Duas moedas, duas crises

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Castro, Paulo Rabello de. “Duas moedas, duas crises” São Paulo: Folha de São Paulo, 02 de
maio de 2001. Jel: F e G
Duas moedas, duas crises
Paulo Rabello de Castro
A notícia de uma iminente reestruturação do perfil da dívida pública argentina trouxe bom tempo
para os aflitos mercados locais. O brasileiro foi comemorar o Dia do Trabalho menos preocupado
com a dança macabra dos juros e do dólar.
Na semana passada, aprendi várias lições importantes com o episódio. A primeira delas é que
também temos uma crise latente nos porões da nossa bem ajustada economia -que é a da
"desconfiança do sucesso". A outra lição foi sobre o lado escondido da crise argentina -a sua
"desconfiança no futuro". Entre desconfiar do sucesso e desconfiar do futuro há muita diferença e
até, talvez, alguma complementaridade!
Nós, brasileiros, desconfiamos de que nosso projetado sucesso econômico possa ser surrupiado,
como o tem sido, no passado recente, por erros imprevisíveis da política econômica ou dos
políticos, como se nosso destino pudesse sempre ser alterado sem aviso prévio, por medida
provisória. Para os brasileiros, o futuro é bom e estaria garantido, mas só para uma outra geração
lá na frente. O sucesso palpável é sempre uma surpresa. Essa desconfiança do sucesso nos
atrapalha demais. Aflorou na semana passada, por trás do véu do mudo descrédito à possibilidade
de o país conseguir superar as repercussões da alta do câmbio sobre a inflação, sobre os juros e os
negócios em geral.
Por onde passei encontrei públicos desconfiados da inflação, dos juros, do Banco Central, da
economia mundial, numa infindável lista de indagações sobre por que ainda estaríamos vivos ao
final de toda essa crise.
Na Argentina, o humor parece diferente. "Não temos futuro", pensaria o típico irmão platino. "Em
compensação, no presente, temos Cavallo e uma nova renegociação de dívida por fazer! Portanto
estamos muito, muito bem." A "desconfiança do futuro" leva os argentinos quase sempre a
projetar seu destino numa dimensão fora de acesso ou controle: sem futuro seria o Mercosul, ou
então a Alca, ou simplesmente a adesão bilateral aos Estados Unidos.
Diante desses elementos sociopsicológicos, colocamos as moedas dos nossos dois países, o peso e
o real, sob o efeito de duas crises: a de sucesso e a de futuro. O Brasil do real, com medo do
sucesso. A Argentina do peso, com fobia de futuro.
Enxergo aí nossas dificuldades dos próximos meses e anos. Temos que trabalhar muito para
dissolver esses bloqueios. O real é, hoje, uma moeda vocacionada para o sucesso. Seu conteúdo
político-social está na estabilidade propiciada aos brasileiros. Daí Fernando Henrique Cardoso
ser, merecidamente, nosso presidente-moeda. A estabilidade monetária está bem ancorada no
regime cambial de livre flutuação, que veio para ficar, por ser o mecanismo de alerta e de
correção automática dos nossos eventuais desequilíbrios. O câmbio flutuante é para flutuar, como
diria o filósofo do óbvio ululante. Entretanto nem mercados, nem Banco Central, nem a opinião
pública em geral estão totalmente acostumados a esse "sucesso". Insistem em voltar ao passado, à
velha política de muito juro e nenhuma estabilidade que praticamos por tantos anos. A
"desconfiança do sucesso" é o medo de as coisas funcionarem tal como estavam projetadas para
acontecer.
Já na vizinha Argentina dá-se o inverso. O futuro deles depende muito de nós, brasileiros, que
nem nos percebemos com tanta importância assim. O presente, na Argentina, reflete a
desconfiança de um futuro que não se enxerga lá. Cavallo é necessário porque esbanja as certezas
que faltam no espírito de muitos dos nossos melancólicos vizinhos. A reestruturação da dívida
argentina é apenas a medida que os bancos não poderiam deixar de tomar. Mas o desafio está em
como produzir mais e gerar empregos naquele belo e rico país, sem o benefício de um câmbio que
flutua, como o nosso.
O futuro da Argentina é um problema brasileiro, antes de ser uma secundária questão americana.
Os brasileiros devem propor a integração monetária com a Argentina. Devem trabalhar muito e
desde logo nessa direção. Há muito o que fazer, e os benefícios recíprocos serão extraordinários.
É preciso acreditar nesse futuro. Por quê? A saída da Argentina para produzir e empregar mais
está hoje bloqueada pelo câmbio flutuante aqui no Brasil, que esmaga a competição do vizinho a
cada movimento de alta da cotação do dólar contra o real. A origem da desconfiança é argentina,
mas a pior repercussão sobre eles vem de cá, via câmbio. Trata-se de um arranjo, ou melhor, de
um desarranjo infernal, para ambos os países.
Lamento a postura brasileira, muito tímida, defensiva, diante da ampla movimentação americana
para "salvar" a Argentina. A nós caberia o papel mais importante -por exemplo, criar canais de
comércio bilateral para liquidação das transações em pesos ou em reais, a fim de permitir,
gradualmente, a circulação do real no meio argentino. Por que não?
A outra alternativa deles, o seu "futuro" mais provável hoje, será a migração para uma
dolarização absoluta, que os levará a uma condição de atrelamento desvantajoso à economia do
grande urso do Norte, em pior situação do que a do México ou do Canadá, cujas economias são
convenientemente resguardadas pelo vestíbulo da flutuação das suas moedas ante o dólar.
Conclusão? Não existe ainda conclusão das duas crises, a brasileira e a argentina. A crise de
sucesso e a crise de futuro. Crises atreladas, irmãs siamesas, uma da outra. O Brasil até aqui joga
mal, trancado na sua defesa, sem explorar bem o seu potencial imenso no intercâmbio econômico,
de ousar até onde seu destino histórico nesta parte do mundo lhe confere legitimidade para tal.
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