Batista Jr., Paulo Nogueira. “Desdolarização avança na Argentina”. São Paulo: Folha de São Paulo, 24 de janeiro de 2002. Jel: E, F Desdolarização avança na Argentina Paulo Nogueira Batista Jr. Terminei o artigo da semana passada perguntando se poderia voltar a falar da Argentina hoje. Recebi diversos telefonemas e e-mails carinhosos dando endosso total. E não houve voto contrário. Foi a consagração do obsessivo. Thomas Mann escreveu certa vez que uma das deformações típicas do escritor é a pretensão de ser aceito de forma irrestrita, não só pelas suas qualidades como pelos seus defeitos. E o curioso é que, às vezes, o público aprova e realiza essa pretensão. Não há, é claro, mérito em ter idéias fixas. O idiota, na sua marcha avassaladora e irresistível, já invadiu há muito tempo o território da obsessão. Esse território está hoje solidamente ocupado por cretinos de todos os naipes, crenças e ideologias. Qualquer um de nós conhece obsessivos exemplarmente idiotas, que babam profusamente na gravata e que, se caírem de quatro, pastam. Mas é que este obsessivo aqui andou tendo os seus pequenos contratempos. Agora no início do ano tirei duas semanas e viajei. Pretendia esquecer um pouco os meus assuntos habituais (juro). A Argentina, em crise aguda, não deixou. As pessoas com quem convivi nessas semanas ficaram saturadas e imploravam uma trégua: "Basta de "hermanos'!". A verdade é que quase ninguém tem paciência com as fixações dos outros. A paciência que existe é, em geral, simulada, uma esperança de obter reciprocidade para as próprias fixações. Assim, agradeço, penhorado, aos que escreveram e telefonaram. Vamos então aos "hermanos". Desde a semana passada, a Argentina deu mais alguns passos na direção certa. Por exemplo, a mais recente flexibilização do "corralito" (bloqueio de contas bancárias) veio associada a uma pesificação parcial dos depósitos. Até uma certa soma (US$ 5.000), o depositante poderá dispor do dinheiro (por meio de cheques, cartões de crédito ou cartões de débito) se estiver preparado a converter o seu depósito de "argendólares" para pesos à taxa de câmbio oficial (1,4 peso por dólar). Outra decisão significativa foi a aprovação pelo Senado da nova carta orgânica do Banco Central, que desvincula a emissão de moeda nacional das reservas internacionais e habilita a autoridade monetária a funcionar como emprestador de última instância para o sistema financeiro. Mais importante: o presidente Duhalde veio a público reconhecer que não poderá honrar a sua promessa inicial de devolver em dólares os depósitos denominados nessa moeda. A tentativa de cumprir a promessa, ainda que em parte, vinha tumultuando consideravelmente a reforma monetária em curso, como vimos no artigo da semana passada. O governo agora anuncia que está preparando uma pesificação ampla da economia. É o que precisa ser feito e com urgência. O mais recomendável é que a desdolarização seja total ou quase total para as operações financeiras e os contratos domésticos, isto é, entre residentes na Argentina. As exceções devem ser poucas e bem delimitadas (por exemplo, as operações explicitamente vinculadas a repasse de recursos externos ou, talvez, títulos internos amarrados contratualmente a títulos colocados no exterior). Ficaria proibido, com poucas ressalvas, o uso de moedas estrangeiras em transações e contratos dentro do país. Essa desdolarização é uma das condições para desmontar aos poucos o "corralito" e destravar o funcionamento do sistema financeiro e da cadeia de pagamentos. Depois de convertidos em moeda nacional, os depósitos poderão ser desbloqueados com mais rapidez, pois estarão expressos em uma moeda emitida na Argentina por um banco central que poderá, como todos os bancos centrais modernos, servir de emprestador de última instância para o resto do sistema bancário. Evidentemente, a emissão de pesos terá que ser controlada com rigor para evitar pressões exageradas sobre a taxa de inflação e a taxa de câmbio. Isso significa manter a disciplina fiscal e, de uma forma geral, administrar com cuidado a expansão das operações ativas do BC. Nas circunstâncias atuais, o melhor seria criar liquidez em pesos (para recapitalizar o sistema financeiro local, por exemplo) com respaldo em reservas cambiais adicionais (oriundas, por exemplo, de apoio financeiro externo de fontes oficiais ou de aportes das matrizes estrangeiras de bancos que operam na Argentina). Como compensar os depositantes pela desdolarização? Repactuando as taxas de juro de forma a proteger os depósitos pesificados contra a inflação interna e assegurar um rendimento real razoável. Seria conveniente criar alguma forma de indexação. Isso implica revogar o artigo da Lei de Emergência Pública e de Reforma do Regime Cambial, aprovada pelo Congresso nos primeiros dias do governo Duhalde, que proibiu a atualização monetária e a indexação por preços. Como nós, brasileiros, estamos cansados de saber: há três modalidades básicas de indexação: a) a indexação por índices de preços; b) a indexação a taxas de juro de curto prazo; e c) a indexação cambial. A última fica excluída, por suposto. Também deve ser excluída a indexação por índices de preços no atacado ou outros índices muito sensíveis à flutuação da taxa cambial (condição que, no Brasil, nem sempre foi respeitada, diga-se de passagem -vide alguns contratos referenciados ao IGP ou ao IGP-M com empresas privatizadas de serviços públicos). A indexação por índices de preços (ao consumidor) poderia ser autorizada para contratos e operações financeiras de prazo superior a um ano. Por exemplo, para aluguéis e créditos hipotecários. A indexação a taxas de juro, isto é, o uso de mecanismos de taxa flutuante (como o que vigora com base na libor nos mercados financeiros internacionais) poderia ser autorizada também para as operações financeiras de curto prazo. Nada disso é simples de implementar, particularmente nas condições mais ou menos caóticas da Argentina. Mas é o caminho que parece oferecer a perspectiva de restauração gradual da soberania do país e da autonomia da sua política econômica. O espaço acabou de novo. Nem deu tempo de falar na dívida externa argentina, problema que já era grave em 2001, ficou mais complicado depois do abandono da paridade com o dólar e se tornará provavelmente ainda mais difícil com a flutuação da taxa cambial. Mas não volto ao assunto semana que vem. Tudo tem limite. E não convém abusar.