.O prontuário eletrônico do paciente na assistência, informação e conhecimento médico Massad, Marin, Azevedo Neto editores OPAS/OMS 2003 DIM-FMUSP/NIEN-UNIFESP 2003 versão para download 21 Capítulo 2. A Construção do Conhecimento Médico Eduardo Massad Armando Freitas da Rocha Para que uma espécie obtenha sucesso é necessário um grau mínimo de variabilidade genética, de modo a.garantir que pelo menos alguns indivíduos sobrevivam a bruscas mudanças ambientais. A espécie humana apresenta um razoável grau de variabilidade genética, isto implica em que, para um mesmo estímulo ambiental, indivíduos diferentes respondem de forma diferente. Além disso, uma mesma doença num mesmo indivíduo, pode ter diferentes manifestações ao longo de sua história clínica. Todas estas variações na espécie humana torna a prática médica, por vezes, muito difícil, dificultando também a geração do conhecimento médico. Este capítulo discute, portanto, os processos gnosiológicos e cognitivos envolvidos na evolução do conhecimento médico. A medicina baseada em evidências fundamenta-se na tentativa de contornarmos nossa ignorância através de uma síntese das evidências apresentadas nas bases de dados locais mas, principalmente, na literatura internacional e em especial na grande base de dados universal do conhecimento médico, disponibilizada pela Internet. A medicina pós-genômica já está trazendo novas formas de compreensão sobre certas doenças e novas formas terapêuticas, individualizadas para cada paciente. A medicina darwinista baseia-se na compreensão de que a espécie humana, como todas as outras espécies da biosfera, evoluiu por um processo de seleção natural. Verifica por exemplo que novos hábitos de vida, de alimentação e novos ambientes, por vezes ou quase sempre incompatíveis com nossa composição gênica, são a causa da esmagadora maioria das doenças. A construção do conhecimento médico deve ser compreendida como um conjunto de processos cognitivos de aquisição de informações geradas de diversas maneiras, análise destas informações e síntese em uma teoria o mais abrangente possível. Em sendo o conhecimento médico parte de uma ciência maior, conhecida como gnosiologia, ou estudo do conhecimento, e em sendo esta parte do campo maior da filosofia, é inevitável a discussão de aspectos filosóficos relativos ao tema deste capítulo. Outro problema de relativa importância para a gnosiologia médica é o chamado Problema da Demarcação, e que diz respeito à pergunta: o que delimita a ciência médica de várias pseudociências (curandeirismo, bruxaria entre outras). Um dos autores citados (Popper) propõe que a distinção entre a verdadeira e a falsa ciência consiste em que a primeira deve ser baseada em hipóteses e teorias que sejam falsificáveis, e portanto testáveis empiricamente. A busca, portanto de confirmação de hipóteses a priori não garante a veracidade das teoria e hipóteses presumidas. É quase regra geral o clínico com alguma experiência “montar” uma hipótese diagnóstica à primeira vista do paciente (técnica de reconhecimento de padrões) e estruturar uma estratégia de investigação que busque a confirmação de seu diagnóstico inicial. Outros autores (Van Bemmel e cols) identificam dois tipos básicos de conhecimento médico: o conhecimento formal, ou científico, e o conhecimento experiencial. O primeiro tipo de conhecimento médico baseia-se na literatura médica, periódicos, livros e outras formas de armazenamento. O segundo tipo, o experiencial deriva de informações constantes de bases de dados dos pacientes, como o prontuário eletrônico, ou em protocolos clínicos de procedimentos. Podemos identificar um terceiro tipo de conhecimento que deriva dos dois primeiros, ou seja, o conhecimento baseado em evidências disponíveis nas bases de conhecimento médico universal. Difere do primeiro tipo porque baseia-se, não no raciocínio dedutivo a respeito dos mecanismos das doenças, mas nas evidências acumuladas ao longo do tempo e sumarizadas pelos processos estatísticos adequados, principalmente a meta-análise. Compartilha, entretanto com o segundo tipo na abordagem fundamentalmente empírica, em que o peso da experiência do especialista individualmente é minimizado e a decisão se baseia na associação entre as observações primárias e os resultados de certas decisões. Um dos pontos de partida possíveis para a geração de conhecimento médico é pela interação médico-paciente da prática clínica.Observamos que o médico, através de um processo de investigação semiológica, colhe um conjunto de dados do paciente. Estes dados devem ser organizados e interpretados à luz do conhecimento existente. Os dados organizados geram, então, informação ao médico que, de posse destas informações e das evidências disponíveis nas bases de conhecimento médico, toma a decisão mais adequada possível. Esta etapa do ciclo envolve todo o processo de tomada de decisão individual do médico, incluindo o diagnóstico, a proposta terapêutica e eventualmente a elaboração de um prognóstico para o caso. Os dados gerados a partir de um único paciente podem ser advindos de uma população de indivíduos, através de um processo de investigação conhecido como pesquisa clínica ou pesquisa epidemiológica. Tais dados, por sua vez, devem ser organizados e interpretados à luz das teorias vigentes, e das evidências disponíveis, e podem gerar informações que, em uma etapa posterior, acrescer ou mudar o conhecimento da área. Todo o conhecimento médico, expresso em grande parte em relações e associações entre variáveis explicativas e certos efeitos de natureza clínica, esta armazenado em bases de conhecimento, as quais podem assumir a forma tradicional de livros textos e periódicos especializados, ou alguma forma de armazenamento eletrônico. A imagem abaixo apresenta uma proposta de modelo cíclico da geração do conhecimento médico. O diagnóstico médico baseia-se em observações clínicas e pode beneficiar-se (atualmente de modo preocupante e crescente) de técnicas auxiliares como laboratório clínico, imagenologia, etc. Podemos definir o processo diagnóstico tal como Sackett: um conjunto de técnicas que rotula o paciente e classifica sua doença, identifica o prognóstico provável e define o melhor tratamento disponível. Do ponto de vista da lógica quantitativa, o diagnóstico é um processo de redução de incertezas. O ato do diagnóstico clínico é, portanto, um processo de classificação, isto é, um esforço para se reconhecer a classe à qual determinado paciente pertence. Várias tentativas tem sido feitas para se identificar os caminhos cognitivos que levam ao diagnóstico médico, as quais se resumem a combinação de um ou mais dos seguintes fatores: a abordagem de reconhecimento de padrões pelo clínico experiente, o método de múltiplas ramificações do residente, o método de exaustão do aprendiz, e a técnica aparentemente mais usada, a abordagem hipotético-dedutiva. Várias são as ferramentas disponíveis para o tratamento das incertezas no diagnóstico médico, dentre elas a análise bayesiana e a teoria das evidências de Dempster-Schaffer, e uma técnica alternativa, a de lógica fuzzy. A abordagem bayesiana A abordagem bayesiana é baseada em probabilidades a priori, probabilidades incondicionais atribuídas a um evento na ausência de conhecimento ou informação que suporte sua ocorrência ou ausência, e nas probabilidades a posteriori, probabilidades condicionais de um evento dado alguma evidência. A teoria das evidências de Dempster-Schafer Com muita freqüência a incerteza resulta de uma combinação de falta de evidências, limitações inerentes à regras heurísticas e limitações do nosso conhecimento. A postura de Dempster-Schefer ao proporem sua teoria é a de que a medida da incerteza pode ser inferida pela distinção entre falta de certeza e ignorância. A teoria de Dempster-Schafer baseia-se na idéia de obter-se graus de crença para determinada questão a partir de probabilidades subjetivas de questões relacionadas e no uso de uma regra de combinação dos graus de crença quando estes são baseados em itens independentes de evidência. A lógica fuzzy O termo fuzzy significa nebuloso, difuso, e se refere ao fato de, em muitos casos, não conhecermos completamente os sistemas que estamos analisando. A intenção é flexibilizar a pertinência de elementos aos conjuntos criando a idéia de grau de pertinência. Dadas as características da teoria da lógica fuzzy, são esperadas suas enormes contribuições para o desenvolvimento de modelos em áreas onde é necessário lidar com a imprecisão, como a engenharia e a química, e com a subjetividade e o desconhecimento, como a biologia, a medicina, a saúde pública, entre outras. Talvez em nenhum outro campo da biociência a necessidade de estruturas matemáticas e computacionais, que possibilitem lidar com as imprecisões e incertezas de forma mais crítica e realista, seja tão evidente quanto na medicina. O diagnóstico de doenças envolve vários níveis de imprecisão e incerteza. Uma única doença pode se manifestar de forma totalmente diferente em diferentes pacientes, e com vários graus de severidade. Além disso, um único sintoma pode ser indicativo de várias doenças distintas, e a presença de outras doenças em um mesmo indivíduo pode alterar completamente o padrão sintomático esperado para qualquer uma delas. Estes efeitos costumam ser geradores de muitas incertezas e imprecisões afetando as interpretações dos exames e o diagnóstico. Temos ainda, que as doenças são geralmente descritas com a utilização de termos lingüísticos, que são intrinsecamente vagos, e que muitas são as variáveis qualitativas em medicina, o que apresenta dificuldades na utilização de métodos quantitativos. Em medicina a incerteza não se restringe apenas a variações aleatórias. Nessa área podemos agrupar as incertezas em duas classes: a variabilidade e a ignorância parcial. que resulta de erros sistemáticos de medida (imprecisão) ou do desconhecimento de parte do processo considerado (subjetividade). No caso da variabilidade a Teoria de Probabilidades (estatística) é em geral o método mais indicado, porém, ela não consegue, na maioria das vezes, abordar o problema da ignorância e da subjetividade. Esses últimos podem ser tratados, entre outros métodos, com a análise bayesiana e com a teoria de lógica fuzzy. Os dados médicos, sejam eles gerados através de entrevista com o paciente, ou de pesquisas de natureza clínica, epidemiológica ou fisiopatológica, só contribuem para o processo de conhecimento se organizados e interpretados adequadamente, gerando conhecimento médico.