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“O Tempo do Direito”, de François Ost
Carlos Aurélio Mota de Souza*
Acaba de ser publicada a obra de François Ost (Le temps du Droit, Paris,
Éditions Odile Jacob, 1999) pela Editora da Universidade Sagrado Coração, de
Bauru, tradução de Élcio Fernandes e revisão técnica deste autor, que se recomenda
aos nossos leitores.
Apesar de uma apresentação pouco concisa, e ausência de um índice
razoável, este livro de François Ost tem o mérito de colocar de maneira original a
questão de como o Tempo se articula com o Direito.
Para uma obra que se dirige sobretudo aos especialistas, ele conserva a
extrema vantagem de sublinhar que apesar de uma certa desordem na relação entre
o Direito e o Tempo, na verdade é a relação da sociedade com o tempo que está em
curso.
A questão do tempo não cessa de se colocar ao direito e à sociedade, entre
anistia e imprescritibilidade, medidas de urgência e desenvolvimento sustentável,
direitos adquiridos e leis retroativas, respeito aos precedentes e mudanças completas
na jurisprudência, etc.
Como, pois, equilibrar estabilidade e mudança no Direito? Como fundar uma
memória coletiva, libertando-se de todo um passado traumático ou obsoleto? Como
garantir o futuro através de regras, sempre revisíveis quando necessário?
Partindo-se da idéia de que o tempo pertence ao sentido e que ele mais se
institui do que se ganha, este livro interpreta as condições de um tempo público ou
social, que constitui um verdadeiro desafio para a democracia.
Comentários:
A obra analisada é um tratado dialético que joga com categorias contrárias:
-
tempo X direito
passado X futuro
estabilidade (imobilismo) X mutabilidade (revisão)
perdão (do passado) X promessa (do futuro)
memória (do passado) X revisão (do futuro).
Afirma o Autor que não é um trabalho de doutrina jurídica (dogmática), nem de
sociologia jurídica, ou mesmo de história do direito (historicismo), ainda que opere
com todas estas disciplinas, mas afirma ser Filosofia do Direito, com o que
concordamos, pois é nesta categoria que a obra deve ser classificada e publicada.
É um trabalho bem estruturado, com um objetivo bem definido: propor
mudanças sociais através do direito legislado, ou aquele aplicado pelos juízes.
Tem fortes raízes na cultura clássica, freqüentando o Autor a intimidade dos
gregos (Ésquilo, Platão, Aristóteles Parmênides, Protágoras, a Mitologia), deles
extraindo conclusões pertinentes à atualidade.
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Não está na linha da história horizontal, linear ou contínua, mas, ao contrário,
faz observações e críticas sérias, propondo mudanças político-jurídicas de viés social.
Neste sentido, utiliza conceitos da doutrina crítica do direito, na qual se inclui o
direito alternativo, que constitui forte tendência entre os juristas atuais no Brasil.
Como obra jusfilosófica apresenta visão e enquadramentos novos, o que
ensejará boa aceitação entre os pesquisadores e estudiosos da filosofia do direito, da
sociologia jurídica e mesmo da ciência política.
É um trabalho crítico das instituições, sem ser iconoclasta, como quando
critica as mudanças pela mudança (da lei), sem objetivos sociais definidos; a
urgência de reformas sem necessidades claras, mas para favorecer a economia ou
as políticas globalizantes, etc.
Prelúdio: Uma medida a quatro tempos
Cap. I: Memória. Ligar o passado
Utilizando-se com originalidade dos andamentos musicais, diz o Autor no
primeiro capitulo do livro que o direito liga o passado na digna lentidão de um
adaggio.
Nenhuma construção jurídica poderá esperar a negação do passado. Por
exemplo, a pena, em princípio, é uma “longa memória”, fixada pela lei e aplicada pelo
juiz, que sela por muito tempo as faltas passadas. Também o costume reconstrói o
passado e o assenta como fundamento do agir jurídico.
Cap. II: Perdão. Desligar o passado
O direito pode desligar o passado, ao modo do andante, quando define e
prevê o desuso das leis, a prescrição das obrigações, a anistia dos atos e das
condutas humanas.
Neste campo, o perdão é uma categoria jurídica, resolvendo a contradição
entre o respeito legal da memória (o passado que nunca passa) e a exigência legal
da remissão (o passado que não deve barrar a chegada do futuro).
Cap. III: Promessa. Ligar o futuro
O direito liga o futuro, com a vivacidade de um allegro. Diz o Autor que toda a
modernidade jurídica "gira em torno da promessa": constituições, contratos,
arbitragens são instrumentos jurídicos próprios para organizar o futuro, a partir do
momento presente, quando são escritos, selados, publicados.
Por isso, o futuro, no qual o direito inscreve sua promessa, é um futuro
prometêico, em permanente reelaboração.
Cap. IV: Revisão. Desligar o futuro
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O direito deve contribuir e atender à reconquista do futuro, como meta
essencialmente democrática, que o Autor coloca sob o signo do agitato.
Para não congelar o futuro desde o início, o direito é chamado a desligar e ao
mesmo tempo ligar o futuro, pois os desvios são reais e flagrantes: práticas
judiciárias "fora do ordenamento", procedimentos de urgência com injustiças jurídicas,
exclusão social que reduz o direito do trabalho à impotência, etc.
A democracia e seus fundamentos jurídicos só têm sentido na duração ou
necessidade do tempo.
AVALIAÇÃO:
1.
Concisão e objetividade
As obras sobre Filosofia do Direito nem sempre podem ser concisas, como os
escritos destinados a um livro didático.
A filosofia, em si mesma, exige explanações lógicas, dialéticas, conceituais,
argumentativas etc, que não se presumem sinteticamente; ao contrário, sóem ser
analíticas e problemáticas, como convém.
a) Concisão – a obra de François Ost tem, assim, caráter analítico e explicativo no
mais amplo sentido. Suas teses sobre o Tempo (passado e futuro, perdão e
promessa, memória e revisão) e sobre o Direito (estabilidade, imobilismo,
segurança jurídica versus mutabilidade, construção, revisão), devem ser
entendidas com uma leitura atenta de seus questionamentos.
b) Objetividade – é clara quanto ao propósito ou metas (teses) a que quer chegar
(ou demonstrar): o tempo é uma instituição social, participa da natureza das
coisas, não exterior, de conteúdo formal e vazio; o direito é o centro de sua obra,
e entre os dois há uma interação dialética: o direito temporaliza e o tempo institui.
O livro se fundamenta em quatro categorias normativas e temporais, que se
entrecruzam de forma dialética, mas harmônica: memória, perdão, promessa e
revisão (remise em question). Como diz o Autor, o livro tem dupla entrada: o Direito
revela o tempo metamórfico, alternância entre avanço e atraso; e o Tempo revela o
Direito, sendo ponto central a confiança (boa fé, lealdade), raiz de todas as relações
jurídicas.
2.
Atualidade do tema
Observa-se que a literatura jurídica, nacional e estrangeira, tem tratado da
questão do tempo no direito (ou o direito no tempo) em várias escolas ou versões.
Entre nós, o filósofo do direito e mestre excepcional, Miguel Reale, tem
extensas obras filosóficas nessa linha temática: Horizontes do Direito e da História,
Paradigmas da Cultura Contemporânea, O Homem e seus Horizontes, Pluralismo e
Liberdade, O Direito como Experiência, Experiência e Cultura, além de obras sobre
Política e Teoria do Estado.
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De Nelson Saldanha, jurista em Recife, destacamos O Problema da História
na Ciência Jurídica Contemporânea, Historicismo e Culturalismo, Teoria do Direito e
Crítica Histórica.
Norberto Bobbio, reconhecido filósofo italiano, mescla em suas obras filosofia,
economia, sociologia e política, procurando justificar e incentivar as mudanças no
Direito.
Walter Friedman, em seu El Derecho en una sociedad em transformación,
apresenta sua teoria das mudanças sociais e das instituições jurídicas, chegando a
atribuir aos tribunais a responsabilidade por esta atualização do direito.
Vale citar o Archives de Philosophie du Droit, de edição anual, especialmente
a de 1959 (Paris, Sirey), dedicada ao tema Droit et Histoire, com sete excelentes
estudos sobre o assunto.
3.
Enfoque e qualificação do Autor sobre o tema
Jurista e filósofo, especialista em direitos do homem e direito ambiental,
François Ost ensina em Bruxelas (Faculdades Universitárias Saint-Louis). Dirige a
Academia Européia de Teoria do Direito e preside a Fundação para as Gerações
Futuras.
Tem publicados várias obras e artigos, reconhecidos internacionalmente, no
campo da filosofia do Direito, como Du Sinaï au Champ-de-Mars; L'autre et le même
au fondement du droit; La glaive et le sablier (informações da Éditions Odile Jacob).
4.
Público a que se destina a obra
Evidentemente, este trabalho se destina aos juristas acadêmicos do Direito,
filósofos ou não, que busquem estudos sobre a transformação do direito, a evolução
da política como arte do bem comum (leia-se, hoje, defesa da dignidade da pessoa
humana e da cidadania) e sobre as dimensões universais do direito, a que o
fenômeno da globalização está nos levando.
Bem por isso, assiste-se hoje a um forte incremento das publicações em geral,
mormente as jurídicas e filosóficas, podendo-se, assim, contar com um público bem
definido entre juristas, sociólogos e cientistas políticos, em número considerável,
dada a multiplicação benéfica de Universidades públicas e privadas.
5.
Apreciação geral
Esta obra mereceu primorosa edição pela EDUSC porque a) é original em sua
concepção; b) seu tema é moderno; c) coaduna-se com o universo atual das
filosofias do direito publicadas; d) é uma contribuição positiva para estudos jurídicos,
filosóficos, sociológicos, políticos e até mesmo históricos, sobre um tema que poucos
autores têm abordado.
Lembramos as diversas e quase simultâneas edições de livros igualmente
valiosos, editados pela Martins Fontes Editora: de Chaïm Perelman, Retóricas,
Tratado da Argumentação, Ética e Direito, O império do Direito (Dworkin), Dicionário
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de Filosofia (Abbagnano), Teoria Pura do Direito (Kelsen). Uma teoria da Justiça
(Rawls), etc.
6.
Recomendação
É a apreciação que fazemos para a leitura de um livro instigante pelo
conteúdo, originalidade de idéias e abrangência cultural, ligando nossa cultura
moderna diretamente às mais profundas raízes helênicas e romanas.
Last but not last, é obra destinada a se tornar clássica, no sentido filosófico,
pela originalidade na problematização dos vários temas tratados.
Carlos Aurélio Mota de Souza é Consultor jurídico e acadêmico, Mestre e
Doutor pela USP; Livre-docente em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela UNESP;
Professor da Universidade Ibirapuera; Professor e orientador de Cursos de Pósgraduação em Direito; Membro do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do
Brasil-Seccional de São Paulo; do Instituto Jacques Maritain do Brasil.
Obras Publicadas: Poderes Éticos do Juiz (P. Alegre, Sérgio A Fabris, 1989),
Debêntures. Atualidade e Disciplina segundo a Lei das Sociedades Anônimas.
(S. Paulo, Jalovi, 1990); Segurança Jurídica e Jurisprudência (S. Paulo, LTr,
1996); Direitos Humanos, Urgente! (S. Paulo, Oliveira Mendes, 1998); Direitos
Humanos In: “Cultura dos Direitos Humanos” (S. Paulo, Instituto Jacques Maritain/
LTr, 1998). Franco Montoro, Humanista e Político. Co-org. (S. Paulo, Loyola,
2001). Medidas Provisórias e Segurança Jurídica, Org. (S. Paulo, Juarez de
Oliveira, 2003). 50 anos de Direitos Humanos. Org. (S. Paulo, Themis, 2003).
Traduções: Políticas da natureza, de Bruno Latour (Bauru, EDUSC, 2004). As
Mídias e a Justiça. (Idem, no prelo).
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