Globalização e Formações Identitárias: categorias [a?] da

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Globalização e Formações Identitárias: categorias
[a?] da democracia no contexto pós-moderno
Sérgio Luís P. Silva
RESUMO
Este paper apresenta uma reflexão sobre as formações sociais identitárias no contexto dos sistemas complexos da
sociedade contemporânea, procurando enfatizar o caráter de mudança que se faz presente nos argumentos teóricos
atuais no campo da sociologia. Para isso, buscamos constituir um mosaico teórico no sentido de aproximar referências
teórico-analíticas que procuram explicar os fenômenos sociais da globalização que se situam na dimensão entre a
“modernidade” e a “pós-modernidade” como é o caso da identidade, da democracia e do reconhecimento das diferenças
na sociedade global.
Palavras-chave: identidade, sociedade complexa, reconhecimento social, democracia e globalização.
Considerações iniciais
Initial Considerations
O pano de fundo temático que ambienta a reflexão deste paper se fundamenta em dois
aspectos: “a política” e “as formações sociais identitárias”, ambas tendo como base o
reconhecimento como mecanismo de reciprocidade interativa das diferenças na sociedade global. A
“política” é aqui concebida como um instrumento de interação e negociação de interesses; as
“formações identitárias” como reconhecimento político e afirmativo dos interesses e das diferenças
dentro de uma fronteira através da qual os fluxos simbólicos e os códigos diferenciados negam uma
suposta essência do ser.
O elenco das questões de fundo deste trabalho está situado na relação entre “cultura
política” e “racionalidade dos procedimentos identitários”, duas categorias de análise que orientam
os debates contemporâneos sobre a temática da democracia e da globalização. Sob esse aspecto, o
comportamento político é fruto do poder propositivo da cultura política e dos procedimentos
identitários e sendo assim são questões relevantes para caracterizar o sentido da democracia na
sociedade global. Nesse contexto, essa produção de sentido estrutura-se com base na complexidade
social e seu caráter de descentralização. O nosso ponto de partida está centrado na discussão da
democracia dos pressupostos universais e particulares e os valores políticos que essa discussão
apresenta no contexto da crise conceitual entre o moderno e o pós-moderno da questão
democrática. Esta crise é estabelecida, na relação entre: 1) a modernidade teórica, fundadora das
narrativas hegemônicas dos regimes democráticos e fundadora de um imaginário político universal
produtor de um discurso de legitimidade política e da normatividade institucional; e 2) a pósmodernidade crítica, fundadora de modelos de desconstruções fragmentárias das narrativas
doutrinárias instauradas pela modernidade e por um imaginário político atomístico.
Ambas as questões tentam subsistir no processo da globalização, hegemonicamente
econômica e politicamente difusa, que de forma inexorável fundamenta uma mudança radical das
bases políticas das identidades regionais e locais, assim como o sentido do poder simbólico dos

O autor é sociólogo e doutorando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.
valores democráticos. Sentido esse problemático, dinâmico e difuso que possibilita o
questionamento de sua própria validade, ou seja a validade da própria democracia, e nos permite
formular questões como: é possível falar num valor universal do processo democrático no que se
refere ao princípio de igualdade e liberdade? ou o direito à diferença deve ser o principal valor da
igualdade dentro desse processo dentro da universalidade? Ou ainda questões mais estruturais como
as elaboradas por Denis Rosenfild (2000) referindo-se ao que ele chamou de “a medida ficcional da
democracia”: “Em que regras se assenta a democracia contemporânea e quais são os princípios
ditos norteadores de uma sociedade democrática?” Ou mesmo em um sentido mais amplo como as
questões levantadas por José Maria Gomez (2000): (...) quais as limitações e quais as
possibilidades para uma política democrática hoje, diante das evidências da expansão, da
intensificação, e da aceleração dos processos e das forças econômicas, políticas, culturais e
ambientais de interconexão global e regional, que caracterizam o final do século XX e o início do
século XXI?. (p.09)
O caráter aparentemente simples dessas questões apresenta o contexto discursivo do valor
da contestabilidade da democracia, no sentido do reconhecimento de sua complexidade conceitual,
teórica, procedimental e funcional sob a lógica da abordagem política. A produção do sentido
discursivo da “democracia” representa o aspecto de diferenciação temático das formas de
afirmação de seus valores legítimos e a possibilidade também legítima de questionamento desses
valores.
Sob esse aspecto, devemos ressaltar que uma das coisas mais positivas da democracia, na
condição de conceito político, é que ela é contestável como afirma Dallmayr (2001). No momento
contemporâneo, diferentemente de outro momentos na história, a contestabilidade da democracia,
tanto pelos críticos como pelos atores sociais, não é sobre a questão se devemos ter democracia
como forma de governo ou regime político, seja esta parlamentar, direta, representativa,
deliberativa, etc., mas como devem ser estas democracias e qual seu processo de gestação política
do ponto de vista da legitimidade social e da heterogeneidade dos interesses identitários.
Entenda-se por isso, reconhecimento sócio-político ante as diferenciações cada vez mais
afirmativas das sociedades contemporâneas que por sua vez caracterizam-se complexas,
diversificadas, dissensuais, acríticas, híbridas, polifônicas e polissêmicas. E que ainda tem outros
tipos de problemas como os de cunho institucional relacionados a questão da administração
institucional das formas da governabilidade política estruturadas em um Estado de governo, não
menos diferente das características acima registradas, ou seja, um Estado que, via de regra, não
saber lidar, ou o que fazer, com o funcionamento institucional da democracia ante a complexidade
das sociedades contemporâneas e a pluralidade muitas vezes incompatíveis em relação aos
interesses políticos dos atores sociais.
Na prática, o que podemos afirmar quanto a contestabilidade da democracia é que as
pluralidades das proposições democráticas, no sentido de reconhecimento político, representa um
avanço, em termos de cultura política quanto a estruturação do poder simbólico da própria política.
Ou seja, um ganho significativo ao que respeita o capital simbólico de articulação política e da
própria cultura política instituída (interação, articulação e formas de negociação dos atores sociais e
representação de legitimidade das instituições). O momento de cultura afirmativa que vem
atravessando a sociedade contemporânea, sobretudo as mais complexas, representa a efetivação de
um multiculturalismo com reconhecimento. Em termos da sociedade brasileira ousaríamos dizer
um multiculturalismo complexamente híbrido, de cunho político e um espaço público
multiidentitário e sincrético através dos quais os vínculos de ação, articulação e contestabilidade
política e social adquirem legitimidade no processo das mudanças contemporâneas.
(...)multiculturalismo não significa simplesmente pluralidade numérica de
diferentes culturas, mas um espaço comunitário que é criado, garantido e
encorajado dentro do qual diferentes comunidades são capazes de crescer no seu
próprio ritmo. Ao mesmo tempo significa a criação de um espaço público no qual
essas comunidades são capazes de interagir enriquecendo a vivência cultural e
criando um novo consenso cultural no qual possam reconhecer os reflexos de sua
próprias identidades. A definição de Parekh evita a noção de multiculturalismo
como um pluralismo superficial. Permite identificar os desafios presentes no
desenvolvimento de um novo espaço público, do ponto de vista dos defensores
dessa nova política multicultural. (Bhabha e Parekh, 1989, p. 4 apud Silvério,1999,
p.47).
As formações identitárias no nível do reconhecimento, tendo como base a política como
mecanismo de interação das diferenças, introduz um novo aspecto na sociogênese da democracia.
Talvez o melhor termo conceitual seja o de “figuração” desenvolvido por Nobert Elias em O que é
Sociologia? Para Elias o conceito de figuração significa uma formação social na qual as dimensões
podem ser variáveis em que os indivíduos ligam-se uns aos outros por uma forma de dependência
de reciprocidade que promove tensão e equilíbrio nas relações sociais. Nesse sentido, a figuração
da democracia contemporânea tem esse caráter do ponto de vista das relações identitárias ou da
legitimidade da diversidade como mecanismo de política das diferenças no que se refere a tensões e
equilíbrio das relações políticas da cultura democrática contemporânea. Tensão e equilíbrio
presentes no contexto de diversidade e dependência entre esses poderes por um lado e a sociedade
civil política e diversificada por outro.
O dispositivo da contestabilidade é parte do mecanismo político desse processo de figuração
na formação social contemporânea. A formação social da democracia contemporânea está também
fundamentada no paradoxo entre as práticas sociais simbólicas da diversidade e a rigidez unilateral
e instituída pelo sistema político, presentes por exemplo, nos mecanismos de governabilidade do
poder executivo e funcionalidade política do poder legislativo. Podemos dizer do ponto de vista do
significante simbólico que a proposição dessa figuração democrática tem como principal
conseqüência a mudança do sentido político da democracia visando a incorporação da alteridade e
da tolerância e a inibição dos fundamentalismos político-ideológicos estruturados em valores
simbólicos conservadores.
Podemos dizer a esse respeito, inclusive, com relação ao aspecto da diferença e do
reconhecimento, que no contexto social contemporâneo o caráter significativo de articulações
internacionais como o Fórum Social Mundial (FSM), tanto o primeiro realizado em Janeiro de
2001 como o segundo, realizado exatamente um ano depois – ambos realizados em Porto Alegre -,
tem causado um grande bem ao sentido de alteridade do multicuturalismo propositivo presente na
cultura democrática contemporânea, na medida em que o FSM, dentre outras coisas tem o caráter
efetivo de se constituir num espaço público para a diversidade em escala global com
reconhecimento e legitimidade política internacional2. Pois em ações como as do FSM reconhece-se nas
diferenças identitárias a possibilidade de um relacionamento político mais condizente com a cultura democrática da
diversidade.
2
Alguns autores chamariam atenção para o caráter de formação de uma sociedade civil global possível a partir da
articulações desses atores de nacionalidade múltiplas, retomaremos essa discussão mais adiante. Sobre o assunto ver:
Vieira, L. (2001), (1997), Scherrer-Warrem (1999), Trevisol, J. (2000),
Um outro aspecto fundamental referente a uma política da diferença por parte das instâncias
governamentais é como efetivar uma política pública condizente com o reconhecimento das
diferenças e com as demandas que se multiplicam como fruto dessa diversidade identitária. As
políticas públicas a esse respeito devem traduzir a diversidade como elemento positivo para
implementação das políticas, sobretudo as políticas de educação pública e política de cultura que
respeitem questões religiosas, étnicas, raciais, de gênero, etc. A efetivação da democracia da
diversidade é a questão em pauta na agenda política da sociedade global.
1. O Contexto global como proposição de sentido político.
O processo contemporâneo é representado por reorganizações político-econômicas das
sociedades globalizadas que representam também uma (re)estruturação e uma (des)estruturação das
sociedades locais. Isso parece paradoxal mas é ao mesmo tempo um processo hegemônico e
sincrético (da globalização e a glocalização) caracterizado por uma racionalidade híbrida presentes
nas formas de sociabilidade contemporâneas que lidam a todo tempo com valores políticos
universais e particulares.
Identificamos esse dilema a partir do processo de racionalidade política
presente no processo da globalização e dos efeitos políticos e culturais que
ela possibilita. Nesse sentido, os critérios que definem a globalização
abordados neste trabalho têm como fundamento os elementos territorialidade
e desterritorialidade e relações de poder com pretensões hegemônicas nas
interações sócio-internacionais bem como um poder simbólico politicamente
veiculado pelos discursos hegemônicos entre global local. Gomez (2000)
ajuda-nos a precisar estes critérios quando define a globalização em termos:
(...) de transformações da organização espacial das relações sociais e
privilegiamento das relações e exercício de poder ‘a distância’ entre, dentro
e para além dos estados nacionais, numa complexa e contraditória
desterritorialização e reterritorialização do poder econômico, político e
social. (p. 09)
A dinâmica da racionalidade no dilema da relação entre o global e o local, tendo como
questão de fundo o universal e o particular constitui um sincretismo processual que em termos
políticos e culturais amplifica o problema da democracia em que a ação política, a cidadania a
sociedade civil e, fundamentalmente, a esfera pública vão se caracterizar frente a modelos híbridos
e sincréticos de formas de interações sociais. Esse é um tipo de dilema do mundo atual que
afirmamos influenciar o processo de racionalidade das formações sociais contemporâneas, através
de suas formas de sociabilidades. Nesse sentido afirmamos que:
The citizen participation in public global life is guided by conflicting values. In
their own states, most of the citizens accept a political order oriented by universal
values (not by particular ones). But on the international arena, it is a fact that most
of the people do not accept the same values for everybody. This was not a problem
in the past, but certainly it is a problem now, when the humanity is living in a
increasingly global and interdependent world. (Leis, H. e Silva, S. 2001)
o que toca à análise do dilema político presente entre o valores universais e particulares e a
emergência dos valores sincréticos na relação política entre estes.
Concordamos assim com Vasantkumar (1992) quando afirma que “in short, a globalizim
word is also a sycretyzing world”, o que demonstra um aspecto ainda mais complexo de
configuração da racionalidade política contemporânea para processo de manutenção do imaginário
social da democracia.
Por outro lado, vemos em algumas perspectivas a defesa da legitimidade do cosmopolitismo
democrático no contexto da globalização. O aspecto de sincretismo, inerente a globalização que
citamos em linhas anteriores, perde sentido como elemento de investigação, em favor de um
aspecto de análise sobre uma possível governabilidade global que, na perspectiva de Held (1997), é
apresentado como um caminho inerente da nova ordem mundial, frente ao processo das relações
internacionais que estão rompendo as fronteiras do Estado e em certa medida, com a própria noção
de Estado, dado as mudanças econômicas, políticas e institucionais que se apresentam com o
fenômeno da globalização.
Segundo Held (1997) a questão da democracia, como modelo de administração política e
sua fundamentação institucional e social no contexto contemporâneo, é saber como lidar com esse
modelo político que precisa mudar com a mudança. Como ele afirma:
Que hacer hoy com estos distintos modelos de democracia? El modelo participativo
clássico não se puede adaptar fácilmente a diferentes situaciones a lo largo del
tiempo y el espacio. Su emergencia en el contexto de las ciudades-Estados, y en
condiciones de “exclusividad social”, fue un factor ensecial de su exitoso
desarrollo. En la sociedades industriales complejas, caracterizadas por um alto
grado de diferenciacíon social, económica y política, resulta muy difícil imaginar
de qué manera una democracia de este tipo podería ser exitosamente adoptada en
grandes escalas si una drástica modificacion. (p.35)
E no que tange a perspectiva liberal, que justifica esse tipo de questionamento, sabe-se que
seu caráter político-funcional, não é ou não está suficientemente estruturado para reorganizar o
controle institucional da democracia, assim como também não está preparado para lidar com as
várias formas de participações políticas presentes nos sistemas sociais complexos contemporâneos.
É válido ressaltar que tomamos como modelo liberal, o aspecto universalizante de democracia
fundada pelo princípio capitalista de governabilidade que apresenta um processo democrático que,
segundo Habermas, é estruturado frente aos interesses sociais do mercado. Como ele afirma:
Segundo a concepção liberal o processo democrático cumpre a tarefa de
programar o Estado no interesse da sociedade, entendendo-se o Estado como o
aparato de administração pública e a sociedade como o sistema, estruturado em
termos de uma economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu
trabalho social. A política (no sentido da formação política da vontade dos
cidadãos) tem a função de agregar e impor os interesses sociais privados perante
um aparato estatal especializado no emprego administrativo do poder político para
garantir fins coletivos”. Segundo a concepção republicana a política não se esgota
nessa função de mediação. Ela é um elemento constitutivo do processo de formação
da sociedade como um todo. A política é entendida como uma forma de reflexão de
um complexo de vida ético. Ela constitui o meio em que os membros de
comunidades solidárias (...) se dão conta de sua dependência recíproca em que se
encontram, transformando-as em uma associação de direitos livres e iguais. Com
isso, a arquitolerância liberal do Estado e da sociedade sofre uma mudança
importante: junto à instância de regulação hierárquica representada pela
jurisdição do Estado, e junto à instância de regulação representada pelo
mercado(junto, portanto, ao poder administrativo e ao interesse próprio individual)
surge (...) a orientação pelo bem comum como uma terceira fonte de integração
social. (1995. p.39-40).
Porém, há um aspecto relevante na configuração da cultura republicana do ponto de vista da
funcionalidade integradora na relação entre política e economia. A funcionalidade da sociedade
civil na esfera pública desenvolve-se com base num processo integrador dos interesses políticoeconômico que demarca a noção de cidadania e formação da opinião pública como processo
democrático.
Para a prática da autodeterminação cidadã supõe-se uma base de sociedade civil
autônoma, independente tanto da administração pública como do intercâmbio
privado, que protegeria a comunicação política da absorção do aparato estatal ou
da assimilação à estrutura do mercado. Na concepção republicana o espaço
público e político e a sociedade civil como sua infra estrutura assumem um
significado estratégico. Eles têm a função de garantir a força integradora e a
autonomia da prática de entendimento entre os cidadãos. A esse desacoplamento
entre comunicação política e sociedade econômica corresponde um reacoplamento
entre poder administrativo e o poder comunicativo que emana da formação da
opinião e da vontade política. (op.cit. 40)
O que caracteriza o mecanismo da economia, no âmbito dos interesses privados, como um
dos principais elementos da política e da governabilidade em termos de uma sociedade de Estado,
qual é dependente de uma integração social, dada por uma solidariedade consecutiva.
Temos com isso, uma contraposição na lógica da democracia discursiva através da qual
Habermas apresenta uma análise crítica em relação aos modelos liberal, no contexto de sua
universalidade, e republicano no que se refere aos seus particularismos comunitaristas. Dentro
desse contexto, a crítica a análise habermasiana é estruturada na crítica da filosofia do sujeito, tanto
em termos liberais como republicanos.
Segundo Dallmary (op. cit.) a crítica contra o humanismo tanto do micro sujeito como do
macro sujeito, está presente na democracia deliberativa de Habermas caracterizando uma noção de
descentralização das relações políticas e dando, assim, à política seu aspecto procedimental de
manutenção das relações sociais e institucionais. Segundo Dallmary:
Ao desenvolver seu modelo de uma “democracia deliberativa”- supostamente a
corrigir tanto os defeitos das variantes liberais como os das republicanas –
Habermas discorda das premissas humanistas (ou centradas no sujeito) existentes
nessas duas concepções. Ele escreve que o modelo deliberativo ‘descarta todos
aqueles motivos utilizados na filosofia da consciência’ (leia-se: filosofia do sujeito)
que poderia levar a pessoa a atribuir o auto governo popular a um ‘sujeito
macrosocial’ ou então a confirmar em mecanismo de governo entre ‘sujeitos
individuais concorrentes’. (2001, p.28)
Dentro desse aspecto, a questão entre o particular e o universal, em termos liberais e
comunitaristas, apresenta o que podemos chamar de um essencialismo determinístico que antecede
a política, aspecto que Habermas fundamenta uma estruturação crítica contra a filosofia do sujeito.
Contrariamente a filosofia deliberativa ou discursiva corresponde a ‘imagem de
uma sociedade descentrada’ , sociedade essa que desistiu da filosofia do sujeito. Ao
refletir a alta complexidade que caracteriza a vida social moderna o ‘eu’ dos
cidadãos nessa versão ‘desaparece’ nas formas de comunicação desprovidas de
sujeitos, que regula o fluxo da opinião discursiva e a formação de vontade’
(Dallmary; 2001, p. 29)
Essa democracia discursiva se traduz no modelo de análise para a reestruturação das
sociedades complexas no contexto da globalização, o aspecto da descentralização é o ponto de
discussão de uma esfera pública global que visa redimensionar as relações institucionais em termos
políticos. A reestruturação da política é ambientada no procedimento da democracia como processo
equânime de participação político-discursiva.
Em termos de uma crítica dos modelo de democracia no contexto contemporâneo
(considerando sobretudo o processo premente de globalização e a reestruturação das relações
internacionais) tanto o universalismo liberal como o particularismo comunitarista representam
modelos de Estados mantenedores de uma estrutura centralizada e essencialista na qual as
diferenças políticas não são reconhecidas como processo de afirmação e negociação discursiva de
interesses. Seriam, em termos críticos, modelos autoritários de fundamentação econômica que
desconhecem a política como processo de interação dialógico.
Nesse sentido, quanto ao aspecto da necessidade de reestruturação democrática a partir da
globalização Held (1997) afirma que
(...) si se pretende oferecer una concepción justificable de la democracia, no basta
com indagar los principios y procedimentos adequados de la democracia y del
Estado democrático liberal, por más importante que puededan ser. También se
requiere una investigación de las condiciones de efectivización de estos princípios y
procedimientos; esto es una investigación del caráter y la dinámica de los
diferentes tipos de poder y su impacto sobre los ordenamientos democráticos. (...).
Lo que se procura entender es la naturaleza del estado modeno, su alcance sobre
los asuntos sociales y económicos en un teritorio determinado, y sus implicaciones
para la forma y la eficacia de la democracia. Sin embargo, pretendemos captar
plenamente su significado en la conteporaneidad. Los problemas de la democracia
se extiende más allá de las frontieras del Estado.(p.37)
O global e o local, do ponto de vista político, ambientam tematicamente a formação
discursiva dos modos de representação social da democracia. Representação social e formação
discursiva aqui são definidos como elementos de percepção de realidade e construção simbólica de
sentido da política. E sob esse aspecto o panorama de produção e sentido da democracia se
estrutura a partir das ruínas políticas das mudanças contemporâneas ou, como querem
interpretações pós-modernas, do mosaico das identidades fragmentárias.
Nesse sentido, temos um panorama contemporâneo decorrente de mudanças estruturais,
crise de paradigmas explicativos e fins de ideologias que faz a sociedade passar por um processo de
redimensionamento da cultura política e dos valores democráticos, tanto local quanto global. O que
faz com que os modelos pretensamente hegemônicos encontrem dificuldades de catalisar
legitimidade. Por exemplo a narrativa liberal, do ponto de vista teórico tanto econômico como
político, advoga uma representação de democracia universalmente válida segundo seu próprio
argumento. Mas, em termos pragmáticos vê-se o quanto é problemática sua afirmação
contemporânea como modelo de governabilidade tanto política quanto economicamente em termos
de legitimidade. Podemos destacar sobretudo os problemas de legitimidade social no âmbito dos
valores pretensamente universais definidores do discurso da cidadania.
Num outro contexto, modelos políticos como o das sociedade comunistas por um lado e o
comunitarismo societário por outro, fundados em prerrogativas funcionais diferenciadas, tanto do
ponto de vista da racionalidade política como na forma da organização social e das mentalidades,
viam no imaginário da democracia liberal um perigo hegemônico do ponto de vista do poder
econômico, político e da ideologia que resultava dessa fusão.
Ao mesmo tempo que a sociedade ocidental viu se processar uma mentalidade democrática
individualista - que demonstrou seu poder por todo o século XIX e XX e em especial no final deste
último - essa mesma sociedade testemunhou a estruturação de um tipo de mentalidade que, em
nome da liberdade e superação das necessidades coletivas, se posicionou contra a narrativa liberal
da democracia do ocidente.
Segundo a prerrogativa do pragmatismo, presente no discurso do materialismo dialético, a
essencialidade burguesa da democracia impede o próprio conceito de liberdade na medida em que
se justifica pela iniquidade econômica e consequentemente social, fundamentado por um Estado
normativizado e mantenedor do status quo das desigualdades. O discurso de orientação critico
socialista, representado por uma mentalidade de questionamentos se objetivou em demonstrar a
estruturação simbólica e material da institucionalização da desigualdade social presente na forma
de organização das sociedades ocidentais, estas por sua vez representadas por um imaginário liberal
de formação de classes.
Mas essa narrativa socialista marcada por uma sociedade de Estado pretensamente
igualitário, representante de um poder simbólico crítico, de um discurso político homogenizante, e
um imaginário institucional de superação das diferenças, também encontra sérias dificuldades de
fazer valer a operação de sua racionalidade funcional materialista na sociedade contemporânea.
Porém, devemos considerar do ponto de vista contemporâneo que a crítica de cunho teórico do
marxismo apresenta validade explicativa no que se refere a globalização como processo de
reestruturação da sociedade burguesa, como sendo uma nova fase dessa sociedade. Nesse sentido
deve ser considerado o aspecto da crise paradigmática da metodologia dialética como modelo
doutrinário de explicação da mudança social, embora devamos ressaltar o aspecto epistemológico
de fundação desse modelo de conhecimento, no que se refere sobretudo ao aspecto de desigualdade
social e econômica promovida pela globalização.
Sendo assim a crítica social tenta manter a validade das explicações teóricas do marxismo
como um modus crítico de compreensão do processo da globalização. Nesse sentido, Otavio Ianni
(2001) apresenta o processo da globalização como uma nova revolução burguesa visando explicar
o processo cada vez maior de desigualdades econômicas e sociais entre países dentro do contexto
contemporâneo. Outro que não se furta a este tipo de explicação é Noam Chosmky que vem
demonstrando que o processo de formação do neoliberalismo é um processo de expansão do
capitalismo nos moldes da explicação marxista. No aspecto da globalização Ianni (2000)
desenvolve a seguinte argumentação:
Globalização rima com integração e homogeneização, da mesma forma que com
diferenciação e fragmentação. A sociedade global está sendo tecida por relações,
processos e estruturas de dominação e apropriação, integração e antagonismo,
soberania e hegemonia. Trata-se de uma configuração histórico problemática,
atravessada elo desenvolvimento desigual, combinado e contraditório. As mesmas
relações e forças que promovem a integracão suscitam o antagonismo, já que ela
sempre se deparam com diversidades, alteridades, desigualdades, tensões,
contradições. Desde o princípio, pois, a sociedade global traz no seu bojo as bases
do seu movimento. Ela é necessariamente plural, múltipla, caleidoscópica. A
mesma globalização alimenta a diversidade de perspectivas, a multiplicidade dos
modos de ser, a convergência e a divergência, a integração e a diferenciação, com
a ressalva fundamental de que todas as peculiaridades são levadas a recriar-se no
espelho desse novo horizonte, no contraponto das relações, processos e estruturas
que configuram a globalização. (p. 222)
Para Ianni o processo da nova revolução do capitalismo contemporâneo está
intrinsecamente imbricado e caracterizado pela sociedade global através da
qual as fronteiras nacionais perdem sentido em nome da internacionalização
intensa das relações mercantis, culturais, ideológica, etc. A expansão do
capitalismo, conforme Ianni, se desenvolve em três formas das quais a
última destas adquire uma hegemonia global na sociedade contemporânea. A
primeira destas formas refere-se ao modo nacional com o qual o capitalismo
se forma na produção da organização e divisão social do trabalho no âmbito
local. A segunda forma de capitalismo fundado em bases nacionais,
transcende suas fronteiras na constituição do sistema mundial do capital com
o desenvolvimento das seguintes características: O comercio, a busca de
matérias-primas, a expansão do mercado, o desenvolvimento das forças
produtivas, a procura de outras e novas fontes de lucro, tudo isto institui
colonialismos, imperialismos, sistemas econômicos, economia-mundo,
sistemas mundiais, em geral centralizados em capitais de nações
dominantes, metrópoles ou países metropolitanos. (op. cit. p.37)
Por fim, o mais maduro dos processos de formação do capitalismo, o da sociedade
globalizada significando o que ele chamou recentemente de “a revolução burguesa
contemporânea”.
Terceiro e último, o capitalismo atinge uma escala propriamente global. Além das
suas expressões nacionais, bem como dos sistemas e blocos articulando regiões e
nações, países dominantes e dependentes, começa a ganhar perfil mais nítido, o
caráter global do capitalismo. Declinam os Estados-nações, tanto os dependentes
como os dominantes. As próprias metrópoles declinam em benefícios de centros
decisórios dispersos em empresas e conglomerados movendo-se por países e
continentes, ao acaso dos negócios, movimento do mercado, exigências de
reprodução ampliada do capital. Os processos de concentração e centralização do
capital, adquirem maior força, envergadura, alcance. (...) As sociedades
contemporâneas, a despeito de suas diversidades e tensões internas e externas,
estão articuladas numa sociedade global. Uma sociedade global no sentido de que
compreende relações, processos e estruturas sociais, econômicas, políticas e
culturais, ainda que operando de modo desigual e contraditório. Neste contexto, as
formas regionais e nacionais evidentemente continuam a subsistir e atuar. Os
nacionalismos e regionalismos sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos,
linguísticos, religiosos e outros que podem até ressurgir, recrudescer. (op. cit. p.39)
Os aspectos aqui apresentados por Ianni não representam o retorno da defesa do marxismo
como modelo de sociedade, mas um modelo de reflexão crítica, econômica, política e cultural, sob
um certo aspecto, sobre o contexto de formação das sociedades contemporâneas e a legitimidade de
um modelo democrático contra as desigualdades.
É válido ressaltar ainda um outro aspecto crítico de reflexão sobre a globalização
hegemônica, este com um caráter mais social, cultural e normativo através do qual a perspectiva
democrática tem um viés de regulamentação e emancipação sociais estruturados na questão dos
direitos humanos do multiculturalismo crítico. Estamos falando da argumentação critica e reflexiva
de Boaventura de Souza Santos e sua perspectiva multicultural dos direitos sociais e humanos para
uma política legítima na sociedade global. A crítica conceitual que Boaventura desenvolve define
os parâmetros do globalismo como fenômenos diferenciados e hegemonizados por localismos e
contextos que ele chama de conjuntura da relações sociais de poder. (2000; 2002).
“para os meus objetivos analíticos, privilegio, no entanto, um definição de
globalização mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais. Nesses
termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização, existem
em vez disso, globalizações (...) por outro lado, enquanto feixes de relações sociais,
as globalizações envolvem conflitos e por isso, vencedores e vencidos. Proponho,
pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada
condição ou entidade local estende a sua influência à todo o globo e, ao fazê-lo,
desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade
rival. (...) a globalização pressupõe localização. (2000, p. 22)
Esse aspecto de análise crítica, presente na argumentação de Boaventura de Souza Santos
representa uma perspectiva na qual a nova esquerda democrática encontra respaldo argumentativo
contra hegemônico de fundamentação e reestruturação dos valores da democracia na globalização
contra a iniquidade global. Podemos nos referir a isso como uma democracia de base analítica que
visa redimensionar o imaginário dos valores democráticos a partir dos direitos inerentes aos valores
culturais e sociais, ou seja, os valores da diferença na perspectiva do multiculturalismo fundado em
bases normativas. Uma argumetação que acredita que os direitos humanos podem ser a expressão
estrutural de emancipação e regulamentação da democracia na globalização.
Dentro do imaginário democrático contemporâneo as questões estruturais relacionadas
fundamentalmente ao social, ganham um peso radical seja no aspecto da argumentação políticonormativa como é o caso das questões levantadas por Boaventura, ou mesmo no aspecto do
discurso da fragmentação crítica como é o caso da democracia radical pós-estrutralista.
O discurso contra hegemônico tem um peso fundamental na reestruturação da cultura
democrática e, consequentemente, nos valores do capital simbólico da democracia, como é o caso
da democracia radical contra hegemônica apresentada por Laclau e Mouffe (1989).
No caso da democracia radical é apresentado um modelo analítico que visa redimensionar
criticamente o sentido de democracia. A desconstrução discursiva do pós-estruturalismo de Laclau
e Mouffe não visa apresentar um modelo de pós-modernidade da democracia política, no seu
aspecto mais ou menos legítimo como validade funcional. Na democracia radical há uma crítica
moral à pretensão da validade universal presente tanto na narrativa marxista como na narrativa
liberal que entram em crise diante de uma perspectiva pluralista das formações sociais
contemporâneas.
O que está agora em crise é toda uma concepção de socialismo que se baseia na
centralidade ontológica da classe trabalhadora, no papel da revolução (com r
minúsculo) como momento fundador na transição de um tipo de sociedade para
outra e na possibilidade ilusória de uma vontade coletiva perfeitamente unitária e
homogênea que irá tornar sem sentido o momento da política. (Laclau e Mouffe;
1989)
Esse aspecto presente no “Hegemony and Socialist Strategy: Towards a radical democratic
Politics”, demarca em termos analíticos a base crítica sob a qual várias narrativas pós-modernas
encontram fundamento epistemológico para seus discursos em termos de crítica política. Não
queremos afirmar com isso que esse trabalho desenvolvido por Laclau e Mouffe os classifique
como autores pós-modernos mas podemos afirmar sua afinidade com a mentalidade crítica pósmoderna no contexto da teoria social. Por um lado vemos uma narrativa liberal e, por outro, uma
narrativa socialista e por que não dizer também uma narrativa pós-marxista, formando panos de
fundo da mentalidade política das sociedades, e entre um e outro encontramos uma radicalidade
comunitarista que se auto proclama democraticamente essencial, advogando uma
fundamentalização de grupos.
Se estamos pensando em termos da problemática política da democracia veremos que esta
perspectiva comunitarista, de viés teórico multicultural, vai se constituir como um terceiro
problema de formação do imaginário político de composição da democracia.
Um problema de duas naturezas: primeiro ao que se refere ao caráter de um reconhecimento
atomístico da afirmação política, que em termos de sua funcionalidade político-organizacional pode
chegar às vias de um fundamentalismo - seja este religioso, étnico, ou de outra natureza - na
medida em que desconhece ou desconsidera o alter político, ou seja, o princípio da alteridade como
fundamento do reconhecimento legítimo das diferenças; e segundo porque em termos explicativos
há ainda uma pluralidade conceitual do próprio comunitarismo que tem estruturas institucionais
diferenciadas representadas por formações multiculturais e discursivas variadas do ponto de vista
político. O que nos leva a imaginar que, em termos comunitarista o imaginário político, em certa
medida, opera como modelo essencialista sem alteridade e muitas vezes sem tolerância, ou seja, um
modelo de racionalidade identitária fundada em si própria sem um procedimento político de
reconhecimento do outro diferente. O que contribui para uma relação de não reconhecimento, ou de
não-política como afirmamos linhas acima, entre as identidades comunitárias e isso influi na
negação do pressuposto da negociação social (entenda-se: cultural, política e lingüistica) que é a
base de compactibilização do processo das diferenças, sejam essas: étnicas, religiosas, culturais,
ideológicas, etc.
Castells (1999) nos apresenta uma reflexão clara do modelo fundamentalista de construção
identitária. Vejamos o exemplo do fundamentalismo cristão:
O fundamentalismo não parece ser uma racionalização dos interesses de classe,
tão pouco um posicionamento com base no território. Em vez disso ele atua nos
processo político em defesa dos valores morais e cristãos. Trata-se de um
movimento reativo, voltado para a construção da identidade social e pessoal, como
na maior parte dos casos de fundamentalismo encontrado na história, com base em
imagens do passado projetada-se um futuro utópico, visando a superação do
insustentável tempo presente. Reação a que? O que é insustentável? As causas mais
imediatas do fundamentalismo cristão parecem ser duas: a ameaça da globalização
e a crise do patriarcalismo. (p.42).
Na visão de Castells há uma relação causal entre a globalização e a manutenção das
identidades fundamentalistas. A questão que relaciona fundamentalismos identitários e
globalização é preocupante para outros autores como a Nancy Fraser (2000) que identifica a
questão da intolerância, dos separatismos e autoritarismos como conseqüência de uma visão tosca
de comunitarismo fundamentalista, reconhecedor de uma essencialidade identitária. Nesse sentido
ela afirma que,
We are facing, then, a newconstellation in the grammar of political claims-making
– and one that is on two couts. First, this move from redistribuition to recognition is
occuring despite – or because of – na acceleration of economic globalization, at
time when na aggressively expanding capitalism is radically exarcebating economic
inequality. In this context, questions of recognition are serving less to supplement,
complicate and displace them. I shall call this the problem of displacement. Second,
today’s recognition struggles are occurring at a moment of hugely increasing
transcultural interation and communication, when accelerated migration and
global media flows are hybridizing and pluralizing cultural forms. Yet the routes
such struggles take often serve not to promote respectful iteration within
increasingly multicultural context, but to drasticlly simplify and group identities.
They tend, rather, to encourage separatism, intolerance and chauvinism,
patriarchalism and authorianism. (p.108)
Um problema que associa uma relação de exclusão ao processo da dinâmica social e
econômica na sociedade contemporânea global.
Segundo Msztal e Shuper apud Castells (1999), “A dinâmica da globalização promoveu a
dinâmica do fundamentalismo de forma dialética”. Nesse sentido as identidades se reconhecem
como uma forma de resistência. Lencher, citado por Castells demonstra um pouco desse aspecto na
seguinte citação:
No processo de globalização, as sociedades se institucionalizaram enquanto fatos
globais. Enquanto organizações, funcionam em termos seculares; em suas relações,
obedecem a regras seculares; praticamente nenhuma tradição religiosa atribui um
caráter transcendental às sociedades tal qual sua forma atual (...) Precisamente
porque a ordem global representa uma ordem normativa institucionalizada, é
plausível que ali surja algum tipo de busca de um fundamento ‘maior’, de alguma
realidade transcendental além desse mundo, pela qual este poderia ser definido
com mais clareza. (Lechner apud Castells, (1999) p. 42)
Pensando em termos da sociedade Norte-Americana, como o faz Castells para referir esse
exemplo, podemos entender o caráter identitário do fundamentalismo cristão republicanista como
uma estratégia de influência política naquela sociedade. Neste contexto, em termos de poder
simbólico o discurso religioso, especialmente o discurso cristão, é aglutinador de legitimidade
política e de constituição de uma moralidade que busca manter os valores institucionais como
instrumento de coesão social e manutenção do Status Quo, sobretudo político-econômico. Esse tipo
de discussão caracteriza-se dentro de um aspecto comunal de definição da identidade. O viés da
pertença identitária é definido com base no reconhecimento das comunidades. Um contexto de
reflexão no qual o multiculturalismo tem a possibilidade de demonstrar sua caracterização como
espaço de afirmação teórica.
Com relação ao multiculturalismo vamos encontrar, em termos conceituais, quatro
tipologias de espaços multiculturais presentes diferentemente na esfera pública contemporânea,
como modelo de configuração identitária com o caráter híbrido do capital político.
Andrea Seprini (1999) classificatoriamente define esses modelos como 1) um multiculturalismo de
influência liberal clássica que justifica um modelo de comunitarismo que processa seu sentido
fazendo “(...) uma distinção básica entre esfera pública e privada da vida coletiva. A primeira cuida
dos direitos e deveres cívicos e políticos dos indivíduos, como o respeito as leis, pagamentos de
impostos, o exercício do direito de voto, liberdade de expressão e de locomoção”. (p.135). Um
aspecto comunitário de influência liberal, que define os direitos identitários pelo direito de
cidadania, a partir de um processo de democracia que em termos de espaço público tem o mesmo
aspecto universalizante do espaço público que não reconhece as diferenças.
O segundo modelo é conceituado como liberal multicultural. Esse modelo na
perspectiva de Kylmlicka é fundamentado numa cidadania multicultural que
propõe o reconhecimento dos aspectos diferenciais na sociedade, como
étnicos e culturais dos indivíduos, sobre pressuposto moral. Nesse modelo, a
referência identitária ao grupo é o elemento mediador entre o público e o
privado. Segundo Seprini “Mesmo que se reconheça formas de autonomia a
certos grupos, continua subsistindo uma zona onde os grupos participam de
uma esfera pública comum. Esta região torna-se zona de “consciência” do
sistema.” (1999. p.138).
No terceiro aspecto temos um modelo de multiculturalismo denominado de maximalista
que se apresenta pela radicalidade fragmentária do tecido social. Neste o comunitarismo dos grupos
é definido pela pertença do próprio grupo sem que seja possível remeter essa identidade, ou
construção identitária do grupo, ao aspecto do reconhecimento das diferenças (alteridade). O
reconhecimento do outro é preterido em favor do reconhecimento de si. Esse modelo nega a
possibilidade de uma esfera pública comum, na qual se possa intercambiar politicamente interesses,
assim como também nega a separação entre os espaços público e privado. O caráter fragmentário,
em termos pós-modernos, demarca a perspectiva da segmentação dos interesses fundado no
discurso da pertença do que chamamos auto-referência identitária.
O quarto modelo é denominado de multiculturalismo combinado que
segundo Seprini tem como principal preocupação a administração das
diferenças, ao contrário dos outros modelos sua fundamentação é definida no
aspecto econômico a partir do qual a diferença é um bem simbólico que
potencialmente transforma-se em bem material, visto do ponto de vista do
consumo. Nesse sentido, no processo da globalização essa perspectiva
comunitarista potencializa valores étnicos e culturais como mercadorias
negociáveis. Ao se referir ao aspecto das sociedades globais Seprine afirma
que: “(...) aumento exponencial de informação e sua circulação em tempo
real, considerando a importância crescente dos fatores identitários e
simbólicos na estruturação de um novo espaço sociocultural globalizado, o
multiculturalismo combinado transforma a diferença num argumento de
venda”. (p.114)
O aspecto da globalização presente no contexto da funcionalidade local representa uma
forma de comercialização das simbologias dos particularismos identitários. Esse contexto nos traz
de volta a relação entre o local e o global no que toca ao relacionamento político dessa interação.
Nesse sentido, o objeto política definido como instrumento de negociação dos interesses
identitários e as identidades definidas como reconhecimento político das afirmações de interesses
simbólicos são categorias de análises intercambiáveis na discussão do sentido da democracia
contemporânea.
Esses aspectos da identidade como estruturação da política demanda uma reestruturação de
compreensão da democracia como problema de pesquisa através do qual a noção da representação
da realidade política e da formação discursiva fazem parte da validade do reconhecimento desta
democracia, seja em termos dos valores universais ou particulares. E isso demonstra como o
conceito de democracia pode ser também introduzido, num nível reflexivo, pelas categorias
“política” e “identidade” como problema de pesquisa, tendo como caráter a mudança do enfoque de
análise dos espaços públicos como espaços de sociabilidades culturais, cidadãs, políticas, etc. e de
resignificação da democracia dos contextos plurais e híbridos, na perspectiva de autores como
Nestor Garcia Canclini, ou sócio normativo como feito por autores como Boaventura de Souza
Santos.
n
i (1999) analisa com bastante propriedade o aspecto da cidadania definida pelo consumo
simbólico em que as diferenças identitárias são bens simbólicos que dinamizam o mercado político
na sociedade global. Nesse sentido, é válido ressaltar que definimos por mercado político um
ambiente de conflitos dos interesses das representatividades delegativas e da conquista de poder, no
qual a representação social do poder ideológico e do jogo de posições conflitivas tem uma lógica
funcional na relação e co-relação dos interesses dentro do campo simbólico da política.
o
s: conflitos culturais da globalização” há uma reflexão sobre as transformações do aporte
identitário. A substituição de símbolos racionais e territoriais por símbolos culturais e políticos de
identidades fracionadas nos centros urbanos de cidades globais influenciando a percepção de
cidadania na sociedade contemporânea. Dentro desse contexto, a relação entre identidade, espaço
público, cultura e, em certa medida, mercado, ganha aspectos significativos do ponto de vista do
poder simbólico no processo das sociedades globais, caracterizada por um processo de reinvenção
do sentido da política da democracia.
“A aproximação da cidadania, da comunicação de massa e do consumo tem, entre
outros fins, o de reconhecer esses novos cenários de constituição do público e
mostrar que para se viver em sociedade democrática é indispensável admitir que o
mercado de opinião cidadãs inclui tanta variedade e dissonância quanto o mercado
da moda, do entretenimento. Lembrar que nós cidadãos também somos
consumidores leva a descobrir na diversificação dos gostos uma das bases estéticas
que justificam a concepção democrática de cidadania. Se reconhecermos estes
deslocamentos dos cenários em que se exerce a cidadania ( do povo à sociedade
civil) e esta reestruturação do peso do local, do nacional e do global, algo terá que
acontecer à forma pela qual as políticas representam as identidades. Outro modo
cultural de fazer política e outros tipos de políticas culturais deverão surgir.”
(1999,p.58)
Na perspectiva de Boaventura de Souza Santos a questão multicultural da cidadania política
no contexto da globalização tem um outro caráter simbólico e não se refere ao caráter mercantil. O
aspecto política do reconhecimento multicultural das diferenças na composição da cidadania
política é feita pelo no contexto do campo normativo da política e do direito, especificamente dos
direitos humanos e como este podem representar um caráter inclusivo no processo global.
Conforme este autor o aspecto inclusivo é ambientado na perspectiva multicultural que toma como
base as diferença locais como valor de referência política dos direitos sociais. Numa concepção
multicultural e política dos direitos humanos, o autor apresenta a argumentação contra hegemônica
do processo global, na qual o multiculturalismo crítico tem uma função propositiva de mudança
social de baixo para cima considerando as diferenças regionais e locais da várias sociedades. Sua
concepção de multiculturalismo é pré-condição de uma relação de equilíbrio potencializadora de
uma legitimidade efetivamente global com base nas suas diferenças.
Nesse sentido, o aspecto de legitimidade, segundo Boaventura, representa os atributos de uma
política contra hegemônica de direitos humanos de nosso tempo, assim como pode-se pensar
também diretamente a questão do contrato social na contemporaneidade, ou como ele mesmo
afirma: o pós-contratualismo da sociedade atual, visto que tanto em termo dos direitos humanos
como de um novo modelo de contrato social há que se considerar o aspecto da exclusão e da
inclusão social das diferenças reafirmado a partir de um processo normativo, político e cultural,
mais complexo e mais descentralizado para que seja representado a legitimidade da emancipação e
da regulamentação social no mundo global.
O contrato social é a metáfora fundadora da racionalizada social e política da
modernidade ocidental. Os critérios de inclusão/exclusão que ele estabelece vão
ser fundamento da legitimidade da contratualização das interações, econômicas,
sociais, políticas e culturais. A abrangências das possibilidades de
contratualização tem como contrapartida uma separação radical entre incluídos e
excluídos. Embora a contratualização assente numa lógica de inclusão/exclusão,
ela só se legitima pela existência de não excluídos.(...). A lógica operativa do
contrato social está, assim, em permanente tensão com sua lógica de legitimação.
(Boaventura de Souza Santos, 1999; p. 85)
Essa afirmação citada é fundamental na análise da sociedade contratualista contemporânea
por que representa o aspecto concreto de duas coisas importantes para o estabelecimento da
legitimidade tanto do processo normativo constitutivo da sociedade como de uma percepção do
valor universal e particular nessa formação social. Essas duas coisas são assim a regulação social e
a emancipação social que só podem ser possíveis a partir de um contrato social inclusivo que
revele politicamente a tensão dialética entre estes dois valores e que tenha como síntese a
legitimidade da diversidade.
A perspectiva analítica de um multiculturalismo global contra-hegemônico e pós
contratualista para Boaventura é fundada na própria crítica conceitual que ele faz ao modelo de
globalismo unilateral ou como é mais conhecido, globalização de mão única. Para ele a questão da
globalização é mais complexa e apresenta quatro formas de discussão conceitual. A primeira, que
ele chama de localização globalizada; a segunda, globalização localizada; a terceira, vista por ele
como cosmopolitismo e por fim a questão dos recursos comuns universais.
A primeira dessas questões, tem a ver com o processo de expansão econômico-cultural
através do qual o poder hegemônico local é propulsor das diretrizes globais. A questão da língua,
da economia, do comportamento cultural e demais bens simbólicos da sociedade americana,
retratam bem essa primeira forma como uma localização globalizada.
A forma do globalismo localizado, como segunda questão, refere-se aos efeitos, de uma
maneira geral, das práticas imperativas transnacionais nos contextos globais. Os efeitos mais claros
desse processo: as áreas de livre comercio, ALCA, Mercosul, NAFTA, etc; as zonas francas, as
explorações ambientais como devastação de áreas para pagamentos de dívidas externas, exportação
de lixo tóxico pelos países centrais etc. Ou mesmo para utilizar uma expressão citada tanto por
Boaventura de Souza Santos como por José de Souza Martins, a super exploração da mais valia
global, vide as relações das empresas transnacionais na divisão social do trabalho na transição dos
séculos, como por exemplo na exploração do trabalho étnico por empresas americanas.
A terceira for conceitual de análise da globalização é vista como cosmopolitismo e
representa um aspecto de resposta global de origem periférica ao processo de exploração e
dominação simbólica e material dos países centrais. Segundo Boaventura (2000) A interação,
articulação de regiões, nações, classes e grupos sociais subordinados na globalização de mão única,
pode através da via cosmopolita, criar oportunidades de defesas de interesses comuns. Nesse
sentido ele afirma que vários são os exemplos de articulações desse tipo: redes de interação dos
movimentos ambientais e sociais; articulação de organizações não-governamentais; federação
mundial dos sindicatos, grupos de articlução anticapitalista, rede de mobilização virtual
antiglobalização; fóruns sociais mundiais, etc. Segundo essa perspectiva, o cosmopolitismo
representaria um processo não contra o processo de globalização mas, a favor de uma globalização
includente.
Sobre o argumento de mobilização antiglobalização em favor da democracia global, vale
citar passagem de Castells (2002) na Folha de São Paulo em seu ensaio: “A necessidade de
representação” em que ele afirma que para que a humanidade se adapte aos novos tempos será
preciso ou relegar a democracia a um plano abstrato ou reinventá-la na forma de relação global
local com seu caráter de resistência anti-hegemônica. Segundo ele na relação local-global é possível
ver que
(...) as instituições políticas se globalizaram à sua maneira, construindo um
Estado-rede em que os Estados nacionais se encontram com instituições
supranacionais, como a União Européia ou clubes de decisão como o G8 ou
instituições de gestão como o FMI, para tomar decisões de forma conjunta. Longe
fica o espaço nacional de representação democrática, construindo-se os espaços
locais mais como resistência do que como escalão participativo. (...). As pessoas
vivem e reagem com o que vão percebendo e, em geral, desconfiam dos políticos. E,
quando não encontram canais de informação e participação, saem para a rua.
Assim, diante da perda de controle social e político sobre um sistema de decisão
globalizado que atua sobre um mundo globalizado, surge o movimento
antiglobalização@, interligado e organizado pela internet, centrado em protestos
simbólicos que respondem aos tempos e espaços dos agentes decididores da
globalização e utilizam seus mesmos canais de comunicação com a sociedade: os
meios de massa, nos quais uma imagem vale mais que mil palestras . (Castells,
27/01/2002, Folha de São Paulo, Caderno Mais.)
Essa forma de mobilização da sociedade conectada em rede pode representar um processo
fundamental para a democracia global visto ser um aspecto de proposição de sentido democrático
mais espontâneo, mais articulador e com mais facilidade de reagrupamento da legitimidade política
dos atores articulados internacionalmente em favor de uma democracia efetivamente global.
Boaventura (op. cit) afirma que a quarta forma de análise refere-se ao direito internacional
sobre os usos dos recursos ambientais comuns da humanidade. Ou seja, recursos comuns de
sustentabilidade ambiental que servem como instrumentos de articulação de interesses dos atores
sociais como uma forma de resistência à globalização hegemônica. A questão de fundo desse
aspecto é que a articulação de atores internacionais interessados nessa questão cria uma política de
incômodo ao modelo desenvolvimentista de vários grupos e vários países centrais, principalmente
os EUA.
Sobre essas duas ultimas formas de análise da globalização Boaventura (2000) afirma que o
cosmopolitismo de articulação de resistência e a articulação acerca do patrimônio ambiental
comum da humanidade, constituem a possibilidade de uma política de globalização das bases para
o topo, ou como citamos em linhas anteriores, uma globalização com critérios sociais, culturais e
ambientais estruturada de baixo para cima. Enquanto que as duas formas iniciais de fundamentação
da globalização, “o localismo globalizado” e o “globalismo localizados” constituem um modelo
que se fundamenta de cima para baixo e não reconhecem os valores da diversidade social, cultural,
ambiental e muito menos uma política dialógica nos moldes emancipatórios de uma democracia
efetivamente global.
A questão relevante dessa discussão para este debate refere-se a relação dessas formas de
análise com a questão da política democrática e a formação das diversidades identitárias no
processo de configuração da sociedade global.
Mantendo essa linha de raciocínio vê-se que a questão multicultural dos direitos sociais e
humanos pode representar um argumento normativo de visibilidade política de nosso problema de
investigação, quanto a política democratica relacionada ao processo de diversidade na sociedade
contemporânea, caracterizando fundamentalmente a tentativa de uma política progressista e
emancipatória sustentável. Nesse sentido, a questão da regulação e emancipação social passa por
uma politização da justiça e dos direitos como força emancipatória da democracia na sociedade
contemporânea no que toca a produção de sentido legítimo da democracia social.
Boaventura de Souza Santos (op. cit.) argumenta que é possível identificar as condições em
que os direitos humano estruturam uma política de emancipação social na sociedade global
considerando as questões de tensão entre: a regulação e a emancipação, o Estado e a sociedade
civil, o Estado nação e o processo global, esta ultima estabelecida no contexto da soberania
nacional e relações internacionais. A questão fundamental desse processo de politização
emancipatória da sociedade através dos direitos humanos e das diferenças amparam-se no processo
inicial e legítimo do reconhecimento em termos da sociedade-mundo da política direitos humanos
na complexidade contemporânea. Nesse sentido,
A política dos direitos humanos é basicamente uma política cultural. Tanto assim é
que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do
cultural, e até mesmo do religioso. (...) falar de cultura e de religião é falar de
diferença, de fronteiras, de particularismos. A minha intenção é justificar uma
política progressista de direitos humanos com âmbito global e com legitimidade
local. (Boaventura de Souza Santos, 2000, p.)
Nesse sentido, a relação entre a política de identidade, o multiculturalismo e a interação
social passam pelo pressuposto da alteridade como forma de legitimidade de uma democracia das
diferenças que encontram nos direitos humanos um princípio universal legítimo a partir do local.
Embora saibamos que a constituição dos direitos humanos seja algo criado a partir da racionalidade
e dos interesses do mundo ocidental a questão é como poderíamos encontrar uma base de
legitimidade desses direitos para a sociedade mundial, ou para utilizar uma expressão técnica da
sociologia contemporânea o sistema-mundo, na qual os choque civilizatórios ocidente-oriente,
salientemos o caráter hegemonico do primeiro, fossem eliminados?
Segundo Santos está resposta seria encontrada a partir do reconhecimento das diferença e
do multiculturalismo na sociedade global na qual a perspectiva multicultural de um cosmopolitismo
contra hegemônico, com uma política de reconhecimento da diversidade, estruturaria a
globalização de baixo para cima. Nesse sentido, os direitos humanos teriam de ser
reconceitualizados com o caráter multicultural de reconhecimento da diversidade sob o aspecto
político da alteridade, o que o diferenciaria de sua forma original, ou seja do aspecto meramente
ocidental normativo que o constituiu no pós-guerra. O aspecto identitário e político da diversidade
seria o pressuposto do valor democrático de legitimação dos direitos humanos globais imaginado
por Boaventura. Dentro desse contexto, a política da diversidade representa a política do
reconhecimento no processo democrático seja do ponto de vista local ou global e é sob esse aspecto
que as articulações contra hegemônica encontram valores comuns de manutenção da cultura
política efetivamente democrática. Pois é também fundamentalmente que a questão do
reconhecimento dos direito da diversidade e dos direitos a diversidade que a pressuposição de
legitimidade universal da igualdade e da diferença assentam-se no processo de produção de sentido
da democracia.
Neste trabalho, não partimos do único e exclusivo pressuposto, que os direitos humanos
seriam a condição sine qua non do problema do problema da democracia contemporânea na
sociedade global, mas sem dúvida é relevante junto com as questões do econhecimento, da política
internacional e a equidade econômica como uma política distributiva. Mas a questão é como
entender o estabelecimento e manutenção da democracia da diversidade na contemporaneidade
global. E nesse sentido a questão da cultura política estrutura-se num contexto multidisciplinar
jurídico, econômico, social e de outras naturezas através da qual a relação entre política e formação
identitária são referenciados conjunturais do que chamamos de produção de sentido da democracia.
2. A Política e a Identidade como Proposição de Sentido
Buscamos entender as influências da mudança da cultura política com relação ao enfoque
das formações identitárias e reconhecimento do processo de fragmentação social como elementos
de investigação e análise da democracia. Esse ângulo de análise se justifica pelo fato de situarmos a
discussão sobre identidade no seu aspecto teórico e analítico, primeiro como base de estruturação
da dinâmica política da sociedade civil brasileira, e segundo, como mudança de percepção dos
valores democráticos. Sob esse aspecto, o processo de representação social da participação política
da sociedade civil apresenta, por um lado, a efervescência das mobilizações sociais (locais e
globais) como mobilização política das Organizações da Sociedade Civil e, por outro, uma
contribuição à mudança da cultura política fundada pelo reconhecimento político dessa
participação.
Esse aspecto justifica a relação dos dois elementos de reflexão: “a identidade” e “a
política”. Dois elementos fundados em um só contexto de formação discursiva, pois podemos
afirmar, com um nível mínimo de reflexividade, que não há política sem identidade ao mesmo
tempo em que não existe identidade sem formação e afirmação política no sentido de seu autoreconhecimento identidade como fundamentalismo ou do reconhecimento do outro, identidade
como alteridade.
Do ponto de vista da psicologia social, por exemplo, a alteridade vai apresentar-se como um
elemento claro da definição identitária seja esta uma alteridade negativa ou positiva. Uma
alteridade no sentido de reconhecer o outro sem a incorporação e o respeito do limite da identidade
alheia, que podemos definir como sendo a compreensão fundadora do outro negado ou afirmado. A
esse respeito, Sandra Jovchelovitch (1998) argumenta que:
(...) ainda que um grande números de estudos empíricos revele a tendência de
sociedades contemporâneas para construir a alteridade em termos negativos, essa
negatividade não esgota, e certamente não explica completamente o problema. Sem
o reconhecimento do outro, a produção de sentido e seus correlatos – a forma
simbólica, a linguagem e a identidade – seriam inexistentes. Compreender por que
a racionalidade ocidental exclui o outro envolve a compreensão da condição
fundadora do outro sobre essa própria racionalidade. (p.70).
Essa compreensão fundadora do outro negado-afirmado é uma base de formação discursiva
da construção identitária, que pelo menos cm termos analíticos, nos condiciona à fundamentação
elementar do problema identidade x política e identidade-política com relação ao sentidos da
representação social e formação discursiva da democracia. É a partir dessa dupla argumentação que
iniciamos a exposição analítica de nossa discussão: a democracia do publico identitário ao público
político na sociedade contemporânea.
As políticas identitárias resultam das transformações ocorridas com o advento do discurso
da globalização e da pós-modernidade e revelam, por via indireta, o processo de mudança da
cultura política das sociedades na medida em que se visualiza a fragmentação do tecido social e a
estruturação de novas formas de articulações sociais com caráter de reconhecimento político. A
relação entre global e local revela um painel identitário de afirmação de diferenças que incide no
reconhecimento e na legitimidade do processo de mudança da cultura política, tanto da cultura
política nacional quanto no contexto das relações internacionais das sociedades contemporâneas.
a
é tecer algumas considerações, do ponto de vista teórico-argumentativo, sobre a mudança
político-cultural na sociedade contemporânea. Partimos do pressuposto de que o reconhecimento
da política como instrumento de afirmação identitária, revela o regresso da política como
manifestação de pressão ao sistema político. Essa manifestação de pressão é visualizada neste
paper como formações discursivas presentes nos reconhecimentos identitários no contexto da
esfera pública política.
O que elegemos como problema teórico-reflexivo é a relevância da democracia no âmbito
das afirmações identitárias e no reconhecimento das diferenças como resultado positivo das
mudanças ocorridas com a emancipação do processo político da sociedade contemporânea. No caso
da sociedade brasileira, chamamos de emancipação política o processo de avanço visivelmente
identificado, pós-ditadura, que se estabeleceu a partir da retomada da cultura política da sociedade.
Processo esse que reestruturou o sistema político assim como a legitimidade política de seus atores
e também o processo de participação representativo da sociedade civil. Não fazemos aqui um
estudo sociológico da recente história política da sociedade brasileira, mas não podemos deixar de
considerar a relevante contribuição que este processo deu ao habitus político pós-ditadura, no que se
refere a retomada da cultura da participação política e, fundamentalmente, ao processo de identificaçã o dos
interesses políticos e, ao mesmo tempo, à relevante contribuição que esse processo deu a
emergência do capital simbólico bem como a valores reconhecidos na política por parte da
sociedade brasileira de uma maneira geral. Ao falarmos por exemplo do reconhecimento afirmativo
da fragmentação político-identitária, nos dias atuais, estamos falando subliminarmente de valores
simbólicos que influenciaram o reconhecimento dos direitos à identificação das diferenças que
foram retomados dentro de nossa cultura política recente. Estamos falando nesse sentido do capital
simbólico da política como afirmação democrática da diferença.
3
Definiremos Habitus como a disponibilidade de conhecimento produzido socialmente que incide a partir de
comportamentos, pensamento e visões de mundo que influencia de maneiras diferenciadas os domínios da vida prática
em termos coletivos e individuais. Para uma explicação fundamentada em termos teóricos sociológico do conceito de
habitus ver: BOURDIEU, P. (1989). O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, ed. Bertrand Brasil. Lisboa, Difel. e; ELIAS,
N. (1997) O Processo Civilizador. V. 1. Rio de Janeiro. Jorge Zahar.
O processo de sociabilidade política do Brasil revela cada vez mais uma dinâmica de
diferenciação afirmativa mantenedora de uma sociedade plural. Dentro desse contexto nos é
possível afirmar que o processo civilizador da cultura política desta sociedade (sob os cuidados criteriosos da
abordagem de Elias) demonstraria uma mudança de percepção da racionalidade institucional da
política. A cultura institucional política do Brasil ganha afirmativamente uma dinâmica positiva e,
consequentemente, ares de uma racionalidade quase própria na construção da identidade desta
sociedade mesmo considerando seu caráter híbrido e sincrético. Porém esse processo civilizador
ainda em estruturação demonstra uma emancipação dos valores políticos da racionalidade
afirmativa das identidades na sociedade brasileira e da cultura política que ela apresenta.
Dentro desse aspecto, a questão da política e da afirmação identitária dos atores nessa
sociedade estruturam a nossa argumentação sobre como as formações identitárias reconhecem a
política como um instrumento de poder de garantia das conquistas sociais; esse processo de
reconhecimento identitário se faz numa arena política e produz novos bens e valores simbólicos
mantenedores do habitus político e da cultura afirmativa na sociedade.
A questão fundamental relacionada a esse paper é que esse processo simbólico revela a
dinâmica da esfera pública política brasileira, qual conceituamos como multidentitária, e apresenta
a tensão de proximidade e distância entre a sociedade civil e o Estado na estruturação do processo
democrático. O processo de reconhecimento dos interesses por parte da sociedade civil política é o
dispositivo de medição da democracia no Brasil visibilizado nos espaços públicos políticos desta
sociedade. Utilizamo-nos desta argumentação pelo fato de haver um distanciamento estrutural entre
sociedade e Estado (governo) no Brasil. Nesse sentido, os reconhecimentos políticos dos vários
atores ativos na sociedade demarcam a funcionalidade do exercício democrático tanto forma de
reivindicação e demandas políticas, como no processo de afirmação da política de exclusão e
distanciamento estabelecida pela cultura normativa deste Estado constituída historicamente nesses
poucos anos de vida política da sociedade brasileira.
A necessidade de articulação dos vários atores nessa esfera pública multidentitária é cada
vez mais premente na medida em que a forma de representação da e na política é definida como o
processo de produção de conhecimento na afirmação identitária dos atores e como objeto da
própria identidade. No primeiro aspecto a “política” refere-se a representação social e discursiva do
conhecimento sobre a identidade; no segundo, a política é o objeto estruturante da identidade. O
processo de conhecimento político e coisificação da política na construção da identidade são
dinâmicos no que tange a manutenção dos reconhecimentos sociais na sociedade civil política no
contexto dos espaços públicos multidentitários da sociedade brasileira.
Ancoramos essa discussão metodológica numa base de reflexão teórico-conceitual que
associa sociologia discursiva e sociologia simbólica compondo a base explicativa da nossa análise.
Do ponto de vista teórico, o recurso a utilização da abordagem habermasiana e sua investigação
político discursiva demonstra o caráter de reformulação explicativa do paradigma da democracia,
assim como a noção de campo simbólico nos possibilita uma ancoragem analítica sobre o aspecto
abstrato do significado da política nas formações identitárias na sociedade global.
Mas para ambientar nossa discussão vejamos a argumentação teórico-conceitual que nos
introduzirá na problemática da democracia contemporânea.
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O conceito de Processo Civililizador na Obra de Nobert Elias é definido a partir de um contexto de longa duração da
História, processo esse que incide nos costumes sociais. Nesse sentido, fazemos apenas uma pequena alusão a esse
conceito sociológico para nos referirmos ao aspecto político da sociedade brasileira, que vem se civilizando e com isso
amadurecendo politicamente como conseqüência de uma mudança de habitus político que constitui-se a partir do
exercício democrático como processo de civilidade e culturação política.
3. Premissas Conceituais da Construção Democrática
O conceito de democracia na atualidade, no que concerne ao seu entendimento entre
“Regime Político” e “Cultura Política”, nos remete à reflexão sobre “participação social”, à noção
de “ator social” e às interações, relações e negociações dialógicas no âmbito do reconhecimento das
diferenças e dos interesses entre os diversos atores do mundo contemporâneo.
Essas questões envolvem elementos fundamentais para entendermos o conceito e a prática
da democracia contemporânea na medida em que tais elementos conceituais refletem sobre a
estrutura da ações sociais e políticas as quais são responsáveis pelas mobilizações nos diversos
níveis da sociedade. Essa base conceitual de análise dá sentido tanto ao ambiente de visibilidade da
democracia do ponto de vista concreto e prático da política na sociedade civil brasileira,
marcadamente constituída pela formação de nossa cultura política, como ao nosso regime político
que, por sua vez, é de caráter representativo, em que a democracia se expressa como modus de
delegação de poder por parte dos cidadãos.
Para analisar a democracia num caráter reflexivo, devemos partir de seu pressuposto
original no contexto da sociedade moderna e, com isso, verificar os elementos contextuais de sua
fundamentação conceitual. Nesse sentido, partimos de um problema primário da democracia
moderna o qual refere-se a relação entre os aspectos da liberdade social e política de afirmação
identitária e a relação desses com o poder político constituído. Sob esse ponto de discussão
podemos afirmar que a noção de democracia na modernidade se estruturou entre duas percepções
distintas: uma que tratou a democracia sob a égide da soberania popular (o sufrágio universal como
elemento de representação legítima e legal) e outra que tratou-a como liberdade da diferença
referente ao debate político e social (reconhecimento do direito da diferença como afirmação
política de interesses díspares e, consequentemente, identitários).
Tal questão se apresentou de forma subliminar no debate político e filosófico do século XIX
na medida em que entraram em choque a perspectiva da filosofia liberal, que reconhecia o valor da
liberdade e da diferença como premissa máxima da sociedade moderna, com o princípio de
normatização de uma forma de regime político e de governabilidade legítima, que partia do
princípio de uma igualdade universal para todos os cidadãos como valor pretensamente legítimo de
organização política dos Estados. A questão problema girou em torno de como garantir o preceito
da liberdade no contexto da relação entre igualdade e a diferença e no âmbito da relação entre
maioria e minoria, este último entendido como pressuposto de legitimidade político-representativa.
Segundo Touraine (1996), o aspecto que refere-se a equidade democrática como procedimento geral
caracteriza a democracia num contexto referente ao que os intelectuais convencionaram chamar de “ideais
democráticos da igualdade social”. O outro aspecto, referente ao direito de liberdade e diferença, diz respeito à
contextualização dos procedimentos das ações dos atores no âmbito da participação social e política sob o aspecto da
diversidade, aludindo de forma subliminar ao direito à diferença.
Tal contexto de liberdade está situado na relação entre duas coisas: a participação social
estruturada no contexto da prática política e reconhecimento do direito da mesma e o habitus
político no seu sentido de disponibilidade de conhecimento cultural da política que se configura
como efeito do processo das formações sociais no campo simbólico da política. Isso nos leva, de
forma particular, à discussão sobre a mobilização social e política e ao processo de articulação e
luta dos atores sociais, contextualizada em ambientes de conflito, caracterizada por relações de
poder e interações dialógicas.
A existência da participação democrática, mediante o aspecto político da liberdade das ações
sociais, tem seu suporte na forma de expressão e ação dos atores sociais. Segundo Robert Fraise, a
democracia é a luta dos sujeitos contra a lógica de imposição e dominação dos sistemas na
sociedade (Fraise apud Touraine, 1996), ou seja, a política do sujeito em favor do reconhecimento
de sua liberdade de ação. Essa forma de ação se expressa nos espaços da esfera pública, espaços de
visibilidades sociais e políticas.
Com isso, podemos argumentar que a sociedade civil política, do ponto de vista de um
ambiente de visibilidade participativa, se revela como “locus” das ações de caráter social,
econômico, político e cultural, isto é, ações caracterizadas por uma pré-disposição democrática em
seu aspecto geral. Mediante esse contexto, argumentamos também que essas ações não são apenas
de caráter formal institucional, pois o espaço público politicamente constituído sociedade civil
incorpora como democrática a liberdade da prática político-identitária de vários atores sociais não
institucionais ou mesmo institucionalizado: movimentos sociais, étnicos, culturais, religiosos, etc.
dando, com isso, sentido prático à premissa fundamental da “liberdade” e da “diferença” como
dispositivos legítimos de ações na sociedade.
Desse modo, podemos entender que, no caráter da participação, os vários atores sociais
veiculam sentidos políticos como prática do exercício democrático, do ponto de vista formal, no
âmbito do sistema político ou no nível das mobilizações sociais no mundo da vida, com ações do
associativismo civil, movimentos sociais, ONGs nacionais ou internacionais, etc. Com isso
podemos entender a pré-disposição das ações democráticas contemporâneas da vida social e
política como uma vitrine de interesses simbólicos que apresenta ações afirmativas de liberdade e
diferenças identitárias.
Esses interesses simbólicos dão uma subestrutura às formações identitárias na sociedade
civil politicamente estruturada e articulada frente a uma rede de complexidade de ações afirmativas
cada vez mais descentralizada que se localiza ao mesmo tempo entre o global e o local. Perante tal
processo, as questões que parecem serem principais são: como reestruturar a democracia frente: 1)
a um contexto social cada vez mais diversificado (que se caracteriza por mudanças significativas do
capital simbólico da política, como os processos de resignificação dos valores afirmativos dos
interesses sociais fragmentários; 2) como compreender a reestruturação do imaginário político, no
que diz respeito a cultura da participação democrática e a forma de incorporação do aprendizado da
política, como recurso utilizado para participação nessa mesma democracia – um aspecto
relacionado ao que definimos anteriormente como habitus político do processo civilizador da
sociedade brasileira; e 3) como relacionar o comportamento político e os interesses institucionais
reconhecendo fundamentalmente o advento das formações identitárias e dos interesses afirmativos
como estrutura através do qual a democracia contemporânea precisa se estabelecer.
Essas três questões referem-se a produção de sentido de uma democracia
multidentitária em uma sociedade irreversivelmente complexa do ponto de vista social e
político com base numa visão interdisciplinar da sociologia.
As abordagens teóricas contemporâneas que tematizam as explicações da democracia
buscam um certo grau de resignificação explicativa dos procedimentos do imaginário democrático,
transcendendo algumas vezes até a esfera do Estado de direito na busca de um ideário de
democracia global para além do local.
Dentro de um determinado contexto, as reflexões democráticas da democracia transcendem
em muito a todo e qualquer determinismo institucional, seja de caráter político ou econômico, e
busca fundamentalmente retomar procedimentos também de caráter subjetivos, como o fenômeno
dos interesses identitários, para possibilitar a compreensão do imaginário político da democracia no
contexto contemporâneo, possibilitando inclusive uma maior complexidade de reflexão políticosociológica. Nesse sentido, o processo de constituição da crise do que chamamos de dilemas
conceituais da democracia demonstra a necessidade de se retomar a discussão sobre a democracia
da democracia contra a imposição hegemônica de alguns modelos políticos.
Nesse sentido, a retomada de discussões sobre a relação entre mundo da vida e mundo dos
subsistemas é um exemplo claro dessa questão.
As abordagens da teoria política contemporânea feitas como base em referências
habermasiana - qual nós aqui tomaríamos a liberdade de chamar guinada discursiva pósestabelecida pela guinada comunicativa – que recorre a um aspecto político procedimental e
normativo de uma democracia situada na factualidade e na validade da política, é um exemplo de
como os dois mundos (o da vida e o sistêmico) contêm interseções cada vez mais recorrentes e
como essas intercessões estão cada vez mais ancoradas em procedimentos políticos, num contexto
de diversidade de interesses, com pretensões de entendimentos políticos válidos, e com isso
podemos dizer que o aspecto normativo da teoria habermasiana da democracia tem uma
normatividade mais próxima do chão social da política dos atores, no sentido de superar as
abordagens hegemônicas da democracia e, assim, democratizando ela própria. Dentro desse
aspecto, elementos de subjetividade como representação lingüística e elementos de
objetividade como sistema jurídico são operacionalizados teoricamente para dinamizar a
contemporaneidade da democracia sob o aspecto da legitimidade política procedimental.
O problema contemporâneo da fragmentação identitária encontra suporte num contexto de
universalidade da política, o universal nesse aspecto é a predisposição à política de negociação
consensual. A democracia traz nesse sentido, a questão subjacente da multiplicidade identitária
frente a unidade da racionalidade política. Ou como o próprio Habermas (1990) se referiu “a
unidade da razão na multiplicidade das vozes”, temática de discussão entre ele e os pós-modernos,
que representa os problemas de reflexão da sociedade atual no seu carater de descentralização
social e política.
4. A Questão da Identidade e da complexidade social: uma sociologia
para os elementos emergentes da sociedade global.
Poderíamos demarcar, simbolicamente, o fim social da modernidade? se é possível fazê-lo
diríamos que este aconteceu entre fins da década de sessenta e início da década de oitenta, como nos
afirma Castells (1999) que justifica esse marco de referência com base em três fatores relevantes de
nossa história recente: 1) A revolução das tecnologias de informação; 2) A crise do capitalismo e 3)
A crise dos regimes socialistas, dentre outros fatores como a emergência de mobilizações
identitárias de movimentos libertários por todo o mundo.
A bem da verdade, esses fenômenos não só podem nos indicar, referencialmente, o que se
pode chamar no campo da sociologia de o fim da modernidade, mas o início de dois processos ainda
mais importantes que são a formação do processo de “globalização” (que é a conjugação entre as
revoluções tecnológicas e a restruturação do sistema capitalista) e as formações das sociedades
complexas. Esses dois aspectos situam uma discussão sociológica fundamental em nossos dias, feita
por vários autores como Giddens (1991; 1996a; 1996b), Beck (1996; 1997), Melucci (1996), dentre
outros, que afirmam que saímos da modernidade mas não entramos no que se convenciona chamar
de pós-modernidade, e entre autores que advogam o discurso da pós-modernidade como Kaplan
(1993), Heller (1998), Kumar (1997).
Embora haja, tanto no nível teórico quanto no conceitual, diferenças fundamentais entre
esses autores contemporâneos no que toca às suas análises sociais, também é fato que entre eles há
uma aceitação factual sobre duas questões reais em nossos dias: a primeira refere-se a constatação
da complexificação da sociedade; e a outra ao fato da fragmentação identitária do mundo
contemporâneo. Nesse sentido, buscaremos um nível de reflexão sobre esses dois fenômenos no
contexto da análise sociológica.
A justificativa de relacionarmos o tema da identidade ao tema da sociedade complexa se dá
pela necessidade de constituirmos elementos conceituais para uma base teórica em torno da noção
de identidade no contexto contemporâneo, ou seja, buscar uma explicação sobre a formação sócioidentitária no contexto da complexidade contemporânea.
E para tanto, procuraremos configurar nossa análise em nível de conceitos, refletindo sobre
elementos pertinentes que se constituam como categorias de análise como: “reconhecimento
social”, “resistência”, “alteridade”, “campo simbólico”, “interesses” e “ação social”. Elementos que
giram em torno da noção de identidade e podem nos ajudar a constituir uma reflexão conceitual.
Mas antes de mais nada é preciso situarmos conceitualmente a noção de complexidade social.
Parece-nos ser necessário identificar a principal característica que gira em torno da noção de
sociedade complexa. Esta por sua vez é definida pela variável “descentralização”, ou seja, a
reconfiguração do sistema social fora de um centro estrutural. Segundo Melucci (1996) o sistema
social contemporâneo se constitui no âmbito de uma rede de relações estruturada autonomamente.
Uma autonomia, segundo ele, relativizada que impede a mudança do sistema num nível macro
estrutural mas que possibilita mudanças no contexto das relações complexas. Dentro desse aspecto,
as mudanças dentro dos sistemas complexos são de caráter específico e não podem ser transferidas
de um nível para o outro, mas ao mesmo tempo, ainda conforme o autor, as mudanças têm efeito de
modo mediado no processo de estruturação do sistema das redes sociais.
Isso se refere, de forma específica, ao aspecto do reconhecimento dos interesses
diferenciados dentro do contexto das redes de relações e consequentemente ao aspecto das ações
sociais no mesmo processo. O contexto de diferenciação, baseado na luta pelo reconhecimento da
diferença, constitui, nesse sentido, um processo não de exacerbação do individualismo mas de
integração diferencial dos interesse. Talvez nesse sentido se estabeleça uma das diferenças entre
abordagens sociológicas de caráter político-sistêmico (sem se referir as abordagens dos sistemas
autopoiéticos) como explicação dos fenômenos contemporâneos em relação as abordagens pósmodernas que partem do princípio da fragmentação atomizada como conseqüência das rupturas das
estruturas sociais.
Segundo Habermas (1997) o processo de descentralização da sociedade, tanto no nível
político como no nível jurídico, permite a formulação da base de estruturação do aspecto
procedimental e deliberativo das ações sociais e políticas a partir do reconhecimento dos interesses
diferenciados que, segundo ele, justificam uma instância de negociação discursivo-comunicativa no
campo normativo da sociedade contemporânea. Nesse sentido, Habermas recupera sua noção
teórico-conceitual de ação comunicativa e tenta relacioná-la a uma discussão contemporânea situada
entre a facticidade e validade das ações mediadas por interesses e reestruturação do sistema
normativo da sociedade, e o faz tanto no nível político quanto no nível jurídico relacionando um ao
outro. O que nos leva a entender a dinâmica da política como fenômeno eminentemente relevante
no contexto da complexidade social contemporânea. É com base nesse aspecto que é possível
falarmos de uma “sociedade civil política” e ao mesmo tempo de uma “esfera pública política”.
Habermas não discute conceitualmente a noção de “identidade”, mas parte do pressuposto de
que nas sociedades contemporâneas há a emergência do fenômeno da diferenciação complexa no
contexto das relações sociais. Diferenciação essa que se justifica pelo processo de reconhecimento
político no campo das ações sociais e que precisa ser compatibilizada no contexto argumentativo de
negociação procedimental e deliberativo.
Esse discurso comunicativo se justifica na identificação do reconhecimento da diferença
entre os atores e na superação de uma racionalidade instrumental individualista. Nesse sentido,
argumentamos que compatibilizar diferenças pressupõe reconhecer e relacionar diferentes
identificações que se formam num mesmo contexto. Em outras palavras, significa reconhecer as
identidades dos interesses diferenciados e tentar estabelecer um patamar de igualdade do discurso
para essas diferenças.
Esse é o contexto configurativo da sociedade complexa. Um contexto de identidades numa
base de relações interligadas. Uma rede de relações identitárias sob a qual as grandes narrativas
sociológicas perderam seu poder de explicação e sob a qual o aspecto das mudanças e das ações
sociais se constituem num ambiente de conflito plural.
A questão relevante dentro dessa discussão refere-se a resignificação de sentido que se
apresenta no âmago do contexto da sociedade complexa, que é uma referência às tradições na
constituição dos discursos identitários fora de uma característica doutrinária. Um exemplo claro
dessa questão pode ser mostrado com o papel do movimento de mulheres ou o movimento dos
trabalhadores, apresentados por Melucci (1996) nos quais suas tradições serviram para redefinir
seus papéis identitários no contexto contemporâneo. A resignificação dos sentidos de suas ações
hoje representa a característica de formações identitárias no processo inter-relacional das redes
sociais que citamos linhas acima.
Essas mobilizações identitárias, no contexto da impossibilidade das grandes mudanças
sociais, se vêem forçadas a aceitar, e em certa medida legitimar, a pluralidade dos níveis de
estruturação social que reconfiguram a sociedade e estabelecem os sistemas complexos. Com isso
tais mobilizações identitárias tendem a legitimar também os instrumentos de mudança social com
suas irredutíveis diferenças.
Mas por outro lado, Melucci nos mostra também que esse contexto complexo da sociedade
abre um grande campo de ação político diferenciado e conflitual, o que tende a complexificar ainda
mais o sistema no que toca a relação entre a mobilização identitária e os processos de mudança.
Pois no contexto da mudança e dos interesses se faz necessário relacionar duas questões principais:
1) Os instrumentos políticos de controle coletivo e 2) A garantia real da democracia política.
Segundo Melucci, embora pareça isso não é incompatível, mas cria o que ele chama de uma hiato
irreparável entre a formação de necessidades e demandas sociais de um lado e a forma de expressão
organizacional e de representação de outro, o que faz com que aumente as relações de força e
conflito nas sociedades complexas (Melucci, 1996)
Com base nesse contexto, aparentemente paradoxal, o autor argumenta que a relação entre a
complexidade e a mudança cria um vínculo de necessidade por decisões e isso envolve interesses
identitários diferenciados e plurais. Sob esse aspecto o processo das ações e relações políticas são
cruciais para os atores dessa sociedade. Esse é um dos motivos de se ter hoje uma grande
proliferação de atores e agentes políticos nas mais variadas áreas da sociedade e isso de certa forma
também demonstra o contexto de autonomia da política no contexto contemporâneo.
Dentro desse aspecto, as mobilizações identitárias se enquadram no interior das múltiplas
instâncias do sistema social e como atores sócio-políticos tais identidades se caracterizam com
representantes de interesses, tanto no nível simbólico como no nível material.
Como é possível perceber, estamos falando todo o tempo de identidade e mobilização
identitária como alguns dos elementos fundantes do problema sociológico contemporâneo. E com
isso acreditamos ser necessário saber em que se constitui essa noção de identidade no aspecto
teórico-conceitual dentro dos sistemas complexos atuais? Pois se sabemos que a sociedade
complexa é o ambiente de gestação das identidades e que as identidades se constituem no processo
contemporâneo de fragmentação e reestruturação do sistema social, poderemos partir dessas bases
para analisarmos noções teórico-conceituais sobre o fenômeno “identidade” em um nível
explicativo. Nesse sentido, importa agora discutir os elementos que estão compostos em torno desse
problema.
5. Elementos conceituais da identidade no processo
social contemporâneo.
A sociologia contemporânea faz uso da noção de identidade com uma habilidade prática
nunca antes vista, uma vez que o conceito de identidade, de forma mais objetiva, na grande maioria
das vezes sempre foi “abstratamente” próprio de áreas afins como a Antropologia, no qual se
explicava as identidades culturais, na Psicologia e Psicanálise, áreas que explicavam a identidade no
contexto do self e da alteridade, na Ciência Política, área de enfoque institucional em que se explica
as identidades políticas e em outras áreas no campo das ciências humanas como na geografia e sua
noção de identidade territorial.
A sociologia, sob o aspecto de sua formação científica clássica, igualmente a essas áreas não
se furtou ao usufruto da identidade, embora de forma menos objetiva, vemos por exemplo noções de
identidades sociais no campo da chamada micro sociologia, do interacionismo simbólico, da
etnometodologia, ou mesmo na fenomenologia, ou seja, num ambiente de investigação das micro
relações sociais. Encontramos também elementos de identidade nas discussões das classes sociais,
nos movimentos sociais e nas noções de papéis sociais.
A questão importante a destacar é que a noção sociológica da identidade se referia a um
aspecto de base secundária que se estava escondido no subsolo dos conceitos sociológicos e, sendo
assim, não era um fenômeno emergente que viesse a poder se constituir no que chamaria de um
tema/problema no campo da sociologia. Talvez o exemplo mais claro disso que estamos dizendo
refira-se ao papel da identidade na explicação teórica da ação coletiva, tratado por vários autores da
sociologia desde o início deste século até fins da década de setenta. No caso mais claro, podemos
citar indícios de identidade nas ações coletivas referidas aos movimentos e mobilizações sociais, na
noção de ator ou mesmo na revitalização da idéia do sujeito, fundamentalmente entre fins da década
de sessenta até início dos anos oitenta. Dentro desse contexto, argumentamos que a identidade se
apresentava no substrato do conceito do fenômeno da ação e mobilização social.
Com as mudanças estruturais ocorridas na sociedade contemporânea, datadas na década de
oitenta do século XX, como: a revolução tecnológica na área da informação, a crise do sistema
capitalista, a crise dos regimes de governos socialistas, a emergência de mobilizações de
movimentos libertários por todo o mundo e, por fim, o processo de transformação paradigmática do
conhecimento científico, o que era teorizado e sociologicamente explicado em nível geral perde
força e as identificações presentes nas grandes narrativas sociológicas se constituem num fenômeno
de fragmentação de narrativas plurais. A identidade do grande discurso cede lugar ao discurso das
identidades fragmentárias. A identidade deixa de ser algo subliminar, menos importante, e passa a
se constituir num fenômeno cada vez mais emergente, presente e processual, se configurando como
um tema autônomo no campo das ciências sociais, mais especificamente da sociologia atual.
A noção conceitual de identidade sempre fez parte de um aspecto de abordagem subjetivo e
essa dimensão conceitual é ainda hoje importante para se discutir a identidade com bases
sociológicas. E talvez por isso posamos lançar mão de nossas velhas bases sociológicas para iniciar
uma discussão conceitual sobre a identidade e daí associarmos conceitos como: “reconhecimento
social”, “resistência”, “alteridade”, “campo simbólico”, “interesses”, “pertencimento” e “diferença”.
Variáveis que circundam em torno da noção de formação identitária e podem nos ajudar a constituir
uma reflexão conceitual contemporânea sobre o tema.
Segundo Berger e Luckmann (1990), a idéia de identidade é vista como elemento da
realidade subjetiva, situada numa relação dialética com a realidade social. Nesse sentido, o processo
de síntese dessa dialética é que “a identidade é formada por processos sociais. Uma vez
cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais” (1990: p.228).
Com isso podemos argumentar que a noção de identidade refere-se ao processo interativo “ação
social - estrutura social” ou em outras palavras que a identidade remete-se a formações sociais,
entendendo o termo como um processo mediador entre a individuação e o sistema social.
Nesse caso, podemos discutir as questões referentes a noção de “identidade social” a qual
definimos como: forma de resistência e reconhecimento social provedora de formações sociais de
conflitos delimitados pelo estabelecimento de interesses dentro ou fora de instâncias institucionais.
Maura Pena (1989) conceitua a identidade como um modelo de representação que expressa
reconhecimento social, o que implica em relações de poder. Por outro lado, Alain Touraine (1989a;
1989b; 1995) também define um conceito de identidade pautado em formas de reconhecimento
social dentro de um campo social de conflito, relacionado a constituição do “sujeito-ator” no
processo de mudança social.
Nesse sentido, os elementos “representação” e “reconhecimento”, remetidos ao problema
exposto, forjam a noção do conceito de identidade. Esses elementos conceituais se tornam mais
efetivos quando remetidos ao mundo da vida cotidiana, onde experimentam tipificações identitárias
emergentes com base em marcos de referência da vida na prática, ou seja, ambiente no qual relações
simbólicas e materiais se efetivam concretamente.
Diante desse aspecto podemos argumentar que os processos dos comportamentos sociais e
suas orientações na vida cotidiana dependem de tipificações elaboradas nos processos de interações
sociais. Isto significa que as identidades apresentam-se dentro ou fora do mundo da vida e estão
atreladas a interesses tipificados mediante o contexto das relações sociais.
De forma minimizada, poderíamos situar uma exemplificação operacional disso que
afirmamos utilizando a noção de identidade no contexto das redes numa era de globalização. O
processo de formação de identidades, nesse contexto, se estabelece a partir do processo de
resignificação de sentidos mediados por um jogo de interesses tanto num nível simbólico quanto
material, no qual o processo de representação de tais sentidos, no contexto de formações de grupos,
comunidades, movimentos, etc., efetivam os limites de relação do nós com o(s) outro(s) ou o eu e o
outro mediante um processo interativo de ações e significações de interesses seja num nível social,
cultural, religioso ou de outra natureza dentro dos nouds da rede da globalização ou glocalização.
Sob esse aspecto, o contexto de formação da rede de interação e relação, seja no contexto local ou
global, permite que se estabeleçam representações discursivas de mobilização dos interesses,
reconhecendo as diferenças como pressuposto de formação dos limites identitários. Mas, é válido
ressaltar que o discurso da diferença por em si não representa a identidade, poderíamos até dizer que
a diferença é pré-condição para a identidade mas, as identidades se estabelecem enquanto tal
quando mediadas pela política de afirmação identitária presente na afirmação da diferença.
Nesse sentido o discurso da diferença subestrutura o discurso da identidade e o rompimento
das fronteiras (em todos os aspectos) dinamiza o processo das relações das identidades nas redes.
Com isso podemos entender o processo de formação dos limites identitários circunstancialmente
definidos a partir de suas mobilizações no contexto de sua formação discursiva.
No nível interno da unificação discursiva da identidade há o que chamaríamos de as
necessidades de uma economia de conflitos ou a minimização de disparidades dentro da própria
identidade, justamente para garantir a unificação identitária. Isso garantiria, pelo menos em tese, o
fortalecimento do núcleo identitário no nível interno em relação a outros reconhecimentos
identitários no contexto da constituição de um campo de conflito mediado por relações de interesses
inter-identitários. Queremos dizer, em termos sociológicos, que quanto maior a unificação
discursiva da identidade maior o seu poder de resistência no processo das relações sociais.
Essa noção de identidade que buscamos analisar se estrutura no contexto do sentimento de
pertencimento. Um pertencer voluntário legitimado por significações estruturantes de interesses e
reconhecimentos que influenciam as ações mobilizatórias das identidades mediado pelo processo de
relação de poder. Com isso essa identidade discutida aqui tem uma imagem de reconhecimento e de
conflito.
É valido ressaltar que essas questões que elencamos aqui têm um caráter ainda muito inicial
e carece de um maior aprofundamento. Sendo assim, procuramos discuti-las em um nível abstrato
de conceitualização sobre o fenômeno da identidade, como nos propomos desde o início, e nesse
caso não nos cabe demonstrar, pelo menos a princípio, a aplicabilidade de nossas noções
conceituais.
Mas é válido ressaltar que tais noções, embora de forma embrionária, cabem dentro de uma
reflexão contemporânea no campo de uma Sociologia das Identidades como de certa maneira é
apresenta por Castells em “O Poder da Identidade”, no qual institui três formas categóricas de
construção identitárias na sociedade contemporânea: A Identidade Legitimadora “Introduzida pelas
instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em
relação aos atores sociais”. A Identidade de Resistência “Criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construído,
assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que
permeiam as instituição da sociedade (...) e Identidade de Projeto “Quando os atores sociais,
utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constróem uma nova identidade
capaz de redefinir sua posição na sociedade (...)”.(1999: p.24)
Nossas pretensões nem de longe visam uma configuração analítica, como proposta por
Castells, mas tenta refletir em nível micro conceitual sobre as bases para uma discussão da
identidade dentro do fenômeno da sociedade complexa na medida em que há ainda um vácuo
teórico social sobre o tema, embora a “Identidade” se apresente como um dos fenômeno mais
importantes à sociologia dos dias atuais, presente na complexidade global.
Considerações finais
Nossas palavras finais não se referem a conclusões, mas a novas indagações sobre o tema
proposto e essas indagações estão situadas no problema do reconhecimento das diferenças e o
pressuposto da igualdade como patamar de relacionamento dessas diferenças nas sociedades
complexas. Essa discussão se faz necessária pelo fato de situar no campo ético e normativo
determinado valores que giram em torno dos fenômenos contemporâneos da complexidade social e
das formações identitárias aqui discutidos, que são tratados de forma mais fenomênica que
teorizante.
A complexidade, a identidade, a globalização, a descentralização, a fragmentação e a
diferenciação são questões ainda muito recentes e por isso enfocadas e refletidas ainda de forma
emergencial, porém tratadas com a maior propriedade e habilidade possível por parte dos vários
sociólogos em todo o mundo. Com isso têm-se a necessidade de que seja dado um nível de
explicação teórico a cada um desses fenômenos e ao mesmo tempo que seja possível integrá-los
numa teoria da sociedade contemporânea.
Não foi nossa intenção construir nenhum tipo de teoria, por mais embrionária que essa
pudesse ser. Longe disso, nossa questão circulou em torno de mínimas dimensões e questões
conceituais presentes diante do vácuo teórico da sociedade contemporânea e com isso de alguma
forma contribuir para o debate contemporâneo.
Em termos de análise da relação políitcas podemos afirmar que os princípios da identidade e
do reconhecimento são questões que evidenciam a formação dos interesses e das interações de
alteridades no contexto do espaço público, que funciona como ambientes políticos de
compartilhamento de reconhecimento do eu e dos outros, dos outros no eu e do eu nos outros, uma
dialética identitária cuja a síntese é plurarista e não unitária e os processos são negociados do ponto
de vista da negociação dos sentidos e dos interesses identitários. Sob o aspecto da negociação de
sentidos, podemos entende-la como sendo um processo de busca de compactibilidade e
entendimento social. Umberto Eco em “Entrevista Sobre o Fim dos Tempos” (2001) reforça nosso
argumento ao referir-se ao contexto de negociação lingüística, praticada por todos os indivíduos no
processo das fala e nas interações culturais. Segundo ele estamos negociando o tempo todo, muitas
vezes mesmo sem saber, no contexto da linguagem e do pensamento. Ao afirmamos que algo
existe, por ser isso ou aquilo, por mais simples que esse algo seja e por mais consensualidade que
exista sobre ele, negociamos o sentido de compreenção e legitimação sobre esse algo. Isso é um
processo dialógico da linguagem no contexto das práticas de entendimento. No contexto dos
objetos “política” e “identidade”, como algo de negociação, a tese de Eco se aplica de forma
efetiva, sobretudo por que a “política” e a “identidade” lidam com diferenças, conflitos,
negociações e práticas de interpelação e entendimento, quando a interação é estabelecida pelo
presuposto dialógico.
Lidar com diferenças é fundamentalmente compartilhar pluralidades com o caráter legítimo
numa sociedade democrática nesse sentido, o aspecto de negociação é em tese a estrutura básica da
vida social democrática. A compactibilidade no processo de diferença é um pressuposto de
funcionamento político na interação social e a alteridade é a base de estruturação desse
pressuposição.
Enfocando essas questões, do ponto de vista político-operacional, argumentamos que o
processo da democracia das pluralidades, deve permitir-se a regra da diferença como patamar
normativo. A preocupação com a diferença e com a alteridade têm sido questões sistematicamente
discutidas nos fóruns públicos e nas administrações de poderes executivos municipais de uma
maneira geral, sendo considerados tanto de forma normativa como política pela teoria social e pelos
grupos identitários, como o movimento feminista por exemplo desde a década de setenta, quando
surgiram as primeiras discussões sobre a questão da igualdade x diferenças. Não queremos afirmar
como isso que desde então as diferenças são respeitas e legitimadas nas formações identitárias da
sociedade contemporânea, diria até mais consistentemente, nas interações sociais da sociedade
global.
É fato que a bandeira do reconhecimento das diferenças tem um aspecto discursivo de
esquerda, pelo menos de uma esquerda que se auto intitula progressista, (nos últimos vinte anos) e
que reconhece não só o fato do direito à diferença mas, fundamentalmente o dever de implementar
politicamente o discurso positivo da diferença. Tomamos aqui a liberdade de utilizarmos a
expressão “discurso positivo”, pelo fato de que este apelo político em favor das diferenças tem um
caráter inclusivo e de superação de desigualdades na sociedade contemporânea, por exemplo num
aspecto de políticas públicas ou jurídica que visem o fundamento da emancipação social e as
estruturações de novas formas de regulamentação das regras de vivência na sociedade globalizada.
O contexto discursivo da diferença não significa eminentemente exclusão, tratando-se de
um contexto de negociação e interação política, o valor da política tem em si um significante
dialógico justamente por entender-se como negociação, acordo, inclusão. Por exemplo, o contexto
de deliberação de decisões significa haver questões, diferenças e interesses a serem
compactibilizados políticamente através da negociação de sentidos plurais. A diferença identitária
está presente como elemento de funcionalidade política deste processo. Ao contrário, o aspecto de
exclusão, alteridade negativa e o conservadorismo (nos moldes citados por Pierrucci em Ciladas da
Diferença) representa o aspecto da não-política, ou seja, da negação do reconhecimento e da
interação identitária como elementos de diálogo e negociação.
Dentro do contexto político institucional, já é possível ver no Brasil aspectos de
reconhecimento com relação as diferenças. É válido ressaltar que tais aspectos representam ainda
um contexto mínimo de reconhecimento, mas já é possível vislumbrar políticas públicas
preocupadas com tal questão. Isso é possível graças ao aspecto emancipatório da sociedade civil
política, no sentido de articular-se em torno de questões como, efetivação de política de gênero, de
estruturação de escolas laicas, e também em certa medida na pressão étnico-política sobre cotas,
tanto nas escolas públicas de segundo grau como nas universidades federais.
Esse reflexo representa o processo de emancipação político no que chamo, com base na
sociologia de Nobert Elias, de figuração da democracia contemporânea. Ou seja, não podemos
deixar de perceber que embora esteja claramente presente um processo de interação dos atores da
sociedade civil política com contextos institucionais, seja o poder executivo ou o legislativo, em
nível local ou federal, devemos ter em mente o aspecto constitutivo da educação política e
consequentemente da formação da personalidade política da sociedade de uma maneira geral. Sob
esse contexto, o processo social de produção de sentido por uma democracia que legitime e
reconheça as diferenças é um processo de educação dos sentidos políticos no que tange (recorrendo
mais uma vez a criatividade sociológica de Elias) a formação da sociogênese da democracia
contemporânea e da cultura política.
É válido resaltar que os conceitos tanto de figuração como o de sociogênese dissolvidos na
sociologia de Nobert Elias são operados num contexto de longa duração do processo histórico,
através do qual os usos dos costumes por exemplo modificam hábitos no processo de formação das
sociedades antigas do ancien regime diferenciados entre a cultura e a civilização. Mas suas
aplicações cabem perfeitamente em se tratando de momentos de rupturas e mudanças sociais, como
o caso das sociedades contemporâneo tendo como pano de fundo a globalização e a glocalização
estruturado uma nova formação cultural e um novo estágio no processo civilizatório que o mundo
está atravessando.
Com isso afirmamos, por fim, que este texto não se conclui mas inicia um processo de
indagação sociológico na busca de novas variáveis analítica da sociedade global
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