Simpósio 31 — Ciência, Tecnologia e História Econômica “Em benefício da indústria e das artes”: considerações sobre o Alvará do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809. Leandro Malavota Universidade Federal Fluminense Instituto Nacional da Propriedade Industrial Academia da Inovação e Propriedade Intelectual [email protected] 1. Introdução A transferência dos Bragança para a América significou muito mais do que o simples traslado de pessoas e recursos da metrópole portuguesa para a colônia. Requeria este processo que fosse erigido pela Coroa todo um aparato estrutural — político, institucional, jurídico, econômico, etc. — que permitisse a administração e controle de um vasto Império, que se estendia por distintos continentes, a partir de um espaço secularmente periférico. Conforme salienta Manchester (1970), a mudança da Corte para o Rio de Janeiro exigiu que se suprisse a ausência nas terras do Brasil de um arcabouço estatal complexo, processo este que não significava apenas a transposição de um governo, porém “a transferência dos elementos de um Estado soberano, que no novo cenário revestiam a forma de um sistema novo e no entanto antigo e familiar” (MANCHESTER, 1970, p. 199). O ano de 1808 marca o início de uma série de providências neste sentido, dentre as quais destacamos as voltadas ao desenvolvimento da indústria e outras artes produtivas no espaço colonial. Pretendemos neste trabalho lançar luzes a uma destas iniciativas, a construção de um arcabouço-jurídico institucional de proteção e incentivo à atividade inventiva, consubstanciado no Alvará do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809. 2. Sobre o Alvará do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809: um plano de desenvolvimento para s atividades fabris no Brasil Fazer de sua possessão na América o centro de um Império ultramarino exigia do Soberano português um rompimento com uma série de institutos coloniais a que a economia local estava submetida, e um primeiro passo neste sentido foi o franqueamento do comércio exterior, ocorrido a 28 de janeiro de 1808. Ainda naquele mesmo ano, restrições legais quanto ao desenvolvimento de atividades manufatureiras seriam anuladas, através de Alvará expedido a 1º abril.1 Outras medidas visando ao desenvolvimento autônomo das atividades econômicas na nova sede da corte bragantina seriam progressivamente adotadas a partir de então, dentre as quais se mostram importantes a criação da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, instância de controle, regulação e apoio aos setores produtivos sob sua jurisdição, e a fundação do Banco do Brasil, órgão entre cujas atribuições se incluía o gerenciamento 1 O Alvará do Príncipe Regente de 1º de abril de 1808 revogava Ato Régio anterior, datado de 5 de janeiro de 1785, que proibia a construção de manufaturas e fábricas no Brasil, à exceção daquelas voltadas à produção de panos grosseiros empregados na vestimenta de escravos, empacotamento de mercadorias e outras finalidades semelhantes. Para uma análise do Alvará de D. Maria I e seu impacto sobre o desenvolvimento das atividades produtivas no Brasil, ver Carrara Júnior & Meirelles (1996). de fundos de financiamento à produção.2 Particularmente neste trabalho, centraremos nossas atenções no Alvará de 28 de abril de 1809, ato que estabelecia uma série de estímulos ao avanço e consolidação das atividades fabris nas terras do Brasil. Já em seu preâmbulo, o ato explicita os elementos motivadores e os objetivos vislumbrados pelo Legislador com as medidas que se procurava implementar. Parece claro o atrelamento de um ideal de progresso ao desenvolvimento de atividades econômicas de natureza complexa. Tornar a antiga periferia em centro requeria civilizála, e um dos pressupostos ao sucesso de tal empresa era o engendramento de condições e oportunidades para que os meios para geração de riquezas naquele espaço se modernizassem, moldando-se aos padrões reinantes nas grandes potências européias já estabelecidas: Eu o Príncipe Regente faço saber aos que o presente Alvará com força de lei virem, que sendo o primeiro e principal objeto dos meus paternais cuidados o promover a felicidade pública dos meus fiéis Vassalos; e havendo estabelecido com estes desígnios princípios liberais para a propriedade deste Estado do Brasil, e que são essencialmente necessários para fomentar a agricultura, animar o comércio, adiantar a navegação e aumentar a povoação, fazendo-se mais extensa e análoga à grandeza do mesmo Estado [...]; tendo ouvido o parecer de ministros do meu Conselho; e de outras pessoas zelosas do meu serviço; com ampliação e renovação de muitas providências já a este respeito estabelecidas, e a fim de que tenham pronta a exata observância para a prosperidade geral e individual dos meus fiéis vassalos, que muito desejo adiantar e promover, por dependê-la a grandeza e consideração da minha real Coroa e da Nação; sou servido determinar [...] A conotação do texto é claramente modernizadora, embora seja necessário ponderar o fato do mesmo estar voltado a um sistema social marcado por suas características arcaicas, frutos não do solapamento das possibilidades de criação e desenvolvimento de instituições e mecanismos — políticos, ecômicos, culturais — de moldes modernos, capitalistas ou industriais, mas de uma opção de suas elites por um projeto de feições “pré-modernas”, baseado na preservação e valorização de um ethos nobiliárquico.3 Ainda assim, percebe-se que o fomento à indústria e às artes se apresenta no texto da lei como uma medida desejada e necessária, um meio de superação do atraso e de inserção no “mundo civilizado”, algo que era esperado do novo centro do Império português. Passemos às disposições contidas ao longo do Alvará de 28 de abril. Elegeu-se a questão tarifária como um ponto crucial a ser abordado. Se o objetivo era promover estímulos ao desenvolvimento das empresas fabris no Brasil, e estas demandavam a importação de insumos e máquinas, um primeiro passo neste sentido dar-se-ia a partir da concessão de isenções alfandegárias. Em seu parágrafo I, o ato legal determinava a dispensa de pagamento de impostos de importação sobre as matérias-primas utilizadas 2 A Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação foi criada através do Alvará de 23 de agosto de 1808, enquanto que o Banco do Brasil foi criado por ato análogo expedido a 12 de outubro do mesmo ano. Detalhes sobre estas medidas podem ser encontrados em Santos (1981, p. 215; 219-20). Já para descrição e análise do conjunto de medidas econômicas adotadas por D. João após sua chegada ao Brasil, ver Lima (1996, p. 239-69). 3 Baseamos nossa argumentação nas reflexões de Fragoso & Florentino (2001). Sobre a formação de uma elite econômica no período de emancipação de fato da colônia (1809-1821), Malerba (2000) acrescenta que a articulação de uma nobreza portuguesa migrada com uma elite mercantil colonial — comerciantes de grosso trato — engendrou a formação de uma sociedade fundamentada na persistência de ideais aristocráticos, isto é, práticas, representações e valores típicos a uma sociedade de corte do Antigo Regime, porém bastante singular, à medida em que não se apartava de seus traços coloniais mais marcantes, especialmente o escravismo. 2 na produção de bens manufaturados. A única exigência que se fazia era a de que o fabricante comprovasse o uso de todo o material adquirido com isenção de taxas em suas empresas fabris, sendo proibido seu desvio para outros usos, cabendo à Real Junta de Comércio a tarefa de fiscalização. Já no parágrafo seguinte, isentavam-se as manufaturas produzidas no Brasil de taxas de exportação. Nota-se neste ponto, como já havia demonstrado o Legislador no preâmbulo do Alvará,4 uma preocupação com um desequilíbrio extremado entre a colônia e a metrópole ocupada, isto é, um certo receio de que as medidas adotadas pudessem prejudicar excessivamente os interesses de fabricantes e comerciantes portugueses não emigrados para o Brasil junto com a Corte, principalmente aqueles estabelecidos nas praças de Lisboa e do Porto. Neste sentido, determinava também o Alvará a isenção de encargos de importação para produtos manufaturados portugueses, desde que comprovada a sua procedência reinol. Já no parágrafo VII, fixava-se um abatimento de cinqüenta por cento nas tarifas cobradas sobre a importação de insumos empregados na construção naval. Um segundo conjunto de disposições se voltava à viabilização de uma ação de intervenção direta do Estado no setor manufatureiro, a partir da instituição de políticas de compras governamentais e da disponibilização de capitais para investimentos em fábricas e empresas afins. O parágrafo III do Alvará determinava que todos os fardamentos utilizados pelas tropas reais deveriam ser adquiridos junto a fornecedores estabelecidos na colônia, criando-se com isso uma reserva de marcado para os produtores locais. Já o parágrafo V criava a “Loteria Nacional do Estado”, empreendimento que deveria funcionar como fonte de recursos pra investimentos em atividades fabris. Parte dos cabedais levantados por esta loteria — o Alvará fixava esta quantia em 60.000 cruzados anuais — deveria ser revertido para um fundo de financiamento a novas fábricas e manufaturas, estipulando-se também quais setores deveriam ser preferencialmente atendidos, no caso, a área têxtil (lã, algodão e seda) e a metalúrgica (ferro e aço). Os recursos não seriam repassados aos empreendedores sob a forma de empréstimos, mas como doações a bem do interesse público. Os beneficiados, portanto, não teriam a obrigação de restituir os recursos tomados junto ao governo, mas apenas de empregá-los integralmente em suas atividades fabris. Seria incumbência da Real Junta do Comércio a fiscalização da utilização de tais recursos, bem como sua distribuição entre os agentes produtivos, definindo-se valores e prioridades. O último instrumento de política econômica do qual se lançou mão no Alvará de 28 de abril de 1809 foi o incentivo à introdução de novos bens e processos produtivos no mercado colonial. O contínuo aprimoramento técnico da produção é um fator fundamental à sustentação e crescimento da atividade fabril, e, tendo em vista seu alcance, pretendeu-se adotar no Brasil — a exemplo do que já existia na Inglaterra, França e nos Estados Unidos — um arcabouço jurídico-institucional de proteção e estímulo à atividade inventiva. Em seu parágrafo VI, enfim, o Alvará de 1809 lançava as bases para a construção no Brasil de um sistema patentário de tipo moderno, isto é, uma estrutura legal de determinação de direitos e deveres alusivos ao desenvolvimento de soluções tecnológicas para problemas práticos enfrentados pelos agentes sociais no processo de geração de riquezas. Examinemos, portanto, de que forma se procurava fazer com que a concessão de patentes a inventores se tornasse um mecanismo de alavancagem das atividades fabris na colônia. Em meio à argumentação introdutória presente no texto, identifica-se a seguinte ponderação: “[...]tendo em consideração que deste estabelecimento se possa seguir alguma diminuição na indústria do Reino de Portugal, bem que com o andar dos tempos a grandeza do mercado e os efeitos da liberdade do comércio que tenho mandado estabelecer hão de compensar com vantagem algum prejuízo da diminuição que ao princípio possam sofrer alguns ramos de manufaturas [...]”. 4 3 3. A legislação e a lógica da concessão de patentes de invenção: apontamentos a respeito do parágrafo VI do Alvará de 28 de abril de 1809. Embora sejam escassos os registros anteriores ao período joanino, têm-se notícias de concessão de privilégios de invenção no Brasil desde o início do século XVIII. Data de 1705 o primeiro registro conhecido: a proibição do uso por terceiros, a não ser mediante pagamento previamente estabelecido — no caso, quatrocentos mil réis — ao inventor, de um “maquinismo para fazer subir água a toda distância que se quiser levar [...]” (CRUZ FILHO, 1985, p. 7-13). Tratava-se este invento de um sistema de bombas e rodas hidráulicas com função de deslocar água de uma lagoa para a edificação em que se instalava o Seminário de Belém, instituição localizada no povoado de Cachoeira, nos arredores de Salvador. O pedido de privilégio foi apresentado ao Senado da Câmara da Bahia por Bartolomeu Lourenço de Gusmão, sendo acatado e encaminhado à apreciação do Real Conselho Ultramarino, que se pronunciou favoravelmente à concessão em seu parecer de 18 de novembro de 1706. A exclusividade seria concedida ao inventor pouco depois, ratificada pela Provisão Real de D. João V, de 23 de março de 1707. Outros registros podem ser ainda encontrados ao longo do século XVIII, o que sugere que a concessão de monopólios a inventores, embora não muito significante quantitativamente, não era uma prática absolutamente incomum na colônia portuguesa na América, assim como no Reino.5 Salientamos que, no contexto do Antigo Regime, as patentes de invenção — que aqui definimos, grosso modo, como um monopólio temporário concedido a um inventor, proporcionando-lhe a exclusividade de exploração (produção e comercialização) sobre o bem por ele criado — constituíam fundamentalmente um tipo de mercê, um privilégio oferecido pelo Rei a um inventor, proporcionando a este último meios para o alcance de benefícios privados. Tão ou mais importante do que seu papel econômico, portanto, era o papel político exercido pela patente, constituindo-se em um dos elementos estruturantes da sociedade estamental. A concessão de patentes — assim como de outros tipos de monopólios, isenções, títulos, foros jurídicos diferenciados, etc. — não proporcionava apenas a geração de riqueza privada, mas também engendrava distinção social, elevação de status e, principalmente, criação e reprodução de laços de lealdade entre o inventor (beneficiado) e o Rei (benfeitor).6 Somente a partir do final do 5 Um importante estudo sobre invenções e outros avanços técnicos desenvolvidos durante o período colonial pode ser encontrado em Rodrigues (1973). 6 Na sociedade do Antigo Regime, a valorização da honra constituía-se como uma modalidade de luta social, um mecanismo para se obstaculizar a ascensão de grupos concorrentes, salvaguardado as distinções e privilégios de um segmento social específico, a nobreza (MARAVALL, 1989). Tal mecanismo, contudo, era controlado no vértice mais alto da pirâmide social, isto é, pelo Rei. Era o Soberano o controlador das vias e instrumentos de ascensão social, quem conferia a honra através da distribuição de cargos, títulos, bens materiais e outras distintas de mercês. O alcance e a manutenção da honra pressupunha o cultivo de hábitos, costumes e comportamentos próprios a um determinado estilo de vida, traços de exteriorização de uma dada forma de inserção na sociedade e de construção de laços de pertencimento a uma comunidade de sentidos. Porém, antes de tudo, pressupunha uma proximidade com o monarca — uma vez que era dele que provinham as benesses necessárias à distinção —, bem como a prestação de serviços relevantes. Logo, neste sistema social notadamente marcado pela proeminência das ligações pessoais, sobressaíam-se, em sua própria configuração organizacional, as redes de relações alicerçadas na lógica do dar e receber. O ato de conceder benefícios, de distribuir mercês, era, portanto, hierarquizante, produzindo clivagens entre o benfeitor e o beneficiado (XAVIER & ESPANHA, 1993). Segundo Mauss (1925), citado por Godelier (2001), o dom, por necessariamente engendrar retorno, criando uma obrigação do beneficiado em retribuir, continuamente constrói e reforça laços de dependência entre quem dá e quem recebe, tanto maiores quanto mais discrepantes a capacidade de dar do primeiro e a de restituir do último. Logo, quanto mais desigual é a relação entre os agentes, mais 4 século XVIII — em um contexto de crise e esboroamento do Antigo Regime — ocorreriam reconceituacões mais significativas na rationale do sistema patentário. Tendo como alicerce um conceitual jusnaturalista em ascensão,7 fortalece-se progressivamente no Ocidente, a partir de então, a interpretação da invenção como o resultado de um trabalho criativo individual, defendendo-se a justiça do pleno e exclusivo desfrute do inventor dos benefícios proporcionados por sua atividade. Neste sentido, a concessão de patentes passava a ser tomada não mais como distribuição de privilégios, recompensas por serviços prestados ao monarca, mas como uma forma de garantir o direito de propriedade privada sobre bens intangíveis, isto é, a faculdade de excluir de terceiros do usufruto dos benefícios econômicos diretos proporcionados pelo trabalho intelectual — este último, de natureza individual —, impedindo-se o proveito indevido do fruto do esforço alheio. A patente, enfim, passava ser concebida como um instrumento de salvaguarda e reconhecimento de um direito natural e particular, o de dispor exclusivamente da propriedade. É neste contexto de ampliação da concepção patentária que ocorre um processo de disseminação de legislações de patentes em boa parte do Ocidente. Não obstante o pioneirismo do caso inglês — cuja influência de ideais libertários e rompimento com a ordem absolutista ocorreria já no século XVII, com conseqüências diretas sobre a estrutura de concessão de exclusivos a inventores montada naquele país8 —, o ultimo quartel do Setecentos inauguraria um período de gênese do direito patentário em diversos países. O primeiro Patent Act norte-americano data de 1790.9 O exemplo seria seguido pela França um ano depois, com a promulgação da Loi du 7 janvier. A partir de então, a tendência de disseminação de legislações patentárias seria consolidada: “Brasil” (ainda sob a condição de colônia, em 1809); Áustria (1810); Rússia (1812); Prússia (1815); Países Baixos (1817); Espanha (1820); Bavária (1825); Sardenha (1826); profundas as relações de subordinação estabelecidas. Configuram-se e se consolidam, com isso, redes clientelares que perpassam toda a estrutura da sociedade, dando lógica ao sistema global de relações. 7 Para efeitos deste trabalho, definiremos o jusnaturalismo moderno como uma matriz de pensamento fundamentada na interpretação da realidade e ordenação do mundo a partir de uma metodologia racional e de uma referência antropocêntrica e individualista, contrapondo-se aos fundamentos ontológicos e teológicos da filosofia escolástica. Sob o ponto de vista do direito, influenciados por pensadores como Locke, Hobbes e Russeau, os jusnaturalistas modernos reformularam a concepção de direito natural consolidada por Thomás de Aquino, desatrelando os princípios e valores superiores que regem a vida em sociedade da vontade divina. Desta forma, tomavam o direito natural como um sistema construído pelo homem — a partir do desvelamento das “leis” que regem as relações sociais através de processos racionais de análise —, dotado de validade universal e perpétua. Para discussões mais aprofundadas, consultar Ximenes (2001). 8 O Estatuto dos Monopólios, promulgado pelo parlamento em 1623, já no crepúsculo do período jacobiano, consistiu em um ato legal visando à contenção e controle dos poderes régios. O ato tornava definitivamente ilegais todos os monopólios, isenções fiscais e penais, bem como outros tipos de privilégios comumente concedidos pela Coroa, com exceção dos monopólios temporários a inventores. A despeito de legalizar os exclusivos patentários, o Estatuto estabelecia, em seu parágrafo VI, regras claras e específicas para a sua concessão — esvaziando o poder de decisão do monarca. Considera-se, por isto, o Estatuto dos Monopólios a primeira legislação patentária promulgada por um Estado moderno. Antes da Inglaterra, somente a República de Veneza havia regulamentado a concessão de patentes a inventores por força de uma lei específica, esta datada de 18 de março de 1474. 9 Deve-se ressaltar que já no texto da Constituição norte-americana havia uma cláusula alusiva à proteção dos inventores e dos autores de obras artísticas e literárias. Além da formulação de uma lei específica para patentes logo após sua independência, a importância atribuída pelos norte-americanos à matéria fica também evidenciada pelo pronto estabelecimento de uma estrutura institucional específica para o tratamento das questões concernentes aos privilégios de invenção. Um estudo importante sobre o tema pode ser encontrado em WALKER, Albert. A treatise on the law of patents for inventions. 6th edition, revised and enlarged by John L. Lotsh. New York: Baker, Voorhis and co., 1929. 5 Vaticano (1833); Suécia (1834); Portugal (1837); Hannover (1847); Saxônia (1853); etc.(MACHLUP & PENROSE, 1950). É importante aqui destacar por que incluímos o Brasil no rol de países precursores na introdução de leis modernas de patentes, ainda que em 1809 — ano de promulgação do marco legal que instituiu as primeiras regulações locais concernentes aos direitos do inventor — não possamos nos referir ao Brasil como um Estado nacional. Primeiramente, as disposições presentes no Alvará do Príncipe Regente, de 28 de abril de 1809, eram única e exclusivamente voltadas para as possessões portuguesas no Novo Continente, não sendo extensivas à metrópole — à época invadida pelo exército Napoleônico — nem aos demais recantos do Império português. Em segundo lugar, mesmo após a retomada de seu controle pela dinastia bragantina, a concessão de monopólios a inventores em Portugal permaneceu como uma prerrogativa régia, um tipo de mercê (patente “pré-moderna”), não sendo expedida nenhuma lei específica para a regulamentação da matéria no país até 1837. Por último, nota-se que mesmo após a emancipação da colônia, permaneceu o estatuto joanino a vigorar no infante Império Brasileiro, sendo substituído somente em 1830 por uma lei que mantinha praticamente intactos os princípios e regras inauguradas dois decênios antes. Enfim, ainda que não se possa considerar o Brasil de 1809 como um país — e eis a razão pela qual apresentamos o termo entre aspas alguns parágrafos acima —, para efeitos deste trabalho considera-se válida sua inclusão no rol dos precursores na adoção de legislações patentárias, uma vez identificada uma total continuidade entre as legislações de 1809 e 1830, alicerces de um sistema único e integral de proteção à atividade inventiva, vigente por quase todo o Oitocentos. Partamos, pois, para a análise do parágrafo VI do Alvará de 28 de abril de 1809, objeto principal deste estudo. Nele foram estabelecidas as primeiras normas voltadas à concessão de patentes de invenção no Brasil, resumidas nos seguintes termos: Sendo muito conveniente que os inventores e introdutores de alguma nova máquina e invenção nas artes gozem do privilégio exclusivo, além do direito que possam ter ao favor pecuniário, que sou servido estabelecer em benefício da indústria e das artes, ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso apresentem o plano de seu novo invento à Real Junta do Comércio; e que esta, reconhecendo-lhe a verdade e fundamento dele, lhes conceda o privilégio exclusivo por quatorze anos, ficando obrigadas a fabricá-lo depois, para que, no fim desse prazo, toda a Nação goze do fruto dessa invenção. Ordeno, outrossim, que se faça uma exata revisão dos que se acham atualmente concedidos, fazendo-se público na forma acima determinada e revogando-se todas as que por falsa alegação ou sem bem fundadas razões obtiveram semelhantes concessões. Este parágrafo expressava, de uma forma simples, direta e condensada, toda a rationale do sistema patentário que ora se implementava, suas funções, objetivos e estrutura de funcionamento. Do ponto de vista formal, determinava o estatuto: a) os objetivos da proteção patentária — recompensar os inventores pelos serviços por eles prestados e incentivar o avanço da indústria e das artes; b) os requisitos necessários à concessão do privilégio — apresentação de uma descrição do invento (no texto do Alvará definido como “plano”) à Real Junta de Comércio, que avaliaria o objeto da invenção quanto a sua novidade e veracidade; c) o período da exclusividade — 14 anos; d) as obrigações do privilegiado — utilizar efetivamente o monopólio, fabricando o produto. 6 Em suma, apresentava o sistema de proteção patentária erigido por D. João a partir deste estatuto de 1809 a seguinte dinâmica de funcionamento: os interessados em obter privilégios faziam um requerimento à Real Junta de Comércio, no qual, obrigatoriamente, deveriam constar informações a respeito do objeto da sua invenção, tais como sua utilidade, a descrição de seu funcionamento, sua superioridade em relação a artes ou máquinas já existentes, etc. Aquela instituição era dotada de um Tribunal, composto por Deputados, que avaliaria o mérito do requerimento de acordo com as determinações legais, ou seja, novidade, utilidade e veracidade do invento. Um dos membros do Tribunal do Comércio, após ser designado por Portaria específica como “Inspetor das Fábricas”, ficaria com o encargo de realizar um exame preliminar, encaminhando um parecer primeiramente a um outro membro específico do Tribunal, o “Desembargador Fiscal”, que após emitir uma segunda opinião encaminharia o requerimento, acrescido dos dois pareceres, à avaliação do plenário do Tribunal. Apesar de sua plena inserção no processo de concessão de privilégios, o Tribunal do Comércio não era um órgão deliberativo, e sim consultivo; a concessão permanecia sendo um ato da autoridade máxima do Estado.10 Sob o aspecto conceitual, pode-se depreender que este primeiro regulamento sobre patentes no Brasil consagra os princípios que determinariam as feições do sistema de exclusivos durante grande parte do Oitocentos. Fica clara no texto a idéia de que o privilégio patentário era interpretado como um instrumento de fomento à atividade econômica, de promoção do bem-estar social, uma vez que a exclusividade temporária aos “inventores e introdutores de alguma nova máquina e invenção” serviria como um tipo de incentivo ao desenvolvimento das artes e da indústria. A introdução de novos produtos, técnicas e instrumentos, portanto, era vista como um objetivo a ser alcançado e a patente se mostrava como um instrumento eficiente para tal empresa. Entretanto, se o atendimento de um interesse do Estado ficava bem explícito como fundamento do sistema patentário, o interesse do inventor não era apresentado de uma forma secundária ou como mero corolário. A patente era concebida também como a ratificação do direito de todo indivíduo à propriedade do resultado de suas invenções. Logo na introdução do parágrafo isso fica bem claro, quando o Legislador salienta a conveniência e a justiça do gozo, por parte do inventor, dos benefícios proporcionados por seu trabalho intelectual, apresentando-se a exclusividade como uma forma de contemplá-lo. Neste sentido, o privilégio patentário fazia justiça ao indivíduo, premiava seu esforço e impedia que suas idéias fossem utilizadas por terceiros sem a sua conivência ou autorização. Deve-se salientar, contudo, que o direito de propriedade do inventor sobre sua criação não era concebido como algo incondicional. Era preciso que o fruto de seu trabalho, sua invenção, merecesse ser protegida, que proporcionasse benefícios à coletividade que justificassem a posição privilegiada que o inventor desfrutaria no mercado com sua patente. O mérito, portanto, condicionava o direito à propriedade, e a própria norma legal estabelecia elementos objetivos para sua mensuração. Somente um objeto absolutamente novo e que tivesse alguma utilidade prática, ou seja, que aperfeiçoasse o estado das artes apresentando soluções mais eficientes para problemas pré-existentes, seria apto a ser protegido, cabendo ao Estado avaliar tais condições a partir de um exame prévio. O princípio do mérito é ainda reforçado ao final do Parágrafo VI, em que há o estabelecimento de uma ampla revisão dos privilégios vigentes, de forma a revogar todos aqueles que fossem considerados “imerecidos”. É importante ainda notar que o Alvará estabelece a obrigatoriedade da exploração do objeto protegido, ou seja, que o inventor ou alguém por ele autorizado efetivamente 10 A descrição das fases do processo de patenteamento no período foi construída com base em informações presentes em Rodrigues (1973, passim). 7 transforme a invenção — solução tecnológica para um dado problema — em inovação — aplicação prática da informação tecnológica —, que transite da abstração do processo criativo para realidade “concreta” do mercado. Só se transformando em produto, técnica ou instrumento o processo criativo se completava, sendo merecedor de proteção. Por último, a exigência de descrição e a determinação do intervalo temporal de validade da exclusividade ratificavam uma limitação do direito à propriedade: seu gozo não era absoluto, pois a expiração da proteção patentária tornava a invenção de domínio público, podendo ser explorada por qualquer pessoa. Mais do que isso, a exploração era de certa forma até incentivada, uma vez que a informação técnica referente ao objeto não podia ser salvaguardada pelo inventor por meio do segredo (a descrição era obrigatória). Percebe-se que a estrutura patentária montada a partir da promulgação do Alvará de 1809 baseia-se em uma compilação de dispositivos presentes em três legislações patentárias que lhe precederam — no caso, as leis inglesa, francesa e norte-americana.11 Entretanto, esta utilização de fundamentos teórico-doutrinários exógenos não se deu como mera importação, uma reprodução mimética de conceitos jurídicos pré-existentes. Estes teriam sido absorvidos, reinterpretados e adaptados, afastando-se de sua rationale original. Uma de suas singularidades mais marcantes é o tratamento dispensado ao direito de propriedade do inventor. Nas legislações estrangeiras supracitadas, fortemente influenciadas por concepções jusnaturalistas, conforme anteriormente comentado, a propriedade era tomada como um direito absoluto do indivíduo, congênito, natural, não dispondo o Estado de um significativo poder de intervenção ou regulação sobre seu desfrute. Ao contrário do que foi montado no Brasil em 1809, em nenhum daqueles sistemas patentários era previsto o processo de exame-prévio.12 Logo, o Estado não era tomado como uma instância concessora do direito, mas apenas como sua mantenedora, isto é, responsável pela criação das condições necessárias ao pleno gozo da exclusividade, salvaguardando a inviolabilidade da propriedade privada. Em tais países, não cabia ao Estado julgar se havia ou não mérito na invenção, se o desfrute do monopólio pelo inventor era de fato justo. Uma vez concluído o processo inventivo e requerida pelo inventor a patente, a concessão era automática, só cabendo contestação pela via judicial. Já no caso da estrutura patentária brasileira, nota-se uma mescla de elementos “modernos” — influenciados pelo jusnaturalismo e pelo liberalismo — e “arcaicos” — permanências do sistema vigente durante o Antigo Regime. Se, por um lado, o interesse do indivíduo é valorizado e concebido como uma das razões da existência da proteção patentária, sendo justo impedir-se que o trabalho intelectual de qualquer pessoa fosse utilizado por terceiros contra a sua vontade, por outro, esse direito não era absoluto, estando submetido a uma forte regulação do Estado. O direito de exclusão proporcionado pela propriedade privada só se torna desfrutável a partir do momento que o Estado o concede, e isto é condicionado ao atendimento de uma série de requisitos. Segundo Rodrigues (1973), o principal artífice do alvará de 1809 teria sido José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, ilustre economista e estadista do período. De fato, ao observarmos alguns dos textos produzidos por Cairu, podemos perceber claramente que em toda a sua argumentação estão presentes as principais idéias dispostas no texto do Alvará de 1809. Mais do que isso, suas reflexões constituem uma verdadeira apologia do sistema de proteção patentária, sendo desenvolvidos de uma forma bem Sobre o “Estatuto dos Monopólios” de 1623, ver Walker (1929). Sobre o Patent Act de 1790, sugerimos a leitura de Khan (2005). Já sobre a Lei francesa de 1791, ver Pouillet (1915). 12 O sistema de patentes norte-americano incorporaria o processo de exame prévio somente a partir de 1836. 11 8 sistemática os elementos teóricos para sua justificação. Pode parecer paradoxal, a princípio, que um pensador considerado como o introdutor da economia política no Brasil, bem como um de seus principais defensores e divulgadores, seja responsável pela elaboração de um estatuto legal que parece ser uma interpretação sui generis do individualismo econômico smithiano; entretanto, argumentam Novais & Arruda (1999) que, apesar da fundamental e explícita influência de Smith sobre o pensamento do político baiano, [...] Cairu não se diferencia muito dos ilustrados luso-brasileiros, marcados por um estridente ecletismo, que misturavam idéias fisiocráticas, mercantilistas e elementos da economia política clássica inglesa, mescla esta que poderia ser denominada por mercantilismo ilustrado. Seu texto [...] busca a adequação de todos os princípios às necessidades imediatas e reais do mundo colonial, em sua dimensão política econômica e social (NOVAIS & ARRUDA, 1999, p. 17). Analisemos, então, um pouco do pensamento de Cairu, expresso em suas Observações Sobre a Franqueza da Indústria. Fica claro em vários pontos do texto o antagonismo do autor à utilização de monopólios como instrumentos de promoção da atividade econômica. Logo no início de sua reflexão, Cairu apresenta seu posicionamento quanto à melhor forma de desenvolvimento das atividades fabris no país: Em matéria de fábricas, há dous escolhos igualmente fatais ao progresso da fortuna particular e pública: um consiste em não se dar plena franqueza à indústria para estabelecimento de manufaturas, o outro consiste em introduzir estas por privilégios e favores extraordinários (CAIRU, 1999, p.51). E justifica: Quem for hábil, e não temerário, projetista de fábricas, tem consigo o inauferível e natural privilégio exclusivo, que lhe dá a superioridade de sua indústria e capital para excluir o competidor sem força, nem injúria, servindo em suas obras melhor e mais barato ao público: este então espontaneamente o preferirá na compra e será constante freguês, que à porfia de outros compradores, lhe segurará extenso, progressivo, e lucroso mercado, metendo antes empenho para ser preferido na venda, pagando o distinto préstimo e mérito com ampla liberdade. [...] Alterando-se esta regra, além de ofender a justiça e o decoro da soberania, que presta igual e imparcial proteção a todos os seus vassalos, a força do exemplo de uns animaria a ousados pretensores para requererem semelhantes mercês injuriosas à comunidade. [...] Assim o Brasil ficaria encadeado com monopólios de mil títulos e pretextos, e se frustraria o imenso benefício da franqueza da indústria, [...] e permaneceria o estado privado por muitos séculos [...] de inúmeras fábricas úteis que com o andar dos tempos se poderiam ir estabelecendo gradualmente, segundo a demanda, população e riqueza do país (Idem, p. 48). O fato de ser um legítimo defensor do livre-cambismo e da franqueza da indústria não se contrapõe, entretanto, à sua aceitação e defesa da existência de um único tipo de privilégio, considerado, ao contrário dos demais, lícito e benéfico ao progresso dos povos: o concedido aos inventores e introdutores de novas máquinas e técnicas. O embasamento teórico ele busca em Jean Baptiste Say, em seu Tratado de Economia Política: Em Inglaterra, quando um particular inventa um produto novo, ou descobre um processo (método de trabalho) desconhecido, ele alcança um privilégio exclusivo de 9 fabricar este produto, ou de servir-se deste processo: a carta é chamada Patente de invenção. Como não há concorrentes nesta produção, ele pode levantar o preço muito acima do que seria necessário para o reembolsar de seus avanços com interesses, e ter proveitos da sua indústria. É uma recompensa que o governo concede à custa dos consumidores do novo produto; [...] Quem poderia racionavelmente queixar-se de semelhante privilégio? Ele não destrói, nem grava ramo algum de indústria precedentemente conhecida. As despesas da compra do novo produto não são pagas senão por quem as quer; e quanto aos que não querem faze-las, as suas carências, de necessidade, ou de agrado, não são menos completamente satisfeitas que antes (SAY, 1803 Apud CAIRU, 1999, p. 72-3). A atividade inventiva, segundo Say, deveria ser incentivada e premiada, não deixada à própria sorte, de forma que o progresso material da sociedade ficasse a cargo do acaso. “Honra seja aos homens que têm despendido os seus réditos em tão úteis consumos! [...] Estes homens pelos seus inventos fazem a seus concidadãos, e ao mundo inteiro, presentes que muito excedem o valor que estes retribuem [...]” (Idem, p. 74). A exclusividade concedida aos inventores é, portanto, válida, justa e benéfica, desde que esteja submetida a limites e de maneira alguma extrapole os interesses do bem comum. Desta forma, acrescenta: [...] o inventor do novo produto não pode privar para sempre aos industriosos nacionais da vantagem de empregarem uma parte de seus capitais e de sua indústria a este produto; nem os consumidores de se proverem dele ao preço em que a concorrência o possa baixar (Idem, p. 73). Se o objetivo da patente é garantir a satisfação dos interesses do inventor, por um lado, ressarcindo-o de os seus esforços intelectuais e financeiros, e o progresso geral das artes e da indústria, a limitação do período de validade do privilégio faz com que ambos os objetivos sejam contemplados. Expirado o tempo em que o inventor usufruiria exclusivamente do resultado de seu trabalho, auferindo um lucro justo, o conhecimento dominado pelo inventor, que o permitiu alcançar o produto de sua invenção, seria dividido com toda a sociedade, tornando-se público, permitindo que os benefícios por ele oferecidos se multiplicassem e criando condições para a criação de novos inventos ou melhoramentos. Em suma, o privilégio deveria durar tão somente o tempo suficiente para indenizar o esforço, os custos e os riscos do inventor. Findo este prazo considerado justo “tal privilégio não seria mais do que um dom que se faria gratuitamente à custa de seus concidadãos, que têm recebido da natureza o direito de se procurarem as mercadorias que precisam [...] e ao mais baixo preço possível” (Idem). Fica evidenciado que Cairu, baseado em Say, não interpretava a propriedade do inventor sobre sua criação como um direito incondicional. Da mesma forma, sua objeção a práticas protecionistas, subvencionistas ou monopolísticas não era absoluta, pois também admitia exceções. Em relação ao primeiro fator ele nos deixa algumas boas evidências. Cairu acena favoravelmente tanto à limitação do prazo de exclusividade — “findo este é livre a todos o uso da nova invenção [...] pois então já não se pode chamar privativa propriedade de pessoa alguma [...] mas doado da cidade e pertencente da família do gênero humano” (CAIRU, 1999, p. 79) — quanto a restrições em relação às categorias e naturezas dos objetos passíveis de proteção patentária — “nas invenções de transcendente vantagem à nação, melhor seria, que o governo comprasse o invento, e 10 desse competente prêmio ao inventor, fazendo logo publicá-lo a bem da humanidade” Idem).13 Quanto ao segundo fator, referências também não faltam: Não convém (por via de regra) dar privilégios exclusivos aos que não são inventores e introdutores de novas máquinas, e invenções nas artes; mas é racionável darem-se alguns especiais auxílios e favores aos primeiros introdutores de grandes máquinas (Idem, p. 35). Ou ainda um outro exemplo: Não digo que os primeiros introdutores que fazem o traspasso de grandes máquinas e invenções dos estrangeiros, ainda depois de estarem constituídas de direito público em as nações respectivas [sem novidade], não sejam mui especiais servidores e beneméritos de sua pátria, por este fato útil ao país. Porém a lei já providenciou ao caso na generalidade da regra, que manda à Real Junta do Comércio dar socorros pecuniários aos introdutores e industriosos de especial merecimento (Idem, p. 84). Caso consideremos a participação direta de Cairu no processo de elaboração do Alvará de 1809 — e os vários indícios acima comentados o sugerem —, seremos obrigados a admitir, contudo, que em pelo menos uma questão seus argumentos não teriam prevalecido, uma vez que se pode observar um total desacordo entre a letra da lei e as idéias por ele defendidas. Trata-se do requisito do exame prévio. Conforme discutido anteriormente, o Alvará determinava que a concessão da exclusividade estivesse condicionada ao mérito da invenção (novidade, exeqüibilidade e utilidade), e em função de tal julgamento deveria o invento ser examinado previamente por autoridades para este fim constituídas. Pois bem, era novamente baseado em Say que Cairu se contrapunha a esta exigência. Afirmava o economista francês: Não é de modo algum necessário que a autoridade pública discuta a utilidade de processo, ou a sua novidade. Se não é útil, tanto pior é para o inventor. Se não é novo, todo mundo é admitido a provar que ele era conhecido, e que cada um tinha direito de se servir dele; e isso também é péssimo para o que se disse inventor; pois que lhe é tirado o privilégio, e fica prejudicado por pagar inutilmente as despesas da chamada Patente de invenção (SAY, 1803, apud CAIRU, 1999, p. 74). [Grifos do autor] Cairu segue a mesma linha argumentativa em suas Reflexões sobre o modo de executar a concessão do privilégio exclusivo aos inventores e introdutores de nova máquina ou invenção nas artes. Para ele “[...] não há inconveniente em se conceder logo o exclusivo, sendo a invenção nova, ainda que pareça de pouco momento ou inverossímil” (CAIRU, 1999, p. 115). Não haveria prejuízo nem a indivíduos específicos nem à coletividade, já que qualquer um e em qualquer momento poderia pôr em dúvida o mérito do privilégio, que por sua vez ficava passível de revogação. Cita o sistema inglês de concessão de patentes de invenção como exemplo da aplicabilidade de tal conceito: 14 naquele país, “[...] o governo não nega a pessoa alguma o uso da sua Em relação a inventos relacionados à saúde pública — e aí cita a inoculação da vacina e a purificação do ar através do ácido nítrico — Cairu acrescenta: “É evidente o quanto seria egoístico, e desumano, requererem-se privilégios exclusivos em objetos desta natureza, e importância”. É interessante como quase duzentos anos depois este assunto permanece no centro dos debates ético-jurídicos sobre o sistema de patentes. 14 Além da Inglaterra, outro país que não adotava àquela altura o exame prévio era os Estados Unidos. É certo que a lei norte-americana em muito havia se inspirado na lei inglesa; no entanto, em seus primeiros tempos a legislação exigia o exame de mérito da invenção. Três anos depois da promulgação do Patent 13 11 asserta nova invenção; e isto sem exame preliminar, pois fica sempre a todo o mundo salvo o direito de contestar a novidade ou provar a sua publicidade em país comerciante” (Idem, p. 115). Desenvolve, então, a defesa da inutilidade do exame prévio a partir dos seguintes argumentos: a incompetência dos tribunais para efetuar o exame, devido à impossibilidade de conhecimento e domínio por parte de seus integrantes de todo o estado das artes; a exposição do segredo da técnica sem a garantia do privilégio poderia desestimular a busca por patentes e até mesmo a própria atividade inventiva; o risco de uma avaliação injusta por parte das autoridades ou especialistas em função de questões pessoais ou profissionais; a pouca afinidade existente entre teóricos e práticos, que poderia provocar vícios nos exames, caso fossem colocados a cargo dos primeiros. O fato de a argumentação de Cairu não ter prevalecido reforça a hipótese anteriormente levantada, a de que a questão da proteção patentária não teria sido de forma alguma tratada de uma forma simplista no período, pura “importação” de conceitos já consolidados na Europa ou adequação a exigências que a abertura ao comércio internacional ocorrida em 1808 teria suscitado. A discrepância entre a legislação brasileira de patentes e suas congêneres no período — inglesa, norteamericana e francesa —, que não estabeleciam exame de mérito (o direito do indivíduo à propriedade de seu trabalho intelectual era prévio e inviolável, não sendo legítimo ao Estado contestá-lo, mas apenas efetuar sua regulação), sugere um quadro muito mais complexo de formação e circulação de idéias econômicas. Deve-se ressaltar, por último, o exame prévio suscitou, desde os primeiros tempos de sua execução, uma série de dificuldades práticas. Conforme havia argumentado Cairu desde 1810 em suas Observações sobre a franqueza da indústria, a avaliação do mérito da invenção, especialmente quanto aos requisitos da novidade e da exeqüibilidade, não era uma tarefa fácil, e os problemas nela envolvidos podiam mesmo pôr em dúvida sua eficiência. Em algumas situações, penosa era, para os Deputados do Tribunal do Comércio, a tarefa de apreciação do ineditismo de uma invenção, dada a ausência de informações sólidas sobre o estado das artes em todo o mundo, uma vez que o critério exigido por lei era o da novidade absoluta, não a restrita territorialmente (novidade relativa). Desta forma, passou, já no contexto do Brasil indenpendente, a lançar mão o governo da colaboração de órgãos da sociedade civil para a execução dos exames dos pedidos de patentes, repassando esta atividade a especialistas nos assuntos das artes, técnicas e ciências. Estes desempenhavam um papel consultivo, devendo se posicionar quanto ao mérito do pleito, prestando auxílio, desta forma, às autoridades envolvidas no processo decisório. O decorrer das duas décadas seguintes ao Alvará em pouco modificaram o quadro da proteção patentária no Brasil. A matéria permanecia mantendo sua relevância tanto no campo jurídico quanto no econômico, principalmente à medida que vários países europeus passavam a adotar o sistema de privilégios sob sua forma moderna. A estrutura de patenteamento montada a partir do alvará de 1809 — ratificada e aperfeiçoada posteriormente, com o promulgação da lei de Patentes de 1830 — ter-se-ia sustentado até a década de oitenta daquele século, quando a legislação sofreria mudanças substanciais. Por pressão de inúmeras críticas — recrudescidas principalmente a partir da década de 1860 —, a Lei de Patentes seria, a 28 de agosto de 1882, revogada e substituída por um estatuto mais afinado aos princípios que fundamentavam os sistemas patentários vigentes nas principais potências européias e nos Estados Unidos. Sob o estímulo das questões levantadas no bojo dos debates Act esta disposição seria revogada, passando a ser exigido a partir de então somente o exame formal do requerimento. Para maiores detalhes ver Rodrigues (1993, p. 557, nota 19) e Cruz Filho (1996, p. 141-2). 12 internacionais no período e pela formulação do primeiro Tratado Internacional sobre patentes — a Convenção da União de Paris —, o arcabouço jurídico de patentes do Brasil seria reestruturado, efetuando-se, entre várias outras mudanças, o abandono da prática do exame prévio (exceto para produtos alimentares, químicos e farmacêuticos). A lógica da proteção patentária no país migraria, no final do século, da ênfase ao mérito para a ênfase à garantia do direito individual à propriedade. 4. Considerações Finais Frisamos que a ênfase deste trabalho recai sobre a montagem e a disposição de uma dada estrutura de proteção à atividade inventiva no período joanino, estando nosso esforço de análise voltado principalmente para os fundamentos teóricos e doutrinários que justificavam e legitimavam a instituição de marcos regulatórios para o campo da propriedade de bens imateriais (conhecimento, tecnologia). Deve-se ressaltar, contudo, que entre o conceitual jurídico-econômico em vigor e sua aplicação na prática social pode haver um hiato considerável. De fato, uma investigação preliminar aponta que as discrepâncias entre o modelo jurídico e seu funcionamento real podem ter sido significativas, embora a confirmação de tal hipótese requeira um enveredamento por searas de pesquisa e reflexão que extrapolam os limites e objetivos do trabalho aqui proposto. Atendo-nos, portanto, à análise do conjunto de idéias e valores de ordens jurídica e econômica que serviram como base para a introdução e desenvolvimento de um sistema moderno de patentes no Brasil, percebemos que sua lógica é facilmente identificável. O privilégio aos inventores era considerado como um importante instrumento de fomento à atividade inventiva, premiando o indivíduo pelos esforços e recursos despendidos no processo criativo e promovendo o progresso material da sociedade, à medida que incentivava, pela expectativa de lucro, a introdução constante de novos produtos e métodos de produção no mercado. Todavia, ao contrário de sistemas patentários estrangeiros que lhe precederam — centrados justamente na salvaguarda do direito de propriedade do inventor —, era o mérito da invenção o fundamento primeiro da lógica da proteção patentária no Brasil. O direito de apropriação privada sobre bens imateriais era considerado como justo e legítimo, porém seu pleno desfrute deveria estar condicionado ao prévio atendimento dos interesses do Estado. Mostra-se digno de nota, portanto, o fato da estrutura patentária montada no Brasil no período joanino — e mantida sem maiores alterações até o crepúsculo do Segundo Reinado — ter-se caracterizado por uma superposição de elementos jurídicoeconômicos modernos e pré-modernos, isto é, de conceitos e valores tipicamente liberais — como a inviolabilidade do direito privado de propriedade — e de práticas e referências próprias a sistemas sociais pré-capitalistas — como a concepção do Estado como provedor de benefícios (mercês) e condicionador do exercício da liberdade individual. Distava-se, desta forma, a estrutura patentária montada no Brasil de suas congêneres na Europa e nos Estados Unidos. Um outro aspecto importante a salientar é a precocidade da adoção de um sistema de patentes no Brasil, considerando as características arcaicas de sua economia no período. Não se pode afirmar que aqui, ao contrário do ocorrido em outros países, a introdução de um sistema de proteção à atividade inventiva bem definido por lei tenha sido resultado de demandas e pressões provenientes dos setores produtivos, uma vez que sua aplicação prática e seus efeitos sobre a atividade econômica foram muito pouco significantes. Se tomarmos o interstício 1809-1830, período de vigência das disposições do Parágrafo VI do Alvará de 28 de abril de 1809, apenas 20 patentes de invenção foram concedidas no Brasil, número que se comparado com as concessões ocorridas no 13 mesmo período, por exemplo, nos Estados Unidos, país cujo nível de desenvolvimento econômico não se mostrava tão dispare, mostra-se bastante modesto.15 A construção de um sistema patentário de tipo moderno, assim como todas as demais medidas implementadas através do Alvará de 1809, mostraram-se pouco úteis ao progresso das atividades fabris no Brasil, conforme atestam as pesquisas efetuadas por Carrara Júnior & Meirelles (1996), em que são elencadas as iniciativas de montagem de empresas manufatureiras desde a década de 1810 a meados daquele século. Mais uma vez, deparamo-nos com números pouco significativos, o que se mostra compreensível em uma economia na qual os excedentes eram maciçamente convertidos em terras, homens e bens simbólicos de distinção. Esta é, por sinal, a problemática principal a nos desafiar no estudo de tal tema: como encarar um estatuto que se propunha modernizador em uma sociedade que não pretendia ser moderna, pelo menos no que tange à sua organização econômica. A compreensão das distintas dimensões de um ideal civilizatório, isto é, uma convicção sobre a inserção da sociedade luso-brasileira no mundo cristão ocidental, pode ser um caminho a se seguir à procura de respostas. Reivindicar um lugar na civilização era apontar para os laços com a Europa, assumindo-se o Brasil como um legítimo herdeiro da ilustração. Ora, nada mais típico das luzes do que a valorização do progresso material, técnico e científico. Cremos que justamente aí se encaixa a montagem de um constructo jurídico próprio a sistemas econômicos modernos e complexos, como o caso do arcabouço patentário ou mesmo outras formas alternativas de proteção e incentivo à atividade inventiva, em um sistema econômico distinto e peculiar, onde as condições pareciam não favorecer nem demandar a sua aplicação. 15 De acordo com levantamento efetuado por Khan (2005), entre 1809 e 1830 foram concedidos nos Estados Unidos 5.542 patentes a inventores. No mesmo período, teriam sido concedidas 4.144 patentes na França e 2.729 na Inglaterra. Deve-se ressaltar, conforme discutido anteriormente, que nestes países inexistia o processo de exame prévio, sendo todos os pedidos de patentes concedidos automaticamente. Apenas na Inglaterra o processo era mais burocratizado — em função das múltiplas instâncias pelas quais o inventor deveria passar para ter sua patente concedida — o que talvez explique o fato da economia mais dinâmica entre as três acima citadas apresentar o índice mais baixo de patenteamento. A despeito das diferenças entre estes sistemas e o vigente no Brasil, percebemos que a discrepância dos números é absurda. 14 Bibliografia CAIRU, José da Silva Lisboa, [Visconde de] (1999). Observações sobre a franqueza da indústria, e estabelecimento de fábricas no Brasil. Brasília: Senado Federal,. [edição original de 1810]. CARRARA JÚNIOR, Ernesto, MEIRELLES, Hélio (1996). A indústria química e o desenvolvimento do Brasil (1500-1889). São Paulo: Metalivros. CRUZ FILHO, Murillo (1985). Bartolomeu Lourenço de Gusmão. Sua obra e o significado fáustico de sua vida. Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox. ______. A norma do novo: fundamentos do sistema de patentes na modernidade (1996). 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