O PORTFÓLIO PODE MUITO MAIS DO QUE UMA PROVA * Joyce Munarski Pernigotti Liane Saenger Lígia Beatriz Goulart Vera Maria Zambrano Ávila “No andar se definem os novos passos e os caminhos se fazem no caminhar.” (Marques, 1999. p. 179) Em qualquer situação de nossas vidas, ser avaliado ou avaliar desperta inquietações. Na escola, especialmente, o período de avaliação deixa as pessoas mais desacomodadas e, tanto alunos quanto professores, tensionados. Não é sem razão, pois, que avaliar pessoas e seus desempenhos implica, sempre, julgamento. Julgar pode significar emitir um parecer ou opinião, mas também sentenciar e condenar. Será para punir que se propõe a avaliação escolar? Será para corrigir? Quem sabe para reeducar ou “curar”? Mas de quê? Se pensarmos em um julgamento, o que vai definir o destino de um réu são as provas, contra ou a favor. Os elementos que puderem ser reunidos para caracterizar a participação do réu no possível evento a ser apreciado são decisivos. Todas as decisões tornam-se mais justas e seguras na proporção dos elementos que possuímos para toma-las. Atualmente, muitas escolas ainda utilizam, como critério prioritário para avaliar seu alunos, a sistemática de provas. Esta, em geral, é um conjunto de atividades realizadas individualmente, de preferência ao final das unidades trabalhadas. Ela é composta por proposições feitas a partir da ótica dos professores, sobre os pontos considerados cruciais e indicadores da compreensão do conteúdo estudado. Não raro, há professores que se preocupam em descobrir formulações complexas para testar as possíveis deficiências na aprendizagem dos alunos. Há situações de teste que se assemelham a provas de concursos públicos, dentre eles o próprio vestibular. Propostas de provas distribuídas ao longo do bimestre, “cumulativas” como dizem, pretendem desconcentrar a avaliação e “acompanhar os alunos mais de perto”. Serão estas provas, realmente, capazes de avaliar a aprendizagem dos alunos? A sistemática de provas favorece a avaliação das propostas pedagógicas que as geraram? Sempre nos questionamos sobre a propriedade de usar as provas como ponto básico para a avaliação, pois, se os alunos só precisam “apresentar” seu conhecimento uma vez por mês ou bimestre, como ficam os outros dias de aula? Serão menos importantes? Por outro lado, de que valem os saberes adquiridos, mas que não “caíram na prova”? Será que eles são menos importantes? Além disso, de que adianta constatar “deficiências” de aprendizagem quando o “tempo para trabalhar aquele assunto” já se esgotou? Percebemos que muitos professores se sentem seguros em afirmar que um aluno sabe algum conteúdo se ele o reproduziu em um prova, mas será que isso é verdade? Todos que passamos pelo 2º grau, como alunos, respondemos uma prova sobre função quadrática, porém, poucos de nós, hoje, somos capazes de dizer o que ela significa, ou mesmo a fórmula usada para resolver questões que envolvam essa função. Seria demais afirmar que “uma prova não prova nada”? Nesta perspectiva, podemos introduzir outros questionamentos igualmente significativos e que merecem um olhar reflexivo: por que os trabalhos dos alunos devem ser considerados segundo critérios de resultados e não de processos? Será que a proposta do professor é acompanhada da mesma maneira por todos os alunos? Não seria de esperar que, se as pessoas são diferentes e possuem histórias diferentes, também suas necessidades e formas de aprender são diferentes? Geralmente, uma prova representa um olhar do professor sobre o conteúdo estudado. Não contempla os múltiplos caminhos que um aluno pode percorrer para realizar suas aprendizagens. Além disso, é preciso que se considere o aluno em todos os momentos nos quais interage com diferentes pessoas e situações escolares. Dessa forma, teremos a chance de compor uma “avaliação” mais consistente. A escola não pode viver sempre reproduzindo situações de concursos, pois a vida, para a maioria das pessoas, não é feita só deles, mas sim de muitas e muitas situações de interação, onde nossos conhecimentos são postos em xeque e outros tantos precisam ser construídos. É importante prepararmos os alunos para enfrentar situações de testagem sim, mas a escola deve preocupar-se em enfatizar outras situações, nas quais eles possam manter um real diálogo com o conhecimento. Nossa experiência tem demonstrado a importância de valorizarmos todas as aulas em todos os seus momentos. O recurso do portfólio tem se mostrado excelente para isso. No dicionário Aurélio, encontramos a expressão “porta-fólio”, que significa pasta de cartão usada para guardar papéis, desenhos, estampas. O sentido que damos ao portfólio é similar. Trata-se do registro da trajetória de aprendizagem do aluno. O termo portfólio nos remete a Gardner (1995), que o define como local para armazenar todos os passos percorridos pelos estudantes ao longo de sua particular trajetória de aprendizagem. O autor explica que a palavra não é suficiente para expressar a extensão do conceito, acreditando que “processo-fólio” seria mais adequado. Como Gardner (1995) consideramos a palavra portfólio insuficiente para dar sentido à amplitude do seu significado, pois nele o aluno vai, diariamente, acumulando dados, tanto no que se refere a textos, documentos, registros de atividades e ações, como também impressões, dúvidas, certezas, relações feitas com outras situações vividas ou imaginadas, na escola ou fora dela. É importante que, a cada dia, seja feito pelo menos um registro, pois isso possibilita, ao professor e aluno, um retrato dos passos percorridos na construção das aprendizagens. Essa característica de registro diário tem o sentido de mostrar a importância de cada aula, de cada momento, como uma situação de aprendizagem. O aluno é, então, avaliado por todos esse momentos. O portfólio difere de outros instrumentos, antes muito utilizados, tais como a construção de pastas de cada disciplina. Nesta, era obrigação do aluno reunir e organizar apenas o material distribuído em aula, e preferencialmente, relatórios de trabalhos concluídos. No portfólio, valorizam-se todas as etapas, mesmo inacabadas, dos processos de busca e investigação que os alunos realizam, do mesmo modo que as impressões, opiniões e sentimentos despertados pelo assunto em pauta ou até pela forma de trabalho, questionamento aos encaminhamentos dados, e assim por diante. O portfólio difere, também, do tradicional caderno onde são feitas anotações relativas ao “conteúdo” das aulas. Constitui-se, portanto, em uma espécie de filme onde o processo de aprendizagem fica registrado quase que com movimentos, porque sem o compromisso muito formal, poderá, e deverá, se possível, incluir rotas alternativas de reflexão, comentários a partir de situações domésticas, particulares, todas as que, afinal, são o somatório de experiências e vivências dos indivíduos. Acabam-se as “épocas” de avaliação. Ainda que se tenha iniciado esse artigo afirmando a relação entre avaliação e julgamento, nos parece que, em Educação, esse espaço se flexibiliza pela relação de troca e reciprocidade possíveis entre alunos e professores. Reduzem-se, assim, os tensionamentos, encontrando-se formas para aproveita-los de modo criativo. O portfólio merece, ainda, um lugar de destaque no sentido de oportunizar a professores e alunos uma reflexão sobre suas trajetórias, interagindo e redefinindo coordenadas para sua caminhada. É importante deixar claro que o uso do portfólio não elimina a necessidade de propor aos alunos momentos em que são chamados a fazer sínteses de suas aprendizagens, a confecção de relatórios das investigações que vêm realizando. Entretanto, a existência de um registro de processo oferece mais segurança no momento de realizar a avaliação do desempenho do aluno e do professor. O portfólio, assim como outras palavras e expressões usadas em Educação, corre o risco de, como diz Dommen (1994) tornar-se uma palavra “ruidosa”, na medida em que, incorporada por diversos atores e setores da comunidade, tenha seu uso banalizado. Para esse autor as palavras ruidosas têm o papel de provocar uma reação e orientar uma atitude, são aspirações do momento, carregadas de emoções e, por isso, podem ser levadas à morte. Isso acontece porque, de um lado, o uso descompromissado e vulgarizado do conceito favorece a perda do seu real sentido e, de outro, o seu emprego como termo técnico, não incorporado, desconhecido e por isso atacado, é rechaçado. Portanto, é importante que se compreenda muito bem a função do portfólio, para que não coloquemos a expressão em descrédito diante dos educadores. Temos realizado experiências com construção de portfólios com crianças da escola fundamental, universitários e alunos da pós-graduação. Em todos os casos, este tem-se revelado um importante instrumento para desenvolver a capacidade de reflexão, tão pouco enfatizada nas práticas tradicionais.. Destacamos alguns fragmentos de depoimentos de alunos para melhor caracterizar essa experiência: “...eu acho um modo legal de se organizar. É também um modo de sermos mais responsáveis porque se nos esquecemos não temos nada pra fazer... lá pode conter do mais interessante ao mais simples.” (Gabriela, 6ª série) “...é legal depois de algum tempo você ler seus portfólios e ver que tudo o que você fez está registrado, nada foi perdido. Porém, mais importante do que isso, é ter para sempre guardado em você o que você aprendeu.” (Débora, 8ª série) “...é um histórico do nosso trabalho. Eu gosto de usar o portfólio porque é muito importante para a minha pesquisa, por exemplo, daqui a 10 anos eu posso precisar dessa pesquisa para alguma coisa.” (Adriano, 6ª série) “Posso dizer que é uma forma inovadora, criativa e justa para detectar o nível de aprendizagem e compreensão do aluno, sem a pressão psicológica que as avaliações quantitativas nos impõem.” (Iara, universitária) “...mas a sua maior contribuição é justamente porque faz com que possamos nos aprofundar mais e entender melhor os assuntos.” (Paulo, universitário) Cabe ainda mencionar que o professor pode encontrar no portfólio elementos para planejar suas ações e intervenções na prática cotidiana. Por isso, não espera até o final do mês ou do bimestre para se inteirar do que anda acontecendo na ação dos seus alunos. Mais que tudo, pode buscar elementos para entender as diferentes “velocidades e percursos dos aprendentes”? Permitir que cada aluno se defronte com sua produção e refletir sobre o que realizou e como conseguiu enfrentar os desafios propostos é reconstruir saberes, é estabelecer interlocuções, é esclarecer perspectivas, é construir autonomia. Desta forma é possível realizar uma avaliação capaz de ser introjetada nas próximas ações produtivas do sujeito. Por tudo isso, o portfólio se constitui em um instrumento de comunicação entre aluno e professor, pois, a partir da análise conjunta do documento, é possível percorrer as histórias das aprendizagens, num fundamental equilíbrio nas relações de poder entre os indivíduos desse processo. Tanto professor quanto aluno terão como bases argumentativas a resultante construída processualmente. Ambas as partes terão de dar conta do que fizeram, trocar sugestões para próximas atividades, considerar idiossincrasias e aprender a lidar com as diferenças. Enfim, viver a experiência de conviver, que é o que se deve querer de uma escola. * Dirigentes da Associação Tessituras Educacionais. Site: www.geocities.com/tessituras Obs: Este texto foi retirado da Revista Pátio – revista pedagógica, Artmed, ano 4, nº 12, fevereiro 2000. Referências bibliográficas: DOMMEN, Edouard. Developpement durable: mots-déclic.United Nations Conference on Trade and Development. Disscusion Paper n. 80, fevereiro, 1994. FERREIRA, Aurélio B. Novo dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, 2ª ed. GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas. A teoria na prática. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995. MARQUES, Mário Osório. A escola no computador. Linguagens Reticuladas, Educação Outra. Ijuí, Unijuí, 1999.