Você nunca nasceu - Sangha Viver Consciente

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Estudos Budistas
Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh
Você nunca nasceu
Quando você olha para a folha de papel que está lendo, pode pensar que ela não existia antes
de ser feita no moinho de papel. Mas há uma nuvem flutuando nesta folha de papel. Se não
houvesse nuvem, não haveria chuva e, portanto, nenhuma árvore poderia crescer para nos dar
esse pedaço de papel. Mesmo se você não é um poeta, pode ver a nuvem flutuando neste
pedaço de papel e se você remover a nuvem, o papel entra em colapso. Olhando
profundamente nela, tocando-a profundamente, você pode ver também a nuvem.
Poderíamos perguntar se este papel existiu antes de nascer? Ele veio do nada? Não, algo
nunca vem do nada. A folha de papel inter-é com o brilho do sol, com a chuva, com a Terra,
com a fábrica de papel, com os trabalhadores da fábrica, com a comida que eles comem todo
dia. Portanto a natureza do papel é interser. Se você tocar a natureza do papel, toca tudo no
cosmos. Antes do seu nascimento na fábrica, o papel era brilho do sol, era uma árvore.
Você pode também pensar que quando nasceu, de repente se tornou algo do nada; de
ninguém, de repente se tornou alguém. Mas na verdade, o momento do seu nascimento no
hospital ou em casa foi apenas um momento de continuação, porque você já existia na sua
mãe há nove meses. Isto significa que sua data na certidão de nascimento não está correta.
Você tem que voltar nove meses para trás.
Portanto agora talvez você acredite que tem a verdade, que o momento de sua concepção é o
momento em que você começou a existir. Mas deveríamos continuar a olhar profundamente.
Antes do momento da concepção, você era nada, ninguém? Antes disso, metade de você
estava no seu pai e a outra metade na sua mãe, em outra forma. É por isso que mesmo o
momento da concepção é um momento de continuação.
Imagine o oceano com sua multidão de ondas. As ondas são todas diferentes; algumas são
grandes, algumas pequenas, algumas são mais bonitas que outras. Você pode descrever
ondas de muitas maneiras, mas quando você toca uma onda, está sempre tocando algo mais –
água.
Visualize-se como uma onda na superfície do oceano. Assista enquanto você está sendo
criado – você cresce na superfície, permanece um pouco e então retorna ao oceano. Você
sabe que em algum ponto você irá terminar, mas se você sabe como tocar a base de seu ser –
água – todos os seus medos irão desaparecer. Verá que como onda, divide a vida da água
com todas as outras ondas. Esta é a natureza do interser. Quando você vive apenas a vida de
uma onda e não é capaz de viver a vida da água, sofre muito.
Portanto a realidade é que você nunca nasceu – se você definir nascimento como se tornar
algo de nada, se tornar alguém de ninguém. Cada momento é um momento de continuação.
Você continua a vida sobre novas formas, isto é tudo.
Quando uma nuvem está prestes a se tornar chuva, não tem medo, porque embora saiba que
ser uma nuvem flutuando no céu é maravilhoso, ser chuva caindo nos campos ou no oceano é
também maravilhoso. É por isso que o momento que a nuvem se torna chuva não é um
momento de morte, mas um momento de continuação.
Há pessoas que pensam que podem reduzir coisas a nada. Eles podem eliminar pessoas,
podem assassinar alguém como John F. Kennedy, Martin Luther King Jr. ou Mahatma Gandhi,
com a esperança que eles irão desaparecer para sempre. Mas o fato é que quando você mata
alguém, esta pessoa se torna mais forte que antes. Mesmo esta folha de papel não pode ser
reduzida a nada. Você já viu o que acontece quando colocamos um fósforo aceso em uma
folha de papel. Não pode reduzi-la a nada, ela continua como calor, cinza e fumaça.
Buda e Mara
Quando falamos sobre o que Buda é, temos que falar também sobre o que Buda não é. O
oposto de Buda é Mara. Se Buda é iluminação, então tem que haver algo que não é
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iluminação. Mara é a ausência de iluminação. Se o Buda é entendimento, então Mara é
desentendimento, e se o Buda é bondade amorosa, então Mara é ódio ou raiva e assim por
diante. Se não entendermos Mara, não podemos entender o Buda.
Assim como a rosa é feita de elementos não-rosa, o Buda é feito de elementos não-Buda, e
entre esses elementos está Mara. Se o lixo não existisse, então a rosa não poderia existir
também. Este insight é tão importante que transformou completamente meu entendimento do
Buda.
Quando você olha para uma rosa, pode vê-la como imaculada e muito bonita. E o oposto da
rosa é o lixo, que não é bonito e não cheira muito bem. Mas se olhar profundamente para a
rosa, verá que o lixo está nela, antes dela, depois dela e também neste momento. Como isso é
possível?
Jardineiros não jogam fora o lixo. Eles sabem que com carinho, em apenas alguns meses, o
lixo se tornará composto que pode ser usado para fazer crescer alfaces, tomates e flores.
Jardineiros são capazes de ver flores ou pepinos no lixo. Além disso, eles sabem que todas as
flores se tornam lixo. Este é o significado da impermanência – todas as flores se tornam lixo.
Embora ele seja fedorento e desagradável, se você sabe como cuidar dele, pode transformá-lo
novamente em flores. Isso é que o Buda descreveu como o modo não dualístico de ver as
coisas. Se olhar as coisas desse modo, entenderá que o lixo é capaz de se tornar uma flor e a
flor é capaz de se tornar lixo.
Cada vez que praticar a plena consciência – quando vive em plena atenção – você é um Buda.
Quando vive no esquecimento, você é Mara. Mas não pense que Buda e Mara são inimigos e
que passam o dia todo lutando entre si. Não. Eles são amigos. Aqui segue uma história que eu
escrevi:
Um dia, o Buda estava em uma caverna, onde estava fresco. Ananda, seu assistente, estava
praticando meditação caminhando perto da caverna, tentando interceptar as muitas pessoas
que sempre vinham visitar o Buda, de forma que ele não recebesse convidados o dia todo.
Neste dia, enquanto Ananda estava praticando, viu alguém se aproximando. Quando a pessoa
chegou perto, Ananda reconheceu Mara.
Mara tentou o Buda na noite antes dele se tornar iluminado. Mara disse ao Buda que ele
poderia se tornar um homem de grande poder – um político, um rei, um presidente, um ministro
ou um bem sucedido homem de negócios com dinheiro e lindas mulheres – se ele desistisse
de sua prática de plena consciência. Mara tentou duramente convencer o Buda, mas não
funcionou.
Embora Ananda tenha se sentido desconfortável ao ver Mara, Mara já o tinha visto, portanto
não poderia se esconder. Eles se cumprimentaram.
Mara disse: “Eu quero ver o Buda.”
Quando o líder de uma corporação não quer ver alguém, ele pede para sua secretária dizer:
“Desculpe, ele agora está em uma conferência.” Embora Ananda quisesse dizer algo assim,
sabia que estaria mentindo e ele queria praticar o Quarto Treinamento - não mentir. Portanto
ele decidiu dizer o que estava em seu coração para Mara.
“Mara, porque o Buda deveria vê-lo? Qual o motivo? Você não lembra que foi derrotado pelo
Buda sob a árvore de Bodhi? Como você ousa vê-lo de novo? Não tem vergonha? Porque ele
deveria vê-lo? Você é seu inimigo.”
Mara não foi desencorajado pelas palavras do Venerável Ananda. Ele apenas riu enquanto
ouvia ao jovem. Quando Ananda terminou, Mara riu e perguntou: “Realmente seu professor diz
que tem inimigos?”
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Isto fez Ananda ficar muito desconfortável. Não parecia correto dizer que o Buda tinha inimigos,
mas ele disse! O Buda nunca disse que tinha inimigos. Se você não está concentrando muito
profundamente ou plenamente consciente, pode dizer coisas que são contrárias ao que você
sabe e pratica. Ananda estava confuso. Ele entrou na caverna e anunciou Mara, esperando
que seu professor dissesse, “Diga a ele que não estou em casa!” ou “Diga a ele que estou em
uma conferência.”
Para surpresa de Ananda, o Buda sorriu e disse: “Mara! Maravilha! Peça a ele para entrar!”
Ananda estava perplexo pela resposta do Buda. Mas ele fez o que o Buda disse e convidou
Mara para entrar. E você sabe o que o Buda fez? Ele abraçou Mara! Ananda não podia
entender isso. Então o Buda convidou Mara para sentar no melhor lugar da caverna e virandose para seu amado discípulo disse: “Ananda, você poderia ir e nos preparar um chá de ervas?”
Como você deve ter adivinhado, Ananda não estava muito feliz com isso. Fazer chá para o
Buda era uma coisa – ele poderia fazer milhares de vezes ao dia – mas fazer chá para Mara
não era algo que ele queria fazer. Mas como foi o Buda que pediu, ele não poderia recusar.
Buda olhou amavelmente para Mara. “Querido amigo”, ele disse, “como tem passado? Está
tudo bem?”
Mara respondeu: “Não, as coisas não vão bem, elas vão mal. Estou muito cansado de ser
Mara. Quero ser outra pessoa, alguém como você. Onde quer que você vá é bem vindo e as
pessoas te reverenciam. Você tem muitos monges e monjas com faces amáveis te seguindo e
te oferecem bananas, laranjas e kiwis.”
“Onde quer que eu vá”, Mara continuou, “tenho que vestir a persona de um demônio – tenho
que falar de uma maneira convincente e manter um exército de pequenos demônios
maliciosos. Cada vez que expiro, tenho que respirar fumaça do meu nariz! Mas eu não ligo
muito para essas coisas; o que me aborrece bastante é que meus discípulos, os pequenos
Maras, começaram a falar sobre transformação e cura. Quando eles falam sobre liberação e
budeidade, não posso suportar. É por isso que eu vim para te pedir se podemos trocar os
papéis. Você pode ser Mara e eu serei Buda.
Quando o Venerável Ananda ouviu, ficou tão aterrorizado que pensou que seu coração poderia
parar. Como ficaria se o Buda decidisse trocar papéis? Então Ananda seria o assistente de
Mara! Ananda esperou que o Buda recusasse.
O Buda calmamente olhou para Mara e sorriu. “Você acha que é fácil ser um Buda?” Ele
perguntou. “Pessoas estão sempre me entendendo mal, colocando palavras na minha boca.
Eles constroem templos com estátuas minhas feitas de cobre, gesso, ouro e até mesmo
esmeraldas. Grandes multidões me oferecem bananas, laranjas, doces e outras coisas. Ás
vezes sou carregado em procissão, sentando como um bêbado em cima de flores. Eu não
gosto de ser esse tipo de Buda. Muitas coisas danosas foram feitas em meu nome. Portanto,
você pode ver que ser um Buda é também muito difícil. Ser um professor e ajudar a prática das
pessoas não é uma profissão fácil. Na verdade, eu não penso que você gostaria muito de ser
um Buda. É melhor se ambos continuarmos a fazer o que estamos fazendo e tentar fazer o
nosso melhor.”
Se você estivesse lá com Ananda, e se estivesse plenamente consciente, poderia ter sentido
que Buda e Mara eram amigos. Eles se complementam como dia e noite, flor e lixo vindo
juntos. Este é um profundo ensinamento do Buda.
Agora você tem uma idéia de que tipo de relação existe entre Buda e Mara. Buda é como a flor,
muito fresca e bonita. Mara é como o lixo – fedorento, coberto de moscas e desagradável de
tocar. Mara não é de forma nenhuma agradável, mas se você sabe como transformar Mara,
Mara se tornará o Buda. E se você não souber como tomar conta do Buda, ele se tornará
Mara.
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Olhando as coisas desse modo, sabemos que os elementos não-rosa, incluindo o lixo, se
uniram para tornar a rosa possível. Portanto o Buda é algo como a rosa. Mas se você olhar
profundamente no Buda, verá Mara; Buda é feito de elementos de Mara. E quando você
entende esse ensinamento budista, pode ver a vacuidade de tudo, porque nada tem sua
própria existência absoluta. Uma rosa é feita de elementos não-rosa, por isso não tem
existência separada; é por isso que é chamada vazia. Uma rosa é vazia de um eu separado,
porque é sempre feita de elementos não rosa.
Interser inclui tudo – não apenas o Buda e Mara, rosas e lixo – mas também sofrimento e
felicidade, bem e mal. Pegue o sofrimento, por exemplo. Sofrimento é feito de felicidade e
felicidade é feita de sofrimento. Bem é feito do mal, e mal é feito do bem. Direita é feita da
esquerda e esquerda é feita da direita. Isto precisa daquilo para ser. Removendo isto, aquilo irá
desaparecer. O Buda disse, “Isto é porque aquilo é.” Isto é um ensinamento muito especial do
budismo.
Portanto a prática da meditação budista começa com a aceitação da rosa e do lixo em nós.
Quando vemos a rosa em nós, ficamos felizes, mas estamos conscientes que se não tomarmos
cuidado disso, rapidamente se tornará um pedaço de lixo. Portanto, aprendemos como tomar
conta de forma que ficará conosco mais tempo. Quando começa a deteriorar em lixo, não
ficamos com medo, porque sabemos como transformar o lixo na rosa de novo. Portanto
quando você testemunhar um sentimento de ansiedade, se você olhar profundamente para ele,
verá uma semente de felicidade e liberação aí. É assim que a transformação acontece.
(Do livro “Under a Rose Apple Tree” – Thich Nhat Hanh – traduzido por Leonardo Dobbin)
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