A música espontânea da criança - sua evolução e razões de seu desconhecimento Maria Betânia Parizzi Fonseca A "música espontânea" da criança vem me encantando há quase vinte anos. Quando digo "música espontânea", refiro-me às manifestações sonoro/musicais produzidas espontaneamente por crianças até por volta dos seis anos de idade. Apesar de já existirem estudos sobre a evolução dessa produção musical, esta "música" ainda é praticamente desconhecida de todos. A maioria das pessoas desconhece que da mesma forma que a criança pequena é capaz der se expressar através do desenho, ela também é capaz de se expressar através de sua "música espontânea". Em 1985, sob a orientação do Professor Koellreutter(*), iniciei um trabalho de pesquisa com um grupo de crianças entre 3 e 5 anos. O objetivo deste trabalho foi estudar a relação existente entre a forma de perceber o mundo e as manifestações musicais espontâneas de crianças pequenas, isto é, até que ponto seu mundo perceptivo se manifesta em sua música espontânea. Foi um trabalho complexo devido ao desconhecimento que havia na época sobre o assunto. Iniciamos a pesquisa com um estudo da trajetória do desenho infantil, desde as primeiras garatujas até o desenho figurativo, uma vez que esta questão já havia sido bastante estudada desde a década de cinqüenta. Lowenfeld 4 diz que a tendência das garatujas é seguir uma ordem bastante previsível: garatujas desordenadas, garatujas controladas e, finalmente, as garatujas com atribuições de nomes, o que normalmente acontece por volta dos quatro anos. Aos 5 anos esse traços já são, com freqüência, distinguíveis como pessoas, casas, arvores. As crianças, de modo geral são estimuladas a desenhar. Seus desenhos são apreciados, exibidos e tudo isso estimula a continuidade deste processo. Nosso trabalho se baseou na análise sistemática de gravações de manifestações musicais espontâneas de crianças de 3 a 5 anos e, ao final de um ano de pesquisa, já tínhamos um grande acervo dessas gravações. Tínhamos, inclusive, o registro gráfico de algumas delas feitos pelas próprias crianças. A análise desse material nos levou a duas grandes perguntas: a música espontânea da criança evolui de forma mais ou menos previsível, como o desenho? por que essa música é tão pouco estudada e conhecida? Após esses quase vinte anos, com nossa própria experiência e através da experiência de pedagogos musicais que também investigam o assunto, concluímos que a evolução da “música espontânea” da criança segue uma seqüência previsível de desenvolvimento. Ela se inicia no momento em que o bebê começa a emitir os primeiros sons e a se encantar com eles. Play in early childhood is characterized especially by the pleasure of mastery, what Piaget calls 'a feeling of virtuosity or power'. (**) (Piaget apud Swanwick 5) "Children engage in different forms of play during the course of development. First, still in the sensory period, the child engages in "mastery play", in which she starts gaining control over the environment by controlling her action." (***) (Haynes, apud França 2). (*) Hans Joachim Koellreutter, compositor e pedagogo alemão radicado no Brasil desde 1937. O brincar na primeira infância é caracterizado pelo prazer de dominar certas habilidades, o que Piaget chama de "uma sensação de virtuosidade ou poder (***) As crianças se envolvem com diferentes formas de brincar durante seu desenvolvimento. Inicialmente, ainda no estágio sensorial, a criança se envolve com o "brincar de adquirir certas habilidades", com as quais ela começa a controlar o meio ambiente, através do controle de suas ações. (**) O bebê explora o meio ambiente, seu corpo, sua voz. Ele cria "garatujas" com a voz pelo simples prazer de ter o "domínio" da habilidade de emitir sons. Segundo Moog (apud Swanwick 5), o "balbucio musical", típico desta fase, está relacionado ao fascínio da criança pelo som e ao prazer de começar a controlá-lo e não guarda relação de semelhança com o que lhe é cantado ou oferecido como música. A partir de um ano, as crianças começam a ser capazes de reproduzir o que escutam e por volta dos 18 meses, começam a associar movimentos corporais ao ritmo das músicas (pulsação). Isto é o primeiro presságio de resposta ao caráter expressivo da música. Por volta dos quatro anos, surge uma nova forma de "cantar", a qual Moog denomina "canções imaginativas", através das quais as crianças contam suas histórias ou criam suas próprias versões de canções já conhecidas. A partir dos quatro ou cinco anos, a criança já tem domínio da linguagem devido ao estímulo que lhe é oferecido continuamente pela família e, posteriormente, pela escola. Infelizmente, o mesmo não acontece com o desenvolvimento do processo de criação musical, o qual normalmente se interrompe muito precocemente na infância. Esse processo não é incentivado justamente porque os adultos o desconhecem. Qual seriam então as razões pelas quais a “música espontânea” da criança é tão pouco conhecida. O principal motivo é que a música é a única manifestação artística que ocorre apenas no tempo. A ocorrência musical é efêmera, o que torna difícil o registro das manifestações musicais da criança. "A criança pequena brinca com os sons, balbucia, inventa novas sonoridades, cantarola melodias espontâneas. Mas como a atividade ocorre no tempo e não no espaço (como no desenho), não há registro e a criança não é estimulada nesse sentido. O jogo vai sendo inibido pela quantidade de estímulos externos. Cabe então ao educador propiciar a livre expressão de jogos criativos ou de situações favoráveis a esse tipo de manifestação". ( Braga1 ) O que normalmente acontece é que por volta dos 7 anos a criança já quase não cria. Gardner3 diz que em várias esferas artísticas as evidências sugerem um nível de competência surpreendentemente alto nas crianças pequenas, seguido de um possível declínio nos anos da infância média. Há ainda outra questão que contribui para que a "música espontânea" da criança seja tão desconhecida de todos. Existe um momento no qual a garatuja passa a ter um significado denotativo para a criança, inicialmente não percebido pelo adulto. Segundo Lowenfeld 4 esta etapa representa o ponto em que elas começam a dar nomes às suas garatujas. "Talvez o menino diga: esta é a mamãe ou, este sou eu correndo. Contudo, no desenho, não são reconhecíveis nem ele nem a mãe." Mais adiante, suas garatujas realmente se transformam num desenho explicitamente figurativo. Torna-se claro para o adulto o que a criança quer representar. Porém, o mesmo não acontece com a musica espontânea da criança (a não ser quando ela vem acompanhada de letra). A tendência é associar qualquer som que o bebê produza à linguagem falada. Não se imagina que aquele som possa ser simplesmente "um som". Tenta-se logo dar um significado denotativo ao que é “dito”. A música, no entanto, possui apenas o significado conotativo/expressivo, estético. Susanne Langer (apud França2) afirma que o simbolismo artístico é mais nítido na música porque a música não faz referência à nada externo a ela: como os sons musicais não têm sinônimos, eles se constituem no meio mais adequado à pura expressão artística, que não pode ser expressa de outra forma. "Music can reveal the nature of feelings with a detail and truth, that language can not approach" (****) (****) "A música pode revelar a natureza dos sentimentos de forma tão detalhada e precisa, que não pode ser substituída pela palavra" Isto certamente também contribui para tornar a música espontânea da criança mais distante do interesse e da compreensão do adulto. Para a preservação do espirito criativo musical e da criatividade em geral só há um caminho – a educação. Quando houver educação musical de qualidade em todas as escolas, e a música de indiscutível valor estético fizer parte da vida das crianças, aí sim elas serão estimuladas a continuar criando. Somente uma educação musical sistematizada pode fornecer as ferramentas necessárias para que as crianças continuem seu processo criativo. O que antes era manifestação musical espontânea passa, a partir dos sete anos, a ser composição musical porque existe a organização do material sonoro e a intenção que esse material se transforme em música. Cabe ao educador musical o grande desafio de manter vivo esse processo criativo. Quanto mais cedo a criança tiver experiências musicais através de um trabalho sensível de educação musical, maiores chances ela terá “impregnar-se de música” e de musicalizar-se plenamente. O conhecimento da linguagem musical, adquirido inicialmente através da vivência e posteriormente através da consciência, é um caminho seguro para o aprimoramento existencial do ser humano. 1. BRAGA, R.L.M.G. publicação no prelo com título ainda indefinido. 2. FRANÇA, C.C.: Composing, performing and audiece listening as symmetrical indicators of musical understanding. - Institute of Education - University of London, 1998. Tese de Doutoramento 3. GARDNER, H.: Inteligências Múltiplas - A teoria na Prática, Artes Médicas, 1995 4. LOWENFELD, V. & BRITTAIN, WL: Desenvolvimento da capacidade criadora. Mestre Jou, São Paulo, 1977. 5. SWANWICK, K.: Musical, mind and education. Routledge, Londres, 1988. Este texto resume a experiência da autora com educação musical na primeira infância e responde à duas perguntas fundamentais: a música espontânea da criança evolui de forma mais ou menos previsível, como o desenho? Por que ela é tão pouco estudada e conhecida? Maria Betânia Parizzi Fonseca é especialista em Educação Musical, diretora do Núcleo VillaLobos de Educação Musical e professora da Escola de Música da Universidade Estadual de Minas Gerais. É uma das autoras do Livro “Pianobrincando”.