A IMPOSSIBILIDADE DE COMPENSAÇÃO DE RESERVA LEGAL MEDIANTE DOAÇÃO DEÁREA LOCALIZADA NO INTERIOR DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO. Sandra Cureau1 I. Introdução. II. Histórico das áreas de Reserva Legal. III. Regime jurídico das áreas de Reserva Legal. IV. Regime legal das Unidades de Conservação. V. Inconstitucionalidade da desoneração do dever de recompor ou regenerar a reserva florestal legal, pela doação de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público. VI. Referências. “Cuando está em juego la naturaleza, se trata de navegar, pero conservando el mar y el cielo y las estrellas que nos guián.” (Ricardo Luis Lorenzetti). I. Introdução As áreas de Reserva Legal fazem parte dos espaços territoriais especialmente protegidos, criados pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente - Lei nº 6.938/81, com a redação conferida, pela Lei nº 7.804/89, ao seu art. 9º, inciso VI. Como já escrevemos anteriormente2, espaço territorial especialmente protegido é qualquer espaço ambiental, instituído pelo Poder Público, sobre cujos atributos naturais incida proteção jurídica, integral ou parcial. É, portanto, gênero, que inclui as Unidades de Conservação, as áreas protegidas e os demais espaços de proteção específica, entre os quais os estão as áreas de Reserva Legal. “A todos esses espaços, a CF/88 garante proteção especial, consubstanciada na necessidade de edição de lei formal para sua alteração ou extinção.”3 As áreas de Reserva Legal dizem respeito a um percentual da propriedade rural que não pode sofrer corte raso. Sua finalidade precípua é a manutenção de parte representativa 1 Subprocuradora-Geral da República, Vice-Procuradora-Geral Eleitoral, Coordenadora da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural), Vice-Presidente da Associação Brasileira do Ministério Público de Meio Ambiente – ABRAMPA, diretora-cultural do Instituto O Direito por um Planeta Verde, doutoranda em direito pela Universidade de Buenos Aires – UBA. 1 LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 3 LEUZINGER, Márcia Dieguez. Meio ambiente, propriedade e repartição constitucional de competências. Rio de Janeiro: Esplanada, 2002. de todos os ecossistemas existentes no país. Nos termos do art. 16 do Código Florestal, as florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as Áreas de Preservação Permanente, são passíveis de supressão, desde que se mantenha, a título de reserva legal, os seguintes percentuais, insuscetíveis de sofrer corte raso: a) 80% na propriedade situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; b) 35% em área de cerrado situada na Amazônia Legal; c) 20% nas demais regiões do país, seja qual for o ecossistema; d) 20% em áreas de campos gerais localizadas em qualquer região, inclusive na Amazônia. O regime jurídico das áreas de Reserva Legal é distinto daquele aplicado às Áreas de Preservação Permanente, sendo permitida sua utilização, desde que sob a forma de manejo sustentável, de acordo com princípios e critérios técnicos e científicos (art. 16, § 2º, do Código Florestal). Sustenta Paulo Affonso Leme Machado4 que “a Reserva Florestal Legal dos arts. 16 e 44 do Código Florestal somente incide sobre o domínio privado, sendo que as Áreas de Preservação Permanente incidem sobre o domínio privado e público”. Entretanto, não é essa a diferença entre as duas modalidades de espaços territoriais especialmente protegidos. A obrigatoriedade de manutenção de áreas de reserva legal aplica-se tanto às propriedades privadas quanto às propriedades públicas. Isso porque, após a alteração do Código Florestal pelas sucessivas medidas provisórias, cuja última edição foi a MP n° 2166/01, a ressalva contida no caput do art. 16, em sua redação original, relativamente ao Poder Público, foi revogada, não havendo mais a exceção legal anteriormente existente. Tampouco está presente semelhante restrição na definição de reserva legal oferecida pelo art. 1º, inciso III, introduzido pela citada MP: “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”. Já as Áreas de Preservação Permanente têm “a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico da fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.5 Seu âmbito de proteção ambiental é, portanto, muito mais amplo. 4 5 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 11ª Ed., 2003, p. 717. Resolução CONAMA nº 302, de 2002. II. Histórico das áreas de Reserva Legal - A Reserva Florestal Legal6 é modalidade de espaço territorial especialmente protegido, tendo encontrado previsão normativa no Decreto Federal nº 23.793/34, conhecido como “Código Florestal de 1934”, que dispunha em seu art. 23: “Nenhum proprietario de terras cobertas de mattas poderá abater mais de tres quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos arts. 24, 31 e 52.” A Lei 4.771/65 - o “Código Florestal de 1965” - menciona pela primeira vez o termo Reserva Legal, estabelecendo em seu art. 44 que: “Na região Norte e na parte Norte da região Centro-Oeste enquanto não for estabelecido o decreto de que trata o artigo 15, a exploração a corte razo só é permissível desde que permaneça com cobertura arbórea, pelo menos 50% da área de cada propriedade. Parágrafo único. A reserva legal, assim entendida a área de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento), de cada propriedade, onde não é permitido o corte razo, deverá ser averbada à margem da inscrição da matrícula do imóvel no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento da área.” (grifo nosso) Após uma série de alterações por medidas provisórias (cuja edição foi iniciada em 1996, com a MP 1.511/96) e intensos debates no Congresso Nacional e em toda a sociedade brasileira, a regulamentação vigente consolidou- se em 2001, com a publicação da MP 2.166-67. As modificações na legislação florestal foram promovidas sob o impacto dos alarmantes índices de desmatamento então divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE e, em razão disso, além da obrigação de recompor e restaurar as reservas legais no 6 O termo “reserva florestal legal” será utilizado no decorrer deste artigo, pois é o termo adotado pela doutrina ambiental brasileira. Todavia, o termo refere-se não apenas às formações vegetais caracterizadas como “floresta”, mas às formações vegetais que caracterizam os diversos biomas e ecossistemas naturais brasileiros. interior de cada propriedade, determinou-se, para a região amazônica, um aumento de sua extensão – de 50% para 80% da propriedade. A legislação estabelece que essa extensão poderá ser reduzida, nos termos do art. 16, § 5ª, I da Lei 4.771/65 a até 50% da propriedade, desde que previsto no Zoneamento Ecológico Econômico, ouvidos o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura.7 Assim, por meio da medida provisória 2.166-67 foram introduzidos dispositivos legais ao Código Florestal, dando novos contornos jurídicos à reserva florestal legal, conferindo maior precisão à sua definição, consolidada no art. 1º, inciso II como: “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.” Ocorre que a Lei 11.428, de 2006, conferiu ao § 6º do art. 44 da Lei 4.771/65 a seguinte redação: “O proprietário rural poderá ser desonerado das obrigações previstas neste artigo, mediante a doação ao órgão ambiental competente de área localizada no interior de unidade de conservação de domínio público, pendente de regularização fundiária, respeitados os critérios previstos no inciso III do caput deste artigo. (Redação dada pela Lei nº 11.428, de 2006)”8 Tal dispositivo legal desonera o proprietário ou possuidor de imóvel rural das obrigações descritas nos incisos I, II e III, do art. 44 da Lei 4.771/65, segundo o qual: Art. 44. O proprietário ou possuidor de imóvel rural com área de floresta nativa, natural, primitiva ou regenerada ou outra forma de vegetação nativa em extensão inferior ao estabelecido nos incisos I, II, III e IV do art. 16, ressalvado o disposto nos seus §§ 5o e 6o, deve adotar as seguintes alternativas, isoladas ou conjuntamente: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) I - recompor a reserva legal de sua propriedade mediante o plantio, a cada três anos, de no mínimo 1/10 da área total necessária à sua complementação, com espécies nativas, de acordo com critérios estabelecidos pelo órgão ambiental estadual competente; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) II - conduzir a regeneração natural da reserva legal; e (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) 7 Os estados do Acre e de Rondônia já reduziram a reserva legal,conforme a previsão normativa do Código Florestal. Atualmente, o Conselho Nacional do Meio Ambiente analisa a solicitação do estado do Pará. 8 Redação anterior: “§ 6o O proprietário rural poderá ser desonerado, pelo período de trinta anos, das obrigações previstas neste artigo, mediante a doação, ao órgão ambiental competente, de área localizada no interior de Parque Nacional ou Estadual, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva Biológica ou Estação Ecológica pendente de regularização fundiária, respeitados os critérios previstos no inciso III deste artigo.” (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) III - compensar a reserva legal por outra área equivalente em importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma microbacia, conforme critérios estabelecidos em regulamento. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001) A desoneração do dever de manter uma Reserva Florestal Legal no interior de cada propriedade contraria o art. 225, § 1º, da Constituição Federal, especificamente em seus incisos I, II, III e VII, que impõem ao Poder Público e à coletividade o dever de garantir a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações, prescrevendo, como obrigações positivas do Poder Público: preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. O dispositivo legal questionado viola também o art. 186, caput e inciso II, da Constituição Federal, que estabelecem como requisitos da função social da propriedade a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente. Portanto, a Lei 11.428/2006, possibilitou a desoneração completa da obrigação de recompor, regenerar ou compensar a reserva legal, pela doação de área localizada no interior de unidade de conservação de domínio público, qualquer que seja seu regime de proteção – uso sustentável ou proteção integral. III. Regime jurídico das áreas de Reserva Legal – A reserva legal é instrumento de preservação ambiental que se adequa perfeitamente à disciplina ambiental instituída pela Constituição Federal, constituindo verdadeira concretização do direito fundamental ao meio ambiente. Ainda, segundo Leme Machado9, “a área reservada tem relação com `cada propriedade´imóvel e assim, se uma mesma pessoa física ou jurídica, for proprietária de propriedades diferentes, ainda que contíguas, a área a ser objeto da Reserva Legal será medida em `cada propriedade´(arts. 16, a, e 44, caput, ambos da Lei 4.771/65).” A área de Reserva Legal, conforme o art. 44 do Código Florestal, destina-se à 9 Op. cit., p. 719. manutenção da cobertura arbórea, com preferência para as espécies nativas (caput e inciso I). Por outro lado, o fato de não mais existir referida cobertura não desonera o proprietário ou possuidor de promover a sua recomposição, “mediante o plantio, a cada três anos, de no mínimo 1/10 da área total necessária à sua complementação, com espécies nativas” (art. 44, inciso I). Atende-se, com a preservação de ecossistemas naturais no interior de cada propriedade rural, à necessidade de restaurar e preservar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico de espécies e ecossistemas, além da proteção da fauna e da flora (CF, art. 225, I, II, III e VII). Além disso, possibilita-se a materialização do princípio da função social da propriedade, que tem como um de seus requisitos a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente (CF, art. 186, II). Importante observar que as convenções internacionais sobre a proteção das espécies envolvem a proteção de seus habitats, que deve ser devidamente organizada. Segundo Raphaël Romi10, a busca de uma conservação dos habitats naturais obedece à preocupação de favorecer a manutenção da biodiversidade, naquilo em que ela contribui ao desenvolvimento sustentável. Essa definição de tais espaços se faz em função de sua vulnerabilidade e das espécies que os usam como locais de reprodução ou de nidificação. A Diretiva da Comissão da União Européia de 1979, estabeleceu em seu art. 1º que os habitats naturais de interesse comunitário são aqueles que estão em perigo de desaparecimento, na sua área de repartição natural, os que têm uma área de repartição natural reduzida, em face de sua regressão ou de sua área intrinsicamente restrita ou aqueles que constituem exemplos remarcáveis de uma ou de várias das regiões biogeográficas. Já no nosso país, nada disso foi considerado quando o legislador autorizou, ad perpetuam, a desoneração de manter áreas de reserva legal nas propriedades rurais, ou de recompor ou regenerar tais áreas, bastando, para tanto, que o proprietário rural faça a doação ao Poder Público daquilo que já é seu, qual seja, de área localizada no interior de uma unidade de conservação. IV. Regime legal das Unidades de Conservação – Como lembra José Eduardo Ramos Rodrigues11, a Lei 4.771 de 1965 determinou que caberia ao Poder Público a criação de parques nacionais, estaduais e municipais, além de reservas ecológicas, tendo por fim resguardar atributos excepcionais da natureza, bem como florestas nacionais, estaduais e municipais com fins econômicos, técnicos ou sociais. Embora se 10 11 ROMI, Raphaël. Droit International et européen de l´environnement. Paris: Montchrestien, 2005, p. 145 e 149. RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Sistema Nacional de Unidades de Conservação. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2005, p. 21. tratasse já então do que é conhecido como Unidades de Conservação, essa terminologia não é aplicada em nenhum momento, assim como não o foi nas Leis 6.513, de 1977, que criou as áreas especiais e locais de interesse turístico e 6.902, de1981, responsável pela criação das estações ecológicas e das áreas de proteção ambiental. O Decreto 89.336, de 1984, criou as áreas de relevante interesse ecológico, sem, no entanto, denominá-las Unidades de Conservação. Essa expressão foi utilizada, no nosso direito positivo, pela primeira vez, na Resolução nº 10, de 1986, do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente. Portanto, quando da promulgação da atual Constituição Federal, já havia previsão legal de alguns espaços ambientais que eram considerados, pelo CONAMA, como Unidades de Conservação, bem como um Plano do Sistema de Unidades de Conservação, que arrolava, como espécies de UCs, apenas alguns dos espaços ambientais à época existentes. A atual Constituição Federal, por sua vez, inovou com o conceito de espaço territorial especialmente protegido, ainda que não tenha feito qualquer menção às Unidades de Conservação. Isso fez com que alguns autores entendessem que Unidades de Conservação e Espaços Territoriais Especialmente Protegidos fossem sinônimos. Para outros, a cuja interpretação nos filiamos, Espaço Territorial Especialmente Protegido é gênero, do qual as Unidades de Conservação são uma das espécies. Ainda que não existisse, à época, o conceito legal de Unidades de Conservação, já havia, como refere Rodrigues12, o conceito técnico de conservação, firmado pela União Internacional de Conservação da Natureza – UICN. Conforme, ainda, Rodrigues, a conservação “é compreendida como a gestão da utlização da biosfera pelo ser humano, de tal sorte que produza o maior benefício sustentado para as gerações atuais, mas que mantenha sua potencialidade para satisfazer às necessidades e às aspirações futuras.” Ou seja, “os recursos vivos possuem duas propriedades importantes, cuja combinação os distingue dos recursos inanimados: são renováveis, se forem conservados e são destrutíveis se não o forem.”13 Com a edição da Lei nº 9.985/00, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, também conhecida como Lei do SNUC, as Unidades de Conservação passaram a ser apenas os espaços ambientais nela expressamente previstos, sujeitos a um regime 12 13 Op. Cit., p. 31. UICN – União Internacional para a Conservação da Natureza. Estratégia Mundial para a conservação. São Paulo: Cesp, 1984. jurídico específico, mais restrito e determinado14. Excepcionalmente, nos termos do parágrafo único do art. 6º da referida lei, poderão integrar o SNUC, a critério do CONAMA, “unidades de conservação estaduais e municipais que, concebidas para atender a peculiaridades regionais ou locais, possuam objetivos de manejo que não possam ser satisfatoriamente atendidos por nenhuma categoria prevista nesta Lei e cujas características permitam, em relação a estas, uma clara distinção”. As Unidades de Conservação são, portanto, espécies do gênero Espaços Territoriais Especialmente Protegidos, têm finalidade totalmente diversa daquela das Reservas Legais e com elas não se confundem. Diga-se, mais, que a Lei do SNUC elencou 12 categorias de manejo distintas, divididas em dois grupos: unidades de proteção integral, que não admitem utilização direta dos recursos naturais, e unidades de uso sustentável, que permitem a utilização, de forma racional e dentro dos limites previstos, dos recursos ambientais. As primeiras englobam estações ecológicas, reservas biológicas, parques nacionais, monumentos naturais e refúgios da vida silvestre. As últimas são as áreas de proteção ambiental – APAs, áreas de relevante interesse ecológico – ARIEs, a Floresta Nacional, a reserva extrativista - RESEX, a reserva de fauna, a reserva de desenvolvimento sustentável e a reserva particular do patrimônio natural- RPPN. Veja-se que as áreas de reserva legal não estão incluídas em nenhum dos dois grupos. Por isso, seja porque os objetivos do legislador, ao criar as Unidades de Conservação e as áreas de Reserva Legal não tenham sido os mesmos, seja porque as finalidades são inteiramente diversas, não há como compensar áreas de Reserva Legal através da doação de área no interior de Unidades de Conservação. A manutenção de fragmentos de vegetação em áreas públicas e privadas permite englobar uma diversidade maior de ambientes e ecossistemas, o que resulta na preservação imediata de um maior número de espécies, na mitigação das alterações climáticas, produzidas pelo desmatamento, entre outras consequências positivas. Nas unidades de conservação, por outro lado, criam-se “ilhas de proteção”, em que a representatividade dos ecossistemas tende a ser menor. Horacio D. Rosatti, constitucionalista argentino, observa que o bem jurídico protegido pela Constituição Nacional não é a saúde humana mas o equilíbrio ambiental assumido como pressuposto da qualidade de vida humana. De modo que, em nome de `certa´ qualidade de vida humana não poderia convalidar-se (nem ética nem juridicamente) o prejuízo ao equilíbrio 14 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994. ambiental nem o menoscabo à diversidade biológica.15 De outro lado, Araújo16 ressalta que a biodiversidade é um importante componente dos sistemas ecológicos, dos quais derivam a regulação do clima, dos fluxos hidrológicos e da composição química da atmosfera, a ciclagem de nutrientes, o controle biológico, a formação dos solos, entre outros. A importância ambiental das, reservas florestais legais é destacada, igualmente, por Jean Paul Metzger, professor do Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo: “a conservação em áreas de propriedade privada, de fragmentos de florestas e outros tipos de vegetação nativa é fundamental para proteger, ainda que minimamente, a fauna e a flora originária de cada região”.17 Ressalta ainda o professor que, enquanto as Áreas de Preservação Permanente têm como objetivo conter processos de erosão e proteger rios e mananciais, a Reserva Legal visa a manutenção da representatividade dos ecossistemas naturais e das espécies da fauna e da flora neles contidas. O autor lembra que, mesmo considerando a existência de outras formas de espaços territoriais especialmente protegidos, como as Unidades de Conservação, sua eficácia se restringe aos limites físicos da sua área de influência, o que justifica a necessidade de manutenção de áreas florestadas no interior de cada propriedade rural. V. Inconstitucionalidade da desoneração do dever de recompor ou regenerar a reserva florestal legal, pela doação de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público: ofensa ao art. 225 caput e § 1º, incisos I, II, III E VII da Constituição Federal de 1988 – O § 6o do art. 44 do Código Florestal, com a alteração promovida pela Lei 11.428/2008, estabelece a possibilidade de que, mediante a doação ao órgão ambiental de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público, pendente de regularização fundiária, o proprietário rural não seja obrigado a recompor ou conduzir a regeneração natural da Reserva Florestal Legal em sua propriedade. Com a alteração legislativa supra citada, permitiu-se a compensação da reserva legal por outra área já protegida, no interior de Unidade de Conservação. Ou seja, ao invés de recompor, restaurar ou compensar a reserva legal com área semelhante, o proprietário rural poderá 15 ROSATTI, Horacio D. Derecho Ambiental Constitucional. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2007, p. 56. ARAUJO, Marco Antonio Reis. Unidades de Conservação no Brasil: da República à Gestão da Classe Mundial. Belo Horizonte: Segrac, 2007, p. 15. 17 METZGER, Jean Paul. Bases Biológicas para a “reserva legal”. Revista Ciência Hoje, vol. 31, nº 83, p. 48-49. 16 adquirir uma área já protegida, pendente apenas de regularização fundiária. Este mecanismo - a doação de área em unidade de conservação já constituída - não gera qualquer benefício ambiental. Trata-se de possibilidade criada tão-somente para tentar resolver a inadmissível incapacidade administrativa de realizar a regularização fundiária das unidades de conservação, requisito fundamental para que esses espaços territoriais especialmente protegidos tenham a necessária eficácia18. A consequência direta da desoneração é a diminuição das áreas legalmente protegidas: retira-se a obrigatoriedade do proprietário ou do possuidor de imóvel rural da obrigação de reposição florestal, para suprir a incapacidade do Poder Público de regularizar a situação fundiária de unidades de conservação já criadas. A preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais, a preservação da integridade do patrimônio genético nacional, a conscientização pública para a preservação do meio ambiente e a proteção da fauna e da flora, todos objetivos atendidos pela reserva legal, foram guindados à importância Constitucional, prescrevendo o art. 225 da Constituição Federal que: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de Lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; 18 Lembre-se a este respeito, que a própria lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (lei 9.985/2000) cria instrumento para que o Poder Público aufira recursos para a regularização fundiária, ao prever que “nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental (...) o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do grupo de proteção integral, de acordo com o disposto nesse artigo e no regulamento desta Lei”. Por sua vez, o Decreto 4.340/2002, regulamentando o dispositivo legal em comento prescreve que “os valores advindos da compensação ambiental serão aplicados, em primeiro lugar, para a regularização fundiária e demarcação das terras nas unidades de conservação de proteção integral”. (...) VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da Lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (grifos nossos) Ao permitir a desoneração do dever de recompor ou restaurar as reservas de vegetação nativa e representativas dos ecossistemas naturais no interior de cada propriedade, o Poder Público age em desacordo à determinação constitucional de “restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas” (art. 225, §1º, inciso I): ao invés de restaurar o fragmento de um ecossistema, adquire-se e doa-se ao Poder Público uma área já protegida, abdicando-se de um instrumento de proteção e suprimindo um espaço territorial especialmente protegido (a reserva legal). Ademais, repita-se, os objetivos ambientais da Reserva Legal,“uso sustentável dos recursos naturais, conservação e reabilitação dos processos ecológicos, conservação da biodiversidade e abrigo e proteção de fauna e flora nativas”, não se confundem com as finalidades das unidades de conservação. Estas, são definidas como “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção” (art. 2º - Lei 9.985/2000). A finalidade das unidades de proteção integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais (art. 7º, I , Lei 9.985/2000). O objetivo das unidades de uso sustentável, por sua vez, é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais (art. 7º, II, Lei 9.985/2000). Assim, o que se pretende com as Unidades de Conservação é proteger determinados espaços territoriais que representem características naturais relevantes. E, o que se pretende com a instituição de Reservas Legais, é garantir a permanência de áreas representativas de diversos ecossistemas naturais. Tais objetivos de conservação são complementares, mas não se excluem. A este respeito, ressalte-se ainda que não há sequer a obrigatoriedade de que a Unidade de Conservação a ser objeto do mecanismo ora questionado seja da categoria proteção integral. A única exigência é de que a Unidade de Conservação seja de domínio público, conceito que comporta tanto as unidades de uso sustentável, como as de proteção integral. Considerando, também, que as Reservas Legais permitem a preservação de uma maior diversidade de ecossistemas, sua supressão significa um prejuízo direto à preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético do País e à proteção da fauna e da flora (art. 225, § 1º, inciso II e VII, da Constituição Federal). Em verdade, o Poder Público incentiva uma prática que coloca em risco a função ecológica de diversos ecossistemas, podendo contribuir para a extinção de espécies. O dispositivo legal permite que, com a doação de uma área já protegida ao Poder Público, o proprietário rural possa utilizar a área de reserva legal de sua propriedade em condições que comprometem totalmente os atributos que justificaram sua proteção legal. Tal dispositivo, ademais, afronta o § 4º do art. 225 da Carta da República, que guindou a Floresta Amazônica Brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Matogrossense e a Zona Costeira à categoria de patrimônio nacional, sendo certo, como bem observa Fiorillo, “que sua utilização deverá ser feita na forma da lei, mas dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais” 19, pois nada há, no § 6º do art. 44 do atual Código Florestal, que impeça um proprietário rural do Sul do país de exonerar-se de sua obrigação de manter uma área de reserva legal em sua propriedade, doando, ao Poder Público, uma área já protegida, localizada na Região Norte. A possibilidade de desoneração perpétua da obrigação de recompor ou restaurar a Reserva Legal leva à inteira desfiguração deste espaço territorial especialmente protegido, em contrariedade à obrigação constitucional da vedação de atividades que comprometam a integridade dos atributos que justificam a proteção de florestas no interior de cada propriedade rural. O dispositivo legal questionado configura verdadeiro retrocesso legislativo na proteção do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, já que as demais modalidades de espaços territoriais especialmente protegidos não suprem a função ecológica da Reserva Legal. A esse respeito, cabe citar que a doutrina constitucional tem reconhecido, quanto aos direitos fundamentais, o princípio da proibição do retrocesso. Segundo Luis Roberto Barroso 20, “uma lei posterior não pode extinguir um direito ou uma garantia, especialmente os de cunho social, 19 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 8ª Ed., 2007,p. 113. 20 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2004, 6ª edição, p. 379. sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na Constituição. O que se veda é o ataque à efetividade da norma, que foi alcançada a partir de sua regulamentação. Assim, por exemplo, se o legislador infraconstitucional deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito que dependia de sua intermediação, não poderá simplesmente revogar o ato legislativo, fazendo a situação voltar ao estado de omissão legislativa anterior”. Especificamente, no que diz respeito ao direito fundamental ao meio ambiente, o constitucionalista Joaquim José Gomes Canotilho defende que, sob o enfoque do direito interno, “a menos que as circunstâncias de fato se alterem significativamente, não é de admitir o recuo para níveis de proteção inferiores aos anteriormente consagrados. Nesta vertente, o princípio põe limites à adoção de legislação de revisão ou revogatória”21 Por fim, é de ressaltar que o simples fato da averbação da área de reserva legal não impede sua utilização sob o regime de manejo ambiental sustentável, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Poder Público (art. 16, §, do Código Florestal). Nas pequenas propriedades, ou posses rurais familiares, ou industriais, pode ser computado, nas áreas de Reserva legal, o plantio de árvores frutíferas e ornamentais, inclusive de espécies exóticas, sob sistema intercalar. Ao permitir a desoneração perpétua do dever de manter nas propriedades ou posses rurais fragmentos de vegetação, que se destinam à manutenção do ecossistema e a promover o habitat das espécies, o legislador brasileiro violou o conjunto de obrigações positivas atribuídas pelo Constituinte ao Poder Público e à coletividade, visando preservar o meio ambiente sadio para as presentes e futuras gerações, ou seja, visando garantir o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por essa razão, quando estivemos no exercício da Procuradoria-Geral da República, no período de 28 de dezembro de 2009 a 13 de janeiro de 2010, ajuizamos a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 004367, contra o § 6º do art. 44 do Código Florestal, na forma que lhe foi dada pela Lei 11.428, de 2006. Referências – ARAUJO, Marco Antonio Reis. Unidades de Conservação no Brasil: da República à Gestão da 21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes,. Direito constitucional ambiental português e da união européia.CANOTILHO, José Joaquim Gomes e LEITE, José Rubens Morato (org); Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p.36. Classe Mundial. Belo Horizonte: Segrac, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes,. Direito constitucional ambiental português e da união européia. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e LEITE, José Rubens Morato (org); Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução nº 10, de 1986. CONAMA – Conselho Nacional de Meio Ambiente. Resolução nº 302, de 2002. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2004, 6ª edição. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 8ª Ed., 2007. LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. LEUZINGER, Márcia Dieguez. 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