radicais. Organizar a lista
dos livros sagrados para o uso nas sinagogas: a língua do culto passou a ser o hebraico;
(a tradução dos livros em grego, chamada de Setenta, feita por volta do século III antes
de Cristo, não foi mais aceita na liturgia. Somente aceitam a versão hebraica).
As decisões dos rabinos repercutiram dentro das comunidades cristãs,
provocando tensões e conflitos. Buscando preservar a identidade judaica e impor a sua
visão religiosa aos outros, eles se fecharam totalmente aos diferentes grupos e correntes
dentro do judaísmo da época. Desta forma, resolveram expulsar do culto nas sinagogas
todas aquelas correntes contrárias aos ensinamentos dos fariseus. Dentro destas
correntes estavam aqueles/as judeus que aceitavam Jesus de Nazaré como o Messias.
Esta Igreja vivia a crise total: era uma crise política diante do império romano
que tinha vencido o povo judeu, destruindo o templo e a capital, Jerusalém. Crise
cultural: perderam sua cultura devido à imposição do império romano; crise religiosa, já
que as diferenças entre judeus e cristãos chegaram a ponto de ruptura. Viver a fé em
Cristo poderia ser considerado um crime contra o Estado Romano. Entre os anos 95/96,
o imperador Domiciano lançará a segunda perseguição e Roma passa a ser descrita
como a nova Babilônia, embriagada pelo sangue dos mártires (Ap 18,24).
Após a destruição de Jerusalém sobraram praticamente dois grupos: os judeus
fariseus e os judeus seguidores de Jesus. Eles tinham ideias e práticas completamente
diferentes e, aos poucos, a convivência entre eles foi se tornando difícil. O Evangelho
de Mateus foi escrito neste período, em meio a conflitos para saber quem estava no
caminho certo. Os judeus seguiam a lei ao pé da letra e achavam que os cristãos também
tinham que segui-la. Com isso os cristãos foram obrigados a buscar outros caminhos.
Definir o caminho a seguir. O saudosismo dos tempos antigos, a falta de sinagoga para
suas celebrações... Exige-se ruptura e coragem para fazer a travessia em busca do novo.
O Evangelho de Mateus nasceu, então, para fazer com que a sua comunidade ficasse
firme no seguimento de Jesus e não esmorecesse frente às pressões dos fariseus. Para
isso, toda a história de Jesus foi recontada de uma forma tal que os seus discípulos
sentissem que ele era o Messias, o Novo Moisés. O Evangelho de Mateus é escrito para
reafirmar a certeza básica da fé. Jesus de Nazaré é de fato o Emanuel, o Messias de
Deus. Essa certeza permitia afirmar que em Jesus, Deus estava com a comunidade até o
fim dos tempos (Mt 28,20).
3. AUTOR
Mateus significa "dom de Deus" (Matatias, no hebraico) é um dos Doze Apóstolos. Foi
chamado enquanto estava sentado na sua banca, pois era cobrador de impostos (9,9). Depois
do chamado ofereceu um almoço para Jesus e seu grupo (9,10-13). É o mesmo Levi de Lc 5,2728 e era filho de Alfeu (Mc 2,13-14). Mateus é um publicano, ou seja, um cobrador de
impostos a serviço do Império romano. Atribui-se a autoria a ele, mas na verdade, é resultado
de diversos trabalhos e o que temos é a redação final.
4. LOCAL E DATA
É diirigido às comunidades de Judeu-cristãos que viviam no norte da Galiléia e no sul da Síria,
que migraram mais tarde para Antioquia onde aconteceu a redação final do Evangelho.
11
Foi escrito após 85 d.C. Mateus tem 28 capítulos 1068 versículos; 600 são comuns com
Marcos, 235 com Lucas; e 233 são exclusivos da fonte Q “quelle”, usada também por Lucas..
5. DESTINATÁRIOS
Mateus escreve para os judeus que se converteram ao cristianismo, por isso utiliza
muito o Primeiro Testamento e usa muitos termos hebraicos. Mas a mensagem de Jesus é
universal e por isso o Evangelho termina afirmando: “fazei que todas as nações se tornem
discípulos meus”... (Mt 28,19). O Evangelho é escrito para uma comunidade em crise:
destruição de Jerusalém; luta entre judaísmo cristão e judaísmo formativo; separação da
Sinagoga; e polêmica com Fariseus e Escribas.
6. OBJETIVO
O objetivo principal responder duas perguntas, que com certeza os cristãos se
colocavam depois da vida, morte e ressurreição de Jesus:
- Quem é Jesus? (conhecer).
Jesus é o Emanuel, o Deus conosco, o Filho de Deus! - Como seguir Jesus Cristo? (fazer o que
Ele mandou). Mateus mesmo dá o exemplo. Jesus o chama: Segue-me! E ele, levantando-se, o
seguiu! (Mt 9,9).
7. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS
7.1 - A certeza que Jesus é Deus presente no meio de nós: no início, meio e final:
7.2 - É o Evangelho do Pai:
Enquanto Marcos é mais cristológico e em Lucas é o Espírito Santo tem uma
função especial, em Mateus é o Pai tem destaque. Numerosas são as vezes em que Jesus
fala de Deus como do Pai nosso (21 vezes contra 5 de Lucas); o seu Pai (18 vezes,
contra 6 de Lc e 3 de Mc). Algumas parábolas, que se encontram exclusivamente em
Mateus, são verdadeiras parábolas do "Pai": as parábolas do servo infiel (Mt 18,23-35,
cf. v. 35), dos trabalhadores na vinha (Mt 20,1-12), das bodas reais (Mt 22,1-14), dos
dois filhos (Mt 21,28-31), do joio e do trigo (13,24-30; 27).
7.3 - É o Evangelho da Justiça (Mt 3,15; 5,6; 10,20; 6,1.33; 21,32, etc):
- Jesus nasce no ambiente de um homem justo (Mt 1,19);
- As primeiras palavras de Jesus neste Evangelho são: “convém que cumpramos toda a
justiça” (Mt 3,15);
- A busca fundamental nossa deve ser “o reino dos céus e sua justiça” (Mt 6,33);
- O julgamento de Deus será pela justiça e misericórdia que praticamos (Mt 25,31-46).
7.4 - O projeto que Jesus anuncia é uma Boa Notícia, chamado de Reino dos Céus:
- O tema do Reino “dos céus”, ou “de Deus” aparece 54 vezes no Evangelho;
- Mateus prefere usar “reino dos céus”, para evitar a expressão “reino de Deus”, pois
os judeus, por respeito, evitavam pronunciar o nome de Deus (YHWH - Javé).
7.5 - A valorização da história e do Primeiro Testamento:
- Jesus nasce da descendência do povo hebreu. São 14 vezes três gerações (Mt 1,17).
14 é a soma das consoantes hebraicas do nome David dwd (4 + 6 + 4 = 14). Jesus é três vezes
Davi;
12
- Várias vezes encontramos “para se cumprir as Escrituras”, ou “o que foi dito pelos
Profetas”; ou “também está escrito”; ou “ouviste o que foi dito aos antigos”, etc.
7.6 - Aparecem fortes conflitos com os judeus, principalmente com os fariseus:
O Evangelho foi num momento de ruptura entre judeus e cristãos. Os cristãos nesta
época eram expulsos das sinagogas, por isso Mateus fala das “suas/vossas sinagogas” ou
“sinagogas deles” (Mt 4,23; 9,35; 10,17; 12,9; 13,54; 23,34).
7.7 - As mulheres:
- Na genealogia de Jesus aparecem 5 mulheres. Isso era incomum no ambiente judaico.
Todas têm problemas com a lei judaica.
- É uma mulher que unge Jesus e prepara seu corpo para a sepultura (Mt 26,6-13);
- As mulheres são o grupo que é fiel até o fim (Mt 27,55-56.61) e são as primeiras as
receberem a boa notícia da ressurreição de Jesus e serão as primeiras anunciadoras de que
Jesus está vivo (Mt 28,1-10);
- Porém, a infância de Jesus é contada na ótica de José e não de Maria, como em
Lucas.
7.8 - Evangelho das Bem-aventuranças (Mt 5,1-12):
- São 7 ou nove, depende de como são contadas;
- A recompensa na primeira (aos pobres) e na sétima (aos perseguidos pela justiça) a
promessa é no presente “deles é o reino dos céus”. As demais são no futuro: herdarão a terra;
serão saciados...;
- Diferente de Lucas, os “Ai de vós” não vêm em seguida aos “felizes / bemaventurados vós”. Eles aparecem no capítulo 23;
- Deus quer o povo feliz! E essa felicidade começa logo para quem entra no Reino;
- Pessoas pobres, doentes, endemoninhadas, famintas, cegas, desempregadas,
crianças, mulheres, multidões... Este é o povo que Jesus encontra e são os privilegiados no
anúncio do Reino.
7.9 - Mateus utiliza muitos números:
Mateus usa muito os números, sobretudo 3, 5, 7 e 10. Ex.: narra 3 tentações de Jesus;
3 “quando...” (Mt 6,2.5.16); 3 súplicas no monte das Oliveiras; temos 3 negações de Pedro; 3
séries de 14 (7 x 2) gerações na genealogia de Jesus. Encontramos 7 discursos de Jesus, 7
parábolas sobre o Reino;
- O Evangelho está organizado em 5 livrinhos (igual ao Pentateuco, no Primeiro
Testamento);
- Devemos perdoar não 7 vezes, mas setenta vezes sete, isto é, infinitamente;
- Encontramos em Mateus 10 milagres (igual às 10 pragas ou aos 10 Mandamentos no
Primeiro Testamento).
7.10 - Jesus é o novo Moisés:
A matança dos meninos (Mt 2,13-18) recorda um fato semelhante com Moisés
(Ex 1,15-22);
13
Jesus é maior que Moisés, pois Ele cumpre toda a Lei (Mt 5,17) e lhe dá uma nova
interpretação (Mt 5,21-48; 19,3-9.16-21);
Várias vezes Jesus sobe a montanha. Esta era o lugar privilegiado para o encontro com
Deus. Jesus sobe à Montanha (Mt 5,1), assim como Moisés foi ao Sinai. O sermão na
Montanha (Mt 5-7) e o envio dos Apóstolos pelo mundo (Mt 28,16-20) lembram as tábuas da
Lei dadas a Moisés no Monte Sinai.
7.11 - Jesus é o FILHO de Davi: - O Novo Davi
Menciona Davi ligado a Jesus muitas vezes: Mt 1,1.6.17; 9,27; 12,3.23; 15,22; 20,30.31;
21,9.15; 22,42.43.45;
Jesus é chamado FILHO DE DAVI 7 vezes:
- Três vezes pelos dois cegos (Mt 9:27; 20,30.31) e mais uma vez pela mulher Cananéia (Mt
15:22) todos pedindo compaixão; duas vezes pela multidão que se admira (Mt 12,23) e na
entrada para Jerusalém (Mt 21,9); uma vez pelos meninos (Mt 21,15).
- E finalmente os fariseus também reconhecem que Jesus é o Filho de Davi (Mt 22,42).
- Davi foi o Rei considerado Ideal porque conseguiu unir as 12 tribos de Israel tornando-os o
Povo de Israel. Jesus é o Novo Davi para unir todos os povos, tornando-os o novo povo de
Deus.
7.12 - O verbo “ver”:
- Jesus “viu” os primeiros Apóstolos (Mt 4,18.21); “viu” Mateus (Mt 9,9); “viu” as multidões
(Mt 5,1; 8,18; 9,36); “viu” a sogra de Pedro de cama (Mt 8,14); “viu” a mulher doente (Mt
8,22); etc...
7.13 - É o Evangelho da Igreja:
- Duas vezes aparece a palavra ekklesía: Igreja / Assembléia (Mt 16,18; 18,17);
- Mateus procura corrigir certos problemas da comunidade: o perdão aos que
erram, o bom comportamento (parábola do semeador, Mt 18, a questão da autoridade, o
perdão etc.);
- Ele quer demonstrar que os cristãos são o novo Povo de Deus e a Igreja é o
verdadeiro Israel;
- O batismo substitui a circuncisão. É o novo sinal de pertença ao povo de Deus;
- Foi o Evangelho mais usado na Igreja primitiva. Seu estilo é de Catequese.
8. CONFLITOS
-
sistema do templo Mt 21
latifúndio x desemprego Mt 20
empobrecimento dos camponeses fruto da repressão romana Mt 24
Cristão x judeus Mt 9,35
Miséria extrema Mt 4,24; 8,28
Divisão Mt 10,30ss
14
- Fermento dos fariseus Mt 16,6
9. ESQUEMA DO EVANGELHO
O Evangelho de Mateus tem um fio condutor: Jesus é o Emanuel (Mt 1,23). Ele
é a certeza de que Deus está no meio de nós (Mt 18,20); até o fim dos tempos (Mt
28,20). È o Evangelho da justiça do Reino. Dentro desta afirmação, num conjunto
literário bem definido e articulado, Mateus desenvolve cinco livros menores, como se
fossem o conjunto de uma nova lei. Lembra o Pentateuco, ou seja, os primeiros cinco
livros da bíblia, que os judeus, chamavam de TORÁ ou lei. Cada um deles possui uma
parte narrativa, que conta as atividades e a prática de Jesus, e uma parte discursiva, que
reúne as palavras de Jesus:
Introdução
Jesus dentro da História do Povo de Deus (Mt 1,1-17).
Jesus: um novo começo dentro dum novo Êxodo (Mt 1,18–2,23).
Primeiro Livreto: A JUSTIÇA DO REINO DE DEUS (Mt 3–7)
Narração: Jesus traz o Reino de Deus (Mt 3–4).
Discurso: O Sermão da Montanha (Mt 5–7). As condições para entrar no Reino.
Segundo Livreto: UMA JUSTIÇA QUE LIBERTA OS POBRES (Mt 8–10)
Narração: Os milagres: Sinais do Reino de Deus (Mt 8–9).
Discurso: O discurso da Missão (Mt 10). Como anunciar o Reino.
Terceiro Livreto: UMA JUSTIÇA QUE PROVOCA CONFLITOS(Mt 11,1–13,52)
Narração: As reações diante da prática de Jesus (Mt 11–12).
Discurso: As Parábolas do Reino (Mt 13,1-52). O Mistério do Reino.
Quarto Livreto: O NOVO POVO DE DEUS (Mt 13,53–18,34)
Narração: O seguimento de Jesus (Mt 13,53–17,27).
Discurso: A comunidade dos seguidores (Mt 18,1-34). Como viver a proposta do Reino.
Quinto Livreto : A VINDA DEFINITIVA DO REINO (Mt 19–25)
Narração: O Reino é para todos (Mt 19–23).
Discurso: O Discurso da Vigilância (Mt 24-25). O futuro do Reino.
Conclusão: A PÁSCOA DA LIBERTAÇÃO (Mt 26–28).
10. ELEMENTOS DO PRIMEIRO TESTAMENTO NA INFÂNCIA
- Jesus, o Novo Moisés:
- José recebe mensagem dum anjo em sonho // Gn 16,7; 21,17; 22,11; Ex
3,2.
- Nome de Jesus = Josué // Eclo 46,1-2
- Concepção // Is 7,14
- Os Magos// Ex 7,11-22; 8,3.14-15; 9,11
- Estrela de Belém // Estrela de Jacó, Nm 24,17
- Belém // Mq 5,1
- Os presentes // Is 49,23; 60,5; Sl 72,10-11.
15
-
Fuga para o Egito // Jr 26,21-43
O clamor // Jr 31,15
Chamado do Egito // Os 11,1
11. JESUS COMEÇA A NOVA HISTÓRIA - (Mateus 1,1-17)
O primeiro capítulo do evangelho de Mateus situa Jesus ao mesmo tempo
na história dos homens e no projeto de Deus. Já se mostra aqui todo o mistério
da pessoa e da ação de Jesus, verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus.
Mt 1,1 é o título de todo o evangelho, e resume o significado da pessoa de
Jesus: Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão". O Primeiro
Testamento se abre com o livro do Gênesis = origem, contando a origem do
universo e da humanidade. Com Jesus vai começar uma nova criação e uma
nova humanidade. Ele é o novo Adão.
Em Jesus, portanto, ecoa toda a aspiração e história de um povo particular
que reflete a história de toda a humanidade. Todos nós queremos um espaço no
mundo e na história, a fim de passar para frente a vida que em todos nós palpita.
Vida produz vida.
11.1 A História é uma sucessão de gerações
Num primeiro momento, parecem monótonas as listas de gerações que
aparecem na Bíblia, inclusive esta, feita por Mateus (1,1-17). Acontece que para
os antigos a história era uma sucessão de gerações. De pai (e mãe) para filhos
passava não apenas a vida física, mas também todos os ideais e aspirações,
problemas e lutas, vitórias e derrotas: "O que ouvimos e aprendemos, o que nos
contaram nossos pais, não o esconderemos aos seus filhos; nós o contaremos à geração
futura ..." (Salmo 78,1-8).
A história, portanto, é uma transmissão da consciência e da experiência
que pouco a pouco vão formando a sabedoria que ensina a viver. Ouvindo a
história dos pais, os filhos aprendem a viver melhores.
Há 14 gerações de Abraão até Davi; 14 gerações de Davi até o exílio; 14 gerações do
exílio até o nascimento de Jesus. 14 é um número simbólico que significa Davi. Jesus nasce
após três grupos de quatorze gerações. Ou seja, nasce na plenitude dos tempos. A genealogia
além de estar organizada em três grupos, traz a presença de cinco mulheres nos versículos
1.3.5.6.16 todas com problemas em relação à lei judaica.
11.2 As Mulheres na Genealogia de Jesus
A genealogia de Mateus tem uma questão bem específica, uma vez que, na sociedade
patriarcal dos judeus, as genealogias traziam somente nomes de homens e serviam para
mostrar a pureza da raça. Era o meio infalível de preservar a identidade do povo israelita
mesclado com outros povos. Os sacerdotes, bem como os que pretendiam um cargo público,
deviam apresentar uma árvore genealógica sem mancha legal. Era uma honra descender de
um tronco antigo, muito mais se ligado a Davi, cuja estirpe era portadora da mais elevada
promessa: dela viria o Messias, Rei eterno (cf. SI 88,30). Por isso, é surpreendente o fato de
Mateus colocar cinco mulheres entre os ante-passados de Jesus: Tamar, uma Cananéia, viúva,
que se vestiu de prostituta para obrigar o patriarca Judá a ser fiel à lei do Levirato, e dar-lhe
um filho (cf. Gn 38,1-30). Raab, uma Cananéia de Jericó, que era a prostituta, e que ajudou os
israelitas a entrar na Terra Prometida (cf. Js 2,1-24). Rute, uma Moabita, viúva pobre, que
16
optou para ficar do lado de Noemi, sua sogra, e aderiu ao Povo de Deus (cf. Rt 1,16-18). Rute
tomou a iniciativa de imitar Tamar e de ir passar a noite na eira, junto com Booz, forçando-o a
observar a lei e dar-lhe um filho. Da relação entre os dois nasceu Obed, o avô do rei Davi (cf. Rt
3,1-15; 4,13-17). Betsabea, uma Hitita, mulher de Urias, foi seduzida, violentada e engravidada
pelo rei Davi, que, além disso, mandou Urias para a frente de batalha para que fosse morto (cf.
2Sm 11,1-27) e Maria de Nazaré, que ainda não era casada com José. Além disso, as quatro do
Primeiro Testamento são estrangeiras e estão fora do ambiente doméstico tradicional,
concebendo filhos fora dos padrões normais de comportamento daquela época, ao passo que
nomes como o de Sara, Rebeca, Raquel, entre outras foram omitidos. Isto demonstra que o
texto tem uma intencionalidade, e que as mulheres citadas na genealogia representam o
discipulado de mulheres no Evangelho de Mateus e no contexto em que o Evangelho foi
escrito. De uma forma ou de outra, a vida delas esteve ligada à questão da justiça.
11.3 História nova, feita por Deus e pelo homem
Depois de contar a história do povo através de uma lista Mateus conta
como foi o nascimento de Jesus (Mt 1,18-25). Não é uma crônica biográfica, mas
o relato do mistério que cerca não só a vida de Jesus, mas a vida de toda a
humanidade.
Ele é o Filho de Deus. Sua mãe é humana. Seu pai é divino. Nele se resume
o mistério que é a Vida. Deus tem a iniciativa, porque ele é a Vida plena, geradora
de todas as vidas. Maria, representante da humanidade que recebe a vida de Deus,
em sua virgindade concebe a vida de Jesus de modo inteiramente inesperado. É o
Espírito de Deus que nela, e em nós, produz a vida nova. Assim, o nascimento de
Jesus, resposta de Deus aos anseios da humanidade, começa por nos ensinar que a
Vida é fruto da iniciativa de Deus em contato com a nossa atitude aberta e
receptiva, como a atitude de Maria.
12. JESUS É AMEAÇA E SALVAÇÃO - (Mateus 2,1-12)
As narrativas sobre a infância de Jesus não são biográficas. Elas nasceram
da reflexão das primeiras comunidades cristãs, que procuravam compreender todo
o significado da vida e da ação de Jesus. É o caso desta passagem. Mateus se serviu
da reflexão das primeiras comunidades para mostrar que Jesus é o verdadeiro rei
do povo de Deus. A sua vinda é ameaça para uns e salvação para muitos. As
autoridades poderosas se sentem ameaçadas, como Herodes; mas o povo, tanto da
Palestina, como dos países estrangeiros, se alegra com Jesus, vendo nele o rei justo
e salvador.
O nascimento de Jesus em Belém foi anunciado por uma estrela no distante
Oriente, e alguns magos, vendo a estrela, vieram a Jerusalém à sua procura. A
estrela, segundo os orientais, aparecia quando um personagem importante nascia.
Os magos chegam a Jerusalém, centro do poder político, econômico e
ideológico/religioso da Palestina. E aí reina Herodes. Ele não é um rei legítimo
dos judeus, pois era estrangeiro, ligado ao poder romano. Tratava-se de um
usurpador, uma espécie de testa-de-ferro a serviço dos próprios interesses e dos
interesses do dominador maior, que reduzia o povo à miséria e escravidão.
Interessante é o fato de que a estrela não é visível em Jerusalém. Por que será?
Herodes fica com medo, e Mateus diz que "toda a cidade de Jerusalém"
também. Será que se trata do povo? Não. O povo sabe que uma autoridade justa só
17
lhe trará uma vida melhor. "Toda Jerusalém" certamente significa todos aqueles
que estavam do lado de Herodes - seus ministros e assessores, que o ajudavam a
explorar
e
oprimir
o
povo.
Jesus, o rei esperado, era uma ameaça para seus privilégios e mordomias.
Daí o medo. Os injustos nunca têm paz. Herodes consulta seus principais
assessores, os sumos sacerdotes e os doutores da Lei. Os sumos sacerdotes,
pertencentes todos à classe mais rica, dominavam a religião, através da qual
mantinham o povo submisso. Os doutores da Lei, ou escribas, eram os intelectuais
donos do saber, aqui também a serviço dos poderosos. Estes, com o conhecimento
da Bíblia (Antigo Testamento), certificam a Herodes que o Rei-Messias filho de
Davi iria nascer em Belém. É que essa pequena cidade, de fato a periferia distante
da capital Jerusalém, iria se tornar importante, porque dela sairia àquele que se
tornaria pastor do povo de Deus. Notícia perturbadora. O centro do poder
(Jerusalém) se sente ameaçado pela periferia mais insignificante (Belém).
O poderoso Herodes é falso. Chama secretamente os magos e lhes confia à
notícia. Sua intenção, porém, é acabar com toda aquela história, e matar Jesus.
Para isso, quer cooptar os magos e os colocar a serviço do seu perverso plano. Um
dos maiores perigos é deixar-se iludir pelos poderosos. Eles compram tudo.
O encontro dos magos com Jesus é muito significativo. Jesus está com sua
mãe, um modo de Israel representar o rei. A homenagem que lhe prestam
representa a sua submissão. Os presentes que lhe dão mostram a submissão a um
rei (ouro), o reconhecimento de que esse rei é divino (incenso) e, por outro lado,
de que esse rei vai ser morto (a mirra era usada no sepultamento). Em outras
palavras, Jesus é o rei justo que será morto pelos inimigos e depois, ressuscitado
por Deus, será reconhecido por todos como divino Filho de Deus. Um anúncio do
destino de Jesus.
13. JESUS VAI PROVOCAR UM NOVO ÊXODO - (Mateus 2,13-23)
Jesus não só nasceu na e da história do seu povo. Também vai provocar uma
grande transformação nessa história. Isso já havia acontecido no passado, com o
êxodo (= saída) do Egito, terra de escravidão e morte, para a Terra Prometida,
lugar da liberdade e da vida. É um modo de ver o significado de toda a vida e ação
de Jesus. Assim como o povo de Deus do Primeiro Testamento nasceu da
libertação, o novo povo de Deus, que nasce do compromisso com Jesus, tem a
libertação como ponto de partida de seu nascimento. Só existe povo quando há
liberdade. Do contrário, o que se tem é massa anônima de escravos.
13.1 Egito: lugar de refúgio
Desde os tempos do Primeiro Testamento, o Egito era um lugar de refúgio.
Para aí se dirigiu a família de Jacó-Israel, quando a fome castigava Canaã, antigo
nome da Palestina (Gn 42-48). No tempo do nascimento de Jesus, o Egito era o
país onde se refugiavam as famílias suspeitas, perseguidas pelo terrível rei
Herodes. Na história de Jesus repete-se a história do seu povo (Mt 2,13-15).
Mateus usou esses pormenores históricos com uma finalidade muito precisa.
Ele quer mostrar que o novo povo de Deus irá passar pela etapa decisiva que foi a
libertação da escravidão e da morte. Jesus, germe do novo povo de Deus, teve que
ir para o Egito e depois sair de lá. Deus quer um povo de filhos, que realmente
vivam em fraternidade, repartindo entre si os bens da vida e a liberdade que cria
rumos novos para a história.
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13.2 Egito: lugar de opressão e morte
Ao saber que os magos o haviam enganado, ou, em outras palavras, que os
magos não se deixaram cooptar pelos poderosos, Herodes ficou furioso (Mt 2,1619). Como dar um jeito no perigo que o ameaçava? Solução do desespero: matar
todas as crianças de Belém e dos arredores. No livro do Êxodo, o Faraó do Egito,
com medo de que os hebreus se multiplicassem, tornando-se um "perigo" para os
poderosos, também lançou mão de matar os recém-nascidos machos. Moisés,
porém, o futuro líder da libertação do seu povo, escapou. O mesmo acontece com
Jesus. Ele é o novo Moisés, o líder da libertação para todos aqueles que com ele se
comprometerem.
Interpretando essa matança, Mateus cita o profeta Jeremias: "Ouviu-se um
grito em Ramá, choro e grande lamento: é Raquel que chora seus filhos, e não quer ser
consolada, porque eles não existem mais" (Jr 31,15). Que mãe não chora ao ver seus
recém-nascidos mortos pela fome ou pela doença, muitas vezes antes de chegar ao
primeiro aniversário? Que povo não lamenta ao ver seus filhos esmagados por um
sistema que produz escravidão e morte? Mateus está lendo o profeta Jeremias, e
logo a seguir, no texto do profeta, Deus responde: "Segure os soluços e enxugue as
lágrimas, porque há uma esperança para a sua dor... existe esperança de um futuro:
seus filhos voltarão para a pátria" (Jr 31,16-17). Sim, Deus não vai deixar o
sofrimento de seus filhos sem resposta. Ela vem com Jesus, que vai mostrar o
caminho da justiça, de onde virá a liberdade e a vida, para todos. A vinda do
salvador custa caro, mas vale à pena, porque ele resgatará toda a dor, sofrimento e
morte. Da opressão e morte para a liberdade e a vida.
Quando a salvação ainda está em germe, deve ser protegida de todos os
modos. A árvore deve primeiro crescer, para depois dar os seus frutos. Sabendo
que o rei Herodes havia morrido, José volta com Maria e Jesus para a Palestina
(Mt 2,19-23). Não fica na Judéia, porque Arquelau, filho e sucessor do rei
Herodes, lá reinava. Não era nada melhor que seu pai. José e sua família vão então
morar na Galiléia. Essa região ao norte da Palestina era muito significativa no
tempo de Jesus. Aí estavam todos os descontentes com o governo, os principais
focos de subversão do sistema, assim como os movimentos revolucionários que
procuravam uma forma alternativa frente ao sistema econômico-político-social
vigente. Para aí vai Jesus, e é aí que irá desenvolver praticamente toda a sua
atividade. Da periferia para o centro, pois a Galiléia, em relação a Jerusalém, era
considerada a periferia, a ralé do povo de Deus.
O estabelecimento da família de Jesus na Galiléia é motivo para o
evangelista citar uma palavra profética difícil de identificar: "Ele será chamado
Nazareno". Nazareno é um nome que pode ser interpretado de muitos modos e um
deles é: aquele que foi consagrado a Deus. Neste sentido, o termo aparece no livro
dos Juízes 13,5.7, designando uma pessoa que vai realizar a ação de Deus para
salvar
o
seu
povo
de
uma
situação
difícil.
Jesus vai ser o homem totalmente consagrado ao projeto de Deus, que quer
salvar o povo, tanto dos inimigos externos, quanto dos inimigos internos.
Vivendo e revivendo a história do seu povo e de todos os povos, Jesus é o
homem totalmente consagrado a Deus para realizar o projeto que Deus havia
concebido desde toda a eternidade: libertar o seu povo das garras dos lobos
devoradores, para levá-lo à liberdade e à vida, a fim de construir um mundo onde a
justiça produz partilha e fraternidade.
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