excelentíssimo senhor doutor desembargador presidente do

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FRACIONAMENTO
DE
COMPRAS
COMO
FORMA
DE
BURLAR
A
OBRIGATORIEDADE DE LICITAÇÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS À LUZ DA LEI
8.429/92
JOSÉ FRANCISCO SEABRA MENDES JÚNIOR
1. Introdução.
A carta constitucional de 1988 introduziu no Direito Público
Brasileiro a figura da
improbidade administrativa1. Até então, a ordem jurídico-
constitucional apenas previa o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no
caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública2.
Em seu art. 15, inc. V, a CF de 1988 previu a possibilidade da
suspensão de direitos políticos, no caso de improbidade administrativa.
A norma do art, 37, § 4º, da CF, por sua vez, dispôs a respeito
das sanções cabíveis aos atos de improbidade administrativa, a saber, suspensão dos
direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao
erário.
Até 1988, segundo lição de JOSÉ ARMANDO DA COSTA, in Controle Jurídico da Improbidade
Administrativa, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 17, a improbidade, como delito disciplinar, existia apenas
no campo do Direito do Trabalho, configurando, na previsão do art. 482, “a”, da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), uma das faltas graves capaz de ensejar, por justa causa, a rescisão do contrato de trabalho
por parte do empregador.
2 Consoante escólio de MARINO PAZZAGLINI FILHO, MÁRCIO FERNANDO ELIAS ROSA e WALDO
FAZZIO JÚNIOR, in Improbidade Administrativa - Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. São
Paulo: Atlas, 1996, p.35.
1
Oportuno observar que a verificação de atos de improbidade
administrativa pressupõe a compreensão dos princípios informadores da administração
pública, que constam expressamente do catálogo do art. 37, ‘caput’3, da Constituição
Federal.
No âmbito da normatização infraconstitucional, a Lei 8.429/92
constituiu um marco no controle dos atos da administração pública, trazendo consigo um
catálogo tipológico dos atos que configuram improbidade administrativa e das respectivas
sanções, distinguindo, em seus arts. 9o, 10 e 11, três categorias de condutas a serem
reprimidas: atos de improbidade administrativa que importem enriquecimento ilícito; atos
de improbidade administrativa que causem prejuízo ao erário; e atos de improbidade
administrativa que atentem contra os princípios regentes da administração estatal.
De outra banda, na esteira do movimento social que exigia maior
transparência na administração pública, adveio a Lei nº 8.666/93, a qual passou a regrar
todas as licitações e contratos administrativos nas esferas federal, estadual e municipal.
Um dos princípios basilares trazidos pela Lei 8.666/93 foi o da
obrigatoriedade da licitação4 para a contratação de obras, serviços, compras e alienações
pela administração pública, ratificando a exigência já estabelecida anteriormente no art.
37, XXI, da Constituição Federal, e consagrando a objetividade5 dos julgamentos na
apreciação das propostas, de modo a dotar de total transparência os contratos
administrativos.
Segundo o ‘caput’ do art. 37, a administração pública deve obedecer aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
4 Art. 2o: “As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e
locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas
de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei”.
5 Toshio Mukai, in O Novo estatuto Jurídico das Licitações e Contratos Públicos, São Paulo: Ed. RT, 1993, p.
22, preleciona que “o princípio do julgamento objetivo exige que os critérios de apreciação venham
prefixados, de modo objetivo, no instrumento convocatório, de tal modo que a comissão de julgamento
reduza ao mínimo possível seu subjetivismo”.
3
2
O presente estudo visa abordar as conseqüências, à luz da Lei
8.429/92, da dispensa indevida do processo de licitação nas compras da administração
pública, especificamente nos casos de dispensa pelo pequeno valor do contrato, onde
tenha sido utilizado expediente fraudulento consubstanciado no fracionamento de
despesas, de forma a tentar legitimar a contratação direta indiscriminada, adequando-a
aos valores previstos na Lei 8.666/93, em relação aos quais é dispensada a realização de
licitação.
2.A obrigatoriedade de licitação e as exceções legais.
A obrigatoriedade da realização da licitação, nos termos do art. 3 o
da Lei 8.666/936, visa assegurar a igualdade de oportunidades entre os interessados em
contratar com o Poder Público, e, concomitantemente, possibilitar a escolha objetiva da
proposta mais vantajosa para a Administração.
Para que seja analisada a eventual ocorrência de improbidade
administrativa pela não-realização da licitação obrigatória, deve
ser examinada,
primeiramente, em cada caso, eventual incidência das hipóteses de dispensa ou
inexigibilidade de licitação, trazidas nos arts. 24 e 25 Lei 8.666/93.
O presente trabalho restringe-se à análise dos casos em que o
administrador utiliza-se do expediente fraudulento de fracionar indevidamente
determinadas despesas relativas a compras, a fim de permitir que, com o parcelamento,
“Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar
a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com
os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da
probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhe
são correlatos”.
6
3
os valores individuais de cada contrato não ultrapassem os limites da dispensa de licitação
face ao pequeno valor contratado. Assim, para os fins restritos a que se propõe este
estudo, cumpre sejam examinados apenas os incisos I e II do art. 24 da Lei de Licitações,
que se referem especificamente à possibilidade da dispensa de licitação face à
contratação de pequeno valor.
O art. 24, inc. I, da Lei 8.666/93, com redação dada pela Lei
9.648/98, dispõe que a licitação é dispensável “para obras e serviços de engenharia de
valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea ‘a’ do inciso I do artigo anterior,
desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para
obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas
conjunta e concomitantemente” (o grifo é nosso).
Já o art. 24, inc. II, da Lei 8.666/93, também com redação dada
pela Lei 9.648/98, reza que a licitação é dispensável “para outros serviços e compras de
valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea ‘a’ do inciso II do artigo
anterior7, e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a
parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser
realizada de uma só vez” (o grifo é nosso).
A dispensa da licitação para contratações de pequena monta
nada mais é do que conseqüência do princípio da economicidade, justificando-se para
impedir a onerosidade decorrente do tempo despendido e dos recursos materiais e
pessoais utilizados na realização de um certame licitatório, quando desproporcionais tais
custos em relação ao valor do contrato a ser firmado. A respeito, oportuno transcrever a
lição de MARÇAL JUSTEN FILHO8, quando ressalta que as hipóteses previstas nos
A norma do art. 24, II, da Lei 8.666/93 (redação dada pela Lei 9.648/98) deixa saber que é dispensável a
licitação para compras de valor de até 10% (dez por cento) do limite previsto no art. 23, II, letra “a”, da Lei
8.666/93 (redação dada pela Lei 9.648/98). Como o limite previsto no art. 23, II, letra “a”, da Lei 8.666/93 é
de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), o limite para a dispensa de licitação, a partir de 27/05/98, início da
vigência da Lei 9.648/98, passou a ser de R$ 8.000,00 (oito mil reais) em caso de compras.
8 Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Ed. Dialética, 1999, p.222.
7
4
incisos I e II do art . 24 da Lei 8.666/93 dizem respeito à “manifestação de desequilíbrio na
relação custo/benefício”, nos casos em que o “custo econômico da licitação é superior ao
benefício dela extraível”.
Para que haja a dispensa da licitação face ao pequeno valor do
contrato, entretanto, imperativa é a observância rigorosa dos requisitos legais. No caso
do inciso I do art. 24 da Lei 8.666/93, ou seja, para obras e serviços de engenharia, exige
o legislador, para a dispensa da refrega licitatória, que não se trate de parcelas de uma
mesma obra ou serviço, ou de obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local
que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente. Já na hipótese do inciso II do
art. 24, que trata de serviços diversos, compras e alienação, reza a Lei de Licitações que o
certame só pode ser dispensado para cada parcela se o serviço, a compra ou a alienação
não puder ser realizada de uma só vez. Nesses casos, no dizer de MARIA SYLVIA
ZANELLA DI PIETRO9, deve ser devidamente apresentada pela autoridade justificativa
adequada que contenha “as razões pelas quais não foi possível efetuar a compra ou
alienação ou contratar a prestação de serviços de uma só vez”.
Com efeito, o administrador público, ao efetuar a realização das
despesas atinentes a compras, deve planejar adequadamente os procedimentos
licitatórios, segundo a disponibilidade de sua dotação orçamentária. Como ensina JORGE
ULISSES JACOBY FERNANDES10, “as compras promovidas pela Administração Pública
devem ser precedidas de planejamento e ocorrer em oportunidades/períodos
preestabelecidos. A compra deve ser feita de uma só vez, pela modalidade compatível
com a estimativa da totalidade do valor a ser adquirido, mas sempre permitida a cotação
por item”.
9
10
Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos. São Paulo: Malheiros, 2001, p.171.
Contratação Direta sem Licitação. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 232.
5
No mesmo sentido, o ensinamento de MARINO PAZZAGLINI
FILHO, MÁRCIO FERNANDO ELIAS ROSA e WALDO FAZZIO JÚNIOR11:
“Não basta, pois, o pequeno valor do objeto a ser contratado. É
imprescindível que este não seja parcela de outro que deva ser regularmente licitado,
ainda que de forma sucessiva ou simultânea.
Em conclusão, não é lícito destacar pequenas obras e serviços
de ínfimo valor, de um conjunto de obras e serviços necessários ao bem comum, salvo
se
presentes
inafastáveis
razões
de
natureza
técnica,
inclusive
para
maior
competitividade (art. 8o, §1º)”.
Ao
comentar
ditos
dispositivos
legais,
LUIS
CARLOS
ALCOFORADO12 preleciona que “o escopo da regra foi o de coibir o fracionamento
irregular ou imotivado da licitação, tática, muitas vezes, traçada pelo mau administrador,
para contratar, de maneira ímproba e ilegal, com um apaniguado de sua preferência”.
Insta gizar que toda e qualquer dispensa de licitação deve estar
prévia e formalmente justificada, já que, segundo a lição de WALDO FAZZIO JUNIOR 13, “a
regra é a licitação. A dispensa é excepcional. A impossibilidade licitatória é ditada pelo
interesse público e por isso deve ser devidamente justificada. É requisito da seriedade e
da validade dos atos administrativos que haja a explicitação dos motivos da dispensa da
licitação, para que se possam confrontar os declinados pela Administração Pública com
os efetivamente existentes na realidade empírica”.
Todavia, lamentavelmente, constitui prática corriqueira na
administração pública a dispensa indevida e injustificada de licitação, ocorrida a partir do
irregular parcelamento de despesas, de modo a adequar fraudulentamente cada
contratação direta individual ao limite de R$8.000,00 estabelecido pela Lei 8.666/93.
Ob. cit., p. 80.
Licitação e Contrato Administrativo. Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p.137.
13 Improbidade Administrativa e Crimes de Prefeitos. São Paulo: Ed. Atlas, 2003, p. 139.
11
12
6
3.A improbidade administrativa nos casos de fracionamento
da despesa, como burla do certame licitatório.
3.1. Fracionamento de compras e a Lei 8.429/92.
A não-realização de licitação, quando obrigatório o certame
público, configura improbidade administrativa, que pode encontrar tipificação tanto no
catálogo da norma do art. 10 da Lei 8.429/92 como no da norma do art. 11 da Lei
8.429/9214.
Na primeira hipótese, a não-realização de licitação é
acompanhada de prejuízo ao erário, configurando improbidade administrativa justificada
pela norma do art. 10, VIII, da Lei 8.429/92; na segunda hipótese, a não-realização de
licitação configura improbidade administrativa por ofensa aos princípios que informam a
administração pública e também por violação aos deveres de honestidade, imparcialidade,
legalidade e lealdade, conforme se pode inferir da norma do art. 11, ‘caput’, da Lei
8.429/92.
Com efeito, bastante comum é o procedimento administrativo de
fragmentar as compras, no intuito de manter o valor de cada aquisição individual dentro do
limite imposto pela Lei 8.666/93, para viabilizar a dispensa de licitação. Assim, ao invés de
efetuar uma compra programada de determinado material, mediante procedimento
licitatório, o administrador opta por fragmentar a aquisição em pequenas compras, para
Em casos específicos, a não-realização de licitação pode ainda configurar improbidade administrativa com
enriquecimento ilícito, hipótese em que daí a tipificação é a da norma do art. 9º da Lei 8.429/92.
14
7
que o valor individual de cada uma delas esteja abaixo do limite de R$8.000,00,
oportunizando, destarte, a dispensa de licitação.
Em regra, o fracionamento irregular das despesas relativas a
compras pode ser detectado a partir da constatação da sucessiva contratação de
aquisição de mercadorias, em determinado período, ao invés da realização de licitação
única para oportunizar a compra destas mesmas mercadorias durante o mesmo período,
de um fornecedor selecionado a partir do certame público exigido em lei.
Consoante a lição de EMERSON GARCIA e ROGÉRIO
PACHECO ALVES15, a identificação do procedimento fraudulento, no fracionamento
indevido de despesas, deve ser feita com a análise individualizada das situações fáticas
que serviram de elemento deflagrador de cada um dos contratos, bem como com o exame
da natureza dos objetos das sucessivas contratações e a proximidade temporal entre as
transações, para que determinadas operações, que individualmente seriam lícitas, sejam
visualizadas em conjunto, de modo a restar demonstrado o seu fim juridicamente ilícito.
Para que se analise eventual ocorrência de irregularidade no
fracionamento de despesas, primeiramente cumpre seja examinado se houve alguma
circunstância excepcional a caracterizar a emergencialidade em cada uma das
contratações16. Depois, indispensável é a verificação da identidade de objeto em cada
uma das compras, como, por exemplo, sucessivas aquisições de medicamentos. Além
disso, recomendável a demonstração da proximidade temporal entre os contratos, de
modo a evidenciar a intenção do administrador de não realizar licitação, evitando a
estocagem de produtos, e de utilizar a contratação direta como única forma de aquisição
de determinado bem material, durante certo período.
Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 281.
Os incisos III e IV do art. 24 da Lei 8.666/93 autorizam a contratação emergencial com dispensa de
licitação nos casos de guerra, grave perturbação da ordem ou em casos de emergência ou calamidade
pública.
15
16
8
Cumpre, também, estabelecer uma diferenciação entre o
fracionamento de contratações previsto no art. 23, §5º, da Lei 8.666/93, com o
fracionamento realizado apenas para burlar a obrigatoriedade de licitação nas compras da
administração pública. O fracionamento contemplado pelo art. 23, §5º, da Lei de
Licitações, refere-se aos casos em que parcelas de natureza específica de uma obra ou
serviço podem ser executadas por pessoas ou empresas de especialidade diversa
daquela do executor da obra ou serviço globalmente considerado. Tal hipótese, no dizer
de JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR17 , constitui exceção à vedação do “uso do
convite ou tomadas de preços para licitar a execução de parcelas de obra ou serviço,
nas hipóteses que menciona”,
sendo que “a especialização derroga a vedação porque
resultaria preservada a regra geral de evitar o parcelamento da execução que favoreça
determinado licitante, em detrimento dos demais”.
Como visto, o fracionamento excepcional admitido no art. 23, §5º
da Lei de Licitações, aplicável apenas aos casos de obras e serviços, não se confunde
com o fracionamento indevido ora objeto de estudo. Novamente socorremo-nos da lição
de MARÇAL JUSTEN FILHO18, que, ao tratar do somatório de parcelas, elucida com
clareza o fundamento da vedação do fracionamento das despesas que podem ser
realizadas conjunta e concomitantemente, salientando que, em verdade, o fracionamento
é válido, contanto que as contratações fracionadas não sejam consideradas de forma
isolada, para fins de determinar o cabimento da realização de licitação ou mesmo para
escolha da modalidade do certame licitatório conforme o valor. Vejamos, pois, seu lapidar
escólio:
17
Comentários à Nova Lei de Licitações Públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p.124.
9
“Ou seja, é perfeitamente válido (eventualmente, obrigatório)
promover fracionamento de contratações. Não se admite, porém, que o fracionamento
conduza à dispensa de licitação. É inadmissível que se promova dispensa de licitação
fundando-se no valor de contratação que não é isolada. Existindo pluralidade de
contratos homogêneos, de objeto similar, considera-se seu valor global – tanto para fins
de aplicação do art. 24, incs. I e II, como relativamente à determinação da modalidade
cabível de licitação.
Não se admite o parcelamento de contratações que possam ser
realizadas conjunta e concomitantemente. Seria permitido o parcelamento para
contratações sucessivas? Não há resposta absoluta. Depende das circunstâncias, tal
como exposto a propósito do art. 23, §5º, especialmente quanto ao
princípio da
moralidade. Significa que, sendo previsíveis diversas aquisições de objetos idênticos,
deve considerar-se o valor global. A regra subordina a Administração ao dever de prever
todas as contratações que realizará no curso do exercício. Não se vedam contratações
isoladas ou fracionadas – proíbe-se que cada contratação seja considerada
isoladamente, para fim de determinação do cabimento de licitação ou da modalidade
cabível. Se a contratação superveniente derivar de evento não previsível, porém,
nenhum vício existirá em tratar-se os dois contratos como autônomos e dissociados”.
Estabelecido, pois, que o expediente de fracionamento de
compras pode vir a configurar procedimento fraudulento para dispensar a licitação de
realização obrigatória, cumpre examinar especificamente a caracterização do dano ao
erário e da violação dos princípios da administração pública, nesse tipo de conduta
administrativa.
3.2 Improbidade administrativa por dano ao erário.
O agente público não possui livre arbítrio para contratar, ao
contrário do administrador privado. Está ele jungido às restrições impostas pela lei, entre
18
Ob. cit., p. 223.
10
as quais a obrigatoriedade da licitação, como forma a assegurar a observância dos
princípios da impessoalidade, da legalidade, da eficiência, da publicidade e da moralidade
nos contratos administrativos. Além disso, mesmo nos casos de dispensa de licitação, o
princípio da economicidade também impõe ao administrador que, ao contratar, busque as
condições mais vantajosas para o erário, evitando, assim, que este possa sofrer qualquer
tipo de prejuízo na relação contratual19.
Efetuando sucessivas contratações diretas, com o nítido intuito de
frustrar a realização do certame licitatório, o administrador causa manifesto dano ao
erário, na medida em que não é viabilizada a livre concorrência de mercado, que, pelas
leis da economia, tende a reduzir os preços. Com isso, o Poder Público contrata
diretamente junto a determinado fornecedor, pagando preços superiores aos que poderia
obter em uma licitação, por não se permitir conhecer quais seriam as condições de preço
e pagamento propostas pelos demais fornecedores do mercado. Aliado a isso, não é raro
que reste constatada a sobrevalorização dos produtos adquiridos em contratos realizados
sem prévia licitação, de modo a viabilizar o enriquecimento ilícito de terceiros, em geral
apaniguados do administrador.
Por certo que em cada caso deverá ser analisada a efetiva
ocorrência do dano ao erário. Isto porque, no dizer de FRANCISCO OCTAVIO DE
ALMEIDA PRADO20, para fins de tipificação das condutas previstas no art. 10 da LIA, é
imprescindível a efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, não se aplicando, a
19
Nesse sentido, digno de registro é o acórdão proferido pelo TRF-2a R.: “A só dispensa do processo
licitatório não afasta o dever do administrador em pautar seus atos dentro dos princípios da moralidade
administrativa. O contrato ora mantido com a empresa impetrante afronta o princípio da economicidade, vez
que, mediante valor quase duplicado, está a se manter, por tempo indeterminado, na prestação de serviços,
a pretexto de ser dispensável a licitação” (1a T., AP nº 95.02127030-0 RJ, Rel. Juíza Julieta Lídia Lunz, j.
7/2/96, RT nº 728/391).
11
este artigo, a previsão do art. 21, inc. I21, do mesmo estatuto, já que a existência do
resultado danoso é elemento integrante do próprio tipo que prevê a infração. O exame da
ocorrência de lesão ao erário é viabilizado a partir da análise minuciosa dos preços
praticados nos contratos realizados sem prévia realização de licitação, em cotejo com os
preços de mercado da época do contrato.
Uma vez constatada a sobrevalorização dos produtos adquiridos
através da contratação direta, propiciada pelo expediente fraudulento da dispensa
indevida de licitação, estará caracterizado o dano ao erário, podendo ser aplicado, na
espécie, o art. 10, inc. VIII, da LIA, desde que reste demonstrada a existência da conduta
dolosa ou, no mínimo, com culpa grave por parte do administrador público.
3.3 A improbidade administrativa por ofensa aos princípios
da administração pública.
O art. 11, ‘caput’, da Lei 8.429/92 nada mais é do que uma
decorrência lógica do art. 37, ‘caput’, da CF e também do art. 4 o da LIA, que instituiu, na
legislação ordinária, o dever jurídico do administrador de obedecer aos princípios regentes
da administração pública22, na execução de seu mister. Isto porque incumbe ao gestor
público, no exercício da atividade estatal, observar rigorosamente a juridicidade de sua
conduta administrativa, de modo a não macular os ditames constitucionais indissociáveis
dos padrões de probidade administrativa de todos os atos do Poder Público.
Improbidade Administrativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 97.
Segundo a qual a aplicação das sanções da LIA independe da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio
público.
22 “Art. 4º “Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância
dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhes são
afetos”.
20
21
12
A correção desta assertiva pode ser demonstrada a partir da
norma do art. 37 da Constituição Federal, segundo a qual a administração pública deve
obedecer aos “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência”.
A respeito da conduta administrativa de fracionar compras ao
longo do exercício, com o intuito de não realizar o procedimento licitatório exigido em lei, é
clara a orientação jurisprudencial23:
“O Prefeito Municipal, como ordenador de despesas, não pode
deixar de ser responsabilizado criminalmente, nos termos do art. 89, da Lei nº 8.666/93,
quando burla a exigência de licitação, através de expedientes fraudulentos, como o
fracionamento de despesa ou, ainda, quando frauda o próprio certame, com propostas
contendo data anterior à do convite, condutas estas, ademais, diversas da descrita no
art. 1º, XI, do Decreto-Lei nº 201/67, pelo que não há falar em bis in idem. Recurso não
conhecido” (o grifo é nosso).
Se o ordenamento jurídico exige que a compra de determinados
bens, pela administração pública, seja precedida de licitação, a indevida e deliberada
dispensa do certame público configura prática de ato ilegal, com violação do princípio da
legalidade, com clara repercussão tanto na esfera criminal, com a aplicação do art. 89 da
Lei 8.666/9324, como com a aplicação da LIA, em sede de responsabilidade civil.
A respeito do princípio da legalidade, convém consignar o
magistério de HELY LOPES MEIRELLES25, quando salienta que ”o administrador público
está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências
23
RESP 504785 / PB ; RECURSO ESPECIAL 2002/0174356-9 , Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5a
Turma, j. 02/10/2003, publ. no DJ 28/10/2003, p. 338, capturado no saite www.stj.gov.br.
Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as
formalidades pertinentes à dispensa ou à exigibilidade. Pena- Detenção de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
24
13
do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato
inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”.
O agente que privilegia indevidamente determinado fornecedor, a
partir da contratação direta de determinado serviço, obra ou aquisição de produto, viola,
também, o princípio da impessoalidade. Sobre o princípio da impessoalidade, a teor do
art. 4º da Lei nº 8.429/92, ensina Marino Pazzaglini Filho et al, que este é “decorrência
direta do princípio democrático”, tendo o “administrador o dever de, como mero gestor da
res publica, não fazer seu ou de alguns aquilo que é de todos”. 26
Além disto, o princípio da moralidade, assim como o dever de
honestidade, também restam maculados com a inobservância da realização obrigatória de
licitação, senão vejamos.
Ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA27, citando Hauriou, que a
moralidade administrativa consiste “no conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina
da Administração”.
Portanto, ao utilizar o poder no qual foi investido por mandato popular,
para dispensar indevidamente o imprescindível certame licitatório, e beneficiar
indevidamente os fornecedores agraciados com as contratações diretas, o agente infringe
o princípio da moralidade e o dever de honestidade, ínsitos a todo administrador público. E
se a expectativa normativa é de que o administrador público paute sua conduta em
conformidade com o disposto no ordenamento jurídico, o comportamento administrativo
que desborda desse padrão de observância rigorosa dos parâmetros legais viola, também,
a moralidade administrativa.
Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 82-83.
Improbidade Administrativa. São Paulo: Atlas, 1999, p. 54.
27 Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: 1992, Malheiros Ed., p. 571.
25
26
14
A respeito do dever de honestidade, é lapidar o escólio de
FRANCISCO OCTAVIO DE ALMEIDA PRADO28, quando preconiza que este “é
conseqüência direta do princípio da probidade administrativa, que vem a ser um aspecto
da
moralidade administrativa(...), sendo “a probidade administrativa o dever de o
‘funcionário público servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício
das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em
proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer”.
4. Improbidade administrativa e elemento subjetivo.
Conforme lição de BENEDICTO PEREIRA PORTO NETO e
PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO29, para que determinada conduta possa
ser tachada de ímproba, a contrariedade ao ordenamento jurídico deve ter ocorrido em
condição especial, vale dizer, deve ofender a moralidade administrativa. Isto porque “a
imoralidade administrativa não pode ser tida apenas como violação de uma norma
jurídica”, já que não se pode reduzir a noção de ato ímprobo à de ato ilegal. Para que
reste configurada a conduta ímproba, é indispensável que a violação da norma esteja
qualificada pelo elemento subjetivo do agente administrativo, isto é, a vontade direcionada
ao atingimento de resultado ilícito e imoral.
Como é sabido, a Lei 8.429/92, ao instituir as sanções para as
práticas ímprobas, também trouxe consigo a exigência da análise do móvel da conduta do
agente, com vistas à caracterização ou não do ato de improbidade administrativa. Aliás,
como de regra no direito moderno, a Lei de Improbidade Administrativa trata de
responsabilidade subjetiva, sendo imperativo, destarte, o exame da eventual existência de
Ob. cit., p. 51.
Violação do Dever de Licitar e a Improbidade Administrativa, artigo extraído da coletânea ‘Improbidade
Administrativa- Questões Polêmicas e Atuais’, coord. por Cássio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de R.
Porto Filho. São Paulo: Malheiros, 2003, p.114.
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dolo30, nos casos dos arts. 9o e 11, e, no mínimo, de culpa grave, nos casos do art. 10 da
LIA31.
Isto porque, em se tratando de improbidade administrativa, onde a
responsabilidade civil é subjetiva, não é suficiente a só comprovação da relação de
causalidade entre a conduta do agente e o resultado, sendo imprescindível a constatação
do vínculo subjetivo entre a ação e o resultado prejudicial.
A
responsabilidade
pessoal
do
administrador
que
deliberadamente fraciona despesas atinentes à aquisição de um determinado produto e
ignora o somatório das parcelas, para viabilizar a indevida dispensa de licitação, resulta
evidenciada a partir do exame das condições fáticas em que descumprida a
obrigatoriedade do certame.
Com efeito, é bastante comum o fracionamento das despesas
com aquisição de medicamentos, pelos Municípios, onde resta clara a intenção do
administrador em não realizar certame licitatório, de modo a beneficiar indevidamente
seus apaniguados. O expediente utilizado é bastante simples. As compras de
medicamentos são fracionadas, sendo realizadas, em alguns casos, todos os dias ,
conforme a demanda dos postos de saúde e hospitais. Assim, o valor individual de cada
compra não supera o limite de R$8.000,00 estabelecido pela Lei 8.666/93. Todavia,
somados os valores de cada compra individual de medicamentos durante determinado
período, resta claramente descumprido o preceito constitucional da obrigatoriedade da
FÁBIO MEDINA OSÓRIO, in “Improbidade Administrativa – Observações sobre a Lei 8.429/92, Porto
Alegr: Síntese Ed., 1998, p. 135, conceitua dolo como “a intenção do agente que recai sobre o suporte
fático da norma legal proibitiva. O agente quer realizar determinada conduta objetivamente proibida pela
ordem jurídica”.
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A respeito, leia-se ALMEIDA PRADO, ob. cit., que salienta que a idéia de culpa é incompatível com a
noção de improbidade”, na medida em que esta última pressupõe um “desvio de ordem ética merecendo
uma qualificação infamante”, que “só muito excepcionalmente poderá admitir a modalidade meramente
culposa”.
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licitação. Observe-se que em se tratando de medicamentos, principalmente aqueles
integrantes da listagem dos remédios de atenção básica, é imperativo que o Município
realize periódica programação de compras, de modo a suprir constantemente seus
estoques, a fim de que não faltem medicamentos à população necessitada e para que não
tenha de adquirir produtos diretamente nas farmácias, ao preço de balcão. Ademais, ao
não realizar licitações para compra de remédios, resta indubitável que o agente público
tem a clareza de que a sua decisão administrativa representa indisfarçável favorecimento
a determinados fornecedores em detrimento de outros, configurando, assim, além de
possível dano ao erário, grave infração aos princípios da legalidade, da publicidade, da
eficiência, da impessoalidade e da moralidade administrativa, resultando também violados
os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade.
Eis aí a prova do dolo que se deve buscar no inquérito civil e
posteriormente na ação de responsabilidade por ato de improbidade administrativa, qual
seja, a vontade livre e consciente do agente público de violar os princípios da
administração pública ou então, mais além, de beneficiar indevidamente determinados
fornecedores, agraciando-os com sucessivas contratações diretas, valendo-se da
inobservância do somatório geral dos valores das compras relativas ao mesmo objeto, e
considerando cada compra isoladamente, para dispensar indevidamente o imprescindível
certame licitatório. Tal expediente fraudulento, que fraciona valores de compras, para que,
individualmente, não ultrapassem o limite para o qual está autorizado legalmente a
dispensar o certame licitatório, evidencia o dolo do gestor público, de modo a viabilizar a
imputação de ato de improbidade administrativa.
5. Conclusão.
A Lei Federal 8.666/93, com hialina clareza, preocupou-se em
vedar o parcelamento indevido do objeto a ser adquirido pela Administração, no caso da
contratação sem precedência de licitação. Isto tendo em conta a indivisibilidade do objeto,
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que deve ser mantido íntegro, de modo a evitar fragmentação de despesas que dão
margem a dispensas indevidas de licitação. Desta feita, o parâmetro para definir a
correção de eventual dispensa de licitação deve ser o objeto da contratação em sua
integralidade, consoante a quantidade suficiente para suprimento das necessidades já
existentes e previsíveis da Administração Pública, durante determinado período.
Resta claro que não está vedado ao administrador adquirir
determinado produto de forma parcelada, desde que esta fragmentação nas compras
relativas a objetos idênticos esteja prevista em um planejamento de despesas para o
exercício, de modo que o total de cada compra não seja considerado isoladamente para
fins de definir a necessidade da realização de licitação. Desta feita, impõe-se, no caso de
fracionamento de compras, que haja o somatório de todas as parcelas previstas para o
exercício, a fim de que se viabilize a programação prévia da realização de licitação, bem
como de sua modalidade.
Conclui-se, portanto, que ao administrador público está vedado
fracionar compras de produtos de idêntica natureza e considerar o valor isolado de cada
aquisição, para viabilizar a contínua e reiterada dispensa de licitação pelo pequeno valor,
ignorando o somatório das parcelas das demais compras dos produtos da mesma
natureza.
Cumpre ao Ministério Público, na condição de defensor da ordem
jurídica e do patrimônio público, tendo também a atribuição de zelar pela
responsabilização dos agentes tidos como ímprobos, examinar com rigor e bom-senso os
casos de fracionamento de compras pela administração pública, de modo a impedir a
disseminação das fraudes no fracionamento de despesas. Uma vez constatado o indevido
fracionamento das compras, com o propósito de burlar deliberadamente a obrigatoriedade
da realização de licitação, o caso é de ajuizamento de ação de responsabilidade por ato
de improbidade administrativa contra os ordenadores da despesa (Prefeito Municipal,
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Secretário Municipal da Saúde), tanto por eventual lesão causada ao erário, como pela
violação dos princípios regentes da administração pública.
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