A Máquina Infernal ou Do Liberalismo na Era da Mundialização Eduardo Lourenço O que é uma máquina infernal? Um dispositivo, ao mesmo tempo incontrolável e fatal para destruir o que nós somos ou nos supomos como seres que dominam o seu destino. É a essência mesma da tragédia, armadilha dos deuses (ou artes do Destino, que é mais do que deuses, como dizia Pessoa), com colaboração da nossa liberdade. É um título célebre de Jean Cocteau. Habitualmente (e miticamente), a tragédia vive e alimenta-se das mais radicais e viscerais paixões humanas, mas só adquire o seu carácter sublime como expressão da nossa vontade de poder, em princípio, infinita. Napoleão que sabia do que falava disse que a forma da tragédia moderna por excelência era a Política. Mas já o era no tempo de Aquiles e Ulisses. Esse “homem de letras”, guerreiro e político, admirador de Chateaubriand, não sabia ainda que, por sua vez, a essência trágica do político era a Economia. Marx foi o primeiro que o não ignorou, mas o seu “humanismo” supôs que estava no poder e na capacidade dos homens como sujeitos e criadores de riqueza, poder domesticá-la. A única tentativa histórica para o conseguir não foi probante. Diante desta grandiosa decepção, a sereia do neoliberalismo confia de novo à lógica autocorrectora das famosas “leis do mercado” o poder de conter os seus efeitos, ao mesmo tempo, prodigiosos, devastadores e letais, nos limites do aceitável para uma sociedade minimamente democrática, se não justa. O espectáculo universal da era da mundialização sob o signo de um liberalismo que, paradoxalmente, nasceu com o objectivo de racionalizar a produção económica nos primórdios da sua ainda limitada planetarização – e a esse título, como expressão da “esquerda” na sua fase iluminista – não conforta essa visão virtualmente optimista e harmónica. Não se pode dizer que estejamos confrontados com o “caos” propriamente dito, pois o que caracteriza a nova ordem económica mundial (que outros chamam eterna desordem) é o refinamento apenas crível dos seus instrumentos de intervenção, de cálculo, de análise, de prevenção, na esfera económica e, ao mesmo tempo, o preço em matéria de emprego ou de precariedade estrutural criados por uma máquina tão performante nos seus meios e tão cega na adaptação deles à única finalidade que importa, o bem-estar da sociedade a que se destina. Como se se tratasse de uma colossal “força”, à Kundera, a efectivamente fabulosa capacidade de produzir bens cada vez mais próximos da perfeição na ordem do Desejo como se fossem objectos mágicos, não pode funcionar sem ao mesmo tempo os tornar rapidamente obsoletos – quer dizer, tendendo para um valor nulo como mercadoria – fazendo deste processo de construção-desconstrução, como o que assegura o movimento em constante autodestruição da criação artística, se não a sua razão de ser, pelo menos, a condição objectiva para que a máquina sem sujeito da produção capitalista continue a funcionar. E a criar proventos, também eles exponenciais, mas desta vez para sujeitos históricos bem reais que são menos os míticos Rotschild e Ford de outrora, que actores colectivos bem mais poderosos que eles, todas as marcas míticas superestatais, que disputam entre elas a clientela sem rosto (nós todos) cujos desejos são condicionados pela sua oferta como a mais incontornável das drogas. Nós somos o que consumimos mas não temos nenhuma capacidade de escapar à sedução dessa droga, desde a mais conforme ao nosso próprio sonho de mobilar o mundo que encontrámos (inventando o automóvel ou o avião) até à mais sofisticada oferta de bens culturais de pura diversão tornados mais necessários que a nossa antiga dependência da terra, do ar, da água, do fogo há muito domesticados através de uma vitória sobre eles que não era ainda a nossa derrota. Ninguém analisou melhor esse processo como epopeia da Humanidade e ao mesmo tempo como desumanização contínua dela, a famosa alienação, do que Karl Marx. O quadro que ele traçou dessa produção alienante nunca foi tão convincente como hoje sem que isso impeça que a máquina produtora, mau grado essa denúncia e a luta histórica para a “humanizar”, continue com um sucesso, na aparência irresistível, a criar um corpo pouco místico, o da nossa sociedade pós-industrial e pós-moderna que não descobre uma outra finalidade para a sua acção criadora, quase divina, do que a de reservar os seus bens materiais e imateriais para uma parte dos seus consumidores privilegiados, deixando a imensa maioria da humanidade à porta do seu ofuscante paraíso. Não é uma fase da famigerada e tão criticada hipótese de uma pauperização crescente da sociedade, em tempos profetizada pelo marxismo. É uma paradoxal coabitação de dois mundos (se assim se podem chamar) só unidos pelos laços da exclusão ou de não-inclusão natural no novo processo quase já automático de produção universal, em suma, um mundo e uma sociedade em estado de precariedade social absoluta. O Sistema no seu conjunto é de uma coerência e de uma eficácia admiráveis, mas ninguém, nem mesmo os actores reais que são a título cada vez mais excepcional donos dele, são capazes de se subtrair à lógica de exclusão e de precariedade que este fabrica para a imensa legião que dele se alimenta, como outrora vivia do trabalho tido como inumano por excelência, o trabalho escravo. Levando a hipérbole às suas últimas consequências, todos nós, apesar dos mecanismos privados ou estatais que podem ainda assegurar um “trabalho” digno desse nome e duradoiro (a título individual ou colectivo), desde Bill Gates ao mais anónimo dos seus “empregados”, somos virtualmente deslocalizáveis. Pouco importa que nas sociedades herdeiras de um passado minimamente “humanizado” uma parte das classes mais privilegiadas, no sentido antigo, ou mais aptas a integrar-se nos mecanismos implacáveis do Sistema, ainda vivam na crença de que o seu “futuro” lhes esteja garantido. Virtualmente, o tempo de trabalho garantido tornou-se uma ficção que como tal deve ser tratada. No Sistema – um modo de produção de amplitude global – não há refúgio, nem escapatória. A borboleta operária chinesa com o seu bater de asas – o seu trabalho quase de graça – provocou nos jardins ainda privilegiados da Europa, breves mas cada vez mais intensos “tsunamis” sociais. A universalização do liberalismo utópico – que só foi possível porque nunca foi conforme à regra de ouro da auto-regulação pelo equilíbrio ideal entre concorrentes angélicos – agora que não pode usufruir de escapatórias para espaços exploráveis sem fim – transformou a injustiça gritante das antigas desigualdades entre “ricos” e “pobres”, mas apesar de tudo integrados negativamente no sistema a que serviam de sangue, numa perfeita máquina “infernal” capaz de reciclar as suas próprias falhas. Até quando? Marx esperava que o sistema implodiria do interior. Ainda não sucedeu. Mas não é provável nem desejável que os proletários de luxo do arqui-capitalismo – os seus engenheiros e managers – tenham tanta paciência como os antigos “danados da terra”. Quem “deslocalizará” quem?