Parte 3 – Em Sarajevo, Ferida Aberta

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PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914-1918)
Parte 3 - Em Sarajevo, Ferida Aberta, por Amila Kasumović1
Autores e motivações do crime que serviu de estopim para a Primeira Guerra ainda intrigam bósnios
Dois tiros, e a Europa colocou-se em marcha irreversível rumo a um conflito generalizado, que se tornou a
Primeira Guerra Mundial. Dois tiros disparados na cidade de Sarajevo, atual capital da Bósnia e Herzegovina ou
Bósnia-Herzegovina. O assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando, em 28
de junho de 1914, deixou marcada uma região que já havia sido palco de milenares disputas territoriais, que depois
seria socialista durante boa parte do século XX, e novamente assolada por uma guerra nos anos 1990.
Os fantasmas do passado continuam a assombrar Sarajevo. Tanto tempo depois, e mesmo com a abundância
de textos produzidos sobre o tema, muitas questões permanecem em aberto. Como entender o movimento “Jovem
Bósnia”, responsabilizado pelo crime? Qual o papel da Sérvia no atentando? Qual é a percepção atual sobre o jovem
assassino Gavrilo Princip?
Em diversos textos, a autoria do atentado é atribuída à organização “Jovem Bósnia”. O termo “organização”,
no entanto, parece inadequado, uma vez que ela não era formalmente reconhecida pelo governo, não possuía um
estatuto ou um programa de atividades, nem mesmo o registro de seus membros.
Cvetko Popović, um dos participantes do assassinato, provavelmente nos fornece a melhor definição do movimento:
“um molde vazio no qual qualquer escritor poderia alocar conteúdos arbitrários”. Reunia forças jovens na Bósnia e
Herzegovina movidas por diferentes convicções políticas e ideológicas, variando do anarquismo e do socialismo ao
nacionalismo sérvio e o “iugoslavismo” – o ideal da união dos povos “eslavos do sul”, incluindo os bósnios, para criar
a Iugoslávia. Nessa vaga ideia de unificação, a Sérvia teria um papel significativo, equivalente ao que teve o Piemonte
na formação do Estado italiano no século XIX. O que aqueles jovens tinham em comum era o ódio direcionado ao
Império Austro-Húngaro e o desejo de se libertarem do controle estrangeiro.
“A juventude progressista nacional iugoslava”, como é comumente chamada pela historiografia,
considerava que o desenvolvimento de planos terroristas contra o Império dos Habsburgos era legítimo e justificado.
No início do século XX, tiros assassinos soavam por toda a província balcânica. Na Bósnia e Herzegovina, Bogdan
Žerajić tentou assassinar o governador provincial Marijan Varešanin no verão de 1010. Na Croácia, o ban (espécie de
vice-rei) Slavko Cuvaj foi alvo de atentados em duas ocasiões em 1912, sem sucesso. E há a suspeita de outro ataque
contra o ban Ivo Skerlecz, em maio de 1914. Os acontecimentos em Sarajevo foram uma sequência dessas ações.
Vários relatos de membros do Jovem Bósnia dão conta de que seis integrantes concordaram com o assassinato
de Francisco Ferdinando durante sua visita a Sarajevo: Gavrilo Princip, Cvetko Popović, Muhamed Mermedbašić,
Nedeljko Čabrinović, Vasa Čubrilović e Tvrtko Grabež. Algumas fontes indicam que Danilo Ilić era o organizador e
coordenador do grupo. Muitos outros nomes já foram mencionados como direta ou indiretamente envolvidos no
movimento e na execução do atentado, a maior parte deles originária da Bósnia e Herzegovina, mas também havia
conspiradores sérvios. O papel oficial da Sérvia no planejamento do atentado de Sarajevo e a busca por um
responsável pelo estopim da Primeira Guerra Mundial permanecem vitais para os historiadores da Bósnia e
Herzegovina. Aceitar o envolvimento da Sérvia no atentado significa dizer que ela também tem sua parcela de culpa
pelo início da Guerra.
As possibilidades de se reconstituir o planejamento do atentado são, infelizmente, muito limitadas. Ainda
assim, o historiador Joachim Remak tentou fazê-lo, após a anexação da Bósnia e Herzegovina pelo Império AustroHúngaro, em 1908, formou-se na Sérvia uma organização chamada “A Defesa Nacional”, com o objetivo de
disseminar uma propaganda antiaustríaca. Com o passar do tempo, ela se enfraqueceu e seu papel foi assumido por um
movimento mais radical – “Unificação ou Morte”, também conhecido pelo nome de “Mão Negra”. Esta organização
era conduzida por oficiais responsáveis pelo golpe de Estado na Sérvia em 1903, quando o rei Pedro I da Sérvia
chegou ao trono. A figura principal era o chefe do Serviço de Inteligência Sérvio, o tenente-coronel Dragutin
Dimitrijević Apis. Ele mantinha comunicação ativa com os membros que se encontravam no território da Bósnia e
Herzegovina e, no final de 1913, esteve com Danilo Ilić para planejar o que ele acreditava ser o assassinado do
governador provincial da Bósnia e Herzegovina. O acordo se confirmou em uma reunião na França com os
“revolucionários” da Bósnia e Herzegovina, organizada pelo major Vojislav Tankosić, no início de 1914.
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AMILA KASUMOVIĆ é professora da Universidade de Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina (Texto traduzido por Agnes Alencar).
O plano inicial muito provavelmente se transformou quando os jornais noticiaram a visita do herdeiro ao trono
austro-húngaro, Francisco Ferdinando, à Bósnia-Herzegovina. Tudo o que Tankosić precisou fazer foi convocar
alguns dos membros da “Jovem Bósnia”. Muitos historiadores insistem em que a ideia do atentado surgiu em
Sarajevo, em círculos próximos ao jornal Srpskariječ, e que isto apenas foi reportado aos membros do “Mão Negra”
de Belgrado. Outros consideram que o plano proveio de Apis – codinome do coronel Dragutin Dimitrijević, radical e
belicista – para quem Francisco Ferdinando era um símbolo do domínio estrangeiro e da detestável monarquia.
Historiadores sérvios consideram que uma das justificativas mais aceitáveis para o assassinato de Francisco
Ferdinando teria sido a sua ardente defesa da agressiva política externa austro-húngara. Deste modo, a
responsabilidade da Sérvia diante dos eventos que originaram a Grande Guerra seria reduzida significativamente.
Porém, diversos autores – como Robert Kann, A. J. P Taylor e Anika Mombauer – argumentam que Francisco
Ferdinando pode até ter sido um radical, mas não era um belicista. O Império Austro-Húngaro provavelmente estava
ciente de que a Rússia também tinha interesses nos Bálcãs, e protegeria a Sérvia.
A elite política sérvia estava familiarizada com o planejamento do atentado em Sarajevo. As armas utilizadas
pelos assassinos foram transportadas da Sérvia. Tudo estava preparado para o ato que deveria acontecer no grande
feriado ortodoxo, o dia de São Vito. Era uma data muito significativa para os sérvios: o dia 28 de junho marcava os
525 anos da Batalha de Kosovo – conflito envolvendo os exércitos sérvio e otomano. Houve avisos de que a visita de
Francisco Ferdinando, justamente nesta data, poderia ser considerada uma provocação. Ainda assim ela não foi
cancelada. Os assassinos estavam familiarizados com o trajeto da viagem e com a visita ao prédio da prefeitura em
Sarajevo. Mas a bomba lançada por Nedeljko Čabrinović não foi suficiente para alcançar o planejado. Apesar dos
feridos, o cortejo prosseguiu inalterado com o herdeiro e sua esposa Sophia. Depois disso houve diversas falhas de
segurança, especialmente quando o arquiduque deixou o prédio da prefeitura com a intenção de visitar os feridos no
hospital. Os motoristas não possuíam uma rota precisa, e Gavrilo Princip se aproveitou de uma manobra equivocada
do trajeto: quando o cortejo parou para remanejar o caminho diante do erro e retornar, ele deu os dois tiros que
mataram Francisco Ferdinando e sua esposa.
Seria Gavrilo Princip e Nedeljko Čabrinović os tiranicidas de Sarajevo? Por muito tempo esta pergunta
encontrou uma resposta afirmativa. Para os estudantes iugoslavos, aquele fora um ato heroico, progressista e
libertador. As ações de Princip por muito tempo foram consideradas como reflexo da máxima socialista de “irmandade
e unidade”, um símbolo do histórico “não” ao controle estrangeiro.
Na década de 1990, a guerra na Bósnia e Herzegovina (1992-1995) trouxe sem piedade novas possibilidades
de leitura do passado e forçou uma revisão do que havia sido ensinado. Abriu-se espaço para uma nova interpretação
da ação simbólica de Princip: não seria ele um terrorista? Qual monumento deveria estar no local onde ocorreu o
atentado de Sarajevo: aquele erigido a Francisco Ferdinando e sua esposa em 1917 (e retirado depois da guerra), ou
aquele erigido em homenagem a Gavrilo Princip durante o período socialista (e retirado nos anos 1990)? Cem anos
depois, o confronto entre Princip e Ferdinando continua em aberto.
(Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 9, nª 106, Julho 2014, p. 22-25.)
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