O positivismo jurídico e a lei de Hume (*) José de Sousa Brito I. Como o positivismo jurídico baseou uma ciência descritiva do direito na distinção de Hume entre ser e dever ser: Bentham, Kelsen, Hart Jeremy Bentham, que tenho como o pai fundador do positivismo jurídico, reconhece por mais de uma vez a sua grande dívida para com David Hume. No seu primeiro livro, A Fragment on Government, Bentham refere-se à leitura do terceiro volume do Treatise of Human Nature como uma espécie de iluminação: «Bem me recordo como diz-nos -, mal acabara de ler aquela parte da obra que aborda o assunto - toda a passagem versa sobre a questão do contrato original -, senti que me caíam as escamas dos olhos .» E resumindo: «Aprendi a ver que a utilidade era teste e medida de toda a virtude; da lealdade como de outra qualquer; e que a obrigação de contribuir para a felicidade geral era uma obrigação superior a, e inclusiva de, qualquer outra... disse adeus ao contrato original».1 Há, no entanto, uma outra grande tese que Bentham deve às suas primeiras leituras de Hume. Descrevê-la-ia muitos anos mais tarde deste modo: «Por David Hume, no seu Treatise of Human Nature, a observação foi (acredita-se que pela primeira vez) trazida à luz, quão aptos têm sido os homens, em questões pertencentes a qualquer parte do campo da Ética, a mover-se para trás e para diante, e aparentemente sem que disso se apercebam, da questão, o que foi feito, para a questão, o que deve ser feito, e vice-versa: mais (*) Estou grato ao Dr. Joseph Raz pelos seus comentários críticos a uma primeira versão deste texto em inglês (“Hume’s Law and Legal Positivism”, Memoria del X Congreso Mundial Ordinario de Filosofia del Derecho y Filosofia Social, Mexico, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1982, p.245- 265), de que a Revista de Comunicação e Linguagens, 15/16, 1992, p.113-129, promoveu uma tradução portuguesa, que não foi feita nem revista pelo autor, cujo nome saiu com gralha (“António” por “José”). O texto foi agora revisto e traduzido pelo autor e acrescentado de forma a justificar uma leve alteração do título. 1 A Comment on the Commentaries and A Fragment on Government, J.H.Burns, H.L.A.Hart («Collected Works»), London, Athlone, 1977,p. 440-I. No «Preface for the second edition» de 1823, diz Bentham acerca do princípio da utilidade «era esse o nome adoptado de David Hume» (ibid., p.508). Mas existiram outras fontes. Segundo afirmava por escrito em 1783, Bentham já não se lembrava de qual a primeira (Priestly ou Beccaria): para este e outros relatos, cf. Baumgardt, D. Bentham and the Ethics of Today, Princeton U.P., 1952, p.36 e nota seguinte. Cf. também a carta de Bentham a Dumont, 6 de Setembro de 1822: ”When I came out with the principle of utility, it was in the Fragment, I took it from Hume’s Essays, Hume was in all his glory, the phrase was consequently familiar to everybody. The difference between me and Hume is this : the use he made of it, was to account for that which is, I to show what ought to be.” (apud Halevy, E., La formation du radicalisme philosophique, vol. I, Paris, Alcan, 1901, p. 282 n.36.). 2 especialmente, da primeira para a segunda. Ao ler essa obra há alguns quarenta e cinco anos atrás2, obra da qual, contudo, em proporção ao seu tamanho, nenhuma grande quantidade de instrução parecia derivável, essa observação apresentou-se ao autor destas páginas como de cardinal importância.»3 De facto, um dos principais traços da teoria jurídica de Bentham é uma nítida distinção entre aquilo que as leis são e aquilo que as leis devem ser. Numa linguagem repleta de referências tácitas a Hume, diz Bentham no Fragment: «Ao domínio do expositor pertencem explicar o que, supõe ele, é o direito: àquele do censor observar-nos o que, pensa ele, ele deve ser. O primeiro está pois, principalmente, ocupado em afirmar, ou inquirir acerca de factos: o último, em discutir razões. Ao expositor, que se confina à sua esfera, não lhe dizem respeito faculdades mentais outras que a apreensão, a memória e o juízo: o último, em virtude daqueles sentimentos de prazer ou desprazer que encontra ocasião de anexar aos objectos sob seu escrutínio, mantém algum comércio com as afeições.»4 A distinção entre ser e dever ser está, assim, na base da própria ideia de uma ciência do direito «expositiva» ou positiva, que pode ser claramente separada da ética ou da filosofia política. Da melhor possível das leis nada se pode deduzir acerca daquilo que o direito é. Não se pode, de uma má lei, deduzir que não se trata de uma lei. Mas a aplicação da distinção entre ser e dever ser à distinção entre o direito, tal como é, e o direito, tal como deve ser, implica também fazer sentido dizer que o direito é de algum modo um facto que pode ser apurado e determinado. Para tornar claro este ponto, diz Bentham numa nota à passagem acima citada, que «o estabelecimento de uma lei pode dizer-se um facto, pelo menos para o propósito de distingui-lo de qualquer consideração que possa ser oferecida como razão para tal lei». Parece isto conceder a Kelsen aquilo que ele aqui diria: que a lei, enquanto norma, é o sentido do acto pela qual ela se estabelece ou se produz; quer dizer um dever ser e não um facto; está no entanto relacionada com um facto tão determinável como o facto de estabelecer-se uma lei. Tal facto é, segundo Kelsen, um acto Provavelmente em 1769, que Bentham recorda a Bowring como “ a most interesting year... Montesquieu, Harrington, Beccaria and Helvetius but most of all Helvetius, set me on the principle of utility” (Works, ed. Bowring, X, p. 54). Falta aqui o nome de Hume, mas pode bem tratar-se de um lapso. 3 Chrestomatia, ed. M.J.Smith, W.H.Burston (“Collected Works”), Oxford, Clarendon, 1983, p.275, n.a. (1915-1917).Bentham parece manter aqui o seu juizo severe acerca dos dois primeiros volumes do Treatise: “they might, without any great loss to science of Human Nature, be dispensed with” (A Fragment, p.440 n.). The advice was not taken for himself: in earlier paper (perhaps of 1790, according to Milne) sobre “Entities: real or fictitious”, há um global reenvio para Hume: “Perceptions are either Impressions or Ideas (see Hume)”: apud Baumgardt, D., op.cit., p. 400. 2 3 da vontade: uma norma, diz Kelsen, é o sentido de um acto da vontade 5, Bentham diria antes que uma lei é a expressão de uma vontade 6. Mais recentemente Hart sustentou que o positivismo jurídico depende de fontes sociais do direito e a sua própria versão dele depende da prática social dos juízes ao aceitar uma regra de reconhecimento. 7 Se tem então o direito a sua origem num facto, como negar que pode ser deduzido a partir dele ? Assim, a aplicação de Hume revela uma dificuldade peculiar: como explicar o direito positivo como um dever ser que pode ser determinado como um facto. Como conciliar o direito positivo com a nítida distinção de Hume entre ser e dever ser, ou entre facto e direito? É como se o positivismo jurídico, após ter usado a guilhotina de Hume 8 para executar as teorias do direito natural por deduzirem o que deve ser feito daquilo que a natureza é, deva recear agora pelo seu próprio pescoço. 2. Estrutura geral do argumento de Hume Coloquemos a famosa passagem de Hume na estrutura geral do argumento do Treatise of Human Nature. O ponto acerca do non-sequitur lógico entre proposições com «é» ou «não é», e proposições com «deve (ser)» ou «não deve (ser)», como predicados, é somente parte de um argumento mais geral acerca de proposições com predicados morais. Aplica-se igualmente aos predicados morais favoritos de Hume, que não são «obrigatório» ou «permitido», mas «virtuoso» ou «vicioso». Encontra Hume nas proposições morais duas espécies extraordinárias de coisas. Em primeiro lugar , tomamos posição em matérias de moral, e pensamos assim que, na verdade, a questão permanece dentro dos limites da compreensão humana 9 e pode ser racionalmente decidida. «A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. Consiste a verdade ou a falsidade no acordo ou desacordo, quer com as reais relações das ideias, quer 4 A Fragment, p.397 . Allgemeine Theorie der Normen, Viena, Manz, 1979, p. 2. 6 A Comment, p. 78. Tanto Kelsen como Bentham têm seguramente muito mais a dizer acerca das condições para que um acto volitivo seja juridicamente relevante. 7 «El nuevo desafio al positivismo jurídico», Sistema 36 – Revista de Ciencias Sociales, p. 1980, pp. 5,7. 8 Para usar a imagem de Max Black, «The gap between ‘is’ and ‘should’» (1964) em The Is – Ought Question, ed. W.D.Hudson, Londres, Macmillan, 1969, p. 100. 5 4 com a existência real e a matéria de facto.» 10 Mas existem apenas quatro tais relações de ideias: «semelhança, contrariedade, graus qualitativos, e proporções em quantidade e número; todas estas relações pertencem tão propriamente à matéria (que não é nem moral nem imoral), como às nossas acções, paixões e volições ( e similares sujeitos de mérito ou demérito moral).» 11 Por outro lado, predicados morais afirmam-se de objectos externos tais como as acções ou sentimentos de outras pessoas, bem como do seu carácter, e não são dados na experiência externa, não existe impressão alguma de um objecto externo que origine as ideias morais. «Tome-se qualquer acção que seja tida como viciosa: homicídio doloso, por exemplo. Examinemo-la sob todas as luzes, e veja-se se é possível achar alguma matéria de facto, ou existência real, à qual chamemos vício. Seja qual for o nosso prisma. encontramos apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não existe outra matéria de facto no caso. Escapa-se-nos, por completo, o vício, enquanto considerarmos o objecto» 12. Logo, quando dizemos que a acção de A é obrigatória, que o carácter de B é virtuoso, tais declarações, não obstante possuírem a forma de uma frase declarativa verdadeira acerca de um objecto externo, vão além da razão e do testemunho da experiência externa. O argumento deixa até aqui em aberto a possibilidade de um sentimento moral especial existir, e, com ele, correspondentes qualidades primárias. As proposições morais seriam baseadas em impressões de objectos interiores peculiares, e assim uma vez mais capazes de verdade ou de falsidade. Tal teoria adequar-se-ia a algumas passagens adjacentes ao texto sobre ser-dever ser. Prossegue deste modo a acima citada passagem acerca do homicídio doloso: «não poderemos encontrá-lo nunca (ao vício) se não dirigirmos a nossa reflexão para o interior de nós mesmos, e aí encontrarmos um sentimento de desaprovação que surge em nós para com essa acção. Eis uma matéria de facto; mas ela é objecto do sentimento, não da razão. Reside em nós e não no objecto. Assim que quando nos pronunciamos acerca de uma acção ou carácter como vicioso, nada queremos dizer senão que pela constituição da nossa natureza retiramos da sua contemplação um sentimento de censura.»13 Hume parece aqui sustentar pontos de vista contraditórios: que o vício é um 9 Treatise of Human Nature, III, I,I (ed.Selby-Bigge, p.456). Ibid. (p.458). 11 Ibid. (p.464). 12 Ibid. (p.468). 13 Ibid. (p.468-9). 10 5 objecto do sentimento, e que o vício é o sentimento que extraímos da contemplação do objecto. Foi já dito 14 que o primeiro ponto de vista é de facto uma impropriedade de Hume, que deveria ter dito: «é um sentimento e não um objecto da razão.» Mas deveria então explicar-se porque razão não pode o facto de um sentimento ser um objecto da razão, e como passar de uma proposição acerca de um facto que reside em nós, a uma proposição acerca do objecto, e vice-versa. Caso interpretemos Hume como querendo dizer que há uma matéria de facto que é objecto de um sentido moral particular, e se tome «sentimento» como sinónimo de sentido não o é 15 - ele deveria então ser um objecto da razão, embora peculiar. Permanece a possibilidade de que o objecto do sentimento não é uma dada matéria de facto capaz de ser descrita em proposições verdadeiras ou falsas: é antes aquilo que é sentido, nomeadamente, reprovação ou censura. É certo que ainda nos resta explicar como passar de um enunciado acerca de uma reacção subjectiva como a censura a uma proposição acerca do objecto que provoca tal reacção, e vice-versa. Disso trataremos mais adiante. Hume propõe, no entanto, um outro argumento que claramente implica que as proposições morais não são descrições de uma peculiar matéria de facto acessível através do sentido moral. Relaciona-se isto com a segunda coisa que Hume considera espantosa no discurso moral. A segunda coisa extraordinária acerca das proposições morais é parecerem elas expressar um julgamento quando de facto influenciam as acções. Hume é defensor de uma doutrina psicológica, a génese da qual se deve procurar em Aristóteles, segundo a qual só o desejo (Hume: passion), e não o intelecto (Hume: reason), impele à acção. No De Anima diz Aristóteles: «Existe uma coisa que produz movimentos, a faculdade do desejo. Pois... o intelecto não parece produzir movimento sem desejo (pois querer é uma forma de desejar, e quando se é movido em conformidade com a razão, é-se ainda movido em conformidade com o nosso desejo), e o desejo produz movimento mesmo contra a razão.»16 A doutrina pode disputar-se, uma vez que Hume reconhece a influência que a razão pode ter sobre a nossa conduta «quer quando estimula uma paixão informando-nos da existência de algo que é um seu objecto próprio, quer quando descobre a conexão de causas e efeitos, de modo a L.W.Beck, «’Was-must be’ and ‘is-ought’ in Hume», Philosophical Studies, 26 (1974), p. 223. Um sentido (sense) fornece informação acerca de um objecto, um sentimento (sentiment) é uma reacção a uma crença: assim J.Harrison, Hume’s Moral Epistemology, Oxford, Clarendon Press, 1976, p.115. 16 433 a 21-26. 14 15 6 fornecer-nos de meios para exercer qualquer paixão».17 E Hume não prova que é possível agir sem uma tal colaboração da razão. No entanto, Hume apega-se firmemente à doutrina aristotélica: «o mérito e demérito de acções frequentemente contradiz, e por vezes controla, as nossas propensões naturais. A razão, porém, não exerce uma tal influência. Distinções morais não são pois filhas da razão. A razão é totalmente inactiva, e nunca poderá ser a fonte de um princípio tão activo como a consciência, ou o sentido, do que é moral.»18 Podemos assim com segurança concluir que o sentido moral não é em Hume como os outros sentidos que nos informam de como as coisas são. Como resultado, para Hume, proposições morais não são fundadas na experiência dos sentidos – e não só na vulgar experiência de objectos externos- não podendo desde logo ser empiricamente verdadeiras. Tão pouco são a priori. Por consequência, não podem ser tidas como verdadeiras, ou falsas. Na palavra de Hume: não são derivadas da razão. Não podem propriamente ser ditas contrárias à razão: «não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro ao coçar do meu dedo.» 19 Porque razão então as usamos nós e o que significam? Este é, para Hume, o problema da filosofia moral. Foi já observado20 existir um paralelismo conspícuo entre as teorias humianas da moralidade e da causalidade. A causalidade, tal como os predicados morais, não é observada pelos sentidos. O conhecimento causal, como as distinções morais, não é a priori: não há contradição entre afirmar um acontecimento e negar qualquer outro acontecimento. Logo, sempre que afirmamos uma conexão causal, isto é, uma conexão necessária entre dois acontecimentos, vamos além do testemunho dos sentidos e do poder da razão. Como questão de facto existe apenas uma associação de ideias, devida à repetição dos mesmos pares de acontecimentos. Quando a impressão do evento x se associa à ideia correspondente, produz a crença na ideia associada de y. Existe deste modo em nós a crença em y, e vivemos e pensamos como se houvesse necessidade de y no objecto. 3. A controvérsia acerca da interpretação do Treatise, III, I, I. 17 Treatise, III, I,I,p.459. Ibid. (p.458). 19 Treatise, II,II, 3 (p.416). 20 Por L.W.Beck, loc. cit. 18 7 É neste contexto que deve ser interpretada a famosa passagem sobre ser e deve ser. Seria certamente contrário às intenções de Hume pretender negar a interpretação tradicional, aquela que lhe foi dada, entre outros, por Bentham, a saber, que não podemos deduzir conclusões normativas («deontológicas») a partir de premissas factuais. Tal é a «lei» de Hume («nenhum 'deve (ser)' se segue de um 'é'»), e por isso é ela uma «forquilha»21 que separa o bom e o mau raciocínio em ética, e uma «guilhotina»21 para os sistemas vulgares de moralidade. Que um motivo não seja logicamente derivável de uma asserção, não é isso que Hume quer demonstrar 22. Este seria um argumento corroborador da lei de Hume, mas a lei não depende da justeza do argumento, e possui outros argumentos que a suportam. Hume explicara anteriormente que motivos e paixões, e não juízos, são o que influencia as acções, e começa a passagem por afirmar que «acrescenta a esses raciocínios uma observação que talvez possa vir a achar-se de alguma importância». Muito menos pretende Hume oferecer uma melhor, e consciente, derivação de dever ser a partir de ser23. Afirma, é certo, que «uma vez que este ‘deve’, ou ‘não deve’, expressa alguma nova relação ou afirmação, é necessário que seja observado e explicado». E a assim necessária explicação conectá-lo-á a factos, do mesmo modo que Hume. Tal conexão não é porém da natureza da dedução lógica, uma vez que a proposição do tipo «deve» é «nova». Se uma explicação é aqui devida, os autores criticados por Hume têm uma tarefa impossível em mãos: fornecer uma razão «para o que parece ser (é) de todo inconcebível, como pode esta nova relação seguir-se de outras que são inteiramente diferentes dela através da dedução. «Se tal não fosse realmente, mas tão só parecesse ser, inconcebível, então a atenção a esse facto não subverteria, mas tão só pareceria subverter - como assinala Harrison 24 - os sistemas vulgares de moralidade. Pelos novos intérpretes foi afirmado, que a leitura tradicional não se adequa à teoria positiva de Hume acerca do sentido das frases morais. Por vezes Hume parece defender aquilo que Mackie denomina descritivismo disposicional 21 25 , isto é, a asserção «isto é Estes apelativos encontram-se em Hare: Freedom and Reason, Oxford, Clarendon, 1963, p. 108; «Descriptivism» (1963) em The Is-Ought Question, p. 240. 22 Assim J.Finnis, Natural Law and Natural Rights, Oxford, Clarendon, 1980, p. 42. 23 Assim A.C.MacIntyre, «Hume on ‘is’ and ‘ought’» (1959) em The Is-Ought Question, p. 35 ss.; G.Humter, «Hume on ‘is’ and ‘ought’ (1962), ibid. pp. 59 ss. 24 Op. cit., p.70. 25 Mackie, J.L., Hume’s Moral Theory, Londres, Routledge, 1980, p. 73. 8 virtuoso «vicioso» significa «isto é tal que é de modo a provocar um sentimento de aprovação (reprovação) em X nas circunstâncias C»: «ao pronunciares qualquer acção ou carácter como vicioso, nada mais significas, senão que pela constituição da tua natureza, tens um sentimento de censura pela sua contemplação.» 26 Á primeira vista, Hume diz aqui que predicar o vício significa predicar a existência de um sentimento de censura da parte do locutor, mas na verdade Hume fala do sentimento cujo despertar se fica a dever à constituição da natureza do locutor, e visto ser a natureza comum a todos, são esses os sentimentos que despertam em qualquer um. Hume fala realmente de um «peculiar conjunto de termos utilizáveis para expressar... sentimentos universais de censura e aprovação»27 . Os princípios morais formam «o partido da humanidade»28. A humanidade é a «audiência» pretendida na seguinte importante passagem da Enquiry: «Quando um homem denomina outro seu inimigo, seu rival, seu antagonista, seu adversário, é entendido que fala a linguagem do amor-próprio, e expressa sentimentos peculiares a ele próprio, que se devem às suas circunstâncias e situação particulares. Mas quando aplica a qualquer pessoa os epítetos de vicioso ou odioso ou depravado, fala então outra linguagem, e expressa sentimentos para os quais espera o concurso de toda a audiência. »29 A uma leitura mais cuidadosa não escapará que a contemplação relevante não é a actual contemplação da acção ou do carácter. Ela deve corrigir as nossas tendências para nos sentirmos mais fortemente tocados pelas acções que nos são próximas no tempo e no espaço, especialmente se testemunhadas, que por aquelas remotas no tempo e no espaço 30, e para reprovar com mais veemência os nossos inimigos que os nossos amigos31 . Deve também corresponder a um «espectador»32 imparcial, como Adam Smith, discípulo de Hume, defendeu 33 . Outra correcção, especificamente a respeito do carácter, pode ser necessária. Quando um carácter, na sua inclinação natural benéfico à sociedade, «é assistido com a boa fortuna que o torna um real benefício para a sociedade, dá um prazer mais forte 26 Treatise, III, I, I (p.469). An Enquiry Concerning the Principles of Morals, s.IX, parte I (Enquires, ed.Selby. Bigge, p. 274). 28 Ibid. (p.275). 29 Ibid. (p.272). 30 Treatise, ibid. (p.581-2). 31 Ibid. (p.583). 32 Enquiry, App. I(p.289). Cf.Treatise ibid. (581: «judicious spectator» e 583: «impartial conduct»). 33 The Theory of Moral Sentiments (1759), III. 2.32, ed. D.D.Raphael, A.L.Macfie, Oxford, Oxford University Press, 1976, repr.1979, pp.130-131. 27 9 ao espectador, e é recebido com uma simpatia mais encantadora, e não dizemos no entanto que é mais virtuoso... sabemos que uma alteração da fortuna pode tornar inteiramente impotente a benevolente disposição; e assim separamos, tanto quanto possível, a fortuna da disposição.»34 As crenças acerca da acção ou do carácter, que causam em nós aprovação ou reprovação podem ser erróneas ou incompletas: «de forma a preparar caminho para tal sentimento, e fornecer do seu objecto um discernimento próprio, é muitas vezes necessário, julgamos, que tal raciocínio seja precedente, que boas distinções sejam feitas, extraídas justas conclusões, distantes comparações formadas, relações complexas examinadas, e factos gerais fixados e apurados»35. Tudo isto nos conduziria a uma interpretação das frases morais como descrições de disposições ideais de um espectador ideal em circunstâncias ideais. Mas mesmo um descritivismo de tal modo qualificado não faria jus às intenções de Hume. O que realmente existe não é necessariamente aquilo que se está a significar. Hume invoca aqui a doutrina lockiana das qualidades secundárias. «Vício e virtude», diz Hume, «podem comparar-se a sons, cores, calor e frio, os quais, segundo a moderna filosofia, não são qualidades no objecto, mas percepções na mente.»36 Mas não diz Locke que ao predicarmos azul, ou amarelo de algo queremos dizer que é de modo tal que produz em nós uma certa sensação de cor, mas que «estamos no ponto de imaginar que essas ideias são as semelhanças de algo que realmente existe nos próprios objectos»37. Isto parece sugerir que este tipo de explicação das frases morais não nos explica o seu efectivo sentido, tal como a explicação de frases acerca de qualidades secundárias não explica o seu sentido. Hume é forçado a sustentar alguma forma de não-descritivismo, para poder ser coerente com a lei de Hume. Deve pensar que as frases morais são similares a expressões de sentimento, a comandos, ou a conselhos, na medida em que estes não afirmam uma matéria de facto, não descrevem um estado de coisas. Pode também defender-se que o descritivismo disposicional, se relacionado a um espectador ideal, é desde logo prescritivismo disposicional.38 Qual é então o seu sentido? Torna-se difícil combinar as várias observações de Hume numa teoria coerente. Uma tal reconstrução necessitaria de recorrer a instrumentos 34 Treatise, ibid. (pp. 584-5). Enquiry, s.I (p.173). 36 Treatise, III, I, I (pp.469). 37 An Essay Concerning Human Understanding, II, IX, para. 25 (ed . Niditsh, Clarendon, 1975, p. 142). Cf. Mackie, op.cit., pp.58-9. 38 Mackie, op.cit., p.73 classifica-o como uma forma de sentimentalismo. 35 10 conceptuais de facto preparados por Hume, porém não usados por ele, de forma a estabelecer com mais clareza aquilo que Hume tentava dizer. Hume não era consciente das distinções hoje usuais em Semântica, nem dos diferentes tipos de teoria ética que somos capazes de reconhecer. Não estaria sequer propriamente interessado nestas questões. Felizmente, não carecemos para os nossos propósitos de uma tal reconstrução. É-nos suficiente considerar alguns pontos que possam trazer luz à lei de Hume e ao positivismo jurídico. 4. Três níveis explanatórios das frases morais: causal, pragmático, e semântico A maior parte dos críticos da alegada inconclusividade de Hume nesta matéria não distinguem entre três níveis explanatórios. Chamar-lhes-ei nível causal, nível pragmático, e nível semântico. A explicação causal da linguagem moral relacioná-la-á a factos como as impressões e ideias da mente, as relações de semelhança e contiguidade (refere-se aqui Hume às relações de parentesco, de familiaridade, de educação e de hábito), entre elas, as operações da imaginação que dão às ideias relacionadas a vivacidade ou vividez das nossas pr6prias impressões e desse modo explicam «a natureza e causa da simpatia», que nos faz sensíveis aos sentimentos dos outros como se dos nossos se tratassem: «quando simpatizamos com as paixões e sentimentos dos outros, esses movimentos aparecem em primeiro lugar na nossa mente como meras ideias e são concebidos como pertença de outra pessoa, tal como concebemos qualquer outra matéria de facto». É só pela simpatia que «as ideias das afeições dos outros se convertem nas impressões mesmo que representam, e que as paixões surgem em conformidade com as imagens que delas formamos». «Pois que, além da relação de causa e efeito, pela qual nós somos convencidos da realidade da paixão com que simpatizamos, além disto», diz Hume, «temos de ser assistidos pelas relações de semelhança e contiguidade por forma a sentir na sua plena perfeição a simpatia. E uma vez que estas relações podem converter por inteiro uma ideia numa impressão, e dar à primeira a vivacidade da última, tão perfeitamente que nada é perdido na transição, facilmente podemos conceber quão a relação de causa e efeito somente pode servir para robustecer e avivar uma ideia»39. Na explicação causal da linguagem moral, a simpatia deve no entanto sofrer a correcção da reflexão e da experiência: «são variáveis todos os sentimentos de 11 censura ou de louvor, segundo é próxima ou remota a nossa situação, em relação à pessoa censurada ou louvada, e em relação à presente disposição do nosso espírito. Mas não nos atemos a esta variação nas nossas decisões mais gerais, antes aplicando ainda os termos veiculadores do nosso agrado ou desagrado do mesmo modo, como se permanecêssemos num ponto de vista. Cedo nos ensina a experiência este método para corrigir os nossos sentimentos, ou, pelo menos, para corrigir a nossa linguagem, onde os sentimentos são mais obstinados e inalteráveis» 40 . Esta é uma experiência de reflexão, com a ajuda, mais uma vez, da imaginação: «censuramos de modo idêntico uma má acção, de que lemos o relato histórico, e aquela realizada, no outro dia, na nossa vizinhança: querendo isto significar sabermos nós a partir da reflexão que a primeira acção suscitaria sentimentos tão fortes de reprovação como a última, estivesse ela na mesma posição»41. A reflexão tem de recorrer aqui à imaginação: «a imaginação adere às vistas gerais das coisas e distingue os sentimentos que elas produzem daqueles que advêm da nossa situação particular e momentânea»42. Como vimos, no Treatise, é a simpatia, corrigida pela experiência reflexiva, que «nos faz interessar no bem da humanidade»43. Na Enquiry, Hume prefere falar aqui dum peculiar sentimento de humanidade, oposto aos sentimentos egoístas ou às paixões, como a avareza ou a ambição: «sendo tão grande e evidente a distinção entre essas espécies de sentimento, deve a linguagem inventar um peculiar conjunto de termos, por forma a expressar esses sentimentos universais de censura e aprovação, que provêm da humanidade... São então conhecidos vício e virtude; a moral é reconhecida.»44 A linguagem pode não só ser explicada pelos sentimentos e operações da mente, que são os seus antecedentes, como também pelos objectivos do seu uso. Este é o nível pragmático de explanação.45 É difícil separá-lo por vezes do causal, visto constituírem a representação destes objectivos e a vontade de os alcançar momentos constitutivos da experiência reflexiva que causa um certo uso da linguagem. A despeito disso, pode ser afirmado que tal representação e tal vontade são antecedentes da linguagem, mas que os objectivos são para ser realizados no futuro. Por outro lado, a acção de significar algo pela 39 Treatise, II, I,9 (pp. 318-20). Treatise, III, III, I (p.582). 41 Ibid. (p.584). 42 Ibid. (p. 587). 43 Ibid. (p.584). 44 Enquiry, s. IX, part I (274). 40 12 elocução de expressões ou frases morais é uma acção intencional, e como tal pretende atingir fins como meios para outros fins. Mas o nível pragmático diz apenas respeito aqueles fins que não são expressos no uso relevante da linguagem. «A linguagem comum, diz Hume, tendo sido formada para uso geral, deve ser moldada em algumas ideias gerais e deve afixar os epítetos de louvor ou censura em conformidade a sentimentos que provêm dos interesses gerais da comunidade.» 46 A linguagem moral, a este nível pragmático, é então explicada pela satisfação racional de necessidades factuais e prossecução de interesses factuais por parte de todos nós. Encontramos aqui, em primeiro lugar, a necessidade de evitar «contradições perpétuas» com os outros, e o interesse no convívio pacífico e na conversação: «todos os dias nos encontramos com pessoas, que estão numa situação diferente da nossa, e que nunca poderiam conversar connosco em termos razoáveis, permanecêssemos nós naquela situação e ponto de vista que nos é peculiar. A comunicação mútua de sentimentos faz com que formemos, portanto, no convívio e na conversação, algum padrão geral e inalterável, pelo qual aprovamos ou reprovamos caracteres e comportamentos. E embora nem sempre o coração se envolva nestas noções gerais, ou por elas regule o seu amor ou ódio, ainda assim elas são suficientes para o discurso, servindo todos os nossos propósitos quando em companhia, no púlpito, no teatro ou nas escolas»47. Tal como necessitamos da linguagem da causalidade no mundo natural, necessitamos da linguagem da ética no mundo social. Na verdade, Hume parece menos interessado na elucidação do sentido das expressões morais, do que em fornecer delas explicações causais e pragmáticas. No entanto, ao abordar sempre de novo a questão fá-lo relacionando as expressões ou frases morais com os factos. Em duas passagens já anteriormente citadas. Hume aproxima-se mais do que nunca da formulação de uma regra semântica, que na Enquiry aparece assim: «quando um homem aplica a outro homem qualquer dos epítetos de vicioso ou odioso ou depravado. expressa então sentimentos com os quais espera que toda a audiência (i.e., uma audiência universal concorde»; ou similarmente no Treatise: «ao pronunciar-se qualquer acção ou carácter como vicioso, nada se significa senão que pela constituição da nossa natureza temos um sentimento de censura da sua contemplação». Podemos já, espero, partir destas 45 L.W.Beck, loc.cit., p. 225 escreve que em Hume «the ascription of moral predicates is pragmatic and lies in their peculiar function in the social relations of mankind». 46 Enquiry, s.V, parte II (.228). 47 Treatise, III, III, 3 (p.603). 13 formulações, recordar algumas das condições da «contemplação» mencionada, e chegarmos - com a ajuda de algum trabalho corrente em semântica - à seguinte análise incompleta do sentido do ponto de vista do locutor: Ao afirmar a acção a ou o carácter c vicioso, o locutor pretende levar a sua audiência a um sentimento de censura; pretende que a sua audiência pense que ele acredita que qualquer um (membros da audiência incluídos), em circunstâncias u a especificar (i.e., que imparcialmente contemple a ou c) teria o mesmo sentimento; pretende alcançar estes resultados através do reconhecimento pela sua audiência de intenções correspondentes. Isto assim, porque o locutor segue, e pretende que a sua audiência siga, uma regra de sentido que relaciona a sua afirmação de que a acção a ou o carácter c é vicioso com as intenções descritas. Devido a tal regra, o locutor (convencionalmente) pressupõe a existência de tais intenções. Por via da mesma regra, a sua audiência realiza igualmente essas implicações, reconhecendo assim as suas intenções. Carece esta análise de muitas qualificações. Considerarei, todavia, tão só duas. Em primeiro lugar, a primeira implicação é separável 48 , uma vez que posso inteligivelmente afirmar que o acto a é vicioso sem que porém com isso pretenda implicar que pretendo que X tenha um sentimento de censura (caso não concorde com X e saiba que X é obstinado). A penúltima implicação também é separável, uma vez que posso inteligivelmente afirmar que a é vicioso, não querendo com isso contudo implicar que experimento um sentimento de censura (uma vez que posso ser incapaz de ultrapassar o meu amor pelo agente). Em segundo lugar seria inapropriado afirmar que aquilo que ele diz implica alguma das intenções acima mencionadas. A frase «a é vicioso» implica aparentemente tão só que qualquer X, caso u, deve experimentar um sentimento de censura. Hume não inicia sequer uma análise do sentido das frases do tipo «deve», como faz para frases com o predicado «vicioso». Pode todavia admitir-se com segurança que uma análise humiana do sentido de «x deve (moralmente) fazer A» consideraria que uma tal frase não afirma uma matéria de facto, não é uma proposição. Implica no entanto que qualquer um em circunstâncias apropriadas quereria que X fizesse A; que quereria que A fosse feito 48 Faço minha a terminologia de H.P.Grice, «The Causal Theory of Perception», The Aristotelian Society: Proceedings, Supplementary Volumes, 35 (1961), pp.121 ff. cujo trabalho em semântica influenciou grande parte da passagem acima – cf. H.P.Grice, «Meaning», The Philosophical Review, 66 (1957), pp. 337 ff., «Utterer’s Meaning, Sentence-meaning and Word-meaning, The Philosophical Review, 78 (1969), «Logic and Conversation» in P. Cole, J.L.Morgan (eds.), Syntax and Semantics, volume 3. Speech Acts, New York, Academic Press, 1974, pp.41 ff. Todos estes artigos estão agora publicados em Paul Grice, Studies in the Way of Words, Cambridge, Massachussetts, London, England, Harvard University Press, 1989. 14 por outra pessoa Y nas circunstâncias de X; que, uma vez a acção feita, todos que o saibam experimentarão um sentimento de aprovação. Acrescentaria que é uma implicação específica de uma frase do tipo «deve (ser)»(tanto no discurso moral como fora dele) que A não tenha sido feito ainda, e que X possa fazer . 5. Conclusões acerca da lei de Hume Estamos agora em condições de nos decidirmos acerca da lei de Hume. É concerteza verdade que nenhuma proposição acerca de um estado de coisas implica uma frase do tipo deve ser. Tem sido isto muito disputado. Considerarei brevemente tão só dois contra-exemplos. «Para chegares a horas à conferência tu deves apanhar um táxi.» Chamarei a este «deves» teleológico. Não prescreve de todo. Consiste na aplicação de uma regra causal. baseada na experiência do tempo requerido por um meio de transporte alternativo para percorrer a distância pretendida. Suponhamos agora que queres mesmo chegar a tempo. Concluirei então eu: «Tu deves apanhar um táxi.» A frase não possui, no entanto, qualquer força prescritiva, uma vez que não te digo que apanhes um táxi. Digo-te apenas que se não apanhas um táxi não chegarás a horas à conferência. Searle defendeu que na seguinte série de elementos, qualquer enunciado anterior implica o seguinte com a eventual ajuda de enunciados adicionais não valorativos: 1) Jones pronunciou as palavras «Eu prometo pagar a ti, Smith, cinco dólares.» 2) Jones prometeu pagar a Smith cinco dólares. 3) Jones colocou-se na (contraiu a) obrigação de pagar a Smith cinco dólares. 4) Jones está debaixo de uma obrigação de pagar a Smith cinco dólares. 5) Jones deve pagar a Smith cinco dólares 49. A última frase do tipo «deve (ser)» tem força prescritiva apenas se o locutor aceita a prática social, ou facto institucional de prometer. Ao fazê-lo, o locutor adopta o ponto de vista interno de alguém que joga o «jogo do prometer», de alguém que pensa que as promessas são para ser cumpridas 50 . Doutro modo, se o locutor é actor numa peça, por exemplo, ao pronunciar as palavras de 1) não fez de modo algum uma promessa. 49 50 «How to drive ‘ought’ from ‘is’» (1964) in The Is – Ought Question, p. 121. Cf.R.M.Hare, «The Promising Game» (1964) em The Is – Ought Question, pp. 144 ff. 15 Searle acrescenta dois enunciados entre 1) e 2) que parecem evitar esta consequência: 1a) Em certas condições C, quem quer que pronuncie as palavras (a frase) «Eu prometo pagar a ti, Smith, cinco dólares» promete pagar a Smith cinco dólares. 1b) As condições C (Searle inclui aqui a condição de que o locutor não actua numa peça) são o caso. O lance essencial, como reconhece Searle, joga-se da especificação de uma certa elocução das palavras de 1) para a especificação de um certo acto de fala 2). «O lance é conseguido - diz Searle porque o acto de fala é um acto convencional, e a elocução das palavras, de acordo com as convenções, constitui a realização de exactamente aquele acto de fala.»51 A convenção relevante no caso de uma promessa é descrita em 1a). Pretende Searle: 1. que 1a) afirma «um facto acerca do uso da língua inglesa» (e da língua portuguesa)»; 2. que «nenhumas premissas morais estão escondidas na pilha de lenha 1ógica». Consideremos em primeiro lugar a segunda tese de Searle. Na verdade, 1a) não precisa de ser uma premissa moral. Pode ser uma das premissas de um raciocínio moral, juntamente com uma regra moral como «as promessas são para ser cumpridas» e um enunciado factual, como 1). Contudo, não é certamente uma regra moral. As regras morais são reguladoras da conduta, não constitutivas de efeitos. A regra «as promessas são para ser cumpridas», é violada sempre que uma promessa não é cumprida. Mas 1a) não pode ser violado desta forma. A promessa permanece como uma promessa válida apesar de ser quebrada e desenvolve a sua eficácia devido ao facto mesmo de que não só a elocução deve ainda contar como uma promessa, mas também a conduta desviante do não-respeitador da promessa deve contar como a quebra de uma promessa. A regra fornece-nos a razão pela qual Jones não se limitou a pronunciar palavras, mas antes, ao fazê-lo da maneira que o fez, se colocou debaixo de uma obrigação, e desse modo emitiu um enunciado prescritivo e valorativo que nos permite doravante valorar a sua conduta, quer cumpra quer quebre a promessa feita (quer cumpra quer viole a obrigação implicada na promessa). Uma vez que o conjunto de condições C se verifique, e a elocução seja feita, deve a elocução contar como uma promessa. Se não constitui uma promessa num 51 Loc.cit., 126. 16 caso particular, o conjunto das condições deverá ser reformulado, de maneira a acomodar tal caso. Existe uma possível objecção a esta tese. Foi já dito que 5), a última frase do tipo «deve(ser)», tem só força prescritiva se o locutor adopta, ao pronunciar 1), o ponto de vista interno de alguém que aceita a regra «as promessas são para ser cumpridas». Searle, que nega que seja uma tal regra implicada por 1), insere entre 2) e 3) a definição: 2a) Todas as promessas são actos de nos colocarmos a nós mesmos debaixo de (contrair) uma obrigação de fazer a coisa prometida, o que nos permite tornar a última expressão de 1a) («promete pagar a Smith cinco dólares») equivalente à expressão «coloca-se debaixo de (contrai) uma obrigação de pagar a Smith cinco dólares». No entanto, isto mostra - assim prossegue a objecção - que 1a) aplica ou implicitamente contém um princípio moral sintético («as promessas implicam as obrigações correspondentes» ou «as promessas são para ser cumpridas») 52. O argumento deve sofrer um desenvolvimento ulterior, de modo a responder à objecção. Tanto 1a) como 2a) são regras constitutivas de uma promessa, que é portanto um facto institucional. Afirmam factos, na medida em que factos institucionais tais como leis, ou regras da moralidade social, são factos. Não descrevem aquilo que os ingleses (e os portugueses) geralmente fazem ao prometer, mas como se devem compreender os ingleses (e os portugueses) sempre que fazem uma promessa. Assim, 1a) não é meramente um enunciado descritivo acerca do uso da língua inglesa (e da língua portuguesa). Justamente, 2a) não é uma definição tautológica. Permite valorar a conduta de uma pessoa no futuro, quer mantenha a promessa, quer a quebre (quer cumpra, quer viole a obrigação implicada na promessa). Agora, «as promessas são para ser cumpridas» pode querer apenas dizer uma maneira mais coloquial de expressar 2a). O próprio Searle reconhece que «a prova no seu todo assenta num apelo à regra constitutiva de que fazer uma promessa é contrair uma obrigação». Mas acrescenta «e esta regra é uma regra semântica da palavra 'descritiva' 'promessa'.»53 Alguns dos seus críticos, contudo, tal como Hare, mantêm que se trata de uma regra moral. Penso que ambos se enganam. 2a) é uma regra constitutiva do sentido das promessas e do próprio jogo do prometer. Mas é por essa mesma razão que as 52 Assim Hare, loc.cit., que é incapaz de discriminar entre as regras constitutivas do jogo do prometer e as regras regulativas da ética. 17 promessas são factos institucionais, e que a palavra «promessa» não é meramente uma palavra descritiva. Não podemos descrever factos institucionais - os jogos são um tipo sem o recurso às regras da instituição, e não nos podemos recorrer a uma instituição como fez Jones ao pronunciar tais palavras em tais circunstâncias - sem que aceitemos todas as suas regras - e, assim, Jones tomou como implícito que as promessas são para serem mantidas, sem que o houvesse dito. Não só constitui 2a), juntamente com factos e outras regras, o jogo do prometer ( ou instituição da promessa), como regula, e valora também a conduta dos jogadores. Mas regula a conduta apenas do ponto de vista do jogo do prometer. Por isso afirma agora Searle precisarmos nós de distinguir entre: 5') No que respeita à sua obrigação de pagar a Smith cinco dólares, Jones deve pagar a Smith cinco dólares, e 5”) Tudo considerado, Jones deve pagar a Smith cinco dólares. Searle correctamente ressalta que, «caso interpretemos 5) como 5” , ) não podemos derivá-Io de 4) sem o concurso de premissas adicionais» 54 . Isto mostra que estamos a lidar com a obrigação, e o correspondente «deve» imanentes à instituição da promessa. 5') poderia reescrever-se «no que respeita à sua promessa...». Mas, então, nem a obrigação, nem o «deve» são morais. O único enunciado moral no argumento de Searle é 5"), por ele excluído. Reforçamos o argumento se imaginarmos uma situação de conflito. Jones, por exemplo, tem de (deve) gastar os seus últimos cinco dólares na compra de alimentos para que, os seus filhos possam sobreviver. A sua obrigação moral de cumprir a promessa pode nesse caso ser sobrelevada ou postergada pelos seus deveres como pai, seja qual for a descrição por nós eleita da situação de conflito. Mas o jogo do prometer e as suas regras constitutivas do «dever(ser)» das promessas não podem ser sobrelevados ou postergados numa situação particular. «Sobrelevado» ou «postergado» são termos que não se usam no jogo do prometer . 53 54 Speech Acts, Cambridge U.P., 1969, p.185. Ibid. (p.181). 18 Para explicar um conflito moral, recorrem alguns filósofos55 ao conceito de obrigação prima-facie. Numa interpretação, a primeira obrigação, originada pela promessa, não é afinal, mas apenas parece ser (é, portanto, prima-facie), uma obrigação. Noutra interpretação, é uma forma mais fraca de obrigação, oposta a uma obrigação absoluta, que predomina devido à sua superioridade ou força relativa na situação de conflito. Para o que nos importa, basta notar que ambos os conceitos de obrigação prima-facie são irrelevantes para a instituição da promessa. Searle, que destrinça e critica os conceitos de obrigação prima-facie, oferece uma descrição alternativa, querendo pretender que a obrigação de uma promessa pode ser sobrelevada por outros tipos de obrigação. Tece uma «distinção entre asserções que enunciam a existência de obrigações, de deveres, e de outras tais razões de agir e asserções enunciando aquilo que se deve fazer, tudo considerado.»56 Os conflitos morais seriam propriamente descritos como opondo diferentes tipos de obrigações (e outras razões de agir, tais como deveres, responsabilidades, compromissos, etc.), algumas das quais possivelmente, não necessariamente, morais. Escreve: «obrigações para propósitos diversos podem ser divididas em, ou classificadas como, jurídicas, financeiras, sociais, morais, familiares, etc., e as classes não são em geral exclusivas. Não raras vezes, numa situação particular, as nossas obrigações estão em conflito, entre elas e com razões morais, tanto como outras espécies de razões, de agir.»57 Como todo o enunciado de obrigação implica um enunciado do tipo «deve» correspondente, existem vários géneros de enunciados do tipo «deve» com diferentes sentidos. Desta forma, pode tão bem ser descrito o conflito se nos servirmos apenas de enunciados do tipo «deve», i.e., dentro da segunda classe de enunciados deônticos de Searle. Isto prova que nem «obrigação» nem dever ser são unívocos. A distinção importante não é aquela entre enunciados de obrigação e enunciados do tipo «deve» mas aquela entre diferentes tipos de obrigação. Assim admite Searle a distinção entre obrigação significada ao prometer (obligation meant by promising) e uma obrigação moral, mesmo se destruísse o argumento de que nos servimos para ela. 55 Ross, W. D. The Right and the Good, Oxford, Clarendon, 1930, pp. 19 ff.; mais recentemente, cf. Hintikka, J. «Some Main Problems of Deontic Logic» em Deontic Logic: Introductory and Systematic Readings, ed. R.Hilpinen, Dordrecht, Reidel, 1971, pp.59 ff. 56 «Prima-facie Obligations» in Philosophical Subjects (Strawson-Festschrift), ed. Z.V. Straaten, Oxford, Clarendon, 1980, p. 249. 57 Ibid. (p.246). 19 Não penso, contudo, que Searle explique bem a natureza dos conflitos morais. Não pode haver conflito moral entre obrigações que não são elas próprias morais. Mas existem obrigações morais de conteúdo idêntico a outros tipos de obrigação 58 . Assim Jones tem tanto uma obrigação moral como jurídica de pagar a Smith cinco dólares. Mas, caso a promessa haja sido efectuada sem a forma legal, não é possível torná-la juridicamente eficaz. Agora para Jones, a obrigação moral de pagar a Smith cinco dólares devido à sua promessa opõe-se à obrigação moral de alimentar as suas crianças. Os factos da promessa, num caso, e da relação paternal, no outro, constituem duas fontes de obrigação moral. Originam razões morais de agir que colidem na presente situação. Aquilo que, tudo considerado, Jones deve fazer, deve tê-las em conta, juntamente com outros aspectos relevantes da situação e princípios (morais) de decisão de conflitos morais. O escopo da questão acerca daquilo que uma pessoa deve fazer tudo considerado vai além do escopo das instituições da promessa, da moralidade social, e do direito. Vimos como as regras semânticas constitutivas das promessas, com enunciados descritivos de factos, implicam frases do tipo «deve». O mesmo se aplica à moralidade social e, como defenderemos, ao direito positivo, que são ambos factos institucionais, i.e., factos que não podem ser explicados nem compreendidos sem o auxílio de regras. As regras semânticas de frases do tipo «deve» em ética relacionam-nas com um ponto ideal de consenso entre espectadores ideais. Pode ser chamado um facto ideal, um hipotético contrato social, mas melhor seria não o chamar de todo um facto. Trata-se meramente do processo de justificação de um tipo de ética filosófica. As frases morais que discutimos são finas flores da nossa civilização que se espalharam das bocas dos filósofos às bocas de todos. 6. Reivindicações e realizações do positivismo jurídico O positivismo jurídico tem-nos vindo a dizer que existe uma tal coisa como o direito positivo, que proposições acerca do direito positivo são verdadeiras ou falsas consoante os factos, e que as verdadeiras formam a base de uma ciência descritiva do direito. Deveremos agora dizer que o positivismo jurídico deriva «dever(ser)» de «ser», ap6s 58 Searle vai longe de mais quando recentemente defende que «a objecção de manter uma promessa não tem uma relação necessária à moralidade». Speech Acts, p.188. 20 termos admitido que o direito natural não o faz (ou que, pelo menos, não tem que fazêlo)? Vejamos mais de perto como tratam os positivistas deste problema. Concentrar-meei em Bentham e em Kelsen, que sustentam acerca das consequências da lei de Hume para a teoria jurídica as posições mais distintivas. Bentham encontrava-se certamente ansioso por apontar os factos atrás do direito. Tais factos eram para ele a verdade do direito. Permitem-nos reduzir as frases que encontramos no direito e acerca do direito a proposições factuais dotadas de sentido, ou repudiar as frases irreduzíveis como sem-sentido. Os factos relevantes são: os comandos do legislador, as decisões, i.e., os comandos individuais dos juízes, as sanções de pena e de recompensa, os actos de obediência ao soberano e o correspondente hábito do povo. No Fragment, Bentham fornece duas análises alternativas às frases do tipo «deve» do direito. Diz a certa altura que uma acção é um objecto de dever (ou obrigação) se é o objecto de um comando do legislador (ou de um quase-comando do direito consuetudinário), e noutra altura que uma acção é um objecto de dever se provavelmente se lhe segue uma pena . Uma reconstrução racional do pensamento de Bentham deverá acomodar estas definições com desenvolvimentos ulteriores: que nomeadamente existem leis que assentam em recompensas e leis sem sanção política, i.e., dor ou prazer às mãos de um superior político, tais como as leis limitando os poderes supremos dentro de um Estado. Mas se a probabilidade de uma sanção específica não é necessária à existência de uma obrigação jurídica, um sistema de sanções assente na força e reforçado pela violência torna-se necessário para explicar a superioridade do soberano que a noção de comando implica 59 . Se Bentham reduz afinal o direito a proposições acerca da vontade do legislador ou do juiz, pode ser objecto de disputa, uma vez que, como pôde ele notar: «é determinado o uso de um mandato pela natureza do acto ou modo de conduta que é o seu objecto: e onde nenhuma diferença pode haver na conduta do sujeito é sem propósito assinalar qualquer diferença no espírito do legislador»60. Não obstante, não atentou Bentham em todo o significado das suas palavras, já que se manteve aparentemente ligado a uma teoria da linguagem que considera os comandos proposições complexas do tipo: «é a vontade de s (uma entidade superior) que x faça A.» Faz equivaler Cf. o meu artigo: «Relire Bentham. A propos de l’edition de ‘Of Laws in General’ de Bentham por Hart», Arquives de Philosophie du Droit, 17 (1972), pp. 465 ff. 60 Of Laws in General (C.W., ed.Hart), p.98. 59 21 expressamente «expressar algo» a «enunciar algo acerca da mente do locutor»61. Permanece assim um psicologista, não alcançando a intenção da lei de Hume. Mas a nítida distinção por ele traçada entre aquilo que o direito é e aquilo que o direito deve ser permanece intocável: os factos de que depende o direito positivo são claramente independentes do prazer e dor prospectivos que deveriam permitir-lhe calcular a contribuição do melhor direito possível para a felicidade geral. O argumento não assenta sobre uma ideia correcta da relação entre o direito e os factos que determinam o seu conteúdo. Foi Kelsen o primeiro positivista jurídico a retirar todas as consequências da lei de Hume. Daí não fazer ele uso da distinção «ser-dever (ser)» para separar o direito da ética ou da moralidade social. São sistemas normativos todos os três, a serem diferenciados somente por que cada um deles possui uma diferente fonte de validade, uma diferente norma fundamental. A distinção ser - dever ser assinala em Kelsen a diferença entre tais sistemas normativos e as leis causais, e, como uma consequência, entre a teoria do direito e, tanto a ciência natural, como a sociologia do direito. No seu livro póstumo a Teoria Geral das Normas, Kelsen, cujo pensamento não evoluiu certamente sob influência directa de Hume, mas certamente sob a de Kant, apraz-se em constatar o seu completo acordo com as ideias de Hume. Afirma: «No que respeita à relação entre «ser» e «dever ser» é Hume mais consequente do que Kant. Não existe para ele a razão prática.»62 Kelsen não teria sido um positivista se não tivesse feito o conteúdo do direito depender de factos. Mas fá-lo: «em assim ser estabelecido – atrás de actos humanos e na eficácia como uma condição de validade reside a positividade da ética e do direito.63 São estes dois factos (Seins-Tatsachen), que são condições de validade de uma norma. Consiste a eficácia em ser a norma observada na maior parte dos casos ou, se não seguida, na maior parte dos casos aplicada, i.e., na maior parte dos casos ou fazemos aquilo que a lei pretende que façamos ou a sanção da não observância é aplicada. Mas Kelsen também afirma que a validade de cada norma depende da eficácia de todas as outras normas que constituem o sistema normativo 61 64 . Reúno agora estas condições de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (C.W., ed. Burns, Hart), p. 299. Op.cit., p.68. 63 Op.cit., p. 114. 64 Reine Rechtslehre, 2d. ed., Viena; Deuticke, 1960, p. 218; «Professor Stone and the Pure Theory of Law», Stanford Law Review, 17 (1965), p. 1139. 62 22 modo a fornecer uma formulação da norma fundamental de Kelsen: se as normas que foram estabelecidas num sistema normativo são eficazes, então cada norma do sistema é válida. Se toda e qualquer norma estabelecida num dado sistema jurídico deriva a sua validade da primeira constituição histórica, a norma fundamental pode igualmente ler-se: se as normas criadas pela primeira constituição histórica são eficazes, a primeira constituição histórica é válida. Tivesse Kelsen compreendido o que somos agora capazes de compreender em Hume, teria dito, penso, que a norma fundamental é a regra semântica que explica o sentido das frases do tipo «deve (ser)» de um facto institucional tal como o direito ou a moralidade social. A diferença institucional entre o direito e a moralidade social é explicada pelos diferentes tipos de sanções, dos quais também depende a eficácia: actos coercivos, e aprovação ou reprovação social. Isto podia, e devia ser de Kelsen, mas não é. Diz Kelsen que o sentido de dever ser e de ser não pode ser objecto de maior elucidação. Assim não é ele capaz de ver como a Grundnorm é a sua própria definição do direito. Como positivista, contudo, não pode passar sem ela. Acaba assim nos seus últimos escritos por afirmar que é uma norma fictícia, uma norma emanada por uma autoridade não existente, uma auto-contradição: «a admissão de uma norma fundamental – como seja a norma fundamental de um sistema religioso: 'devemos obedecer aos mandamentos de Deus' ou a norma fundamental de um sistema jurídico 'devemos fazer como diz a primeira constituição histórica' contradiz não só a realidade, já que não existe uma tal norma como sentido de um acto real da vontade, mas é também autocontraditória, porque autoriza uma mais alta autoridade moral ou jurídica, e tem assim origem numa autoridade que está acima até da última – aliás apenas fingida.»65 Desta forma, não só acaba Kelsen fazendo afirmações absurdas, como se esquece das suas próprias condições de validade, abstendo-se por momentos do positivismo. Não é capaz de explicar como uma mesma frase «A deve casar com B» (para usar um dos seus exemplos) significa uma norma diferente, consoante seja a consequência de uma promessa, uma conclusão moral, ou uma obrigação jurídica. Não vê, finalmente, a diferente relação aos factos que se verifica para o direito e outros factos institucionais, por um lado, e para a ética ou para a teoria da Justiça, por outro. 65 Allgemeine Theorie der Normen, pp. 206-7. 23 Falta a Kelsen, bem mais do que a Hume, uma teoria semântica aceitável, para não dizer uma filosofia da linguagem. Por isso, embora tenha correctamente reconhecido que a validade das normas da ordem jurídica depende da norma fundamental, foi incapaz de especificar a natureza desta última, como síntese das normas constitutivas da ordem jurídica. Tais normas não permitem passar de «é» a «deve» contra a lei de Hume, como dedução lógica de dever ser a partir de ser. Os factos constitutivos do direito não implicam logicamente o direito, são apenas uma condição da sua validade: se se verificam, as normas vigoram, devem ser aplicadas. Mas, contra o que pensa Kelsen, a validade depende de factos de acordo com o reconhecimento judicial das normas constitutivas do direito, como mostrou Hart, e não de acordo com a eficácia externa das normas (ou só em parte de acordo com a eficácia, por ser esse o conteúdo do reconhecimento). Também contra o que pensa Kelsen, a validade não depende apenas da eficácia, mas também da correcção, isto é, da justiça ou racionalidade do direito. Em que medida? Essa medida depende do reconhecimento. As normas constitutivas do direito evoluíram de um sistema de sujeição reconhecida para um sistema de racionalidade pública reconhecida. E, por consequência, a definição do direito também não é imutável, mas varia com as regras constitutivas que determinam o que é direito. Quer isto dizer que o positivismo jurídico deixou de estar de acordo com a realidade. Tal é, pelo menos para mim, também uma consequência importante, senão da lei de Hume, do esforço que fiz por respeitá-la.