Modelos animais no estudo de AVC Por Marcelo Ananias Teocchi, biólogo e biomédico, mestre em genética e biologia molecular e doutorando em saúde da criança e do adolescente pela Unicamp. Nos últimos anos, o uso de modelos animais no entendimento dos mecanismos fisiopatológicos do acidente vascular cerebral (AVC) tem revelado resultados bastante efetivos. Assim, a etiologia da doença tem progredido consideravelmente, apesar de algumas controvérsias, tanto biológicas – pois vários tipos de AVC humano ainda não foram possíveis de serem mimetizados em animais –, quanto éticas, pois são crescentes as exigências dos comitês de ética em pesquisas com animais. De qualquer forma, são essas mesmas controvérsias que possibilitam o desenvolvimento dessa área em particular, com a identificação de modelos cada vez mais fidedignos aos seus propósitos. Assim, paralelamente ao campo das pesquisas do AVC com modelos animais, existe outra esfera, que, justamente, pesquisa os melhores modelos animais para o AVC, além de outras doenças neuronais. São áreas complementares e independentes, que caminham juntas, e o sucesso de uma automaticamente se reflete no sucesso da outra, ou seja, o desenvolvimento de um modelo animal mais confiável certamente resulta em melhores resultados, que contribuem ao entendimento da doença. Em abril deste ano, o Departamento de Física Médica e Bioengenharia do University College London publicou um artigo relatando o uso de um novo instrumento de imagem fotoacústica que produz altíssimas resoluções da anatomia dos pequeninos cérebros de roedores. Certamente, é a partir da comparação das similaridades e diferenças microanatômicas dos cérebros humanos e animais que o modelo certo para os diversos tipos de AVC pode ser encontrado, ou mesmo criado, a partir da manipulação gênica, uma vez que um possível gene que favoreça ou desfavoreça o surgimento do AVC possa ser ligado ou desligado em modelos biológicos. Também recentemente, macacos-de-cheiro foram utilizados num experimento bastante interessante, que avalia a recuperação de danos neuronais causadas por AVC. Pesquisadores do Landon Center on Aging, do University of Kansas Medical Center, treinaram esses animais para desempenharem, ao longo de grande parte de suas vidas, uma força específica de aperto, necessária para manipularem um alimento. Isso porque, muitas vezes, são movimentos como esses que são afetados e se manifestam como sequelas de um derrame. Assim, nesses animais adultos, a área cerebral que controla os movimentos da mão treinada foi infartada, e técnicas e intervenções para a reabilitação foram avaliadas, gerando, como no outro exemplo, um modelo biológico para o estudo do AVC. Macaco-de-cheiro: modelo biológico utilizado pelo University of Kansas Medical Center na avaliação de sequelas do AVC. Inúmeras espécies animais já foram e vem sendo utilizadas nas pesquisas sobre AVC. Ratos e camundongos, sem dúvida, foram os mais utilizados. Todavia, é crescente a demanda por modelos maiores, como coelhos ou até mesmo primatas não-humanos, sempre objetivando o melhor entendimento da doença e as formas de tratamento. Infelizmente, o caminho entre os resultados obtidos com animais e sua aplicabilidade em humanos é longo, e repleto de obstáculos. É comum que drogas neuroprotetoras com excelentes efeitos em animais sejam inadequadas para pessoas, por desencadearem efeitos colaterais em virtude da diferente dosagem de administração, que no animal é muito menor quando comparada à dosagem que seria necessária a uma pessoa. Além disso, os experimentos laboratoriais, com suas variáveis controladas, não refletem a realidade do AVC na população. No laboratório, existe um padrão rígido de tratamento dos animais que não pode ser aplicado em pessoas, pois um paciente com AVC, normalmente, pode demorar muito a perceber os sintomas e procurar ajuda médica. Quanto mais precoce a identificação dos sintomas, melhores as perspectivas de tratamento. Existe um rigoroso controle dos modelos animais utilizados nas pesquisas de qualidade. Usualmente, são animais jovens, sadios, todos de um mesmo sexo ou faixas etárias e até mesmo geneticamente muito semelhantes, pois todos podem vir de uma mesma linhagem de animais de laboratório, especialmente quando se trata de roedores. Obviamente, na população humana não existe essa homogeneidade. O típico paciente com AVC é idoso com fatores de risco e apresenta complicações por outras doenças, como diabetes, hipertensão ou doenças coronárias. A idade é um fator de risco primário para o AVC, que geralmente é negligenciado em estudos com animais. Pesquisadores do Departamento de Neurocirurgia da West Virginia University acreditam que o uso de animais envelhecidos pode acrescentar novos conhecimentos sobre os danos físicos causados pelo AVC e facetas da recuperação que são mascaradas ou não muito bem elucidadas em modelos animais jovens. Num estudo publicado recentemente, em maio de 2009, esses pesquisadores realizaram em dois grupos de ratos – um de jovens e outro de idosos – um mesmo experimento que visou constatar a redução do volume do tecido cortical infartado pela oclusão transiente da artéria cerebral média. Os resultados foram claros: ratos jovens apresentaram melhoria em diversos aspectos, como nos volumes totais de tecidos infartados, na formação de edema, e até mesmo nas sequelas funcionais. Em contrapartida, modelos animais jovens são necessários para o estudo do AVC neonatal. O cérebro do recém-nascido é vulnerável à isquemia focal. Diferenças específicas na barreira hematoencefálica, na reação inflamatória, na bioquímica e na perfusão-reperfusão do cérebro do recém-nascido representam desafios no que diz respeito ao uso de modelos de animais adultos para o estudo desse tipo de AVC. Há um número limitado de modelos animais para o estudo do AVC isquêmico focal em recémnascidos. O modelo Rice-Vanucci, um modelo de hipoxemia isquêmica por ligadura de carótida comum unilateral em rato com sete dias, é o modelo animal mais usado para o estudo de AVC neonatal. Sob esse ponto de vista, é necessário o desenvolvimento de modelos animais que abordem alterações na relação difusão-perfusão e coagulação em recém-nascidos. E os obstáculos não param por aí. Como já mencionado, os cérebros de humanos e animais são diferentes: tanto anatomicamente, quando funcionalmente. O que garante a utilização de modelos animais nas pesquisas em questão é que os mecanismos básicos do AVC são idênticos nos mamíferos em geral, mas ainda assim existem diferenças. Finalmente, talvez o maior obstáculo seja a avaliação da eficácia. Em animais, os tratamentos efetivos são principalmente medidos pela redução do volume da lesão, mas nos seres humanos um tratamento efetivo é aquele que gera melhorias funcionais, especialmente em pessoas que após um derrame desenvolveram graves sequelas. A redução do volume da lesão não necessariamente implica em melhorias funcionais. Assim, técnicas de avaliação eficientes e compatíveis são necessárias para que os resultados com animais sejam transferíveis para seres humanos. Os mecanismos utilizados na indução do AVC isquêmico em modelos animais são os mais variados possíveis. Os modelos de isquemia hipóxica são bastante utilizados, originalmente descritos em 1960 e refinados vinte anos mais tarde. Nesse tipo de ensaio, ratinhos são submetidos a uma ligação unilateral permanente da artéria carótida, com uma subsequente exposição de três horas a uma atmosfera pobre em oxigênio: apenas 8%. Esse modelo é interessante para o estudo da isquemia hipóxica no cérebro em desenvolvimento. Os modelos de isquemia focal envolvem a oclusão de artérias cerebrais, dependendo da região cerebral que se queira estudar. Podem ou não envolver craniotomia, com efeitos transientes ou permanentes. Nesse modelo, filamentos de náilon, por exemplo, são utilizados para a obstrução das artérias, ou o mesmo pode ser feito através de embolia. Uma variante desse modelo de isquemia focal corresponde aos modelos fototrombóticos, que utilizam a fotocoagulação intravascular de áreas corticais circunscritas. Depois da injeção de corantes fotossensíveis, como o rosa de bengala, o cérebro é irradiado sem danos craniais, levando à oclusão fotoquímica dos vasos irradiados com isquemia tecidual secundária. Os trabalhos científicos envolvendo modelos animais são julgados por comitês de ética animal, sendo aprovados ou não. Em último caso, podem ser reformulados para que se adequem ao proposto pelos comitês, ou seja, estejam de acordo com as considerações éticas propostas. As pesquisas de AVC são executadas em animais que, inevitavelmente, sofrem durante os procedimentos. Essas dificuldades são as mais diversas possíveis, desde estresses sociais impostos pelo confinamento de um ou diversos animais, transporte, manipulação, privação de alimento, dor após procedimentos cirúrgicos, sequelas neurológicas, etc. Desse modo, esses experimentos requerem justificação ética. Os argumentos utilizados para a continuidade das pesquisas de AVC com animais são: AVC é muito frequente em humanos, está entre as três principais causas de morte, gera sequelas neurológicas permanentes, ainda não existe tratamento efetivo disponível para a maioria dos pacientes, e atualmente não existe outro método que substitua o uso de modelos animais – os chamado métodos in vitro –, que essencialmente abordam o cultivo de células. Infelizmente, a complexidade de um AVC está distante de ser mimetizada em células cultivadas, pois envolve diversos tecidos (sanguíneo, circulatório e neuronal) e a interrelação entre eles. Portanto, os parâmetros éticos utilizados nessas experimentações consistem da redução do número de animais: o mínimo possível, mas capaz de gerar conclusões científicas sólidas. Os experimentos têm de ser refinados, ou seja, cuidadosamente planejados para serem conduzidos por pessoas treinadas e hábeis em minimizar o sofrimento animal e, ao mesmo tempo, em extrair o máximo possível de conhecimento através deles. E, quando possível, os experimentos com animais devem ser substituídos pela cultura celular ou simulações computadorizadas, por exemplo.