INTRODUZINDO O AT.rev - Professor Landon Jones

Propaganda
1
INTRODUÇÃO
Definição
O que é o Antigo Testamento? Quando faço esta pergunta numa sala
de aula, as respostas são variadas. Alguns dizem que o Antigo Testamento é o
“complemento do Novo Testamento” ou “a promessa de Deus de enviar o
Messias.” Outros destacam o aspecto histórico, dizendo que o Antigo
Testamento é “a revelação progressiva de Deus para o povo hebraico”. Estas
respostas mostram, em termos gerais, como o leitor ocasional ou até freqüente
do Antigo Testamento pensa do seu conteúdo. Estas respostas são corretas?
Na realidade, em todas essas respostas, podemos encontrar alguns aspectos da
natureza do AT. A questão que ainda permanece é a seguinte: Será possível
definir em poucas palavras um corpo de literatura que levou mais que mil
anos para se escrever e transmitir? É possível reduzir tudo que se encontra no
AT a uma só frase? Certamente, definir do Antigo Testamento não é fácil,
principalmente por causa da natureza desta literatura. A resposta inclui vários
aspectos importantes. Vamos esboçar alguns:
Primeiro, o Antigo Testamento pode ser chamado uma coletânea de
literatura hebraica. Esta literatura foi escrita principalmente em hebraico e
contem narrativas, poesias, profecias, e a sabedoria da antiga cultura hebraica
até o período da restauração depois do exílio babilônico. O seu conteúdo
reflete a história e a cultura da antiga nação de Israel bem como as normas e
convenções da literatura do Oriente Médio em geral e do povo hebraico em
particular. Por isso, a leitura e interpretação do Antigo Testamento devem
levar em conta as suas características históricas, culturais e literárias.
Segundo, outra maneira de pensar do Antigo Testamento é como os
livros sagrados da comunidade judaica que formam a Bíblia Hebraica, o
Tanak. Estes livros são usados por esta comunidade, ao lado das suas próprias
tradições, na observância dos rituais da sua religião. A influência judaica mais
óbvia pode ser vista na divisão e ordem dos livros da Tanak. Este se divide em
três partes: a Tora, os Nevi’im (os profetas), e os Ketuvim (os escritos).
Falaremos mais sobre este aspecto do Antigo Testamento.
Terceiro, o Antigo Testamento é a primeira parte da Bíblia cristã.
Como parte desta, é aceito pela igreja como escritura ao lado do Novo
Testamento. Assim, a igreja deve ler o Antigo Testamento com seriedade
porque é considerado inspirado por Deus. O Antigo Testamento ainda fala à
igreja e deve ser usado na elaboração da doutrina e prática juntamente com o
Novo Testamento.
Finalmente, o Antigo Testamento é o primeiro testamento das
atividades de Deus na história da sua auto-revelação para o ser humano.
Como o primeiro testamento, o Antigo Testamento fala de Deus, seus atos e
sua natureza no contexto da sua auto-manifestação ao povo hebraico.
Também, trata da resposta que o ser humano deu a esta revelação, tanto para o
bem como o mal. Para a igreja, é uma fonte confiável de conhecimento
verdadeiro de Deus e é indispensável na formulação da teologia bíblica e
sistemática.
As questões básicas
A questão da definição do Antigo Testamento nos leva a considerar
como devemos estudá-lo. Quando abrimos o Antigo Testamento para ler ou
estudar o seu conteúdo, algumas questões básicas nos enfrentam. O estudante
sério do texto bíblico tem que lidar ou mais cedo ou mais tarde com estas
questões.
A questão do texto
A primeira é a questão da natureza do próprio texto. O texto do
Antigo Testamento é escrito principalmente em hebraico, com alguns trechos
em aramaico. São línguas desconhecidas pela maioria dos leitores bíblicos
modernos. Mesmo com traduções contemporâneas modernas, nem sempre o
sentido de uma palavra ou expressão é claro. Felizmente, uma leitura
comparativa das traduções modernas pode ajudar o leitor a entender melhor o
sentido original das palavras e expressões bíblicas. Mas, para o estudante sério
das escrituras, um conhecimento básico das línguas bíblicas é de valor imenso
na leitura e interpretação do Antigo Testamento.
Porque nós não temos os manuscritos originais do Antigo
Testamento, o nosso conhecimento do conteúdo vem por meio das copias e
versões antigas que foram preservadas. Existem vários manuscritos antigos ao
nosso dispor para o estudo do texto e transmissão do Antigo Testamento. O
mais importante dos manuscritos hebraicos é o Texto Masorético, um texto
‘padrão’ produzido pelos masoretas, escribas judaicos encarregados pela
‘tarefa de copiar e preservar o texto hebraico. Este ‘texto padrão’ apareceu
acerca de 500 dC e foi baseado em textos mais antigos. Um dos manuscritos
masoréticos mais importantes é o Códice de Leningrado B19, escrito acerca
de 1008 dC e que forma a base da Bíblia Hebraica Stuttgartencia (BHS), uma
das edições mais recentes da Bíblia Hebraica.
Além do manuscrito masoréitco, outra fonte importante de
informações sobre o conteúdo do texto do Antigo Testamento são os rolos do
Mar Morto. Entre os rolos, temos exemplos dos manuscritos hebraicos mais
antigos que existem. Os textos do Mar Morto representam uma tradição
Copyright©Landon Jones, 2013
2
textual não-masorético, isto é, um manuscrito que não foi utilizado pelos
masoretas na produção do texto padrão. Os textos do Mar Morto mais antigos
foram escritos acerca de 200 aC por membros de um grupo de indivíduos
conhecidos como os essênios, uma seita judaica que se separou do judaísmo
da Palestina e se estabeleceu na beira do Mar Morto para esperar a vinda do
‘Mestre de Justiça.’ Enquanto o grupo esperava, passava o tempo estudando
as escrituras, praticando os seus rituais religiosos e fazendo cópias e
comentários dos textos do Antigos Testamento. Algumas desses manuscritos
foram preservados no deserto até a descoberta em 1948.
Versões são outros exemplos de textos do Antigo Testamento. Uma
versão é um manuscrito não-hebraico, isto é, uma tradução antiga do Antigo
Testamento. A versão mais importante é a Septuaginta (LXX), uma tradução
grega do texto. A história da tradução desta versão não é totalmente
conhecida, mas, sabemos que provavelmente foi produzida no terceiro século
aC de um manuscrito hebraico desconhecido. A LXX foi usada, primeiro
pelos judeus e depois, pelos cristãos. Quando autores do Novo Testamento
precisavam citar o Antigo Testamento, a LXX foi o manuscrito normalmente
usado. Além disso, é usado pelos tradutores contemporâneos do Antigo
Testamento como fonte de leituras comparativas quando o texto hebraico é
difícil, corrupto ou ambíguo.
A questão das fontes
Uma segunda questão é a questão das fontes do Antigo Testamento.1
De onde veio o texto do Antigo Testamento? Como chegou até nós?
Infelizmente, a história da produção e transmissão do texto hebraico não é
conhecida completamente e o próprio texto nos dá poucas informações
específicas. O texto indica que, desde as épocas remotas dos antepassados de
Israel até o fim da época do Antigo Testamento, Deus comunicou-se com seus
servos. A natureza desta comunicação nem sempre é conhecida. Uma das
frases mais comuns no Antigo Testamento é “e Deus disse . . .” Os autores
originais não explicaram como Deus falou. Muitos especialistas acreditam que
estas revelações foram transmitidas oralmente de geração a geração antes de
serem escritas. A única coisa que podemos afirmar é que foram aceitas como
comunicações diretas e legítimas de Deus para seus servos.
1
A questão das fontes do Antigo Testamento é extremamente complicada quando se trata das
várias hipóteses documentarias históricas. Nesta apresentação, não há espaço para um tratamento
completo da questão. Para uma discussão mais completa da questão das fontes do ponto de vista
crítica, veja, por exemplo, Rolf Rendtorff, A formação do Antigo Testamento, 3a ed., São
Leopoldo: Sinodal, 1983 e Hans Walter Wolff, Bíblia Antigo Testamento: introdução aos escritos
e aos métodos de estudo São Paulo: Paulinas, 1978.
Aos poucos, as falas de Deus, as narrativas da história do povo de
Israel, as falas dos profetas e as suas poesias foram preservados por escrito,
criando um corpo literário. O texto bíblico nos dá algumas indicações deste
processo. Em Êx. 17.14, lemos que Deus ordenou que Moisés escrevesse o
relato na batalha entre os israelitas e os amalequitas. Outros exemplos podem
ser encontrados em Êx. 24.4; 34.27; Nu. 33.2; Dt. 31.9, 19. Os livros de Reis e
Crônicas registram a existência de fontes escritas que foram utilizados na
compilação das narrativas do reino, como os “registros históricos do vidente
Samuel, do profeta Natã e do vidente Gade” (1Cr. 29.29), “os registros
históricos de Salomão” (1Rs. 11.41) e “os registros dos reis de Judá e de
Israel” (2Cr. 25.26). Além destas fontes “oficiais”, proclamações e cartas
foram incluídas (Es. 1.2-4; 7.12-26) e citações de livros desconhecidos, como,
por exemplo, o “Livro das Guerras do SENHOR” (Nu. 21.14, 15) e o “Livro
de Jasar” (Js. 10.12, 13).
A questão do cânon
Tudo isso mostra que a produção do texto do Antigo Testamento foi
um processo histórico dinâmico, envolvendo pessoas e fontes conhecidas e
desconhecidas. Gradualmente, as várias coleções foram juntadas para criar um
corpo de literatura ‘autorizada.’ O processo de aceitação da literatura como
literatura autorizada é chamado canonização. A divisão dos livros da Bíblia
Hebraica em Lei (Torá), Profetas (Nevi’im), e Escritos (Ketuvim)
provavelmente reflete a ordem em que os livros foram aceitos como escritura.
Certamente a autoridade da Torá, os primeiros cinco livros do Antigo
Testamento, foi aceita logo por causa do seu vínculo com Moisés e pelo fato
de conter as leis da aliança do Sinai. Partes desta literatura foram lidas em
várias ocasiões históricas de Israel, mostrando o seu valor intrínseco. Na
ocasião da formação da aliança no Sinai, o “livro da aliança” foi lido,
concluindo a cerimônia da confirmação da aliança. (Êx. 24.7) Mais tarde, na
ocasião da renovação da aliança nos dias do Rei Josias, o “livro da lei” foi
lido ao rei e depois ao povo. (2 Rs. 22.10, 11; 23.2) A leitura pública do livro
da lei durante a restauração nos dias de Esdras e Neemias foi instrumental na
reconstrução da sociedade pós-exílica. (Ne. 8.3, 5-8) Nesta ocasião, o povo
ficou em pé para ouvir a leitura, demonstrando o reconhecimento do valor já
atribuído a esta literatura.
Todavia, até o fim do período do Antigo Testamento, é impossível
falar de uma “Bíblia Hebraica” ou o “Antigo Testamento” como nós temos
hoje. Não se sabe a data precisa quando os livros proféticos, poéticos e
sapienciais foram aceitos como escritura autorizada pela comunidade judaica.
No prólogo do livro de Eclesiástico, escrito no segundo século aC, o autor fez
Copyright©Landon Jones, 2013
3
menção das “grandes lições” que são disponíveis por meio da “lei, os profetas
e os outros escritores,” (Eclo. 1.1,2) mostrando o conhecimento de livros
‘canônicos’ nesta época. Mais tarde, Jesus demonstrou conhecimento de
‘livros autorizados’ quando ele falou das coisas escritas sobre ele “na Lei de
Moisés, nos Profetas e nos Salmos.” (Lc. 24.44) Além disso, as citações da
LXX no NT mostram que a comunidade cristã do primeiro século dC já
reconheceu o valor desta coletânea para a proclamação de Jesus como o
Messias. Assim, é bem provável que o conteúdo do cânon do Antigo
Testamento já foi determinado, pelo menos em termos práticos, a partir do
segundo século aC. A determinação do cânon “oficial” provavelmente
demorou até o fim do primeiro século dC.2
O evento que motivou a finalização do processo ‘oficial’ de
canonização entre os judeus provavelmente foi a destruição do Templo pelos
romanos em 70 dC. Até a destruição do Templo, a cidade de Jerusalém foi o
centro de atividade religiosa judaica na Palestina. Depois da invasão dos
romanos e a destruição do Templo, o centro se mudou para a cidade de Jâmnia
(ou Jabneh). A tradição indica que, num concílio rabínico, a questão do
conteúdo ‘oficial’ das escrituras entre os judeus foi discutida e finalmente
resolvida, mas, não há consenso sobre o valor deste “concilio de Jâmnia” nem
dos seus propósitos. A conclusão mais provável é que até o fim do século um
dC, tanto a comunidade judaica como a cristã reconheceram a autoridade dos
livros que compõe a Bíblia Hebraica hoje.
A questão do cânon do Antigo Testamento não foi resolvida
totalmente pelo estabelecimento de um texto padrão. Ainda existem
diferenças entre os cânones usadas várias comunidades religiosas. A tabela
seguinte mostra a situação que existe hoje entre as três grandes comunidades
que usam o Antigo Testamento como escritura.
A questão de autoridade
Finalmente, temos que considerar a questão da autoridade do Antigo
Testamento para a igreja. A questão da autoridade do Antigo Testamento para
a igreja é vinculada à canonização e à inspiração do conteúdo do Antigo
Testamento. O processo de canonização, que estabeleceu a autoridade do
Antigo Testamento tanto para a comunidade judaica quando a comunidade
cristã foi fruto da inspiração dos textos. No processo da canonização, vários
critérios foram usados, como, por exemplo, a questão de autoria. Mas, o
critério fundamental foi o da inspiração. Os judeus e os cristãos aceitam o
valor intrínseco dos livros do Antigo Testamento porque estas comunidades
acreditam que quando estes livros são lidos, eles “ouviram a voz de Deus.” 3
A capacidade de “ouvir a voz de Deus” nos livros do Antigo
Testamento não resolve completamente a questão da autoridade do Antigo
Testamento. A questão tem um aspecto altamente prático. Devemos ou não
guardar tudo que se encontra no Antigo Testamento? O que é que a igreja
deve fazer com as leis e histórias que freqüentemente criam problemas para os
leitores? Para muitos leitores do Antigo Testamento, a resposta é
relativamente fácil: com a chegada de Jesus e o Novo Testamento, a igreja
deve guardar tudo aquilo que combina com o Novo Testamento e os
ensinamentos de Jesus e o resto é praticamente dispensável.
Esta atitude, porém, é contrária à orientação que encontramos no
próprio Novo Testamento. O apóstolo Paulo escreveu a Timóteo, dizendo que
“toda escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino” (itálico meu). O
apóstolo reconheceu que o valor do Antigo Testamento é devido
principalmente à sua origem divina. O problema baseia-se principalmente na
questão histórica do Antigo Testamento. Com a vinda de Jesus e o
estabelecimento da igreja, muitos rituais, cerimônias e leis do Antigo
Testamento parecem ultrapassados. O motivo oferecido pela igreja para o não
cumprimento destas leis é que, com a vinda de Jesus, não há necessidade de
cumprir tudo que se encontra no Antigo Testamento porque Jesus cumpriu a
lei por nós. Certamente este é um dos princípios mais importantes do Novo
Testamento e a igreja não deve abandonar esta posição. Todavia, dizer que em
Cristo a lei se cumpriu não é dizer, ao mesmo tempo, que estas passagens
perderam o seu valor teológico para a igreja. Cabe à igreja descobrir como
resgatar o sentido teológico destas passagens.
Uma solução foi proposta por John Bright. 4 Bright apelou à teologia
do Antigo Testamento como uma maneira de resolver o problema. Uma das
tarefas da teologia bíblica é identificar as normas teológicas de que o texto
fala e ajudar o leitor a separar estas normas teológicas das formas históricas de
Israel. São estas normas teológicas que servem para a igreja aproveitar o
conteúdo do Antigo Testamento e não os aspectos especificamente históricos
de Israel. Como Bright disse: “no Antigo Testamento, o que é normativa para
nós como cristãos, reside precisamente na sua teologia—não nos detalhes da
história de Israel ou na formas historicamente condicionadas no qual a fé de
Israel se expressou.”5 Bright continuou dizendo que o estudo da história de
3
2
Para uma discussão mais ampla da questão da canonização do Antigo Testamento, veja F. F.
Bruce, O cânon das escrituras (São Paulo: Hagnos, 2011).
Veja a discussão sobre inspiração e canonização em LaSor, William,Sanford et. Al., Introdução
ao Antigo Testamento, tradução de Luci Yamakami (São Paulo: Vida Nova, 1999), pp.651-659.
4
The Authority of the Old Testament. (Baker: Grand Rapids, 1975).
5
Ibid., p. 147.
Copyright©Landon Jones, 2013
4
Israel deve fazer parte da tarefa teológica. Aliás, é o estudo desta histórica que
dá à teologia uma base para extrair uma norma teológica que ultrapassa a
particularidade histórica. Mas, é a teologia e não a história de Israel que serve
como norma para a igreja.
O presente autor concorda com a posição de Bright, mesmo
consciente dos problemas que esta metodologia apresenta. Nem sempre é
possível identificar facilmente a norma teológica embutida na forma histórica
e, mesmo identificando, nem sempre é uma tarefa fácil aplicar a norma à vida
da igreja. Mas, às luz das outras possibilidades (a alegoria, por exemplo) a
sugestão de Bright merece a nossa consideração. A tarefa de descobrir o
sentido do Antigo Testamento e aplicar os seus ensinamentos na vida da igreja
é uma tarefa que não somente vale a pena fazer, mas, é essencial se a igreja
contemporânea vai ficar fiel à sua missão de proclamar a verdade sobre Deus
a um mundo que necessita conhecer a verdade.
Copyright©Landon Jones, 2013
Download