Palestra proferida no I Seminário sobre atenção à Mulheres

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Palestra proferida no I Seminário sobre atenção à Mulheres em Situação
de Violência – 07/10/2004 - Hotel Mato Grosso, a convite da Secretaria de
Estado de Saúde de Mato Grosso
Tema: Legislação Vigente sobre a Violência Doméstica e Sexual
Desª. Shelma Lombardi de Kato
Louvo a interdisciplinariedade deste Seminário por ser
essencial para que o mesmo produza bons frutos.
O tema que me foi proposto – Legislação Vigente sobre a
Violência Doméstica e Sexual – é dos mais relevantes e não
interessa tão somente aos profissionais da área do direito. Os
profissionais da área da saúde, os administradores públicos e a
população em geral, todos são destinatários das normas jurídicas
que compõem o universo dos direitos e obrigações relacionados à
proteção dos direitos fundamentais
O tempo de que dispomos é limitado. Entretanto, é
importante que se ressalte que as sociedades humanas, como
regra, se erigiram sobre a base das desigualdades. As mulheres, os
pobres e na chamada civilização ocidental, os não brancos, os
homossexuais, como as minorias étnicas e raciais, foram
excluídos da humanidade racional.
Para vencer a barbárie e a crueldade dos campos de
concentração e das câmaras de gás, que levaram ao sofrimento e
à morte 06 (seis) milhões de pessoas, forma-se no pós-guerra a
ONU, proclamada pela Resolução n.º 217-A da Assembléia Geral
das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, também
assinada pelo Brasil.
1
A partir daí, no dizer de Flávia Piovesan, a Declaração
começou a delinear a arquitetura internacional de proteção aos
direitos humanos: Sistemas de Proteção Regional, como o
Europeu, o Asiático, o Africano, o Americano se estabeleceram.
Opera-se um crescente processo de judicialização dos direitos
humanos, com a criação das Cortes Internacionais como a Corte
Interamericana de Direitos Humanos na Costa Rica e mais
recentemente o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia.
Todavia, é no âmbito interno, ou no plano doméstico que
emerge a força do Direito Internacional contemporâneo em face
da vigente Constituição da República Federativa do Brasil que
adotou mecanismos de recepção dos tratados internacionais de
direitos humanos, distinguindo-os dos demais tratados, de outra
natureza. Nessa moldura jurídica, todos os seres humanos nascem
dignos e com igualdade de direitos.
Desde logo se afirme que a dignidade humana e os direitos
fundamentais são na expressão da citada autora “elementos
nucleares e princípios constitucionais dotados de força
expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e
servindo como critério interpretativo de todas as normas do
ordenamento jurídico nacional”
Nessa moldura, em sendo os direitos humanos construção
histórica fruto de árdua conquista em que nada foi dado de graça,
o que se impõe para lograr a efetiva proteção desses direitos, é a
desconstrução histórica da igualdade. Em mais de 50 anos de
2
experiência, a humanidade não conseguiu superar as dificuldades
concernentes ao direito de igualdade, espinha dorsal do sistema de
proteção. A recente ação terrorista dos separatistas Tchetchenos
surge como exemplo de conflito étnico e de insurgências contra
violações de direitos humanos dos povos subjugados, através de
extrema exacerbação de violência contra indefesas crianças. A
guerra dos Balcãs; os massacres étnicos de nações africanas; as
práticas contra mulheres por grupos islâmicos extremistas, são
outros exemplos de discriminação e violência com supressão da
cidadania como direito, excluindo-se os discriminados da sua
extensão universal.
No Brasil, há fatores históricos que contribuem para a
cultura da desigualdade; há o recente fenômeno da globalização;
há o desemprego em massa responsável pela condição subhumana de milhões de pessoas, reforçando as desigualdades e
ensejando o trabalho escravo, a exploração sexual de menores, o
tráfico de mulheres, além da violência dos órgãos de repressão
supostamente para manter a ordem social. À violência produzida
pela marginalidade soma-se a violência institucionalizada.
E por que falar-se em direitos humanos das mulheres? E
mais, em que consistem os direitos humanos?
A jurista Argentina Alda Faccio em conferência sobre o
tema observou com propriedade: “Argumentar que a igualdade
não é necessária entre mulheres e homens é não enxergar que
precisamente a falta de igualdade entre mulheres e homens é que
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mata milhões de mulheres por ano; porque nós mulheres não
temos igual poder na relação com nossos parceiros, somos
assassinadas aos milhares por nossos companheiros; porque nós
mulheres não somos valorizadas igualmente por nossos pais,
somos discriminadas ao nascer1; não temos o mesmo poder que os
homens dentro das estruturas políticas, médicas, religiosas;
morremos de desnutrição, em abortos clandestinos ou em práticas
culturais como a mutilação genital e nas cirurgias estéticas e
obstétricas desnecessárias. A desigualdade entre homens e
mulheres mata. A desigualdade viola o direito básico à vida e o
direito à igualdade brota da necessidade que todos sentimos de
nos mantermos com vida”(Manual JEP, pág. 227/228).
Já
se
disse
que
a
idéia
dos
direitos
humanos,
originariamente, identifica o seu titular como o ser humano
ocidental, varão, adulto, heterossexual e possuidor de patrimônio.
Dessa perspectiva resultou a exclusão, restrição e a ineficácia em
relação às mulheres, meninas, meninos, povos indígenas,
homossexuais, grupos humanos de outras raças e etnias e pessoas
de extrema pobreza.
No Brasil há o reconhecimento dos direitos civis e políticos,
bem como existem textos legais dando existência formal a direitos
como saúde, alimentação, emprego, moradia, educação, que são
necessidades básicas que integram os chamados direitos
1
Em tempos recentes, na China, ,bebês meninas eram sacrificados ou encaminhados
para orfanatos. – Nota da palestrante
4
econômicos, sociais e culturais. Todavia, na prática observa-se o
comportamento omissivo do Estado e falta de ações positivas
adequadas para assegurar tais direitos (Particularizo quanto às
mulheres a falta de políticas públicas e atendimento adequado às
vítimas de violência sexual para o tratamento de doenças
sexualmente transmissíveis, da Aids, dos traumas psicológicos, e,
especialmente, para a interrupção da gravidez resultante de
estupro e nos casos de inviabilidade da vida extra-uterina como a
acrania ou anencefalia fetal, temas considerados tabus).
Como observado por Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel
a grave afronta aos direitos sociais básicos afeta a observância dos
direitos civis. Tendo o processo de exclusão como alvo
preferencial os grupos socialmente mais vulneráveis, exige-se seja
esse processo compreendido sob o enfoque de raça, gênero, etnia
e idade dentre outros critérios.
Quando se enfatiza pois, os direitos humanos das
mulheres, a rigor, o que se pretende é buscar a plenitude dos
direitos humanos, assegurando às destinatárias da proteção e à
sociedade como um todo, mulheres, homens e crianças, os
direitos de identidade e cidadania e uma vida livre de violência.
Os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos ao desenvolvimento
sustentável são pautas essenciais à plenitude dos direitos humanos
que não podem ser descurados em qualquer programa de ação
governamental, que se coloque sob a perspectiva de uma relação
de equidade entre os gêneros.
5
2 - Ordem Jurídica Internacional
Os direitos das mulheres foram reconhecidos como direitos
humanos, pela primeira vez, na Conferência Mundial de Direitos
Humanos, em Viena, em junho de 1993. O art. 18 da Declaração
da Conferência dispõe:
Os direitos humanos das mulheres e das meninas são
inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos
direitos humanos e universais (...) A violência de gênero e todas
as formas de assédio e exploração sexual (...) são incompatíveis
com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser
eliminadas (...). Os direitos humanos das mulheres devem ser
parte integrante das atividades das Nações Unidas (...) que devem
incluir a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos
relacionados à mulher.
A IV conferência Mundial sobre a mulher, em Beijing,
China, 1995, afirma que a violência contra a mulher constitui
obstáculo a que se alcance os objetivos da igualdade, o
desenvolvimento e a paz; que viola e prejudica, ou anula o
desfrute por parte dela dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais.
No sistema global - da ONU - a proteção dos direitos
humanos das mulheres vem consagrada na Convenção Para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher (Convenção da Mulher) adotada em dezembro de 1979
6
pela Assembléia Geral das Nações Unidas e ratificada pelo Brasil
em fevereiro de 1984. A Convenção constitui-se, no mais, em
importante documento internacional de garantia à igualdade da
mulher com relação ao homem no gozo dos direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais.
No sistema regional – da OEA – integrando o sistema
regional interamericano de proteção aos direitos humanos, foi
adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados
Americanos (OEA) em junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em
novembro de 1995 a Convenção para a Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará.
Neste importante instrumento jurídico internacional, a violência
contra a mulher vem caracterizada como violação dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais; sendo-lhe assegurado o
direito a uma vida livre de violência física, sexual ou psicológica,
no âmbito público ou no privado.
3 - Ordem jurídica interna:
Segundo Flávia Piovesan, a Constituição da República
Federativa do Brasil, de 1988, é o marco jurídico-político da
transição democrática e da institucionalização dos direitos
humanos no país.
A Constituição erigiu os direitos humanos em um dos
fundamentos da República; estabeleceu a igualdade entre homens
e mulheres, e atribuiu ao Estado o dever de criar mecanismos para
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coibir a violência no âmbito da família e proteger cada um de seus
membros (art. 5.º e art. 226, §5.º e 8.º).
A partir da Carta de 88 o Brasil ratificou inúmeros
Pactos e Convenções sobre Direitos Humanos, inclusive sobre os
Direitos da Criança, em 20.07.1989. Em 03 de dezembro de 1998,
o Estado Brasileiro reconheceu a competência jurisdicional da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (Dec. Legislativo n.º
89/98). Em 07 de fevereiro de 2000, o Brasil assinou o Estatuto
do Tribunal Penal Internacional (Tribunal Criminal Permanente).
4– Hierarquia Constitucional dos Tratados e
Convenções Internacionais de Direitos Humanos:
A dignidade humana e os direitos fundamentais são
elementos nucleares e princípios constitucionais “dotados de
força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e
servindo como critério interpretativo de todas as normas do
ordenamento jurídico nacional” (Piovesan, Flávia – in Manual
JEP 12.º Seminário, pág. 50).
Por força do §2.º do art. 5.º da CRFB os direitos
enunciados nos tratados internacionais de direitos humanos são
direitos
constitucionalmente
protegidos.
Ao
efetuar
tal
incorporação a Carta Política estabeleceu hierarquia especial e
diferenciada a tais direitos, qual seja, a de norma constitucional.
Esse é o entendimento de Cançado Trindade; de Flávia Piovesan e
de José Afonso da Silva. O primeiro, aliás, foi o autor da proposta
8
da inclusão dos §§ 1.º e 2.º ao artigo 5.º da CRFB, encaminhada a
Assembléia Nacional Constituinte, enquanto Consultor Jurídico
do Itamarati. Apenas aos demais tratados internacionais, a Carta
Magna atribuiu força hierárquica infraconstitucional, nos termos
do art. 102, III, “b” do texto.
4.1 – Princípios Hermenêuticos vigentes no país:
De tudo se conclui: 1) que se acham revogadas no
ordenamento jurídico pátrio todas as normas legais que ferirem o
princípio da igualdade, que afrontarem a dignidade humana, que
limitarem o pleno exercício dos direitos fundamentais; 2) é
possível
elencar
direitos
humanos
não
explicitados
na
Constituição mas, a ela incorporados a partir de Tratados
Internacionais ratificados pelo Brasil; 3) que em caso de eventual
conflito entre o direito interno e o direito internacional que
dispuser sobre Direitos Humanos, aplicar-se-á a norma que for
mais favorável à vítima.
5 - Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Aplicabilidade dos Tratados e Convenções Internacionais.
Regras de Interpretação:
Embora poucos sejam os operadores do Direito no
Brasil que têm feito uso dos instrumentos de Direito Internacional
dos Direitos Humanos, do sistema global (ONU) e regional
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(OEA) nas atividades correntes de sua instituição a Carta Magna
estabelece a superioridade hierárquica dessas normas.
Sobre o artigo 5º, § 2º da Constituição da República, salienta
Flávia Piovesan:
“à luz desse dispositivo constitucional, os
direitos fundamentais podem ser organizados
em três distintos grupos: a) o dos direitos
expressos nas Constituição; b) o dos direitos
implícitos, decorrentes do regime e dos
princípios adotados pela Carta Constitucional;
e c) o dos direitos expressos nos Tratados
Internacionais subscritos pelo Brasil”2.
Ao efetuar tal incorporação, aduz a autora, “a Carta está a
atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e
diferenciada, qual seja, a de norma constitucional”.
Não por outra razão o publicista Pinto Ferreira3, ao comentar
o citado dispositivo constitucional, o identifica como norma de
encerramento a ensejar a incorporação de direitos fundamentais
não explicitados na enumeração constitucional do artigo 5º, mas
constantes nos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil.
A partir da Carta de 1988 foram ratificadas as seguintes
Convenções:
Apostila do Curso de Extensão JEP, “apud” Temas de Direitos Humanos. Flávia
Piovesan. São Paulo, 1998. Max Limonad
3
Comentários a Constituição Brasileira. Pinto Ferreira. vol.1. Saraiva.
2
10
a) A Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura, em
20.07.1989;
b)
A Convenção sobre os Direitos da
Criança, em 24.09.1990;
c) O Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, em 24.01.1992;
d) O Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, em
24.04.1992;
e) A Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da
Costa Rica), em 25.09.1992;
f)
A Convenção Interamericana para
Prevenir,
Violência
Punir
contra
e
Erradicar
a
a
Mulher
(Convenção de Belém do Pará), em
27.09.1995.
Na prática social a família é ao mesmo tempo vítima e
construtora da desigualdade de gênero; desigualdade essa que a
sociedade reproduz e em particular nós juízes, promotores,
advogados, em nossas sentenças, julgamentos, nas petições e
razões recursais. A pesquisa e o estudo sobre a desigualdade de
gênero em processos de família e os processos criminais em
tramitação na justiça brasileira, claramente demonstram as
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aberrações decorrentes de preconceitos, ao lado, é claro, de
decisões exemplares.4
É preciso compreender de uma vez por todas que a
violência no seio da família, ou a violência doméstica deve ser
coibida nas instâncias decisórias do Poder, uma vez que vem
rechaçada pela ordem jurídica interna e pelo Direito Internacional.
Sobre o tema dispõe o § 8º do artigo 226 da Carta Política:
“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de
cada um dos q ue a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações”.
Resta pois, evidenciado que esse tipo de violação aos
direitos humanos não se constitui em mero assunto particular, de
interesse privativo, a ser resolvido exclusivamente no âmbito
doméstico.
4
Apostila do Curso de Extensão JEP, “apud” A Figura/Personagem Mulher em
Processos de Família – Sílvia Pimentel; Beatriz Di Giorgi; Flávia Piovesan – Sergio
Antônio Fabris Editor – Porto Alegre, 1993.
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