A DRAMATURGIA BRASILEIRA ESTÁ EM CRISE? Márcio Souza. Certamente vocês já ouviram falar algumas vezes que a dramaturgia brasileira está em crise. Aliás, é interessante notar como nós gostamos da palavra crise por aqui. Poderíamos até afirmar que a Crise, em sua acepção atual é uma invenção brasileira. Neste lindo torrão até mesmo a crise está em crise neste final do século. Assim, porque não a dramaturgia que aqui se escreve? Mas a verdade é que existe alguma realidade além da retórica na crise da dramaturgia brasileira. Vejamos alguns sintomas. Em 1994, num dos concursos de dramaturgia mais concorridos, o da Funarte, que outorga o prêmio Nelson Rodrigues, o júri decidiu não dar o Prêmio para nenhuma peça. Todos devem ter acompanhado a gritaria que ocorreu através dos jornais. Mas a decisão de um júri é soberana e não se pode fazer nada. Especialmente quando a justificativa era que não podiam dar o “Prêmio Nelson Rodrigues” para um texto que estivesse muito aquém do patrono do próprio prêmio. O que o júri desejava indicar com a sua posição, era que um prêmio nacional exigia que o texto a ser premiado no mínimo estivesse no padrão geral da dramaturgia brasileira, que é alto. Embora não tenhamos tido acesso aos textos que estavam concorrendo, a premissa do júri é irrepreensível. E sequer foi a primeira vez que isto aconteceu. Nos anos setenta fiz parte do júri do mesmo prêmio, e também não se escolheu nenhum texto. Mas isto foi nos anos 70, repito, numa outra época, em que a crise que ocorria na dramaturgia brasileira era provocada por motivos não artístico. É que vivíamos um dos momentos mais difíceis da convivência da cultura nacional com o poder do Brasil, que foi o período da ditadura militar. Naquele momento de extremas restrições, e não apenas com uma censura drástica que inibia a criação artística, mas com atos e ações terroristas contra a integridade física dos artistas, era normal que a produção entrasse numa período de baixa inspiração. Mas hoje são outros os motivos. Hoje nós vivemos em plena liberdade de expressão, com amplas garantias constitucionais. Para quem fazia teatro nos anos 70, é estranhamente delicioso saber que se pode montar uma peça sem passar pela Polícia Federal e sem ter um censor assistindo antes da estréia a peça. Quem é dinossauro daquela época lembra que os artistas de teatro, até mesmo os amadores das cidades do interior, eram obrigados a ter uma carteirinha amarela da Polícia Federal, provavelmente inspirada, o que muito nos honrou - e eles pensavam que estavam nos sacaneando - , nas carteirinhas amarelas das prostitutas da belle-époque. Eu nem sei se eles tinham cultura suficiente para fazer uma ironia tão fina, mas nós nos identificávamos muito com as meninas alegres da belle-époque. Voltemos, então, ao Prêmio Nelson Rodrigues de 1995. Nenhum texto foi premiado, houve uma grande discussão e uma grande movimentação dos dramaturgos brasileiro em atividade. E o debate acabou gerando um Encontro Nacional de Dramaturgia, que ocorreu em novembro de 96, no Rio de Janeiro, com expressiva participação e excelentes resultados. Este seminário organizado por iniciativa do Sindicato Brasileiro de Autores Teatrais - SBAT, com o apoio do Sesc/Rio e da Funarte, constatou realmente a existência de uma crise. Os profissionais mais visceralmente ligados ao teatro, acostumados a seguir a temporada teatral de grandes centros como o Rio de Janeiro e São Paulo, observaram que a dramaturgia brasileira encenada, quando encenada, estava muito aquém da sua tradição. Se isto constitui uma crise ou não é um grande debate teórico que pode nos levar aos píncaros da metafísica, mas provavelmente não nos vai explicar essa crise. De uma perspectiva profissional observa-se alguns problemas que estão levando a dramaturgia brasileira a um processo de diluição, afastando-a de sua alta tradição. E porque a dramaturgia é um componente importante da cultural, é necessário observar esses problemas e buscar soluções. Especialmente porque a dramaturgia internacional atravessa uma fase bastante viva, resultando a nossa crise em um fenômeno inquietantemente localizado. A dramaturgia brasileira faz parte de uma alta tradição artística que é a literatura brasileira. Nunca se deve esquecer que dramaturgia teatral é antes de tudo literatura. Ela não é um alinhavado de diálogos e indicações cênica para os atores e técnicos, é simplesmente literatura, com todos os compromisso com a profundidade e a invenção da literatura. A dramaturgia brasileira atingiu o alto nível da literatura como um todo, justamente por que teve a capacidade de sintonizar os desafios maiores de nossa expressão, seja na poesia, no romance ou na ensaística. Desde o século XVIII que o texto dramático brasileiro estabeleceu um diálogo com os público do país e com as outras formas literárias de expressão. É, assim, uma dramaturgia que tem lastro, mesmo sendo recente, como todas as dramaturgias americanas. Por este aspecto, não temos que alimentar nenhum complexo de inferioridade.