Émile Durkheim e o Direito: um Contraponto com o Conceito Kelsiano - Em uma sociedade que, por um lado, repete a afirmação jurídica e filosófica de que todos os seres humanos são iguais, por outro, as condições materiais de vida não permitem a todos o acesso a tais direitos, pois está instalada na sociedade a desigualdade social. - Frente a essa sociedade extremamente conflituosa, em que a promessa jurídica não se efetiva na prática, o que coloca constantemente em risco a manutenção do status quo dos que detêm poder político, econômico e religioso, é que surge a necessidade de se compreendê-la cientificamente. - Surge, então, historicamente, a primeira escola sociológica, a Escola Positivista, encabeçada por Augusto Comte e posteriormente por Émile Durkheim, inaugurando o campo científico do estudo da sociedade. Os positivistas são evolucionistas, organicistas e acreditam na neutralidade do cientista social. - Interessa-nos em especial, ao se procurar situar o pensamento de Durkheim no universo do positivismo jurídico, a compreensão de alguns aspectos dessa doutrina, em particular a elaborada por Hans Kelsen, pai do chamado normativismo Jurídico. - Apesar de reconhecer que o Direito é um fato social, em conformidade com o pensamento de Durkheim, Kelsen afirma que tal ciência, a jurídica, é autônoma e independente, possuindo objeto próprio, que é a lei. - Para Kelsen, o estudo da validade da lei corresponde ao estudo do “dever ser”, e cabe ao jurista apenas descrever o “dever” embutido na norma jurídica. Aqui também se apresentam os elementos metodológicos do positivismo sociológico de neutralidade do cientista e descrição imparcial dos conteúdos do objeto que investiga, circunstância que aproxima, portanto, Kelsen e Durkheim. - Para Hans Kelsen, a tese durkheimiana pecaria pelo enaltecimento da consciência coletiva e da solidariedade social. Kelsen não se preocupa com os valores subjacentes às condutas humanas, que considera subjetivos e relativos, insuscetíveis de apreensão racional, muito embora não afaste a existência de valores geralmente aceitos dentro de certa sociedade, que acabam compondo o conteúdo das normas jurídicas. - A preocupação fundamental do pensamento kelseniano é com a validade do Direito enquanto ordenamento normativo. Nesse sentido, é possível afirmar que, para Kelsen, o Direito vale por si próprio e, para os fins de uma Ciência do Direito, sua eficácia social é menos importante do que sua validade. - Enquanto Kelsen, no esforço de definir os limites da ciência jurídica, privilegia a norma, portanto o “dever ser” e a validade, como objetos primordiais desta ciência, Durkheim, na trilha dos estudos sociológicos, prioriza a eficácia como elemento fundamental dos estudos do Direito. - Para Kelsen, a eficácia deve ser estudada pelo jurista apenas como elemento integrante da validade da ordem jurídica como um todo, para Durkheim, ao contrário, não somente a eficácia, como também o próprio Direito, devem ser estudados pelo sociólogo como um fato social e, mais do que isso, como o símbolo visível da própria solidariedade social, objeto de estudo, por excelência, da Sociologia. Max Weber e o Direito - A sociologia weberiana do Direito foi concebida nas redes do processo de racionalização peculiar que Weber diagnosticou nas sociedades ocidentais. O traço característico da racionalização da civilização ocidental é o fato de tratar-se de um processo de intelectualização universal (não restrita a um setor determinado da atividade humana) e progressiva da vida, despojando o mundo de seus encantos e o transformando cada vez mais em obra artificial do homem, de modo a tornar-se progressivamente mais sujeito a ser governado pelos mesmos princípios técnico-instrumentais com que, por exemplo, planeja-se o funcionamento de uma máquina. - No campo específico do Direito, o evento mais significativo do processo de racionalização da sociedade ocidental foi a separação entre Moral e Direito. Com a identificação crescente entre legitimidade e legalidade, o direito foi tornando-se cada vez mais instrumentalizável, enfraquecendo-se gradativamente os laços entre o direito e a eqüidade baseados nos contratos entre sujeitos livres e iguais. - Weber chamou a impossibilidade de justificação racional dos valores e fins últimos de alguns diante dos dos outros de “irracionalidade ética do mundo”. Sempre, no mundo desencantado, a ética e a moral de alguns vão parecer, aos olhos dos outros, manifestação ideológica de interesses instrumentais, localizados e corporativos, e nunca poderão se constituir em postulados de validade universal. - A questão é que, para Weber, o direito que chegou a ser o reino da liberdade individual quando se sustentava sobre os preceitos do Direito Natural Racional, no trajeto de sua positivação, ou seja, no processo de diferenciação entre moral e direito (o qual implicou uma crescente capacidade de instrumentalização do direito), tornou-se a simples cristalização de interesses corporativos de grupos sociais politicamente organizados. - Nesta nova função social, distante de qualquer princípio moral, o direito tornou-se simplesmente instrumento, disputado por grupos sociais distintos, para obtenção de privilégios sociais e econômicos. Marx e o Direito O direito como realidade dialética: - Um objetivo recorrente nos textos em que Marx trata do direito é o de demonstrar o caráter dialético de todas as criações jurídico-normativas. Em outras palavras, é o costume de se afirmar um “direito contra outro direito”. Todo direito, para Marx, é tradução de posições e interesses das classes dominantes. - Marx salientou que, assim como um homem não deve ser confundido com aquilo que ele pensa de si mesmo, as intenções profundas dos grupos políticos tampouco podem ser confundidas com os objetivos professos dos seus estatutos e documentos. A lei, para Marx, é uma espécie de documento por meio do qual uma ou várias classes coligadas manifesta(m) o seu pensamento. Por isso, não é possível entendê-la de acordo com a letra, nem de acordo com o “espírito”, se tomarmos esta última como a finalidade expressa da lei. - Depois de falar no direito burguês, como se fosse “todo o direito”, o que se apresenta, afinal, não é a morte do Direito, mas daquele mesmo “direito burguês”, para desfraldar-se a bandeira de outro princípio jurídico: “de cada um, conforme as próprias aptidões; a cada um, segundo as suas necessidades”. - O desaparecimento do direito previsto por Marx não é o desaparecimento de todo o direito, mas apenas do direito burguês, que deverá ser substituído por padrões normativos novos, identificados com o clamor dos espoliados. Essa substituição do direito burguês pelo direito socialista do porvir nada mais é do que uma evolução resultante da natureza dialética do direito atual. A idéia de justiça em Marx: - Toda obra que desenvolve e atribui grande ênfase a juízos de valor sobre estruturas sociais pressupõe uma teoria da justiça. Não há julgamento possível, sem referência a um padrão de justiça. Ao enfatizar que, em todos os modos de produção históricos, sempre existiu a exploração da maior parte das pessoas por uma minoria poderosa e privilegiada, Marx acabou por desenvolver uma teoria específica sobre justiça. Pode-se afirmar que essa teoria assenta-se na constatação de que, dentre todos os critérios segundo os quais os fatos da vida humana podem ser valorados, o critério econômico tem a primazia. - Como é impossível julgar sem se adotar um critério de justiça, pode-se afirmar que Marx abraçou uma concepção muito bem definida e peculiar de justiça: a concepção segundo a qual justo é o que se coaduna com a satisfação das necessidades econômicas dos seres humanos. - Nos tempos atuais, embora excedentes produtivos tenham-se tornado comuns, o desenvolvimento de um sistema cultural que incentiva, quando não demanda irresistivelmente, a apropriação e o consumo ilimitados de bens torna a mais-valia uma necessidade cultural. De modo que a condenação dessa prática não pode decorrer da simples constatação da apropriação dos produtos do labor da classe trabalhadora pelos capitalistas. Pelo contrário, a mais-valia parece assentar-se numa necessidade irresistível, nas condições em que o sistema capitalista se forma e se desenvolve. - Como se vê, mesmo constituindo uma das contribuições mais realistas até hoje propostas a respeito dos critérios com base nos quais a estrutura normativa das sociedades se constrói, a concepção de justiça de Marx não é isenta de grandes dificuldades. Se é preciso encontrar formas de organização social que respeitem mais a contribuição efetiva de cada ser humano para a produção de bens e serviços, isso não deve ser feito com base em julgamentos coletivos, em julgamentos de classes, mas com base na ampliação da cooperação entre as pessoas e as classes de que a sociedade é constituída. → Bibliografia: Lemos Filho, Arnaldo. Sociologia Geral e do Direito. 2a ed. Campinas, SP: Editora Alínea, 2005.