A lógica de Deleuze, a formação de jovens e o ensino de filosofia

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A lógica de Deleuze, a formação de jovens e o ensino de filosofia
Renata Lima Aspis
Vivemos no mundo do preto ou do branco. Mundo povoado de pares de opostos,
composto por pares de opostos. Os homens percebem a si mesmos e as coisas todas como
partes separadas que precisam ser organizadas em um todo significativo. Cada um está
separado, cada um é um e percebe o restante como um amontoado de outros e investe na
ordenação do todo e chama isso de mundo. O mundo ocidental, originado na Grécia, Roma,
Europa, o mundo dos pecadores que experimentaram o fruto do conhecimento do Bem e do
Mal, é composto assim, pelos luz e trevas, inteligência e ignorância, alto e baixo, sensível e
inteligível, dentro e fora, ser e não-ser. Costumamos determinar dois pólos extremos e
enfileirar tudo que podemos no espaço criado entre eles. Porém, dizer dos pares de opostos
isso “e” aquilo é mera retórica, pois, efetivamente, no momento da composição do mundo
por meio de nossas escolhas e julgamentos o que se pratica é o isso “ou” aquilo.
Logos ou a razão é esse instrumento humano que junta, separa, mede, calcula, é o
que possibilita a análise e a síntese, o todo, as partes e suas relações. Queremos ordenar o
mundo, pensamos de modo ordenado, falamos de modo ordenado e estabelecemos uma
maneira de fazer isso e de reconhecer isso nas coisas, é a nossa lógica. É assim que criamos
todo o discurso que permeia as coisas e mentes, o dentro e o fora, o eu e o outro.
Os princípios da razão
Desde os primórdios a filosofia acredita que a razão opera segundo determinados
princípios, seus próprios, que concordam com a realidade sendo por isso que podemos
conhecê-la. Vamos aqui explicitar brevemente esses princípios, base de toda lógica, pois
nos parece útil para a idéia a que nos propomos desenvolver.
O princípio da identidade é aquele que pode ser enunciado de seguinte maneira: “A
é A” ou “O que é, é”. Inicialmente pode nos parecer um tanto óbvio e talvez assim seja por
usarmos esse princípio sem darmo-nos conta dessa nossa fé. Só podemos pensar uma coisa
e conhecê-la, se ela mantiver sua identidade, se a percebermos constantemente como ela
mesma. Esse princípio é o que permite que definamos uma coisa e possamos reconhecê-la
enquanto tal.
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O segundo princípio é o da não-contradição, cujo enunciado é “A é A e é impossível
que, ao mesmo tempo e na mesma relação, seja não-A”. Sendo assim, por exemplo, é
impossível que meu cachorro seja um cachorro da raça basset e não seja um cachorro basset
ao mesmo tempo. Assim como ele não pode ser preto e não ser preto ao mesmo tempo. Há
coisas que mudam com o tempo, por isso o adendo ‘ao mesmo tempo’ é sempre
imprescindível. Meu cachorro poderá vir a ser cinzento depois ou pode ter sido
amarronzado antes, mas não ao mesmo tempo. Afirmar e negar uma coisa ao mesmo tempo
e na mesma relação, gera uma mútua negação e, portanto uma mútua destruição, sua
inexistência. Coisas contraditórias são, portanto, segundo esse princípio, impensáveis,
impossíveis.
O princípio do terceiro excluído é enunciado da seguinte maneira: “A é x ou A é y
não há terceira possibilidade”. Assim acreditamos que, sempre só há duas possibilidades,
ou isto ou aquilo. Por exemplo, ou esta mulher é minha mãe ou não é minha mãe obriga que
se escolha uma delas, e apenas uma, como verdadeira. Ou está certo ou está errado, ou
dentro ou fora, ou em cima ou embaixo, etc.
Ainda temos o princípio da razão suficiente que considera que tudo o que existe ou
tudo o que acontece tem uma razão, uma causa ou motivo. Assim, a partir desse princípio
podemos afirmar que há relações internas entre as coisas. Seu enunciado pode ser: “Dado
A, necessariamente se dará B” e também pode ser assim: “Dado B, necessariamente houve
A”. Isso não significa que a razão não possa admitir o acaso, mas mesmo para esse ela
tentará encontrar uma razão. Essa razão será restrita a um acidente e não universal, não
podendo ser generalizada.
Qualquer homem que nasce passa por um processo de educação, aprende a sorrir,
aprende a andar e a falar. Aprende a reconhecer-se e a inferir. Aprende sobre o belo e o
bom. Esse processo de tornar-se humano com os outros está baseado nesses quatro
princípios. Isso é normal. Toda a lógica que Aristóteles (384-322 a.C.) organiza está
baseada nesses princípios e fundamenta o pensamento ocidental até hoje, apesar da
dialética. A forma que pensamos, construímos idéias, julgamos, a forma que tomamos
decisões, estão submetidas aos princípios da razão. O normal é determinado por esses
princípios. A vigília é determinada por esses princípios. A consciência é determinada por
esses princípios. A vida é determinada por esses princípios. Qualquer ciência, qualquer
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saber mesmo o mais comum, deve basear-se nesses princípios para não ser banido.
Qualquer linguagem baseia-se neles. A arte pode embaralhá-los ou negá-los, mas é arte.
Dentro de seu universo isso está previsto, é permitido. O louco, a criança, todo tipo de
esquisito, o selvagem, o perigoso, o grotescamente ignorante, o fiel fervoroso, o idoso gagá,
esses sim podem, temporariamente ou permanentemente, viver isentos da dependência dos
princípios racionais para construírem o nexo de suas vidas. Pode não haver um nexo para
eles.1
Para nós, os normais, porém, o mundo -com exceção de momentos efêmeros de
“revelação” da possibilidade de um outro mundo, no sonho, na paixão ou no delírio-, é
perfeitamente compreensível a partir dos princípios, que são a base da racionalidade
ocidental contemporânea.
As individualidades
É nesse contexto, o da razão ocidental, que somos orientados a formar nossa
individualidade. Os homens são tão mais respeitados quanto mais certezas tiverem. Quanto
mais souberem escolher aplicando os quatro princípios. O grande conjunto mundo é regido
pelos princípios da razão e contém outros n conjuntos menores. Os critérios de formação de
conjuntos são os de semelhança e diferença. Os mesmos princípios que regem o grande
conjunto, também regem os conjuntos contidos nele. É na oposição que se agrupa,
comparando-se e separando-se vamos formando os conjuntos. Os conjuntos são formados
por disjunção exclusiva: ou é isso ou é aquilo, não pode ser as duas coisas ao mesmo
tempo. Tomamos tudo no nosso sistema binário de compreensão e classificamos: juntamos
disjuntando, incluímos excluindo. Assim, cada humano, em formação, que está com os
outros se sente apressado em definir-se para poder participar de alguns conjuntos e de
outros não, necessariamente. Sentamo-nos no chão com nossas crianças –ou assim o fazem
as professoras de educação infantil, para ensinar-lhes, por meio de jogos educativos, a
reconhecer semelhanças e diferenças, seriar, classificar. Educamo-los para a nãocontradição antes mesmo que possam nos falar. E assim sucessivamente por toda a vida
escolar o pequeno é levado a assumir a lógica dos civilizados. (Nunca nos perguntamos se
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eles teriam algo a nos ensinar antes de fazermos eles perderem isso?) É necessário que se
crie individualidades fechadas, decididas, com características definidas. Quando jovens, os
educamos para que definam os limites de suas individualidades por meio de suas escolhas
nesse universo bipolar e que o façam o mais rápido possível, pois as cartas já estão
marcadas para eles, esperando-os virem jogar. É necessário, para a manutenção da ordem
do mundo, que cada jovem torne-se um produtor para ser um consumidor. É necessário que
ele tenha certeza sobre o tipo de pessoa que é para que possa responder eficazmente às
pesquisas de tendências de consumo, para que possa encaixar-se adequadamente na roda
viva. A individualidade é formada por um constante movimento de escolha de certos
predicados que, necessariamente, exclui outros. O movimento é centrípeto e intenciona
constituir um eu central, uma identidade que possa reconhecer-se pelos predicados ali
incrustados; as características assumidas – e as rechaçadas – são o próprio indivíduo. A
definição é feita por meio da oposição. Compara-se procurando semelhanças e diferenças e
no movimento de incluir, exclui-se. Esses são homens criados para oporem-se uns aos
outros, uns contra os outros. Adestrados para rechaçar tudo o que não seja semelhante a si.
Treinados para a exclusão. Tudo é ou.
Nesse ponto podemos nos perguntar: haveria alguma possibilidade de construir o
mundo e a nós mesmos sem, necessariamente, obedecer a aqueles referidos princípios da
razão? Às vezes sonhamos, às vezes nos drogamos, às vezes duvidamos, tropeçamos, às
vezes parece que podemos imaginar algo além da imaginação, algo que, normalmente não
cabe nos nossos olhos e mentes. Ficamos nós também um pouco loucos. Nesses momentos
extraordinários os princípios racionais não valem. O que vimos a saber, nesses momentos, é
o que nos escapa quando acordamos, quando recobramos nossa consciência formada no
“ou”. Queremos falar do sonho, mas não podemos, não há palavras para descrevê-lo, pois
não se pode definir sem identificar. Inventamos um discurso contraditório para tentar
nomeá-lo, mas não há sintaxe onde caiba, ele nos escapa e acabamos por esquecê-lo. Nós o
banimos do real e não perdemos nosso tempo com isso. Ponto final. Queremos dizer aqui,
não que as ciências da psique e outras não se ocupem dos sonhos ou dos loucos e das
crianças, dos estranhos. Mas quando o fazem ocupam-se dos seus conteúdos e não das suas
formas. Se nos aproximamos das suas formas e tentamos ver as coisas como eles vêem é
para calcularmos o quanto e como estão desviados da forma normal, para podermos
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orientá-los e reorientá-los na direção da rota das leis da razão, não é para adotarmos a sua
forma na nossa vida. Não há um movimento de respeitar a “lógica dos estranhos” como,
por exemplo, respeita-se as visões do Xamã na sua comunidade quando, talvez, dizem algo
como: “não pensamos como ele pensa, mas queremos saber o que tem para nos dizer, nossa
mente não pensa o que seu discurso nos revela, mas o adotamos como nosso”. Contudo
observamos que na arte é possível adotar outra lógica. O movimento surrealista, por
exemplo, relacionou-se diretamente com o sonho, com as manifestações além-conscientes
da psique A composição na arte pode seguir a “lógica dos estranhos”, negando os
princípios fundamentais da razão. Artaud é louco? Não, é artista. (O que não exclui a
possibilidade dele ser louco, mas se chega até nós é por sua arte, mesmo que sua arte possa
ser ela mesma louca). Porém, para fora das telas e das páginas, do celulóide, o que é, é e o
que não é, não é. Ou uma coisa ou outra.
É aqui que queremos introduzir alguns conceitos de Deleuze e Guattari. Para que?
Ora, para anuviar ainda mais o assunto, pois para que serve a filosofia, senão para, ao
menos de início, nublar o esclarecido? Nos tirar do conforme.
A lógica da complicação (co-implicação) ou a lógica irracional ou ainda, da
disjunção inclusiva.
Na obra de Deleuze e Guattari, de cinco volumes, intitulada Mil Platôs, capitalismo
e esquizofrenia, há uma constante na forma de análise: a partir da explicitação de duas
proposições disjuntivas (ou isso ou aquilo), cujos termos se negariam mutuamente
impossibilitando uma relação, admitir que haja um movimento de inclusão onde a
disjunção englobaria uma possível conjunção. Veja-se que, na lógica, na nossa lógica, toda
disjunção é exclusiva, não há relação entre os termos que se opõem sendo um a negação do
outro. Esse conceito, reconhecido operador da filosofia deleuziana, chamado de disjunção
inclusiva (ou síntese disjuntiva), no entanto, propõe uma disjunção onde não haja exclusão.
“(...) as duas proposições só cessam de se excluir no ponto exato em que sua disjunção é
suprimida (...) a não-relação torna-se uma relação, a disjunção, uma relação”.(ZOURABICHVILI,
2004, pp. 103/104).
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Talvez, o que se queira dizer, e que explicitamente se diz (DELEUZE e
GUATTARI, 1996, p. 90) é que não basta opormos os termos, que é o que a lógica do
normal faz. Pois os dois são, sim, distintos, mas ao mesmo tempo inseparáveis, eles se
embaralham um com o outro, um no outro. Eles têm naturezas diferentes e são opostos, mas
coexistem em um movimento constante de tornar-se o outro, de mútua passagem de um ao
outro.
“Se elas (as duas segmentaridades de que estão falando: a flexível e a endurecida) se
distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma
natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem,
passam uma para a outra, segundo diferentes figuras (...) sempre uma pressupondo a
outra”(DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 90).
Por exemplo, em Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra (DELEUZE e
GUATTARI, 1997) os autores trabalham a idéia de uma máquina de guerra, que seria
exterior ao aparelho de Estado. Vão explorar a idéia da possibilidade de algum organismo
estar dentro e fora do aparelho de Estado, ao mesmo tempo. Por exemplo, as formações
chamadas bandos e as grandes máquinas mundiais podem gozar de autonomia em relação
aos Estados. O Estado sem cessar esforça-se por dominar a máquina de guerra, por
apropriar-se dela, por torná-la coisa sua e essa por seu lado, no mesmo movimento, se
metamorfoseia, afirma sua irredutibilidade, sua exterioridade buscando linhas de fuga.
“(...) Não é em termos de independência, mas de coexistência e de concorrência, num
campo perpétuo de interação, que é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as máquinas de
guerra de metamorfose e os aparelhos identitários de Estado, os bandos e os reinos, as
megamáquinas e os impérios. Um mesmo campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas
descreve sua exterioridade naquilo que escapa aos Estados ou se erige contra os Estados”.
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.24)
Em O Liso e o Estriado os autores, por meio da consideração de diversos modelos,
explicitam a mesma operação de sua lógica, a lógica da disjunção inclusiva, analisando de
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um lado o espaço liso e de outro o espaço estriado. Na consideração do modelo musical,
por exemplo, o espaço estriado é o que:
“(...) entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as
linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais. O liso é a variação contínua, é o
desenvolvimento contínuo da forma, é a fusão da harmonia e da melodia em favor de um
desprendimento de valores propriamente rítmicos, o puro traçado de uma diagonal através da
vertical e horizontal”. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.184)
O liso é também o feltro, um conjunto de enredamento, oposto ao estriado tecido,
fiel à trama e à urdidura. Liso é nomos, estriado é polis, liso é nômade, estriado é
sedentário. Mas, como dizíamos, não basta apenas opormos esses dois espaços, pois eles
coexistem em um movimento constante de um querer escapar e o outro querer deter. O
espaço o mais estriado é justamente o que pode alisar-se e o liso estriar-se.
“O espaço liso e o espaço estriado, - o espaço nômade e o espaço sedentário, - o espaço
onde se desenvolve a máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho de Estado, - não são da
mesma natureza. Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de espaço.
Outras vezes devemos indicar uma diferença muito mais complexa, que faz com que os termos
sucessivos das oposições consideradas não coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos
lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não pára de
ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido,
devolvido a um espaço liso. Num caso organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o deserto se
propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo” (idem, pp. 180) (...) Contudo, ambos estão ligados, se
relançam. Nunca nada se acaba: a maneira pela qual um espaço deixa-se estriar, mas também a
maneira pela qual um espaço estriado restitui o liso, com valores, alcances e signos eventualmente
muito diferentes. Talvez seja preciso dizer que todo progresso se faz por e no espaço estriado, mas é
no espaço liso que se produz todo devir. (idem, pp.195)
Esse movimento de um ‘fagocitar’ o outro e esse provar sua irredutibilidade
restituindo-se a partir da busca de linhas de fuga que minam o um, esse movimento de um
tornar-se o outro, não é um movimento simples entre dois termos. Não se trata de um deixar
de ser o que é para tornar-se o outro. Um ingere o outro e passa ele mesmo a ser um outro e
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o ingerido, assim cooptado, passa ele também a ser outro, são, portanto quatro termos. O
um e o outro originais não desaparecem. São ao mesmo tempo.
“(...) Convém, para compreendê-lo bem, considerar sua lógica: todo devir forma um
‘bloco’, em outras palavras, o encontro ou a relação de dois termos heterogêneos que se
‘desterritorializam’ mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação,
identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a faz
‘fugir’. A relação mobiliza, portanto, quatro termos e não dois, divididos em séries heterogêneas
entrelaçadas: x envolvendo y torna-se x’, ao passo que y tomado nessa relação com x torna-se y’.
Deleuze e Guattari insistem constantemente na recíproca do processo e em sua assimetria (...)”
(ZOURABICHVILI, 2004, p. 48)
A disjunção que engloba uma possível conjunção o faz, pois as proposições se
opõem diretamente, mas não termo a termo. Um não necessariamente exclui, nega,
impossibilita a existência do outro apesar de serem distintos, opostos.
“Ora, simultaneamente: os dois sistemas de referência estão em razão inversa, no sentido
em que um escapa do outro e o outro detém o um, impedindo-o de fugir mais; mas eles são
estritamente complementares e coexistentes, porque um não existe senão em função do outro; e, no
entanto, são diferentes, em razão direta, mas sem se corresponder termo a termo, porque o segundo
não detém efetivamente o primeiro senão num ‘plano’ que não é mais o plano do primeiro, e porque
o primeiro continua seu impulso em seu próprio plano”. (DELEUZE E GUATTARI, 1996, pp. 99)
Deleuze e Guattari explicitam claramente em Mil Platôs, na introdução, chamada
Rizoma, que a lógica binária das dicotomias e as relações biunívocas não compreendem a
multiplicidade, pois o pensamento binário, o pensamento do ‘ou’ é um pensamento que
necessita de uma forte unidade principal. O pensamento calcado nos princípios da razão é
como uma árvore. Ele não dá conta das multiplicidades, que têm estrutura de rizomas. Para
Deleuze:
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“(...) é preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao
contrário, de maneira simples, com força de sobriedade(...) um tal sistema poderia se chamado de
rizoma. (...) os bulbos, os tubérculos são rizomas (...) as tocas o são, com todas as suas funções de
habitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele mesmo tem formas
muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções
em bulbos e tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o
pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha”. (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.11)
Vale dizer que para os filósofos o mundo não cabe na nossa forma
percepção/pensamento/linguagem binária, ou melhor, dizendo, esse mundo construído de
forma arbórea, a maneira da hierarquia de uma árvore, o mundo clássico parece não dar
conta da multiplicidade.
“A árvore já é a imagem do mundo, ou a raiz é a imagem da árvore-mundo (...) Um torna-se
dois: cada vez que encontramos essa fórmula, mesmo que enunciada estrategicamente por Mao TséTung, mesmo compreendida o mais ‘dialeticamente’ possível, encontramo-nos diante do
pensamento mais clássico e o mais refletido, o mais velho, o mais cansado. A natureza não age
assim: as próprias raízes são pivotantes com ramificação mais numerosa, lateral e circular, não
dicotômica. O espírito é mais lento que a natureza (...) Isto quer dizer que esse pensamento nunca
compreendeu a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal (...)
Nos parece que uma outra forma de pensar e falar o mundo, uma outra chave de
análise seria a da multiplicidade. Quer dizer, outra forma que não a dicotômica de
simbolizar o mundo, não, como vimos dizendo, a lógica do “ou” mas a lógica do “e”.
Mas, o que seria essa multiplicidade de que nos falam?
“Foi um acontecimento decisivo quando o matemático Riemann arrancou o múltiplo de seu
estado de predicado, para convertê-lo num substantivo, ‘multiplicidade’. Era o fim da dialética, em
favor de uma topologia e uma topologia das multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 1997 (b),
pp.190) “ (...) é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo,
multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto,
como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e
denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexistência, pois, de unidade que sirva de pivô
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no objeto ou que se divida no sujeito (...) Uma multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas
somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza
(...) ” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, pp. 16) “ (...) Um rizoma não cessaria de conectar cadeias
semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.
Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos mas
também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da
linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. Não existe
locutor-auditor ideal, como também não existe comunidade lingüística homogênea. (DELEUZE e
GUATTARI, 1995, pp. 15/16)
Distinto do movimento da dialética que, num salto sintetizante, mantém a
bipolaridade, o movimento da multiplicidade é o de caber. Multiplicidades são conexões
entre dimensões, que mudam de natureza cada vez que aumentam suas conexões. Num
rizoma só o que há são linhas, linhas, linhas. Não há hierarquia, não há lados, não há
oposição simples.
A criação, a defesa e a aplicação de uma outra lógica para o estudo e compreensão
da realidade na obra de Deleuze e Guattari são ações intencionais, são movimento de
resistência ao reducionismo da forma racional de compreender as coisas. Segundo o que
entendemos, poderíamos dizer que é uma outra forma não apenas epistemológica, mas
política de criação de conceitos:
“Pouco importa que seja um monstro aos olhos dos chamados lógicos: Deleuze, que definia
de bom grado seu próprio trabalho como a elaboração de uma ‘lógica’, criticava a disciplina
institucionalizada sob esse nome por reduzir exageradamente o campo do pensamento ao limitá-lo
ao exercício pueril da recognição, e por assim justificar o bom senso satisfeito e obtuso aos olhos do
qual tudo o que da experiência abala os dois princípios de contradição e do terceiro excluído é puro
nada, e vão, todo empreendimento de aí discernir o que quer que seja. O pensador é antes de tudo
clínico, decifrador sensível e paciente dos regimes de signos produzidos pela existência, e segundo
os quais ela se produz”. (ZOURABICHVILI, 2004, pp. 106/107)
De maneira explícita e até bem humorada na passagem que se lê a seguir, os autores
propõem o abandono da lógica binária, do modelo arbóreo em prol do rizomático, da lógica
da multiplicidade.
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“Estamos cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em árvores, em raízes ou
radículas, já sofremos muito. Ao contrário nada é belo, nada é amoroso, nada é político a não ser
que sejam arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício e o rizoma (...) O pensamento não é
arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada (...)” (DELEUZE e
GUATTARI, 1995, p. 25)
Como dissemos anteriormente, nos parece que o que está sendo colocado não é uma
discussão teórica sobre o modo de pensar a realidade mas, é já uma outra forma de criação
de conceitos pois é utilizando-se da lógica proposta que os autores elaboram seu discurso.
Isso é um ato político: é a demonstração teórica e prática de uma outra forma de interferir
no mundo, de criá-lo.
É nesse ponto de nossa fala sobre os conceitos de Deleuze e Guattari, onde uma
outra lógica de compreensão se instaura, inaugurando uma resistência política ao modo de
lidar com os problemas do mundo, que queremos criar uma relação com o ensino de
filosofia para jovens. Por que queremos que o leitor entenda a lógica da disjunção inclusiva
de Deleuze? Por que desejamos aqui reativar esse conceito. Vamos tirá-lo de seu território e
trazê-lo para o universo do nosso problema: a relação entre formação de jovens e ensino de
filosofia.
Subjetividades
O movimento de formação de individualidades, como monoblocos estanques,
definidos e com tendências de definitivos está de acordo com a lógica dos normais, a lógica
da disjunção exclusiva. Ou bem isso ou aquilo. Qual seria, em contraposição a isso um
possível eu não exclusivo, não central, não engessado em si, concordante com a lógica da
disjunção inclusiva de Deleuze?
Sugerimos aqui chamar de subjetividade um alguém que pode sim se reconhecer,
mas que, na mesma medida, possa estranhar-se e assim, ao mesmo tempo em que se junta,
se separa de si mesmo. Há um ponto singular no universo da consciência que pode, por
esforço de agregação, chamar-se de eu, mas que quando não produz discurso, não é um,
mas arquipélago, caleidoscópio, ou ainda algo tão plural que não podemos falar dele sem
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correr o risco de traí-lo por redução. Nos aprisionamos já desde quando falamos de um nós
ou de um eu.
Gilles Deleuze em A Lógica do Sentido (DELEUZE, 1974) nos leva a entender que
o indivíduo é uma invenção, uma invenção da linguagem. Pessoas são proposições, são
efeitos de linguagem. Indivíduos são determinados pela linguagem – o céu, a mesa, Paulo.
A manifestação é pessoal. A manifestação é expressão de linguagem. Também aí nos
propõe que pensemos no conceito de singularidade, que é pré-pessoal, pré-individual.
“(...) Uma consciência não é nada sem síntese de unificação, mas não há síntese de
unificação de consciência sem forma do Eu ou ponto de vista da individualidade (Ego). O que não é
nem individual nem pessoal, ao contrário, são as emissões de singularidades enquanto se fazem
sobre uma superfície inconsciente e gozam de um princípio móvel imanente de auto-unificação por
distribuição nômade, que se distingue radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como
condições das sínteses de consciência. As singularidades são os verdadeiros acontecimentos
transcendentais: o que Ferlinghetti chama de ‘a quarta pessoa do singular’. Longe de serem
individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas: elas se
repartem em um ‘potencial’ que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu
(Je) pessoal (...) Não podemos aceitar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo
a psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singularidades já tomadas em indivíduos e pessoas ou o
abismo indiferenciado.”(DELEUZE, 1974, pp.105/106)
Como sugerimos anteriormente, chamamos atenção aqui para que se pense na
possibilidade de perceber/pensar/falar o eu e o mundo, como devir eterno, um espaço lugar
e/ou momento de inexistência de contradição, embora formada por termos opostos.
Tomemos como exemplo o brilhante gravador holandês M.C.Escher, 1898-1972.
(ESCHER, 2004). Nos parece difícil, senão impossível, diante de uma sua gravura decidir
se se trata de peixes que se tornam pássaros ou se são pássaros que se tornam peixes, a
mão que desenha a si mesma desenhando-se é eterno devir, não há contradição aí. A
gravura não nos obriga a decidir entre a mão que desenha e a mão sendo desenhada, é
possível que a mão esteja desenhando a si mesma desenhando a si mesma. Onde está o
começo, onde está o final? Como ordenar linear e aristotelicamente uma construção onde o
jorro de água sobe? Onde o mesmo plano que é o chão é o teto?
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Dissemos anteriormente já que não se trata de optar por uma coisa ou outra, entre
termos opostos, mas de poder aceitar sua coexistência sem impor a escolha entre uma delas.
Assim que, quando Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, propõem que no capitalismo, sendo além de sistema econômico, sistema semiótico que constitui a estrutura das relações
que compõem nossas vidas, - há um constante movimento de fagocitose por parte do
aparelho de Estado das máquinas de guerra que eventualmente surgem como movimentos
de resistência, de busca de linhas de fuga, não é, absolutamente, ao nosso ver, a proposta de
um duelo entre dois oponentes. Oprimidos e opressores, superiores e inferiores, prática e
teoria, individual e coletivo, assim como tampouco entre homens e mulheres, adultos e
crianças, racional e irracional.
Quando nos referimos ao conceito de Deleuze de disjunção inclusiva, foi justamente
para propor que pensemos na possibilidade se subjetividades que fossem pessoais -já que
não se pode escapar de expressão da linguagem, mas que também, ao mesmo tempo,
mantivessem sua singularidade pré-individual, sendo essa sim plural, diversa, composta por
termos opostos que não se excluem, a ponto de não ser propriamente uma composição, pois
não tem limites, é aberta, está em constante devir inapreensível. A singularidade é
multiplicidade. Assim, a consciência de si seria a consciência da impossibilidade de um si,
mas também a consciência da inevitabilidade de organizar-se em um discurso ordenante. A
linguagem me prende a algo artificial, que não existe: um indivíduo, o indivisível. Contudo,
não se trata aqui de evitar o processo de tornar-se um indivíduo, uma pessoa específica e
enquanto tal estanque, idêntica a si mesma, pois não é loucura o que propomos. Seria a
proposta de uma subjetividade que inevitavelmente compõe-se como um, mas que mantém
a memória do pré-individual, que é múltiplo.
Assim nos perguntamos: Como poderíamos pensar o ensino de filosofia para
contribuir com a formação de tais subjetividades?
Cremos que a filosofia antes de ser ordenante e portadora de esclarecimento, é
turvez. Traz nebulosidade àquilo que parecia claro. Propomos que pensemos agora a
possibilidade de um ensino de filosofia por meio da adoção de disciplina filosófica no
pensamento, por meio da experiência filosófica, como um acontecimento de perversão. Que
pudéssemos, por meio de nossas aulas de filosofia, provocar nos jovens a perversão (no
sentido de promover uma suspensão do mundo constituído verdade, abrindo uma fresta a
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partir da qual se possa antever um horizonte outro) de suas idéias sobre si mesmos e o
mundo. Perverter seu modo de formar suas idéias. Que pudéssemos levá-los conhecer a
possibilidade de abandonar a forma binária de significação, que pudessem “rizomear”,
deleuzeanamente. Que pudessem vislumbrar a possibilidade da multiplicidade. Que
pudéssemos provocar isso por meio de bombardeio filosófico, ou seja, propostas
pedagógicas de atividades de pensar filosoficamente, ler e escrever filosoficamente, falar,
ouvir e ver filosoficamente por meio da tradição filosófica, textos clássicos e sua história.
Que pudéssemos contribuir para a formação dos jovens justamente levando-os a rever o que
lá já está. Um ensino que soubesse ensinar a desenhar linhas de fuga para o estabelecido, o
conhecido, por experiência filosófica, linhas de fuga que atravessassem transversalmente o
mundo, as idéias, o eu, convidando a adotar conscientemente uma disciplina filosófica no
pensamento que considerasse a multiplicidade como chave de significação do mundo. Não
estamos nos referindo à formação de um sujeito que compreenda a pluralidade, mas que se
saiba ele mesmo pluralidade. Que pudéssemos, por meio do ensino de filosofia, colaborar
para que os jovens possam rever as construções que não são suas e as que são. Que
pudessem buscar-se a si mesmos perdendo-se. Que pudessem se chamar de si sem saber
quem são. Que se afeiçoassem à construção do significado do mundo como um constante
devir mundo.
Estamos pensando aqui que o formativo da filosofia não se restrinja ao ensino do
seu modo de pensar, mas que antes de tudo possa abrir a possibilidade (o vislumbre) da
formação de subjetividades flexíveis, fluidas, afeitas ao gosto de rever-se: gente que possa
não se levar tão a sério por saber-se mutante, em reforma constante. Ao contrário das
empresas que no final do ano penduram aviso na porta: fechados para balanço, pudéssemos
nos presentear uma subjetividade cuja prática constitutiva fosse: aberto para balanço. Isso é
multiplicidade: mudar de natureza a cada vez que amplia suas conexões. Isso é política. É
forma de intervenção no mundo intencionalmente deviresca.
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Notas
1A isenção da dependência dos princípios racionais, por parte de toda sorte de
esquisitos, como dissemos, pode ser uma ausência de nexo. Ou não. Pode ser que haja um
nexo no mundo dos excluídos da nossa lógica, mas que seja tão outro que nos escapa.
Escapa a nós, os normais. Eles ignoram a força normativa de nosso nexo e por isso nos
ameaçam, ameaçam a nossa segurança de castelo de cartas de baralho. Ignoram nosso
mundo, nosso todo, o significado de tudo, das partes e do conjunto. A despeito de nosso
mundo eles insistem em transitar por outras dimensões insondáveis para a nossa mente
domada pela civilidade. Chamamo-los loucos. Protegemo-nos deles, rimos deles,
internamo-los. Podemos dar-lhes drogas para que se aquietem. Desejamos que se “curem”,
que se encaixem.
Sobre a questão da exclusão baseada no conceito foucaultiano de normalidade, leiase “Incluir para Excluir”, de Alfredo Veiga-Neto in “Habitantes de Babel” Larrosa e
Skliar (orgs.). Belo Horizonte: Autêntica, 2001. pp.105-118
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