Aprendizagem Baseada em Problemas: mudando um padrão de aprendizagem em medicina Prof. Dr. Flávio Dantas Professor Titular Dept.Clínica Médica, Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Pós-Doutorado em Homeopatia (Royal London Homoeopathic Hospital) Tutor do Grupo PET/CAPES – MEDICINA/UFU No final dos anos 70 uma nova proposta de reestruturação do Curso de Medicina da UFU foi implementada pelo Colegiado de Coordenação Didática. Entre outros alvos, a proposta enfatizava a aprendizagem ativa e solução de problemas, pelos alunos do então ciclo profissional, tais como se apresentam na prática do clínico geral (contrariamente ao modelo dominante de ensino das moléstias). O uso da solução de problemas no Curso Médico da UFU era quase que exclusivamente direcionado para os aspectos estritamente técnicos da profissão médica (diagnóstico, tratamento e prognóstico), carecendo de uma perspectiva psico-sócio-econômica mais alargada. A rigor, não se pode dizer que aquela experiência seja conceitualmente similar às mais recentes tentativas de implantação da aprendizagem baseada em problemas que se verifica em algumas escolas médicas brasileiras (EMB). Apesar de bem sistematizada, a experiência foi mal-sucedida. Uma apreciação genérica do episódio nos permite extrair algumas lições da experiência. Como outras experiências de mudança organizacional, alguns pontos críticos merecem ser realçados. Dentre todos se destaca a questão da mudança comportamental dos atores principais do processo – o corpo docente. Em particular, torna-se indispensável que qualquer projeto de mudança curricular que intente mudar o modelo de aprendizagem predominantemente passivo e alienante da realidade sócio-políticoeconômica que ainda hoje predomina nas EMB leve em consideração alguns aspectos que serão abaixo comentados: ENVOLVIMENTO E COMPROMETIMENTO DO CORPO DOCENTE COM A MUDANÇA A proposta na UFU foi decidida no Colegiado com pouco envolvimento dos demais docentes. Várias decisões provocaram atritos e diminuíram o alcance desejado da proposta. Apesar do Curso de Medicina da UFU, à época, contar com significativo número de docentes com formação geral em clínica e cirurgia (além dos ‘especialistas’), não foi bem recebida pelos professores o ensino ambulatorial sem uma triagem prévia dos pacientes para as áreas de maior conhecimento do profissional. Esta situação, geradora de incerteza e ansiedade, foi exacerbada entre os clínicos gerais pela prática de deixar com o especialista a decisão diagnóstica ou terapêutica final em determinados casos. ADEQUADA FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO DOS DOCENTES A mudança de ênfase de uma aprendizagem principalmente passiva para uma outra que seja mais ativa exige a preparação dos docentes para a condução competente de grupos pequenos de alunos. A função de facilitador de grupos (ou de tutor, na tradição anglo-saxônica) exige o domínio de várias habilidades interpessoais (em particular a de saber ouvir) que têm sido quase totalmente negligenciadas na formação dos nossos docentes médicos. Pessoalmente não creio que um treinamento de algumas horas de duração seja suficiente para preparar os nossos atuais docentes para tão difícil função. A abordagem de problemas sob uma perspectiva holística ou integrativa – percebendo causas e mecanismos muito além do simples raciocínio fisiopatológico – exige do profissional um esforço de atualização com a realidade que o cerca para ajudar a correta contextualização do problema em discussão. 2 Idealmente, o tutor (ou facilitador) deveria ser um expert tanto no conteúdo estudado pelos alunos como em suas funções tutoriais de facilitação da aprendizagem; caso isto não seja possível é fundamental que o tutor domine bem as habilidades de facilitação da aprendizagem em grupo. É inaceitável, em grupos tutoriais, professores que são experts no tema mas que são tutores fracos, com baixo domínio de habilidades tutoriais. Apesar de não se poder exigir dos nossos atuais docentes médicos que sejam experts em todos os assuntos discutidos, temos de concordar que para muitos professores é ainda muito sofrido responder, após alguma pergunta de um estudante mais curioso, um honesto “não sei; irei estudar”. Inseguros, sentindo-se pouco competentes para gerenciar os grupos, é natural que o retorno à situação anterior (comunicação predominantemente unidirecional em aulas expositivas) seja reclamado pelos docentes caso este aspecto não seja devidamente solucionado antes da implementação da mudança. MUDANÇAS CONCOMITANTES NAS VARIÁVEIS ESTRUTURA E TECNOLOGIA Não se muda um padrão de aprendizagem por decreto. Várias medidas devem ser tomadas concomitantemente à preparação de pessoal qualificado nas variáveis de estrutura (sistemas de comunicações, sistemas de autoridade e sistemas de fluxo de atividades) e tecnologia. A construção ou aparelhagem de salas apropriadas para reunião de pequenos grupos, redefinição da grade curricular, definição de nova sistemática de coordenação das atividades docentes ou de avaliação do desempenho discente são exemplos de mudanças estruturais necessárias para favorecer a implementação bem-sucedida da mudança. Na área tecnológica, entre outras possibilidades, torna-se imperativo a fácil acessibilidade pelos alunos de fontes informativas atualizadas, o uso de recursos de informática que viabilizem uma aprendizagem mais interativa do aprendiz e, em particular, o domínio de ‘ferramentas’ que aumentem a produtividade da aprendizagem coletiva em pequenos grupos. Parece-me que se tem adotado, em algumas experiências inovadoras na área do ensino tutorial, o pressuposto de que os alunos já dominam com maestria a difícil arte de trabalhar em grupo, de ser membros eficientes de uma equipe. Puro engano, em particular quando se trata de alunos do Curso Médico, altamente competitivos e com os olhos postos na residência médica já a partir do primeiro ano de faculdade. Com poucos exemplos de docentes que realmente sabem trabalhar em equipe, não resta outra alternativa que a de preparar – paciente e diligentemente - os futuros profissionais médicos para o trabalho em equipe, seja como membros ou líderes. À guisa de comentários finais, creio que muitos cuidados são necessários para a adaptação crítica e criativa de métodos ou técnicas pedagógicas aplicados com aparente sucesso em outras realidades bastante diferentes da nossa. No caso da aprendizagem ativa (e baseada em problemas), cabe lembrar que os nossos alunos ainda são, em sua maioria, adolescentes (ou quase) que muito cedo estão sendo expostos a doses frequentemente excessivas do complexo problema do sofrimento humano (o perfil etário e experiencial dos estudantes do Curso Médico da Universidade McMaster é bem diverso do nosso). Os níveis de profissionalização e de respeito aos educadores profissionais existentes no hemisfério norte são muito diversos se comparados à nossa realidade (baixos salários, maioria dos docentes em tempo parcial, avaliação quase inexistente da qualidade e da produtividade educacional nas EMB). Há que se respeitar a nossa cultura e o estágio da nossa caminhada, sem descuidar de melhorar alternativas com as quais nossos docentes e alunos já estão acostumados (vale dizer, porque não se procura treinar os docentes médicos para usar de forma mais produtiva e enriquecida o velho e tradicional método do caso?) Concordo plenamente com a idéia de que se deve enfatizar em alto grau a aprendizagem ativa dos futuros (e atuais) profissionais médicos. Entretanto, não se pode conceber uma mudança tão relevante de padrão de aprendizagem sem a adoção de outras medidas de apoio que inevitavelmente envolverão significativos investimentos financeiros. Para tanto, deveríamos desde hoje estar atuando na formação de um corpo docente qualificado para exercer funções tutoriais. Não é o que se verifica em (quase) todos os cursos de mestrado em medicina, onde a concentração de esforços (até para atender exigências de avaliação da CAPES) tem se fixado na área da produção científica. Como aceitar que apenas uma disciplina com temas de didática, que negligencia a vivência 3 supervisionada de atividades de ensino dos pós-graduandos e é ministrada de forma estanque e teórica, possa qualificar eficazmente os futuros mestres ou educadores das EMB?. Ainda há uma luz no fim do túnel. Uma importante iniciativa brasileira, voltada para a preparação dos futuros docentes do ensino superior, vem sendo capitaneada pela CAPES desde 1979 com a criação do Programa Especial de Treinamento (PET). O PET foi criado para promover a melhoria da qualidade da formação dos alunos do ensino superior e aprimorar a formação acadêmica de uma massa crítica de alunos de graduação que são incentivados à realização de cursos de mestrado e doutorado no futuro. Ele atua por meio de grupos tutoriais de aprendizagem em instituições de ensino superior. Um grupo tutorial se caracteriza pela presença de um tutor com a missão de estimular a aprendizagem ativa dos seus membros, através de vivências, reflexões e discussões, num clima de informalidade e cooperação. Os grupos PETs são constituídos por um tutor e até 12 (doze) alunos, que desenvolvem coletiva e individualmente atividades planejadas em diferentes áreas temáticas, dentro de um enfoque interdisciplinar e integrativo (existem atualmente sete grupos PET nas EMB). O PET se diferencia de outros programas dirigidos a alunos de graduação (como o programa de iniciação científica) pela busca de uma formação acadêmica ampla (evitando a especialização precoce e o aprofundamento num problema específico), ênfase na interdisciplinaridade, necessidade de uma atuação coletiva e do trabalho em equipe, interação contínua dos bolsistas com os colegas e o corpo docente e planejamento e execução de um programa diversificado de atividades nas áreas de ensino, pesquisa e extensão. Apesar da boa performance da maioria dos grupos PET, existem fortes indícios de que os atuais dirigentes da CAPES estão iniciando um processo de ‘desmontagem’ do Programa que se inicia com a recente decisão de vetar a implantação de novos grupos, cortar pela metade o número atual de bolsistas por grupo e retirar os incentivos (bolsas de mestrado) para a realização de pós-graduação em cursos de excelente nível por destacados ex-bolsistas do Programa. Para a área médica, tão carente de profissionais e educadores (atuais e futuros) com vivência e formação no método tutorial de aprendizagem, não deixa de ser mais uma pedra no caminho da implementação bem-sucedida de propostas inovadoras que visem a aprendizagem ativa e baseada em problemas. Oxalá a tênue luz no fim do túnel não seja definitivamente apagada no futuro pelos nossos atuais burocratas de plantão. Comentário enviados sobre este artigo Prof. Flávio Dantas, Sua análise sobre a Aprendizagem Baseada em problemas é muito correta. A resistência aqui na UEL também foi e está sendo muito grande. Estamos tomando uma atitude includente isto é, não excluímos ninguém e tentamos oferecer tantos cursos de capacitação quantos forem necessários. Estamos investindo em Informação e infraestrutura (laboratórios de habilidades) esperamos com isto ter a adesão de um grande número de docentes, contamos com financiamento da Fundação Kellogg e estamos tentando sensibilizar os governos federal e estadual, mas nada disto é muito fácil. Só estamos fazendo isto porque cremos profundamente na necessidade de mudanças e temos um "grupo de apoio" disposto a carregar o piano, fazer acontecer e correr os riscos...Parabéns pela sua análise lúcida e realista dos problemas que envolvem a transformação curricular. Esperemos que tenhamos mais sorte e que sejamos mais includentes e possamos lograr mais adesão e que possamos obter resultados mais alentadores do que na UFU. Aprenderemos com o seus erros e faremos outros... Torçam por nós e que a tênue luz não se apague. Prof. Gordan