Aula: 01-10-1997 - FTP da PUC

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Aula: 11/4/2008
Disciplina: Filosofia
Curso: Relações Públicas
Docente: Luiz Paulo Rouanet
Santo Agostinho (354-430 d.C.)
Santo Agostinho foi o grande sistematizador da filosofia cristã, nos primeiros
séculos do cristianismo. Nasceu no momento de dissolução do Império Romano do
Ocidente, que se concretizou com a invasão de Roma por Alarico, em 410 d.C. O período
pode ser caracterizado como o fim da Antiguidade e o início da Idade Média.
Tendo vivido num momento de transição, portanto, Sto. Agostinho foi capaz de
efetuar uma síntese entre a filosofia pagã, basicamente, a dos gregos, Platão (sobretudo) e
Aristóteles, por intermédio dos neoplatônicos, entre os quais Plotino (203/204-269/270
d.C.) e a emergente filosofia cristã, via Orígenes, os evangelhos sinópticos (João,
principalmente), São Paulo, passando pelos oradores Romanos, Sêneca e Cícero.
De sólida formação clássica (mas com deficiência, segundo ele próprio admite, no
conhecimento da língua grega), quando finalmente se converte, por volta dos 32 anos, vai
utilizar essa bagagem intelectual para sistematizar o pensamento cristão.
Professor, deixa o magistério para se dedicar à meditação e à elaboração da filosofia
cristã, assumindo posteriormente, a contragosto, cargos na estrutura eclesiástica, entre os
quais o de Bispo de Hipona, cidade na África. Lecionou em Cartago (de onde saiu devido
aos "alunos turbulentos"), depois em Roma e em Milão. Narra este e outros assuntos em As
Confissões, escrito por volta de 397.
Após a invasão de Roma pelos bárbaros, em 410, escreve a obra A Cidade de Deus,
onde contrapõe a este mundo materialista e pagão, o mundo espiritual e refúgio seguro do
Reino de Deus.
Seu primeiro contato com a filosofia ocorre através da leitura de uma obra de
Cícero, hoje perdida, intitulada Hortensius, que consiste em um elogio da filosofia. Teve,
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nessa época, preocupações mais "mundanas", como a obrigação de anhar o próprio
sustento, devido ao falecimento do pai. Torna-se professor. Teve também uma ligação da
qual resultou um filho, Adeodato, falecido ainda na adolescência (personagem do diálogo
De magistro - Do mestre).
Inicia sua carreira de professor em Tagaste (África), onde funda uma escola,
transferindo-se depois para Cartago. Lá, desencanta-se com os alunos, e mira para a Itália,
onde irá lecionar, sucessivamente, em Roma e em Milão. Em Cartago,
A maior parte dos alunos (...) fazia os cursos apenas para cumprir obrigações familiares e sociais e,
conseqüentemente, não se interessava muito pelas aulas. Cansado de ser irritado por uma juventude
turbulenta, depois de quase dez anos Agostinho resolveu mudar para Roma.1
O próprio Agostinho descreve do seguinte modo as razões que o impeliram a Roma:
O motivo principal e quase único assentava em ouvir dizer que os rapazes aí estudavam mais
sossegadamente. (...) Em Cartago, (...) a liberdade dos estuantes é vergonhosa e destemperada.
Precipitam-se cinicamente pelas escolas adentro e com atitude quase furiosa perturbam a ordem
que o professor estabeleceu como necessária ao adiantamento dos alunos. Com uma insolência
incrível, cometem mil impropérios que deviam ser punidos, se o costume os não patrocinasse. 2
Essa motivação inicial acaba tendo um efeito benfazejo sobre a carreira do jovem
professor. Em Cartago, tomara contato com a doutrina dos maniqueus, que dividem o
mundo em princípios contrários, governados pelo bem e pelo mal. Tendo porém se
desiludido com esse pensamento já em Cartago, vai encontrar na Itália elementos para
refutar os maniqueus, com apoio do pensamento cristão. Particularmente decisiva será a
1
"Vida e Obra", in Agostinho, Santo, Confissões; Do mestre, 2a. ed., São Paulo: Abril
Cultural, 1980 (Os Pensadores), p. VIII.
2
Agostinho, Confissões, op. cit., Livro V, cap. 8, p. 79.
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influência de Sto. Ambrósio, a cuja direção estará submetido ao ser nomeado professor de
retórica em Milão.
Por volta dos 32 anos, como já foi afirmado, ainda "pecador" e errante, tem uma
revelação, uma "voz" tendo-lhe apontado uma passagem de São Paulo: "Não caminheis em
glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em
contendas e emulações, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis da
carne com demasiados desejos".3
Depois disso, afasta-se do magistério, passando a refletir e a sistematizar o
pensamento cristão.
Aspectos da doutrina de Sto. Agostinho
Segundo Etienne Gilson, "é um fato capital para a compreensão do agostinismo que
a sabedoria, objeto da filosofia, sempre se confundiu, para ele, com a beatitude [i.é, a
felicidade]. O que ele busca é um bem tal que sua posse satisfaça todo desejo e confira, por
conseguinte, a paz".4
Neste ponto, portanto, e talvez somente nesse ponto, Agostinho se aproxima de
Aristóteles, para quem, como vimos, o Supremo Bem se identifica com a felicidade, que é o
objetivo de todo homem. Nesse sentido, a filosofia de Sto. Agostinho também é
eudemonista (ou seja, que põe a felicidade como fim).
Segundo Gilson, ainda, o que interessa a Agostinho, principalmente, "é o problema
de seu destino; procurar conhecer-se, para saber o que é preciso fazer para ser melhor e, se
3
Citado em "Vida e Obra", op. cit., p. VI; cf. Rm 13,13.
4
Gilson, E., Introduction à l'étude de saint Augustin, Paris, Vrin, 1943, p. 01.
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possível, para estar bem, eis para ele toda a questão".5 Vemos também que Agostinho se
inspira em Sócrates: é necessário, em primeiro lugar, conhecer-se a si mesmo.
Agostinho considera, como os estóicos, que a filosofia deve ser voltada para a
prática. "Pode haver, e há, em Sto. Agostinho, uma grande abundância de especulação, mas
ela visa sempre a fins práticos e seu ponto de aplicação imediata é o homem."6
Outro aspecto a ser destacado, em Agostinho, é sua preocupação com a busca de
realização concreta da felicidade. Pode-se ver nisso, também, uma preocupação social, mas
seria um anacronismo atribuir tal implicação a Sto. Agostinho. Este visava sobretudo ao
indivíduo. Gilson resume do seguinte modo o seu raciocínio: "todo homem que não é feliz é
miserável e (...), por conseguinte, aquele que não tem o que deseja é miserável. O problema
da beatitude consiste, portanto, em saber o que o homem deve desejar a fim de ser feliz, e
como pode adquiri-lo".7 Que a felicidade é um fim desejável não constitui, portanto,
problema. O mais difícil é saber o que desejar e como fazer para alcançá-lo.
Não se trata, porém, da felicidade a qualquer custo, ou por qualquer meio. É
importante que ela esteja atrelada à verdade, que é sinônimo de uma vida reta, justa: "ainda
que Agostinho deseje a verdade em vista da felicidade, ele jamais concebeu a felicidade
como possível independentemente da verdade. A posse do verdadeiro absoluto é a condição
necessária da beatitude".8
A vida reta e a obediência, ou temor a Deus, se equivalem e correspondem: "todo
homem que faz o Deus quer, vive bem, e todo homem que vive bem faz o que Deus quer".9
5
Ibidem.
6
Ibidem.
7
Idem, p. 02.
8
Ibidem.
9
Ibidem.
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A fé e a razão em Sto. Agostinho, encontram-se intimamente relacionadas.
Diferentemente de Tertuliano, para quem a fé e a filosofia eram inimigos, e que podia
afirmar "Creio ainda que seja absurdo (credo quia absurdum)", a filosofia e a teologia se
complementam em Agostinho: "Crer para compreender, compreender para crer" (credere ut
intelligere, intelligere ut credere). Como ele dirá, não compreendo em tudo o que creio,
mas creio em tudo o que compreendo. Logo, a compreensão auxilia a fé. Mas a
compreensão, no entanto, ocupa um papel de preparação. Nas palavras de Gilson:
a especulação racional, que nada mais é, no agostinismo, senão a condução perfeita da vida,
desempenhará o papel necessário, mas unicamente preparatório, de um guia da alma em direção à
contemplação mística, , mero esboço, por sua vez, da beatitude eterna e, uma vez que essa doutrina
se orienta inteiramente para a união da alma a Deus, ela não poderia ter outro centro a não ser
Deus.10
E Gilson acrescenta:
desde o início, o Deus agostiniano aparece com seu caráter distintivo de Deus que se dá a conhecer
de modo assaz evidente para que o universo não possa ignorá-lo, mas que só se deixa conhecer na
medida do necessário para que o homem deseje possuí-lo ainda mais e se esforce para procurá-lo.11
Outros pontos a destacar são a sua precedência sobre Descartes na obtenção da
primeira certeza: eu sou e sei que sou. Mesmo que duvide de tal afirmação, ao fazê-lo, já
demonstro minha existência. Esta é portanto a primeira certeza. A partir daí, pela razão,
posso chegar até o conhecimento do supremo bem, ou Deus. Até o próprio cogito (penso),
10
Idem, p. 10.
11
Idem, p. 11.
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da famosa frase de Descartes  "Penso, logo existo" (cogito ergo sum)  é objeto da
reflexão de Agostinho.12
Cabe destacar ainda que Sto. Agostinho não lia a Bíblia de modo literal, seguindo
nisso a seu mestre Sto. Ambrósio. Como diz Gilson, em outra obra, A Filosofia na Idade
Média, "será ouvindo o bispo de Milão [Ambrósio] comentar alegoricamente a Bíblia que
Agostinho descobrirá que a letra mata e o espírito vivifica".13
Para terminar, é preciso destacar o platonismo de Agostinho, que ele foi obrigado a
adaptar para adequá-lo ao cristianismo. É importante notar que Agostinho não compartilha
com Platão a visão negativa em relação à matéria: "Por mais profundamente que tenha
sofrido a influência do platonismo, Agostinho não admitiu um só instante que a matéria
fosse ruim, nem que a alma estivesse unida ao corpo em castigo ao pecado".14
Nas palavras de Sto. Tomás, segundo Gilson, a filosofia de Agostinho se apresenta
como "um esforço para 'seguir os platônicos tão longe quanto a fé católica permitisse'".15
Permitam-me citar este longo trecho da obra de Gilson para concluir a análise, para
os fins de nosso curso, da obra de Sto. Agostinho:
12
Agostinho, Confissões, trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, 2a. ed., São
Paulo: Abril CulturL, 1980, Livro X, cap. 11, P. 180: "a inteligência reinvindicou como
próprio este verbo (cogito), de tal maneira que só ao ato de coligir (colligere), isto é, ao ato
de juntar (cogere) no espírito, e não em qualquer parte, é que propriamente se chama
'pensar' (cogitare)".
13
Gilson, E., A Filosofia na Idade Média, trad. E. Brandão, São Paulo: Martins Fontes,
1995, p. 126. Cf. p. 143: "Visitou o bispo da cidade, Ambrósio, cujas pregaões seguiu, nelas
descobrindo a eistência do sentido espiritual escondido sob o sentido literal da Escritura".
14
Idem, pp. 152-153.
15
Idem, p. 157.
41
A dose de platonismo que o cristianismo podia tolerar permitiu-lhe dotar-se de uma técnica
propriamente filosófica, mas as resistências opostas pelo platonismo ao cristianismo condenaram
Agostinho à originalidade. Uma vez que seu gênio lhe permitia vencer essas resistências, ele teve
êxito na obra teológica em que Orígenes fracassara, mas, dado que essas resistências se
localizavam em certos pontos invencíveis, certas indeterminações inerentes à sua filosofia
subsistiram depois dele, como um chamado a alguma nova reforma do pensamento católico e a um
novo esforço para superá-las. Nem essa reforma, nem esse esforço podiam ter êxito sem
Aristóteles. Platão se aproxima da idéia de criação tanto quanto se pode fazê-lo sem atingi-la, mas
o universo platônico, com o homem que contém, não são mais que imagens apenas reais da única
coisa que merece o título de ser. Aristóteles havia-se afastado dessa mesma idéia de criação; no
entanto, o mundo eterno que ele descrevera gozava de uma realidade substancial e, se assim
podemos dizer, de uma densidade ontológica dignas da obra de um criador. Para fazer do mundo
de Aristóteles uma criatura e do Deus de Platão um verdadeiro criador, era preciso superar a
ambos por alguma interpretação ousada do Ego sum do Exodo [Ex 3,14]. O grande mérito de santo
Agostinho é ter levado essa interpretação até a imutabilidade do ser, pois essa interpretação é
bastante verdadeira, e dela deduzir, com gênio, todas as conseqüências que comporta. Para ir mais
longe ainda, outro esforço de gênio era necessário; seria a obra de santo Tomás de Aquino. 16
16
Idem, pp. 157-158. Cf. Ex 3,14: "Deus disse então a Moisés: 'Responderás o seguinte: 
Eu sou Aquele que sou'. E acrescentou: 'Assim falarás aos israelitas: Eu sou envia-me a
vós!'".
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