Simpósio 31 — Ciência, Tecnologia e História Econômica

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Simpósio 31 — Ciência, Tecnologia e História Econômica
“Em benefício da indústria e das artes”: considerações sobre o Alvará do Príncipe
Regente de 28 de abril de 1809.
Leandro Malavota
Universidade Federal Fluminense
Instituto Nacional da Propriedade Industrial
Academia da Inovação e Propriedade Intelectual
[email protected]
1.
Introdução
A transferência dos Bragança para a América significou muito mais do que o
simples traslado de pessoas e recursos da metrópole portuguesa para a colônia. Requeria
este processo que fosse erigido pela Coroa todo um aparato estrutural — político,
institucional, jurídico, econômico, etc. — que permitisse a administração e controle de
um vasto Império, que se estendia por distintos continentes, a partir de um espaço
secularmente periférico. Conforme salienta Manchester (1970), a mudança da Corte
para o Rio de Janeiro exigiu que se suprisse a ausência nas terras do Brasil de um
arcabouço estatal complexo, processo este que não significava apenas a transposição de
um governo, porém “a transferência dos elementos de um Estado soberano, que no novo
cenário revestiam a forma de um sistema novo e no entanto antigo e familiar”
(MANCHESTER, 1970, p. 199). O ano de 1808 marca o início de uma série de
providências neste sentido, dentre as quais destacamos as voltadas ao desenvolvimento
da indústria e outras artes produtivas no espaço colonial. Pretendemos neste trabalho
lançar luzes a uma destas iniciativas, a construção de um arcabouço-jurídico
institucional de proteção e incentivo à atividade inventiva, consubstanciado no Alvará
do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809.
2. Sobre o Alvará do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809: um plano de
desenvolvimento para s atividades fabris no Brasil
Fazer de sua possessão na América o centro de um Império ultramarino exigia
do Soberano português um rompimento com uma série de institutos coloniais a que a
economia local estava submetida, e um primeiro passo neste sentido foi o
franqueamento do comércio exterior, ocorrido a 28 de janeiro de 1808. Ainda naquele
mesmo ano, restrições legais quanto ao desenvolvimento de atividades manufatureiras
seriam anuladas, através de Alvará expedido a 1º abril.1 Outras medidas visando ao
desenvolvimento autônomo das atividades econômicas na nova sede da corte bragantina
seriam progressivamente adotadas a partir de então, dentre as quais se mostram
importantes a criação da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação,
instância de controle, regulação e apoio aos setores produtivos sob sua jurisdição, e a
fundação do Banco do Brasil, órgão entre cujas atribuições se incluía o gerenciamento
1
O Alvará do Príncipe Regente de 1º de abril de 1808 revogava Ato Régio anterior, datado de 5 de
janeiro de 1785, que proibia a construção de manufaturas e fábricas no Brasil, à exceção daquelas
voltadas à produção de panos grosseiros empregados na vestimenta de escravos, empacotamento de
mercadorias e outras finalidades semelhantes. Para uma análise do Alvará de D. Maria I e seu impacto
sobre o desenvolvimento das atividades produtivas no Brasil, ver Carrara Júnior & Meirelles (1996).
de fundos de financiamento à produção.2 Particularmente neste trabalho, centraremos
nossas atenções no Alvará de 28 de abril de 1809, ato que estabelecia uma série de
estímulos ao avanço e consolidação das atividades fabris nas terras do Brasil.
Já em seu preâmbulo, o ato explicita os elementos motivadores e os objetivos
vislumbrados pelo Legislador com as medidas que se procurava implementar. Parece
claro o atrelamento de um ideal de progresso ao desenvolvimento de atividades
econômicas de natureza complexa. Tornar a antiga periferia em centro requeria civilizála, e um dos pressupostos ao sucesso de tal empresa era o engendramento de condições
e oportunidades para que os meios para geração de riquezas naquele espaço se
modernizassem, moldando-se aos padrões reinantes nas grandes potências européias já
estabelecidas:
Eu o Príncipe Regente faço saber aos que o presente Alvará com força de lei virem,
que sendo o primeiro e principal objeto dos meus paternais cuidados o promover a
felicidade pública dos meus fiéis Vassalos; e havendo estabelecido com estes
desígnios princípios liberais para a propriedade deste Estado do Brasil, e que são
essencialmente necessários para fomentar a agricultura, animar o comércio, adiantar
a navegação e aumentar a povoação, fazendo-se mais extensa e análoga à grandeza
do mesmo Estado [...]; tendo ouvido o parecer de ministros do meu Conselho; e de
outras pessoas zelosas do meu serviço; com ampliação e renovação de muitas
providências já a este respeito estabelecidas, e a fim de que tenham pronta a exata
observância para a prosperidade geral e individual dos meus fiéis vassalos, que
muito desejo adiantar e promover, por dependê-la a grandeza e consideração da
minha real Coroa e da Nação; sou servido determinar [...]
A conotação do texto é claramente modernizadora, embora seja necessário
ponderar o fato do mesmo estar voltado a um sistema social marcado por suas
características arcaicas, frutos não do solapamento das possibilidades de criação e
desenvolvimento de instituições e mecanismos — políticos, ecômicos, culturais — de
moldes modernos, capitalistas ou industriais, mas de uma opção de suas elites por um
projeto de feições “pré-modernas”, baseado na preservação e valorização de um ethos
nobiliárquico.3 Ainda assim, percebe-se que o fomento à indústria e às artes se apresenta
no texto da lei como uma medida desejada e necessária, um meio de superação do atraso
e de inserção no “mundo civilizado”, algo que era esperado do novo centro do Império
português.
Passemos às disposições contidas ao longo do Alvará de 28 de abril. Elegeu-se a
questão tarifária como um ponto crucial a ser abordado. Se o objetivo era promover
estímulos ao desenvolvimento das empresas fabris no Brasil, e estas demandavam a
importação de insumos e máquinas, um primeiro passo neste sentido dar-se-ia a partir
da concessão de isenções alfandegárias. Em seu parágrafo I, o ato legal determinava a
dispensa de pagamento de impostos de importação sobre as matérias-primas utilizadas
2
A Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação foi criada através do Alvará de 23 de
agosto de 1808, enquanto que o Banco do Brasil foi criado por ato análogo expedido a 12 de outubro do
mesmo ano. Detalhes sobre estas medidas podem ser encontrados em Santos (1981, p. 215; 219-20). Já
para descrição e análise do conjunto de medidas econômicas adotadas por D. João após sua chegada ao
Brasil, ver Lima (1996, p. 239-69).
3
Baseamos nossa argumentação nas reflexões de Fragoso & Florentino (2001). Sobre a formação de uma
elite econômica no período de emancipação de fato da colônia (1809-1821), Malerba (2000) acrescenta
que a articulação de uma nobreza portuguesa migrada com uma elite mercantil colonial — comerciantes
de grosso trato — engendrou a formação de uma sociedade fundamentada na persistência de ideais
aristocráticos, isto é, práticas, representações e valores típicos a uma sociedade de corte do Antigo
Regime, porém bastante singular, à medida em que não se apartava de seus traços coloniais mais
marcantes, especialmente o escravismo.
2
na produção de bens manufaturados. A única exigência que se fazia era a de que o
fabricante comprovasse o uso de todo o material adquirido com isenção de taxas em
suas empresas fabris, sendo proibido seu desvio para outros usos, cabendo à Real Junta
de Comércio a tarefa de fiscalização. Já no parágrafo seguinte, isentavam-se as
manufaturas produzidas no Brasil de taxas de exportação. Nota-se neste ponto, como já
havia demonstrado o Legislador no preâmbulo do Alvará,4 uma preocupação com um
desequilíbrio extremado entre a colônia e a metrópole ocupada, isto é, um certo receio
de que as medidas adotadas pudessem prejudicar excessivamente os interesses de
fabricantes e comerciantes portugueses não emigrados para o Brasil junto com a Corte,
principalmente aqueles estabelecidos nas praças de Lisboa e do Porto. Neste sentido,
determinava também o Alvará a isenção de encargos de importação para produtos
manufaturados portugueses, desde que comprovada a sua procedência reinol. Já no
parágrafo VII, fixava-se um abatimento de cinqüenta por cento nas tarifas cobradas
sobre a importação de insumos empregados na construção naval.
Um segundo conjunto de disposições se voltava à viabilização de uma ação de
intervenção direta do Estado no setor manufatureiro, a partir da instituição de políticas
de compras governamentais e da disponibilização de capitais para investimentos em
fábricas e empresas afins. O parágrafo III do Alvará determinava que todos os
fardamentos utilizados pelas tropas reais deveriam ser adquiridos junto a fornecedores
estabelecidos na colônia, criando-se com isso uma reserva de marcado para os
produtores locais. Já o parágrafo V criava a “Loteria Nacional do Estado”,
empreendimento que deveria funcionar como fonte de recursos pra investimentos em
atividades fabris. Parte dos cabedais levantados por esta loteria — o Alvará fixava esta
quantia em 60.000 cruzados anuais — deveria ser revertido para um fundo de
financiamento a novas fábricas e manufaturas, estipulando-se também quais setores
deveriam ser preferencialmente atendidos, no caso, a área têxtil (lã, algodão e seda) e a
metalúrgica (ferro e aço). Os recursos não seriam repassados aos empreendedores sob a
forma de empréstimos, mas como doações a bem do interesse público. Os beneficiados,
portanto, não teriam a obrigação de restituir os recursos tomados junto ao governo, mas
apenas de empregá-los integralmente em suas atividades fabris. Seria incumbência da
Real Junta do Comércio a fiscalização da utilização de tais recursos, bem como sua
distribuição entre os agentes produtivos, definindo-se valores e prioridades.
O último instrumento de política econômica do qual se lançou mão no Alvará de
28 de abril de 1809 foi o incentivo à introdução de novos bens e processos produtivos
no mercado colonial. O contínuo aprimoramento técnico da produção é um fator
fundamental à sustentação e crescimento da atividade fabril, e, tendo em vista seu
alcance, pretendeu-se adotar no Brasil — a exemplo do que já existia na Inglaterra,
França e nos Estados Unidos — um arcabouço jurídico-institucional de proteção e
estímulo à atividade inventiva. Em seu parágrafo VI, enfim, o Alvará de 1809 lançava
as bases para a construção no Brasil de um sistema patentário de tipo moderno, isto é,
uma estrutura legal de determinação de direitos e deveres alusivos ao desenvolvimento
de soluções tecnológicas para problemas práticos enfrentados pelos agentes sociais no
processo de geração de riquezas. Examinemos, portanto, de que forma se procurava
fazer com que a concessão de patentes a inventores se tornasse um mecanismo de
alavancagem das atividades fabris na colônia.
Em meio à argumentação introdutória presente no texto, identifica-se a seguinte ponderação: “[...]tendo
em consideração que deste estabelecimento se possa seguir alguma diminuição na indústria do Reino de
Portugal, bem que com o andar dos tempos a grandeza do mercado e os efeitos da liberdade do comércio
que tenho mandado estabelecer hão de compensar com vantagem algum prejuízo da diminuição que ao
princípio possam sofrer alguns ramos de manufaturas [...]”.
4
3
3.
A legislação e a lógica da concessão de patentes de invenção: apontamentos a
respeito do parágrafo VI do Alvará de 28 de abril de 1809.
Embora sejam escassos os registros anteriores ao período joanino, têm-se notícias
de concessão de privilégios de invenção no Brasil desde o início do século XVIII. Data
de 1705 o primeiro registro conhecido: a proibição do uso por terceiros, a não ser
mediante pagamento previamente estabelecido — no caso, quatrocentos mil réis — ao
inventor, de um “maquinismo para fazer subir água a toda distância que se quiser levar
[...]” (CRUZ FILHO, 1985, p. 7-13). Tratava-se este invento de um sistema de bombas
e rodas hidráulicas com função de deslocar água de uma lagoa para a edificação em que
se instalava o Seminário de Belém, instituição localizada no povoado de Cachoeira, nos
arredores de Salvador. O pedido de privilégio foi apresentado ao Senado da Câmara da
Bahia por Bartolomeu Lourenço de Gusmão, sendo acatado e encaminhado à apreciação
do Real Conselho Ultramarino, que se pronunciou favoravelmente à concessão em seu
parecer de 18 de novembro de 1706. A exclusividade seria concedida ao inventor pouco
depois, ratificada pela Provisão Real de D. João V, de 23 de março de 1707. Outros
registros podem ser ainda encontrados ao longo do século XVIII, o que sugere que a
concessão de monopólios a inventores, embora não muito significante
quantitativamente, não era uma prática absolutamente incomum na colônia portuguesa
na América, assim como no Reino.5
Salientamos que, no contexto do Antigo Regime, as patentes de invenção — que
aqui definimos, grosso modo, como um monopólio temporário concedido a um
inventor, proporcionando-lhe a exclusividade de exploração (produção e
comercialização) sobre o bem por ele criado — constituíam fundamentalmente um tipo
de mercê, um privilégio oferecido pelo Rei a um inventor, proporcionando a este último
meios para o alcance de benefícios privados. Tão ou mais importante do que seu papel
econômico, portanto, era o papel político exercido pela patente, constituindo-se em um
dos elementos estruturantes da sociedade estamental. A concessão de patentes — assim
como de outros tipos de monopólios, isenções, títulos, foros jurídicos diferenciados, etc.
— não proporcionava apenas a geração de riqueza privada, mas também engendrava
distinção social, elevação de status e, principalmente, criação e reprodução de laços de
lealdade entre o inventor (beneficiado) e o Rei (benfeitor).6 Somente a partir do final do
5
Um importante estudo sobre invenções e outros avanços técnicos desenvolvidos durante o período
colonial pode ser encontrado em Rodrigues (1973).
6
Na sociedade do Antigo Regime, a valorização da honra constituía-se como uma modalidade de luta
social, um mecanismo para se obstaculizar a ascensão de grupos concorrentes, salvaguardado as
distinções e privilégios de um segmento social específico, a nobreza (MARAVALL, 1989). Tal
mecanismo, contudo, era controlado no vértice mais alto da pirâmide social, isto é, pelo Rei. Era o
Soberano o controlador das vias e instrumentos de ascensão social, quem conferia a honra através da
distribuição de cargos, títulos, bens materiais e outras distintas de mercês. O alcance e a manutenção da
honra pressupunha o cultivo de hábitos, costumes e comportamentos próprios a um determinado estilo de
vida, traços de exteriorização de uma dada forma de inserção na sociedade e de construção de laços de
pertencimento a uma comunidade de sentidos. Porém, antes de tudo, pressupunha uma proximidade com
o monarca — uma vez que era dele que provinham as benesses necessárias à distinção —, bem como a
prestação de serviços relevantes. Logo, neste sistema social notadamente marcado pela proeminência das
ligações pessoais, sobressaíam-se, em sua própria configuração organizacional, as redes de relações
alicerçadas na lógica do dar e receber. O ato de conceder benefícios, de distribuir mercês, era, portanto,
hierarquizante, produzindo clivagens entre o benfeitor e o beneficiado (XAVIER & ESPANHA, 1993).
Segundo Mauss (1925), citado por Godelier (2001), o dom, por necessariamente engendrar retorno,
criando uma obrigação do beneficiado em retribuir, continuamente constrói e reforça laços de
dependência entre quem dá e quem recebe, tanto maiores quanto mais discrepantes a capacidade de dar do
primeiro e a de restituir do último. Logo, quanto mais desigual é a relação entre os agentes, mais
4
século XVIII — em um contexto de crise e esboroamento do Antigo Regime —
ocorreriam reconceituacões mais significativas na rationale do sistema patentário.
Tendo como alicerce um conceitual jusnaturalista em ascensão,7 fortalece-se
progressivamente no Ocidente, a partir de então, a interpretação da invenção como o
resultado de um trabalho criativo individual, defendendo-se a justiça do pleno e
exclusivo desfrute do inventor dos benefícios proporcionados por sua atividade. Neste
sentido, a concessão de patentes passava a ser tomada não mais como distribuição de
privilégios, recompensas por serviços prestados ao monarca, mas como uma forma de
garantir o direito de propriedade privada sobre bens intangíveis, isto é, a faculdade de
excluir de terceiros do usufruto dos benefícios econômicos diretos proporcionados pelo
trabalho intelectual — este último, de natureza individual —, impedindo-se o proveito
indevido do fruto do esforço alheio. A patente, enfim, passava ser concebida como um
instrumento de salvaguarda e reconhecimento de um direito natural e particular, o de
dispor exclusivamente da propriedade.
É neste contexto de ampliação da concepção patentária que ocorre um processo
de disseminação de legislações de patentes em boa parte do Ocidente. Não obstante o
pioneirismo do caso inglês — cuja influência de ideais libertários e rompimento com a
ordem absolutista ocorreria já no século XVII, com conseqüências diretas sobre a
estrutura de concessão de exclusivos a inventores montada naquele país8 —, o ultimo
quartel do Setecentos inauguraria um período de gênese do direito patentário em
diversos países. O primeiro Patent Act norte-americano data de 1790.9 O exemplo seria
seguido pela França um ano depois, com a promulgação da Loi du 7 janvier. A partir de
então, a tendência de disseminação de legislações patentárias seria consolidada: “Brasil”
(ainda sob a condição de colônia, em 1809); Áustria (1810); Rússia (1812); Prússia
(1815); Países Baixos (1817); Espanha (1820); Bavária (1825); Sardenha (1826);
profundas as relações de subordinação estabelecidas. Configuram-se e se consolidam, com isso, redes
clientelares que perpassam toda a estrutura da sociedade, dando lógica ao sistema global de relações.
7
Para efeitos deste trabalho, definiremos o jusnaturalismo moderno como uma matriz de pensamento
fundamentada na interpretação da realidade e ordenação do mundo a partir de uma metodologia racional e
de uma referência antropocêntrica e individualista, contrapondo-se aos fundamentos ontológicos e
teológicos da filosofia escolástica. Sob o ponto de vista do direito, influenciados por pensadores como
Locke, Hobbes e Russeau, os jusnaturalistas modernos reformularam a concepção de direito natural
consolidada por Thomás de Aquino, desatrelando os princípios e valores superiores que regem a vida em
sociedade da vontade divina. Desta forma, tomavam o direito natural como um sistema construído pelo
homem — a partir do desvelamento das “leis” que regem as relações sociais através de processos
racionais de análise —, dotado de validade universal e perpétua. Para discussões mais aprofundadas,
consultar Ximenes (2001).
8
O Estatuto dos Monopólios, promulgado pelo parlamento em 1623, já no crepúsculo do período
jacobiano, consistiu em um ato legal visando à contenção e controle dos poderes régios. O ato tornava
definitivamente ilegais todos os monopólios, isenções fiscais e penais, bem como outros tipos de
privilégios comumente concedidos pela Coroa, com exceção dos monopólios temporários a inventores. A
despeito de legalizar os exclusivos patentários, o Estatuto estabelecia, em seu parágrafo VI, regras claras
e específicas para a sua concessão — esvaziando o poder de decisão do monarca. Considera-se, por isto, o
Estatuto dos Monopólios a primeira legislação patentária promulgada por um Estado moderno. Antes da
Inglaterra, somente a República de Veneza havia regulamentado a concessão de patentes a inventores por
força de uma lei específica, esta datada de 18 de março de 1474.
9
Deve-se ressaltar que já no texto da Constituição norte-americana havia uma cláusula alusiva à proteção
dos inventores e dos autores de obras artísticas e literárias. Além da formulação de uma lei específica para
patentes logo após sua independência, a importância atribuída pelos norte-americanos à matéria fica
também evidenciada pelo pronto estabelecimento de uma estrutura institucional específica para o
tratamento das questões concernentes aos privilégios de invenção. Um estudo importante sobre o tema
pode ser encontrado em WALKER, Albert. A treatise on the law of patents for inventions. 6th edition,
revised and enlarged by John L. Lotsh. New York: Baker, Voorhis and co., 1929.
5
Vaticano (1833); Suécia (1834); Portugal (1837); Hannover (1847); Saxônia (1853);
etc.(MACHLUP & PENROSE, 1950).
É importante aqui destacar por que incluímos o Brasil no rol de países precursores
na introdução de leis modernas de patentes, ainda que em 1809 — ano de promulgação
do marco legal que instituiu as primeiras regulações locais concernentes aos direitos do
inventor — não possamos nos referir ao Brasil como um Estado nacional.
Primeiramente, as disposições presentes no Alvará do Príncipe Regente, de 28 de abril
de 1809, eram única e exclusivamente voltadas para as possessões portuguesas no Novo
Continente, não sendo extensivas à metrópole — à época invadida pelo exército
Napoleônico — nem aos demais recantos do Império português. Em segundo lugar,
mesmo após a retomada de seu controle pela dinastia bragantina, a concessão de
monopólios a inventores em Portugal permaneceu como uma prerrogativa régia, um tipo
de mercê (patente “pré-moderna”), não sendo expedida nenhuma lei específica para a
regulamentação da matéria no país até 1837. Por último, nota-se que mesmo após a
emancipação da colônia, permaneceu o estatuto joanino a vigorar no infante Império
Brasileiro, sendo substituído somente em 1830 por uma lei que mantinha praticamente
intactos os princípios e regras inauguradas dois decênios antes. Enfim, ainda que não se
possa considerar o Brasil de 1809 como um país — e eis a razão pela qual apresentamos
o termo entre aspas alguns parágrafos acima —, para efeitos deste trabalho considera-se
válida sua inclusão no rol dos precursores na adoção de legislações patentárias, uma vez
identificada uma total continuidade entre as legislações de 1809 e 1830, alicerces de um
sistema único e integral de proteção à atividade inventiva, vigente por quase todo o
Oitocentos.
Partamos, pois, para a análise do parágrafo VI do Alvará de 28 de abril de 1809,
objeto principal deste estudo. Nele foram estabelecidas as primeiras normas voltadas à
concessão de patentes de invenção no Brasil, resumidas nos seguintes termos:
Sendo muito conveniente que os inventores e introdutores de alguma nova
máquina e invenção nas artes gozem do privilégio exclusivo, além do direito
que possam ter ao favor pecuniário, que sou servido estabelecer em benefício
da indústria e das artes, ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso
apresentem o plano de seu novo invento à Real Junta do Comércio; e que
esta, reconhecendo-lhe a verdade e fundamento dele, lhes conceda o
privilégio exclusivo por quatorze anos, ficando obrigadas a fabricá-lo depois,
para que, no fim desse prazo, toda a Nação goze do fruto dessa invenção.
Ordeno, outrossim, que se faça uma exata revisão dos que se acham
atualmente concedidos, fazendo-se público na forma acima determinada e
revogando-se todas as que por falsa alegação ou sem bem fundadas razões
obtiveram semelhantes concessões.
Este parágrafo expressava, de uma forma simples, direta e condensada, toda a
rationale do sistema patentário que ora se implementava, suas funções, objetivos e
estrutura de funcionamento. Do ponto de vista formal, determinava o estatuto:
a) os objetivos da proteção patentária — recompensar os inventores pelos serviços
por eles prestados e incentivar o avanço da indústria e das artes;
b) os requisitos necessários à concessão do privilégio — apresentação de uma
descrição do invento (no texto do Alvará definido como “plano”) à Real Junta de
Comércio, que avaliaria o objeto da invenção quanto a sua novidade e veracidade;
c) o período da exclusividade — 14 anos;
d) as obrigações do privilegiado — utilizar efetivamente o monopólio, fabricando
o produto.
6
Em suma, apresentava o sistema de proteção patentária erigido por D. João a
partir deste estatuto de 1809 a seguinte dinâmica de funcionamento: os interessados em
obter privilégios faziam um requerimento à Real Junta de Comércio, no qual,
obrigatoriamente, deveriam constar informações a respeito do objeto da sua invenção,
tais como sua utilidade, a descrição de seu funcionamento, sua superioridade em relação
a artes ou máquinas já existentes, etc. Aquela instituição era dotada de um Tribunal,
composto por Deputados, que avaliaria o mérito do requerimento de acordo com as
determinações legais, ou seja, novidade, utilidade e veracidade do invento. Um dos
membros do Tribunal do Comércio, após ser designado por Portaria específica como
“Inspetor das Fábricas”, ficaria com o encargo de realizar um exame preliminar,
encaminhando um parecer primeiramente a um outro membro específico do Tribunal, o
“Desembargador Fiscal”, que após emitir uma segunda opinião encaminharia o
requerimento, acrescido dos dois pareceres, à avaliação do plenário do Tribunal. Apesar
de sua plena inserção no processo de concessão de privilégios, o Tribunal do Comércio
não era um órgão deliberativo, e sim consultivo; a concessão permanecia sendo um ato
da autoridade máxima do Estado.10
Sob o aspecto conceitual, pode-se depreender que este primeiro regulamento sobre
patentes no Brasil consagra os princípios que determinariam as feições do sistema de
exclusivos durante grande parte do Oitocentos. Fica clara no texto a idéia de que o
privilégio patentário era interpretado como um instrumento de fomento à atividade
econômica, de promoção do bem-estar social, uma vez que a exclusividade temporária
aos “inventores e introdutores de alguma nova máquina e invenção” serviria como um
tipo de incentivo ao desenvolvimento das artes e da indústria. A introdução de novos
produtos, técnicas e instrumentos, portanto, era vista como um objetivo a ser alcançado
e a patente se mostrava como um instrumento eficiente para tal empresa. Entretanto, se
o atendimento de um interesse do Estado ficava bem explícito como fundamento do
sistema patentário, o interesse do inventor não era apresentado de uma forma secundária
ou como mero corolário. A patente era concebida também como a ratificação do direito
de todo indivíduo à propriedade do resultado de suas invenções. Logo na introdução do
parágrafo isso fica bem claro, quando o Legislador salienta a conveniência e a justiça do
gozo, por parte do inventor, dos benefícios proporcionados por seu trabalho intelectual,
apresentando-se a exclusividade como uma forma de contemplá-lo. Neste sentido, o
privilégio patentário fazia justiça ao indivíduo, premiava seu esforço e impedia que suas
idéias fossem utilizadas por terceiros sem a sua conivência ou autorização. Deve-se
salientar, contudo, que o direito de propriedade do inventor sobre sua criação não era
concebido como algo incondicional. Era preciso que o fruto de seu trabalho, sua
invenção, merecesse ser protegida, que proporcionasse benefícios à coletividade que
justificassem a posição privilegiada que o inventor desfrutaria no mercado com sua
patente. O mérito, portanto, condicionava o direito à propriedade, e a própria norma
legal estabelecia elementos objetivos para sua mensuração. Somente um objeto
absolutamente novo e que tivesse alguma utilidade prática, ou seja, que aperfeiçoasse o
estado das artes apresentando soluções mais eficientes para problemas pré-existentes,
seria apto a ser protegido, cabendo ao Estado avaliar tais condições a partir de um
exame prévio. O princípio do mérito é ainda reforçado ao final do Parágrafo VI, em que
há o estabelecimento de uma ampla revisão dos privilégios vigentes, de forma a revogar
todos aqueles que fossem considerados “imerecidos”.
É importante ainda notar que o Alvará estabelece a obrigatoriedade da exploração
do objeto protegido, ou seja, que o inventor ou alguém por ele autorizado efetivamente
10
A descrição das fases do processo de patenteamento no período foi construída com base em
informações presentes em Rodrigues (1973, passim).
7
transforme a invenção — solução tecnológica para um dado problema — em inovação
— aplicação prática da informação tecnológica —, que transite da abstração do
processo criativo para realidade “concreta” do mercado. Só se transformando em
produto, técnica ou instrumento o processo criativo se completava, sendo merecedor de
proteção. Por último, a exigência de descrição e a determinação do intervalo temporal
de validade da exclusividade ratificavam uma limitação do direito à propriedade: seu
gozo não era absoluto, pois a expiração da proteção patentária tornava a invenção de
domínio público, podendo ser explorada por qualquer pessoa. Mais do que isso, a
exploração era de certa forma até incentivada, uma vez que a informação técnica
referente ao objeto não podia ser salvaguardada pelo inventor por meio do segredo (a
descrição era obrigatória).
Percebe-se que a estrutura patentária montada a partir da promulgação do Alvará
de 1809 baseia-se em uma compilação de dispositivos presentes em três legislações
patentárias que lhe precederam — no caso, as leis inglesa, francesa e norte-americana.11
Entretanto, esta utilização de fundamentos teórico-doutrinários exógenos não se deu
como mera importação, uma reprodução mimética de conceitos jurídicos pré-existentes.
Estes teriam sido absorvidos, reinterpretados e adaptados, afastando-se de sua rationale
original. Uma de suas singularidades mais marcantes é o tratamento dispensado ao
direito de propriedade do inventor. Nas legislações estrangeiras supracitadas, fortemente
influenciadas por concepções jusnaturalistas, conforme anteriormente comentado, a
propriedade era tomada como um direito absoluto do indivíduo, congênito, natural, não
dispondo o Estado de um significativo poder de intervenção ou regulação sobre seu
desfrute. Ao contrário do que foi montado no Brasil em 1809, em nenhum daqueles
sistemas patentários era previsto o processo de exame-prévio.12 Logo, o Estado não era
tomado como uma instância concessora do direito, mas apenas como sua mantenedora,
isto é, responsável pela criação das condições necessárias ao pleno gozo da
exclusividade, salvaguardando a inviolabilidade da propriedade privada. Em tais países,
não cabia ao Estado julgar se havia ou não mérito na invenção, se o desfrute do
monopólio pelo inventor era de fato justo. Uma vez concluído o processo inventivo e
requerida pelo inventor a patente, a concessão era automática, só cabendo contestação
pela via judicial. Já no caso da estrutura patentária brasileira, nota-se uma mescla de
elementos “modernos” — influenciados pelo jusnaturalismo e pelo liberalismo — e
“arcaicos” — permanências do sistema vigente durante o Antigo Regime. Se, por um
lado, o interesse do indivíduo é valorizado e concebido como uma das razões da
existência da proteção patentária, sendo justo impedir-se que o trabalho intelectual de
qualquer pessoa fosse utilizado por terceiros contra a sua vontade, por outro, esse direito
não era absoluto, estando submetido a uma forte regulação do Estado. O direito de
exclusão proporcionado pela propriedade privada só se torna desfrutável a partir do
momento que o Estado o concede, e isto é condicionado ao atendimento de uma série de
requisitos.
Segundo Rodrigues (1973), o principal artífice do alvará de 1809 teria sido José
da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, ilustre economista e estadista do período. De fato,
ao observarmos alguns dos textos produzidos por Cairu, podemos perceber claramente
que em toda a sua argumentação estão presentes as principais idéias dispostas no texto
do Alvará de 1809. Mais do que isso, suas reflexões constituem uma verdadeira
apologia do sistema de proteção patentária, sendo desenvolvidos de uma forma bem
Sobre o “Estatuto dos Monopólios” de 1623, ver Walker (1929). Sobre o Patent Act de 1790,
sugerimos a leitura de Khan (2005). Já sobre a Lei francesa de 1791, ver Pouillet (1915).
12
O sistema de patentes norte-americano incorporaria o processo de exame prévio somente a partir de
1836.
11
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sistemática os elementos teóricos para sua justificação. Pode parecer paradoxal, a
princípio, que um pensador considerado como o introdutor da economia política no
Brasil, bem como um de seus principais defensores e divulgadores, seja responsável
pela elaboração de um estatuto legal que parece ser uma interpretação sui generis do
individualismo econômico smithiano; entretanto, argumentam Novais & Arruda (1999)
que, apesar da fundamental e explícita influência de Smith sobre o pensamento do
político baiano,
[...] Cairu não se diferencia muito dos ilustrados luso-brasileiros, marcados por um
estridente ecletismo, que misturavam idéias fisiocráticas, mercantilistas e elementos
da economia política clássica inglesa, mescla esta que poderia ser denominada por
mercantilismo ilustrado. Seu texto [...] busca a adequação de todos os princípios às
necessidades imediatas e reais do mundo colonial, em sua dimensão política
econômica e social (NOVAIS & ARRUDA, 1999, p. 17).
Analisemos, então, um pouco do pensamento de Cairu, expresso em suas
Observações Sobre a Franqueza da Indústria. Fica claro em vários pontos do texto o
antagonismo do autor à utilização de monopólios como instrumentos de promoção da
atividade econômica. Logo no início de sua reflexão, Cairu apresenta seu
posicionamento quanto à melhor forma de desenvolvimento das atividades fabris no
país:
Em matéria de fábricas, há dous escolhos igualmente fatais ao progresso da fortuna
particular e pública: um consiste em não se dar plena franqueza à indústria para
estabelecimento de manufaturas, o outro consiste em introduzir estas por privilégios
e favores extraordinários (CAIRU, 1999, p.51).
E justifica:
Quem for hábil, e não temerário, projetista de fábricas, tem consigo o inauferível e
natural privilégio exclusivo, que lhe dá a superioridade de sua indústria e capital
para excluir o competidor sem força, nem injúria, servindo em suas obras melhor e
mais barato ao público: este então espontaneamente o preferirá na compra e será
constante freguês, que à porfia de outros compradores, lhe segurará extenso,
progressivo, e lucroso mercado, metendo antes empenho para ser preferido na
venda, pagando o distinto préstimo e mérito com ampla liberdade. [...]
Alterando-se esta regra, além de ofender a justiça e o decoro da soberania, que
presta igual e imparcial proteção a todos os seus vassalos, a força do exemplo de uns
animaria a ousados pretensores para requererem semelhantes mercês injuriosas à
comunidade. [...] Assim o Brasil ficaria encadeado com monopólios de mil títulos e
pretextos, e se frustraria o imenso benefício da franqueza da indústria, [...] e
permaneceria o estado privado por muitos séculos [...] de inúmeras fábricas úteis que
com o andar dos tempos se poderiam ir estabelecendo gradualmente, segundo a
demanda, população e riqueza do país (Idem, p. 48).
O fato de ser um legítimo defensor do livre-cambismo e da franqueza da
indústria não se contrapõe, entretanto, à sua aceitação e defesa da existência de um
único tipo de privilégio, considerado, ao contrário dos demais, lícito e benéfico ao
progresso dos povos: o concedido aos inventores e introdutores de novas máquinas e
técnicas. O embasamento teórico ele busca em Jean Baptiste Say, em seu Tratado de
Economia Política:
Em Inglaterra, quando um particular inventa um produto novo, ou descobre um
processo (método de trabalho) desconhecido, ele alcança um privilégio exclusivo de
9
fabricar este produto, ou de servir-se deste processo: a carta é chamada Patente de
invenção.
Como não há concorrentes nesta produção, ele pode levantar o preço muito acima do
que seria necessário para o reembolsar de seus avanços com interesses, e ter
proveitos da sua indústria. É uma recompensa que o governo concede à custa dos
consumidores do novo produto; [...]
Quem poderia racionavelmente queixar-se de semelhante privilégio? Ele não destrói,
nem grava ramo algum de indústria precedentemente conhecida. As despesas da
compra do novo produto não são pagas senão por quem as quer; e quanto aos que
não querem faze-las, as suas carências, de necessidade, ou de agrado, não são menos
completamente satisfeitas que antes (SAY, 1803 Apud CAIRU, 1999, p. 72-3).
A atividade inventiva, segundo Say, deveria ser incentivada e premiada, não
deixada à própria sorte, de forma que o progresso material da sociedade ficasse a cargo
do acaso. “Honra seja aos homens que têm despendido os seus réditos em tão úteis
consumos! [...] Estes homens pelos seus inventos fazem a seus concidadãos, e ao mundo
inteiro, presentes que muito excedem o valor que estes retribuem [...]” (Idem, p. 74). A
exclusividade concedida aos inventores é, portanto, válida, justa e benéfica, desde que
esteja submetida a limites e de maneira alguma extrapole os interesses do bem comum.
Desta forma, acrescenta:
[...] o inventor do novo produto não pode privar para sempre aos industriosos
nacionais da vantagem de empregarem uma parte de seus capitais e de sua indústria
a este produto; nem os consumidores de se proverem dele ao preço em que a
concorrência o possa baixar (Idem, p. 73).
Se o objetivo da patente é garantir a satisfação dos interesses do inventor, por
um lado, ressarcindo-o de os seus esforços intelectuais e financeiros, e o progresso geral
das artes e da indústria, a limitação do período de validade do privilégio faz com que
ambos os objetivos sejam contemplados. Expirado o tempo em que o inventor usufruiria
exclusivamente do resultado de seu trabalho, auferindo um lucro justo, o conhecimento
dominado pelo inventor, que o permitiu alcançar o produto de sua invenção, seria
dividido com toda a sociedade, tornando-se público, permitindo que os benefícios por
ele oferecidos se multiplicassem e criando condições para a criação de novos inventos
ou melhoramentos. Em suma, o privilégio deveria durar tão somente o tempo suficiente
para indenizar o esforço, os custos e os riscos do inventor. Findo este prazo considerado
justo “tal privilégio não seria mais do que um dom que se faria gratuitamente à custa de
seus concidadãos, que têm recebido da natureza o direito de se procurarem as
mercadorias que precisam [...] e ao mais baixo preço possível” (Idem).
Fica evidenciado que Cairu, baseado em Say, não interpretava a propriedade do
inventor sobre sua criação como um direito incondicional. Da mesma forma, sua
objeção a práticas protecionistas, subvencionistas ou monopolísticas não era absoluta,
pois também admitia exceções. Em relação ao primeiro fator ele nos deixa algumas boas
evidências. Cairu acena favoravelmente tanto à limitação do prazo de exclusividade —
“findo este é livre a todos o uso da nova invenção [...] pois então já não se pode chamar
privativa propriedade de pessoa alguma [...] mas doado da cidade e pertencente da
família do gênero humano” (CAIRU, 1999, p. 79) — quanto a restrições em relação às
categorias e naturezas dos objetos passíveis de proteção patentária — “nas invenções de
transcendente vantagem à nação, melhor seria, que o governo comprasse o invento, e
10
desse competente prêmio ao inventor, fazendo logo publicá-lo a bem da humanidade”
Idem).13 Quanto ao segundo fator, referências também não faltam:
Não convém (por via de regra) dar privilégios exclusivos aos que não são inventores
e introdutores de novas máquinas, e invenções nas artes; mas é racionável darem-se
alguns especiais auxílios e favores aos primeiros introdutores de grandes máquinas
(Idem, p. 35).
Ou ainda um outro exemplo:
Não digo que os primeiros introdutores que fazem o traspasso de grandes máquinas
e invenções dos estrangeiros, ainda depois de estarem constituídas de direito público
em as nações respectivas [sem novidade], não sejam mui especiais servidores e
beneméritos de sua pátria, por este fato útil ao país. Porém a lei já providenciou ao
caso na generalidade da regra, que manda à Real Junta do Comércio dar socorros
pecuniários aos introdutores e industriosos de especial merecimento (Idem, p. 84).
Caso consideremos a participação direta de Cairu no processo de elaboração do
Alvará de 1809 — e os vários indícios acima comentados o sugerem —, seremos
obrigados a admitir, contudo, que em pelo menos uma questão seus argumentos não
teriam prevalecido, uma vez que se pode observar um total desacordo entre a letra da lei
e as idéias por ele defendidas. Trata-se do requisito do exame prévio. Conforme
discutido anteriormente, o Alvará determinava que a concessão da exclusividade
estivesse condicionada ao mérito da invenção (novidade, exeqüibilidade e utilidade), e
em função de tal julgamento deveria o invento ser examinado previamente por
autoridades para este fim constituídas. Pois bem, era novamente baseado em Say que
Cairu se contrapunha a esta exigência. Afirmava o economista francês:
Não é de modo algum necessário que a autoridade pública discuta a utilidade de
processo, ou a sua novidade. Se não é útil, tanto pior é para o inventor. Se não é
novo, todo mundo é admitido a provar que ele era conhecido, e que cada um tinha
direito de se servir dele; e isso também é péssimo para o que se disse inventor; pois
que lhe é tirado o privilégio, e fica prejudicado por pagar inutilmente as despesas da
chamada Patente de invenção (SAY, 1803, apud CAIRU, 1999, p. 74). [Grifos do
autor]
Cairu segue a mesma linha argumentativa em suas Reflexões sobre o modo de
executar a concessão do privilégio exclusivo aos inventores e introdutores de nova
máquina ou invenção nas artes. Para ele “[...] não há inconveniente em se conceder
logo o exclusivo, sendo a invenção nova, ainda que pareça de pouco momento ou
inverossímil” (CAIRU, 1999, p. 115). Não haveria prejuízo nem a indivíduos
específicos nem à coletividade, já que qualquer um e em qualquer momento poderia pôr
em dúvida o mérito do privilégio, que por sua vez ficava passível de revogação. Cita o
sistema inglês de concessão de patentes de invenção como exemplo da aplicabilidade de
tal conceito: 14 naquele país, “[...] o governo não nega a pessoa alguma o uso da sua
Em relação a inventos relacionados à saúde pública — e aí cita a inoculação da vacina e a purificação
do ar através do ácido nítrico — Cairu acrescenta: “É evidente o quanto seria egoístico, e desumano,
requererem-se privilégios exclusivos em objetos desta natureza, e importância”. É interessante como
quase duzentos anos depois este assunto permanece no centro dos debates ético-jurídicos sobre o sistema
de patentes.
14
Além da Inglaterra, outro país que não adotava àquela altura o exame prévio era os Estados Unidos. É
certo que a lei norte-americana em muito havia se inspirado na lei inglesa; no entanto, em seus primeiros
tempos a legislação exigia o exame de mérito da invenção. Três anos depois da promulgação do Patent
13
11
asserta nova invenção; e isto sem exame preliminar, pois fica sempre a todo o mundo
salvo o direito de contestar a novidade ou provar a sua publicidade em país
comerciante” (Idem, p. 115). Desenvolve, então, a defesa da inutilidade do exame
prévio a partir dos seguintes argumentos: a incompetência dos tribunais para efetuar o
exame, devido à impossibilidade de conhecimento e domínio por parte de seus
integrantes de todo o estado das artes; a exposição do segredo da técnica sem a garantia
do privilégio poderia desestimular a busca por patentes e até mesmo a própria atividade
inventiva; o risco de uma avaliação injusta por parte das autoridades ou especialistas em
função de questões pessoais ou profissionais; a pouca afinidade existente entre teóricos
e práticos, que poderia provocar vícios nos exames, caso fossem colocados a cargo dos
primeiros.
O fato de a argumentação de Cairu não ter prevalecido reforça a hipótese
anteriormente levantada, a de que a questão da proteção patentária não teria sido de
forma alguma tratada de uma forma simplista no período, pura “importação” de
conceitos já consolidados na Europa ou adequação a exigências que a abertura ao
comércio internacional ocorrida em 1808 teria suscitado. A discrepância entre a
legislação brasileira de patentes e suas congêneres no período — inglesa, norteamericana e francesa —, que não estabeleciam exame de mérito (o direito do indivíduo
à propriedade de seu trabalho intelectual era prévio e inviolável, não sendo legítimo ao
Estado contestá-lo, mas apenas efetuar sua regulação), sugere um quadro muito mais
complexo de formação e circulação de idéias econômicas.
Deve-se ressaltar, por último, o exame prévio suscitou, desde os primeiros
tempos de sua execução, uma série de dificuldades práticas. Conforme havia
argumentado Cairu desde 1810 em suas Observações sobre a franqueza da indústria, a
avaliação do mérito da invenção, especialmente quanto aos requisitos da novidade e da
exeqüibilidade, não era uma tarefa fácil, e os problemas nela envolvidos podiam mesmo
pôr em dúvida sua eficiência. Em algumas situações, penosa era, para os Deputados do
Tribunal do Comércio, a tarefa de apreciação do ineditismo de uma invenção, dada a
ausência de informações sólidas sobre o estado das artes em todo o mundo, uma vez que
o critério exigido por lei era o da novidade absoluta, não a restrita territorialmente
(novidade relativa). Desta forma, passou, já no contexto do Brasil indenpendente, a
lançar mão o governo da colaboração de órgãos da sociedade civil para a execução dos
exames dos pedidos de patentes, repassando esta atividade a especialistas nos assuntos
das artes, técnicas e ciências. Estes desempenhavam um papel consultivo, devendo se
posicionar quanto ao mérito do pleito, prestando auxílio, desta forma, às autoridades
envolvidas no processo decisório.
O decorrer das duas décadas seguintes ao Alvará em pouco modificaram o quadro
da proteção patentária no Brasil. A matéria permanecia mantendo sua relevância tanto
no campo jurídico quanto no econômico, principalmente à medida que vários países
europeus passavam a adotar o sistema de privilégios sob sua forma moderna. A
estrutura de patenteamento montada a partir do alvará de 1809 — ratificada e
aperfeiçoada posteriormente, com o promulgação da lei de Patentes de 1830 — ter-se-ia
sustentado até a década de oitenta daquele século, quando a legislação sofreria
mudanças substanciais. Por pressão de inúmeras críticas — recrudescidas
principalmente a partir da década de 1860 —, a Lei de Patentes seria, a 28 de agosto de
1882, revogada e substituída por um estatuto mais afinado aos princípios que
fundamentavam os sistemas patentários vigentes nas principais potências européias e
nos Estados Unidos. Sob o estímulo das questões levantadas no bojo dos debates
Act esta disposição seria revogada, passando a ser exigido a partir de então somente o exame formal do
requerimento. Para maiores detalhes ver Rodrigues (1993, p. 557, nota 19) e Cruz Filho (1996, p. 141-2).
12
internacionais no período e pela formulação do primeiro Tratado Internacional sobre
patentes — a Convenção da União de Paris —, o arcabouço jurídico de patentes do
Brasil seria reestruturado, efetuando-se, entre várias outras mudanças, o abandono da
prática do exame prévio (exceto para produtos alimentares, químicos e farmacêuticos).
A lógica da proteção patentária no país migraria, no final do século, da ênfase ao mérito
para a ênfase à garantia do direito individual à propriedade.
4. Considerações Finais
Frisamos que a ênfase deste trabalho recai sobre a montagem e a disposição de
uma dada estrutura de proteção à atividade inventiva no período joanino, estando nosso
esforço de análise voltado principalmente para os fundamentos teóricos e doutrinários
que justificavam e legitimavam a instituição de marcos regulatórios para o campo da
propriedade de bens imateriais (conhecimento, tecnologia). Deve-se ressaltar, contudo,
que entre o conceitual jurídico-econômico em vigor e sua aplicação na prática social
pode haver um hiato considerável. De fato, uma investigação preliminar aponta que as
discrepâncias entre o modelo jurídico e seu funcionamento real podem ter sido
significativas, embora a confirmação de tal hipótese requeira um enveredamento por
searas de pesquisa e reflexão que extrapolam os limites e objetivos do trabalho aqui
proposto. Atendo-nos, portanto, à análise do conjunto de idéias e valores de ordens
jurídica e econômica que serviram como base para a introdução e desenvolvimento de
um sistema moderno de patentes no Brasil, percebemos que sua lógica é facilmente
identificável. O privilégio aos inventores era considerado como um importante
instrumento de fomento à atividade inventiva, premiando o indivíduo pelos esforços e
recursos despendidos no processo criativo e promovendo o progresso material da
sociedade, à medida que incentivava, pela expectativa de lucro, a introdução constante
de novos produtos e métodos de produção no mercado. Todavia, ao contrário de
sistemas patentários estrangeiros que lhe precederam — centrados justamente na
salvaguarda do direito de propriedade do inventor —, era o mérito da invenção o
fundamento primeiro da lógica da proteção patentária no Brasil. O direito de
apropriação privada sobre bens imateriais era considerado como justo e legítimo, porém
seu pleno desfrute deveria estar condicionado ao prévio atendimento dos interesses do
Estado. Mostra-se digno de nota, portanto, o fato da estrutura patentária montada no
Brasil no período joanino — e mantida sem maiores alterações até o crepúsculo do
Segundo Reinado — ter-se caracterizado por uma superposição de elementos jurídicoeconômicos modernos e pré-modernos, isto é, de conceitos e valores tipicamente
liberais — como a inviolabilidade do direito privado de propriedade — e de práticas e
referências próprias a sistemas sociais pré-capitalistas — como a concepção do Estado
como provedor de benefícios (mercês) e condicionador do exercício da liberdade
individual. Distava-se, desta forma, a estrutura patentária montada no Brasil de suas
congêneres na Europa e nos Estados Unidos.
Um outro aspecto importante a salientar é a precocidade da adoção de um
sistema de patentes no Brasil, considerando as características arcaicas de sua economia
no período. Não se pode afirmar que aqui, ao contrário do ocorrido em outros países, a
introdução de um sistema de proteção à atividade inventiva bem definido por lei tenha
sido resultado de demandas e pressões provenientes dos setores produtivos, uma vez
que sua aplicação prática e seus efeitos sobre a atividade econômica foram muito pouco
significantes. Se tomarmos o interstício 1809-1830, período de vigência das disposições
do Parágrafo VI do Alvará de 28 de abril de 1809, apenas 20 patentes de invenção
foram concedidas no Brasil, número que se comparado com as concessões ocorridas no
13
mesmo período, por exemplo, nos Estados Unidos, país cujo nível de desenvolvimento
econômico não se mostrava tão dispare, mostra-se bastante modesto.15 A construção de
um sistema patentário de tipo moderno, assim como todas as demais medidas
implementadas através do Alvará de 1809, mostraram-se pouco úteis ao progresso das
atividades fabris no Brasil, conforme atestam as pesquisas efetuadas por Carrara Júnior
& Meirelles (1996), em que são elencadas as iniciativas de montagem de empresas
manufatureiras desde a década de 1810 a meados daquele século. Mais uma vez,
deparamo-nos com números pouco significativos, o que se mostra compreensível em
uma economia na qual os excedentes eram maciçamente convertidos em terras, homens
e bens simbólicos de distinção. Esta é, por sinal, a problemática principal a nos desafiar
no estudo de tal tema: como encarar um estatuto que se propunha modernizador em uma
sociedade que não pretendia ser moderna, pelo menos no que tange à sua organização
econômica. A compreensão das distintas dimensões de um ideal civilizatório, isto é,
uma convicção sobre a inserção da sociedade luso-brasileira no mundo cristão ocidental,
pode ser um caminho a se seguir à procura de respostas. Reivindicar um lugar na
civilização era apontar para os laços com a Europa, assumindo-se o Brasil como um
legítimo herdeiro da ilustração. Ora, nada mais típico das luzes do que a valorização do
progresso material, técnico e científico. Cremos que justamente aí se encaixa a
montagem de um constructo jurídico próprio a sistemas econômicos modernos e
complexos, como o caso do arcabouço patentário ou mesmo outras formas alternativas
de proteção e incentivo à atividade inventiva, em um sistema econômico distinto e
peculiar, onde as condições pareciam não favorecer nem demandar a sua aplicação.
15
De acordo com levantamento efetuado por Khan (2005), entre 1809 e 1830 foram concedidos nos
Estados Unidos 5.542 patentes a inventores. No mesmo período, teriam sido concedidas 4.144 patentes na
França e 2.729 na Inglaterra. Deve-se ressaltar, conforme discutido anteriormente, que nestes países
inexistia o processo de exame prévio, sendo todos os pedidos de patentes concedidos automaticamente.
Apenas na Inglaterra o processo era mais burocratizado — em função das múltiplas instâncias pelas quais
o inventor deveria passar para ter sua patente concedida — o que talvez explique o fato da economia mais
dinâmica entre as três acima citadas apresentar o índice mais baixo de patenteamento. A despeito das
diferenças entre estes sistemas e o vigente no Brasil, percebemos que a discrepância dos números é
absurda.
14
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