filosofia para quem discute a religião

Propaganda
FILOSOFIA PARA QUEM DISCUTE RELIGIÃO
“O único cristão morreu na cruz.” (Nietzsche)
Nietzsche (1844-1900) é, por excelência, o filósofo da radicalidade: singular,
único no gênero, personagem profundamente intrigante e que propõe, no dizer de
suas palavras, uma filosofia a marteladas. Sua bandeira filosófica é a transmutação
dos valores, pois percebe a hipocrisia e as contradições da cultura moderna. O
nome de Nietzsche está indissoluvelmente ligado a uma crítica radical da filosofia,
da ciência, da moral e da religião, ponto que nos interessa. Todos conhecemos as
suas expressões violentamente anticristãs, de deprecações e insultos ao
cristianismo, o que para ele é a síntese dos anti-valores. Mas donde provém
tamanha indignação e asco diante do cristianismo? Que importância possui a
religião cristã para Nietzsche? Como ele chega à conclusão de que o cristianismo é
a antítese dos valores? Donde nasce essa nova visão de humano que Nietzsche
busca? Cristianismo e filosofia nietzschiana são posições irreconciliáveis?
A crítica de Nietzsche ao cristianismo não se trata de uma crítica vazia,
afetiva ou cega; ela é muito bem fundamentada. Para dizer que o cristianismo é a
antítese de todos os valores e responsável por todos os males da sociedade,
Nietzsche esboça três momentos: uma análise de conjuntura, um diagnóstico da
causa e uma prescrição para a humanidade.
Nietzsche constata uma crise sem precedentes na história: um vazio total, um
nada tremendo, um niilismo arraigado. Esboçou uma imagem pavorosa do mundo
moderno e percebeu o declínio da civilização: já não há cultura, somente
recolhimento de informações; a arte é uma paródia; há predominância de um
pseudo-espírito e uma esterilidade irremissível. Porém, para Nietzsche tudo isso é
um plano superficial. Há um fenômeno mais profundo que a sociedade da época,
burguesamente satisfeita de si, não percebe: Got is tot (Deus está morto). Nesse
ponto, muitos são injustos para com o filósofo alemão: Nietzsche não é aquele que
reivindica para si a qualidade ou o status de ser o assassino de Deus; o que ele faz
é mostrar para o homem moderno que Deus está morto e que o próprio homem é
assassino de Deus; sua filosofia consiste em constatar um dado. Mas qual é a razão
da crise moderna e da morte de Deus? O homem moderno é aquele que colocou o
mundo e a história sob o signo da razão esclarecida, uma razão auto-suficiente e,
portanto, sem Deus. O grande problema para Nietzsche é que o homem moderno é
hipócrita: ele quer emancipar-se, mas coloca-se sob um abrigo seguro de um
absoluto. E quando percebe que em sua sociedade não há lugar para esse abrigo
absoluto (Deus), entra num processo de niilismo. Daqui que o chão rui sob seus pés,
que tudo seja equívoco, mentira e simulacro.
Nietzsche vai mais longe e pergunta-se: Por que Deus está morto? Qual a
causa mortis sui? Temos, então, uma resposta surpreendente: Deus está morto por
responsabilidade do cristianismo; porque o cristianismo destruiu tudo aquilo de que o
homem vivia e particularmente a verdade da vida que conheciam os pré-socráticos.
Quando o homem descobre, por meio das Luzes, que as verdades cristãs são
ficções e fantasias, mergulha num vazio colossal. Como o cristianismo, com todas as
suas forças, somente se apoiava em ficções e lendas, o homem, ao descobrir isso,
deve afogar-se, forçosamente, em um nada sem precedentes. Diante desse abismo
aberto à frente do homem, Nietzsche deseja a superação desse homem tal qual nós
o conhecemos, ou seja, apregoa o além do homem, o übermensch. Ultrapassar o
homem, ir além do homem, significa aceitar a possibilidade de viver de maneira
radical a finitude e a morte sem necessidade de consolo metafísico, assumir a
perspectiva de que a existência é vitalismo puro, sem próteses metafísicas. E para
isso acontecer, é preciso, diz Nietzsche, ser mais que homem.
Como percebemos, se podemos falar de uma finalidade da filosofia
nietzschiana, talvez fosse a idéia do übermensch, do além do homem. Mas teria
essa concepção uma estrutura semelhante no cristianismo? Ou melhor: a estrutura
de concepção de Nietzsche, no tocante ao übermensch, não a teria bebido na
antropologia cristã? Para o cristianismo – principalmente o cristianismo de tradição
paulina e agostiniana – o ser humano é corrupto pelo fato de romper com a
comunhão com seu Criador (pecado), vive em situação de insatisfação com sua
condição (desejo de conversão) e quer ser transformado de acordo com a figura de
Cristo (novo homem). Para Nietzsche, o homem é também um ser corrupto, está
insatisfeito com sua condição, carrega em si algo de profundamente frustrado e,
porque se insere no movimento de vontade de potência, quer ir além do homem
(übermensch). Porém, a corrupção do ser humano se dá pela realidade do
cristianismo. O cristianismo é a síntese dos anti-valores e dominou o mundo em
conúbio com a filosofia grega, fundamentando uma metafísica dualista, a qual
estabelece, por conseqüência, a antítese dos valores.
Percebe-se, assim, que a visão antropológica do cristianismo e da filosofia
nietzschiana possui a mesma estrutura, o mesmo modus operandi: o ser humano é
corrompido e deseja superação. Porém, as causas e conseqüências dessa
corrupção são diferentes: enquanto para o cristianismo a causa da corrupção é o
pecado e é a graça quem faz superar essa condição humana, para o pensamento
nietzschiano o homem é corrupto por causa do cristianismo e é a vontade de
potência que o leva ao além do homem, aquele que é capaz de encarar a existência
sem as próteses metafísicas. Dessa maneira, podemos afirmar que a bandeira
nietzschiana da transmutação dos valores nasce, necessariamente, de sua crítica ao
cristianismo.
Download