ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE Autos nº 02/2010 – Cód. 127650 Ação Civil Pública c/c Obrigação de Fazer Requerente: MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL Requerido: MUNICÍPIO DE TANGARÁ DA SERRA Vistos etc. O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, no uso de suas atribuições legais, ingressou com a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR EM DEFESA DOS DIREITOS DIFUSOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES, COM PRECEITO COMINATÓRIO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER em face do MUNICÍPIO DE TANGARÁ DA SERRA, pessoa jurídica de direito público, visando a condenação da municipalidade a prestar o serviço público de educação infantil em creches para crianças até 5 anos de idade, em condição de igualdade, e em pré-escolas a todas as crianças a partir dos 4 anos de idade, cujos pais desejem matriculá-las, quer por meio de rede pré-escolar própria, conveniada ou indireta, de forma progressiva, até o fim do ano de 2016. Aduz, o ilustre Promotor de Justiça, que o ente público requerido tem ofertado, de maneira insuficiente, o número de vagas do ensino infantil, tendo sido constatada a existência de lista de espera contendo a identificação de 300 pessoas que aguardam a disponibilização de vagas e atendimento nas creches e pré-escolas locais, André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 1 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE havendo um déficit atual de 4.361 vagas, quantitativo este extraído a partir de estáticas acerca do número de crianças residentes no município em idade pré-escolar em contrapartida ao número de vagas existente em toda rede de ensino local (pública e particular). Instruiu a exordial com o Inquérito Civil de fls. 34/285 e deu à causa o valor de R$ 10.000,00 para efeitos fiscais. Após notificação e oitiva da municipalidade requerida, este Juízo concedeu parcialmente as liminares pleiteadas (decisão de fls. 394/398), decisão esta que veio a ser objeto de recurso de agravo de instrumento interposto pelo requerido, ainda pendente de julgamento. Em sede de contestação (fls. 431/450), acompanhada dos documentos de fls. 451/603, o Município de Tangará da Serra, em sede de preliminar, denunciou a lide a União, sob o pretexto de que esta, por força da EC n. 59, está obrigada técnica e financeiramente a dar apoio à municipalidade no fomento e assistência educacional, bem assim alegou inépcia da inicial por ausência de pedido certo e determinado. No mérito, sustenta que a pretensão de criação de 4.361 vagas na educação infantil é precipitada, pois o Município vem sistematicamente utilizandose de políticas públicas na área de educação visando atender à demanda, já que nos últimos anos foram criadas diversas vagas nas unidades elencadas na defesa, e que num período de 06 meses, o déficit assumido pela municipalidade estará extinto. Teceu considerações, ainda, sobre a impossibilidade de concessão de liminar que exaure o objeto da demanda contra a Fazenda Pública, bem como acerca do não cabimento de astreinte para compelir o município à obrigação contida na decisão liminar, por prejuízo desnecessário ao erário, requerendo, ao final, a improcedência da demanda. Às fls. 604/662, documentação encaminhada a este Juízo pelo Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e do Adolescente de Tangará da Serra/MT, noticiando o déficit de vagas escolares e dando conta de inúmeras requisições, sem êxito, expedidas pelo referido órgão André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 2 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE à Secretaria Municipal de Educação visando a obtenção de vagas para crianças em creches e em pré-escolas. Instadas a se manifestarem sobre outras provas ainda a serem produzidas, o Ministério Público pleiteou o julgamento antecipado da lide (fl. 758), ao passo que o demandado pugnou pela juntada de novos documentos, a fim de demonstrar por fotos e procedimentos abertos de licitação a inauguração de creches e que a demanda por vagas na educação infantil foi reduzida drasticamente. Vieram-me os autos conclusos. É o relatório. Fundamento e decido. Trata-se de Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público, visando compelir o requerido a disponibilizar, progressivamente e até 2016, vagas na rede pública da educação infantil e pré-escola no município de Tangará da Serra, com a inclusão dos valores necessários nas futuras leis orçamentárias anuais. Analisando tese e antítese, constato que as questões postas a julgamento se resumem a questões de direito e de fato, estas demonstráveis pela via documental, sendo desnecessária a produção de prova em audiência, mesmo porque, instadas a manifestarem-se a respeito, as partes não pugnaram pela produção de prova oral ou pericial. Logo, na forma do artigo 330, inciso I, segunda parte, do CPC, passo ao julgamento antecipado da lide. Passo ao exame das questões preliminares argüidas pelo requerido em sua contestação. O requerido denunciou a lide a União, sob o pretexto de que esta, por força da EC n. 59, está obrigada técnica e André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 3 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE financeiramente a dar apoio à municipalidade no fomento e assistência educacional. Contudo, tenho por incabível a pretensão da municipalidade. Isso porque, inobstante a obrigação de cumprimento do Direito Fundamental à Educação ser efetuada em regime de colaboração (CF, art. 211 e LDB, art. 11, V), tal circunstância não desonera o Município de cumprir o disposto no § 2º do mesmo dispositivo repetido pela Lei de Diretrizes Básicas da Educação (Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil). Por esse preceito, assim, o réu está obrigado a cumprir pelo menos sua parcela educacional, incluída no sistema global, na linha do que dispõe, aliás, o art. 11, inciso V da LDB: "Art. 11. Os Municípios incumbier-se-ão de: V oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas e, com prioridade, o ensino fundamental...". E, a presente ação pretende justamente discutir essa sua (ir)responsabilidade. Ademais, a denunciação à lide (CPC, art. 70) se vincula à obrigação de natureza contratual e/ou decorrente da lei de caráter solidário, inexistente na espécie. A obrigação é do Município, sem prejuízo de que este demande, em nome próprio, contra os indicados buscando a colaboração. Todavia, negar a possibilidade de discussão sobre suas responsabilidades com o singelo argumento de repasse de responsabilidades (a União) não se compadece com o regime democrático (CF/88). Desse modo, rejeito a preliminar. Suscitou, ainda, o requerido, a inépcia da inicial por ausência de pedido certo e determinado. Todavia, tenho que tal preliminar igualmente não merece acolhimento. Primeiramente, como se pode observar pelos documentos carreados na inicial, a presente ação não possui apenas André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 4 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE embasamento em ‘denúncias anônimas’, mas sim em diversos documentos, inclusive alguns emitidos pelo próprio Município de Tangará da Serra, os quais comprovam a efetiva necessidade de criação de vagas em creches no município, conforme se consta do inquérito civil que instruiu a inicial (fls. 34/285. Assim, não é possível afirmar que a petição inicial é inepta, pois o próprio requerido informou que há um déficit em vagas, inclusive indicando números precisos das crianças destinatárias da ação. Assim, deixo de acolher a presente preliminar. Afastas as questões preliminares argüidas pela municipalidade requerida, passo ao exame da questão meritória. De proêmio, destaca-se que o art. 6º, da Constituição Federal trata dos direitos sociais, dentre os quais se inclui o direito à educação. Passando-se aos demais dispositivos constitucionais, denota-se que o art. 23, ao tratar da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios, em seu inciso V, determinou que os tais entes públicos devem proporcionar os meios de acesso à educação. Ainda no âmbito constitucional, o art. 205 põe a educação como "direito de todos e dever do Estado e da família", sendo que o art. 208, em seu inciso IV, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 53/06, assim determina: "Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;" Insta salientar que, anteriormente à Emenda Constitucional n. 53/06, o supracitado dispositivo constitucional já André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 5 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE garantia o atendimento em creche às crianças de "zero a seis anos", sendo que a idade máxima somente foi reduzida para 5 (cinco) anos. Compreende-se que tal alteração apenas levou em conta a redução da idade da criança para o ingresso no ensino fundamental, que passou a acontecer aos 6 (seis) anos. Outrossim, a creche e a pré-escola visam o desenvolvimento integral da criança, e servem para iniciação das crianças no ensino fundamental. Por isso, tem-se que a educação infantil é um direito indisponível que deve ser assegurado às crianças com até 5 (cinco) anos de idade. Nessa senda, nunca é demais frisar que a educação é um dos alicerces para a consubstanciação de um Estado democrático de direito, que se mostra preocupado, acima de tudo, com a formação condigna dos seus cidadãos. Não destoa dessa linha o art. 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), quando impõe que "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes [...] à educação". Em complementação, o art. 53, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente determina que o Estado deve assegurar "atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade". Igualmente, o art. 4º, IV, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96), assegura às crianças de zero a seis anos de idade o atendimento gratuito em creches e pré-escolas. Em interpretação conjunta desses dispositivos legais infraconstitucionais, com a Constituição Federal, em especial seu art. 208, IV, tem-se que o direito das crianças de zero a cinco anos de idade à vaga em creche e/ou pré-escola encontra embasamento legal. Por conseguinte, cabe aos entes públicos, como o Município, e seus André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 6 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE organismos, executar programas que garantam a integridade e o gozo desse direito indisponível. É o posicionamento do Supremo Tribunal Federal: "RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das 'crianças de zero a seis anos de idade' (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 7 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade políticoadministrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostrase apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à 'reserva do possível'. Doutrina." (STF. RE-AgR 410715/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 22.11.2005) verbis: O STJ igualmente já perfilhou este pensamento, André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 8 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. ALÍNEA "C" DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. NÃODEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA. DIREITO A CRECHE E A PRÉ-ESCOLA DE CRIANÇAS ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL . LESÃO CONSUBSTANCIADA NA OFERTA INSUFICIENTE DE VAGAS. 1. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC. 2. Na ordem jurídica brasileira, a educação não é uma garantia qualquer que esteja em pé de igualdade com outros direitos individuais ou sociais. Ao contrário, trata-se de absoluta prioridade , nos termos do art. 227 da Constituição de 1988. A violação do direito à educação de crianças e adolescentes mostra-se, em nosso sistema, tão grave e inadmissível como negar-lhes a vida e a saúde . 3. O Ministério Público é órgão responsável pela tutela dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos relativos à infância e à adolescência, na forma do art. 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. 4. Cabe ao Parquet ajuizar Ação Civil Pública com a finalidade de garantir o direito a creche e a pré-escola de crianças até seis anos de idade, conforme dispõe o art. 208 do ECA. 5. A Administração Pública deve propiciar o acesso e a freqüência em creche e pré-escola, assegurando que esse serviço seja prestado, com qualidade, por rede própria. 6. De acordo com o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF), garantia básica do Estado André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 9 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE Democrático de Direito, a oferta insuficiente de vagas em creches para crianças de zero a seis anos faz surgir o direito de ação para todos aqueles que se encontrem nessas condições, diretamente ou por meio de sujeitos intermediários, como o Ministério Público e entidades da sociedade civil organizada. 7. No campo dos direitos individuais e sociais de absoluta prioridade , o juiz não deve se impressionar nem se sensibilizar com alegações de conveniência e oportunidade trazidas pelo administrador relapso. A ser diferente, estaria o Judiciário a fazer juízo de valor ou político em esfera na qual o legislador não lhe deixou outra possibilidade de decidir que não seja a de exigir o imediato e cabal cumprimento dos deveres, completamente vinculados, da Administração Pública. 8. Se um direito é qualificado pelo legislador como absoluta prioridade , deixa de integrar o universo de incidência da reserva do possível , já que a sua possibilidade é, preambular e obrigatoriamente, fixada pela Constituição ou pela lei. 9. Se é certo que ao Judiciário recusa-se a possibilidade de substituir-se à Administração Pública, o que contaminaria ou derrubaria a separação mínima das funções do Estado moderno, também não é menos correto que, na nossa ordem jurídica, compete ao juiz interpretar e aplicar a delimitação constitucional e legal dos poderes e deveres do Administrador, exigindo, de um lado, cumprimento integral e tempestivo dos deveres vinculados e, quanto à esfera da chamada competência discricionária, respeito ao due process e às garantias formais dos atos e procedimentos que pratica. 10. Recurso Especial não provido.” (RECURSO ESPECIAL Nº 440.502 - SP (2002/0069996-6) - RELATOR : MINISTRO HERMAN BENJAMIN) André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 10 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE No mesmo sentido, também existem precedentes do Superior Tribunal de Justiça: REsp 753565/MS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27.03.2007; REsp 796490/SP, Rel. Min. João Otávio Noronha, julgado em 15.12.2005. Desse modo, resta evidenciado que o Poder Executivo, no exercício de suas atribuições, está vinculado às normas constitucionais e infraconstitucionais, dentre elas aquelas que estabelecem os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e a prioridade absoluta no seu atendimento. Inobservados esses preceitos, o Poder Judiciário deve garantir o respeito à vontade constitucional e à legalidade, não se podendo excluir de sua apreciação lesão ou ameaça a direito, ex vi do inciso XXXV do art. 5º da Magna Carta, inclusive em face do devido processo legal substancial. É de se consignar que, tratando-se de garantia constitucional, longe de aventar-se que seja instituída por norma meramente programática, a intervenção do Poder Judiciário não caracteriza ofensa aos princípios da independência entre os poderes (art. 2º, da Constituição Federal de 1988) e da legalidade (art. 5º, inciso I, e 37, caput, da Magna Carta), que em cumprimento de sua função constitucional deve, quando provocado, apreciar a suscitada ocorrência de lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5o, XXXV, da CF). O Poder Judiciário não está se imiscuindo indevidamente na esfera de atuação discricionária de outro Poder e sim determinando que ele cumpra aquilo que a Constituição e as leis lhe mandam cumprir. Por conseguinte, tem-se que a intervenção do Poder Judiciário em atos do Poder Executivo, no presente caso, é legítima, e não caracteriza ofensa à separação dos poderes, uma vez que visa garantir direito fundamental das crianças. Até porque, conforme alhures mencionado, o inadimplemento do Poder Público pode ser considerado como uma inconstitucionalidade por omissão, por deixar de implementar o direito à educação por meio de políticas públicas concretas. André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 11 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE Ao lado de tudo que foi exposto, constata-se, da leitura dos autos que o Município de Tangará da Serra, embora afirme que vem sistematicamente utilizando-se de políticas públicas na área de educação infantil, inclusive com obras em andamento para construção de duas creches com capacidade aproximada de 225 vagas e reforma de ampliação de 100 vagas no ano de 2009, que não serão suficientes para o atendimento da demanda, não vem dando a devida atenção ao ensino fundamental, tanto que, nos autos, há diversas listas de espera e solicitações dirigidas ao Município de Tangará da Serra, ora requerido, seja pelo próprio Ministério Público seja pelo Conselho Tutelar local, ou ainda, pela Defensoria Pública Estadual, de que sejam abertas vagas em creches e de educação infantil para que crianças, que são individualizadas nestes requerimentos, possam ser atendidas nessa importante fase da vida. Se estivesse dando atendimento às demandas relacionadas ao ensino fundamental não haveria um grande número de pedidos de abertura de vagas. Ainda demonstrando a desatenção da municipalidade requerida com o oferecimento de creches e pré-escolas às crianças aos que nela residem, há nos autos cópia das leis orçamentárias municipais de 2009 e 2010 sem previsão de despesas para construção de creches e reserva de contingência. Há, igualmente, estimativa de residir na cidade cerca de 7.136 crianças com até cinco anos de idade, e de que o número de vagas disponíveis é de cerca de 2.495 na rede municipal, o que gera um défcit de 4.641 vagas, fatos esses, embora afirmados pelo Ministério Público, que não foram refutados pelo requerido, à exceção de que no período 2009/2010/2011 teriam sido criadas 100 vagas na Creche Irmã Maristela, estão em construção 225 vagas nas creches dos bairros Jardim Atlântida e Jardim Paulista e, que estão programadas mais 100 vagas pela reforma da Creche Futuro Brilhante e mais 190 vagas mediante construção de outra creche no bairro Jardim Califórnia. Ora, inobstante as vagas recém construídas, contudo restando demonstrado que no Município de Tangará da Serra há, como indicado na petição inicial da ação civil pública proposta pelo Ministério Público, um elevado déficit no número de vagas existentes nas creches e André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 12 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE pré-escolas municipais - o número referente ao déficit indicado pela Dr. Promotor de Justiça foi refutado integralmente pelo requerido, presumindo-se, portanto, verdadeiro – mostra-se necessário a determinação de providências concretas para que esse problema venha a ser solucionado, ainda mais que o direito das crianças terem acesso a creches e pré-escolas constitui direito constitucionalmente assegurado (art. 208, inc. IV, da Constituição Federal). Outrossim, é de se registrar que o próprio requerido afirma ter sido aumentado para 225 o número de vagas em creche e programado outras 290 ainda para este ano de 2011, que equivale em torno de pouco mais de 500 vagas para crianças de zero a cinco anos de idade, ou seja, suprirá pouco mais de 10% (dez por cento) das necessidades atuais. Assim, constata-se que é possível ao requerido dar cumprimento integral à determinação contida na presente sentença, já que a pedido do próprio Ministério Público o prazo para tanto é progressivo e consideravelmente dilatado, cabe ao Município incluir nos próximos orçamentos a previsão para construção de outros vagas em creche e na pré-escola, e com isso abrir aproximadamente mais 4.000 vagas até o ano de 2016. Desta forma o Município estará cumprindo o seu dever constitucional e priorizando a infância e a maternidade, e simultaneamente cumprindo a lei orçamentária e a lei de responsabilidade fiscal. Frise-se, outrossim, que a despeito de a legislação ser contrária à concessão de liminar contra a Fazenda Pública, tratandose de direitos relativos à criança e ao adolescente – a quem deve ter assegurado o acesso à educação, não há qualquer impropriedade na antecipação dos efeitos da tutela, mormente porque a presente ação busca garantir que as crianças residentes neste Município tenham acesso à creche e pré-escola da rede pública – o que constitui prioridade absoluta, porquanto se destina ao desenvolvimento, a inserção social e a André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 13 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE futura qualificação para o trabalho, não se sustentando a alegação do requerido em sentido contrário. Com base em todos esses procedência da pretensão inicial é medida de rigor. fundamentos, a DIANTE DO EXPOSTO, JULGO PROCEDENTE o pedido contido na inicial para o fim de condenar o Município de Tangará da Serra, sem prejuízo dos necessários procedimentos licitatórios, a promover políticas públicas efetivas para disponibilizar vagas nas creches e unidades de educação infantil na forma e nos prazos que seguem: 1) para o início do ano letivo de 2011 ofereça mais 300 vagas na educação infantil, sanando o contingente urgente/emergencial de Tangará da Serra; 2) até o fim de 2011 ofereça mais 500 vagas; 3) até o fim de 2012 ofereça mais 500 vagas; 4) até o fim de 2013 ofereça mais 500 vagas; 5) até o fim de 2014 ofereça mais 561 vagas; 6) até o fim de 2015 ofereça mais 1000 vagas; 7) até o fim de 2016 ofereça mais 1000 vagas. Deverá o requerido, ainda, adotar as providências necessárias para que sejam incluídos os respectivos valores nas próximas leis orçamentárias anuais, valendo-se para tanto, acaso necessário, da reserva de contingência, encaminhando-a ao Poder Legislativo nos prazos estabelecidos em lei Outrossim, ratifico em todos os seus termos a liminar outrora deferida nos autos. Em substituição às multas fixadas quando do deferimento do provimento liminar, comino, nos termos do art. 213, § 1º do ECA, multa mensal de meio salário mínimo por vaga não preenchida, dentro do cronograma e até o limite das vagas acima estabelecidas, revertendo os valores ao Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, ressaltando que não há óbice no ordenamento jurídico brasileiro à concessão de ‘astreintes’ para compelir a Fazenda Pública ao cumprimento de obrigação de fazer. André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 14 ESTADO DE MATO GROSSO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DE TANGARÁ DA SERRA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE De outro lado, contudo, a despeito da imperiosa necessidade de conferir efetividade à prestação jurisdicional e de prestigiar a segurança jurídica, tenho que não se mostra apropriada manutenção da multa diária fixada à pessoa do Sr. Prefeito Municipal, já que, a par de não ter observado o contraditório e a ampla defesa, não tem razão de ser pelo fato de que ele não é parte no processo, além do que, a fim de reprimir os atos do mau administrador, o sistema oferece alguns mecanismos que podem se provocados na via própria, seja no âmbito criminal ou civil, além da possibilidade de intervenção federal, nos moldes do art. 34, inciso VI, da Carta da Republica. Isento de custas e honorários advocatícios. SENTENÇA SUJEITA AO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO, por imposição do disposto no artigo 475, inciso I, do Código de Processo Civil. Assim, decorrido o prazo recursal, haja ou não apelação voluntária, remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. P. I. e Cumpra-se. Tangará da Serra, 29 de setembro de 2011. ANDRÉ MAURICIO LOPES PRIOLI Juiz de Direito André Mauricio Lopes Prioli – Juiz de Direito 15