FARC: 40 anos de História Direto das selvas da Colômbia

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FARC: 40 anos de História
Direto das selvas da Colômbia, correspondente brasileiro analisa a insurgência mais antiga da
América. Por Yuri Martins Fontes, para a revista Reportagem*
Após a grande crise de 1929, pela primeira vez o mundo passou a enxergar de outro modo o
liberalismo ortodoxo, doutrina capitalista que vigorava inabalável desde o século XIX.
Começou a se cogitar, a partir de então, a intervenção do Estado na economia, de forma a
minimizar as conseqüências da grande quebra iniciada nos Estados Unidos. Eram necessárias
atitudes urgentes que pudessem responder aos interesses das fragilizadas burguesias nacionais
dos países dependentes.
Na América Latina, grandes representantes deste giro histórico foram Cárdenas, no México,
Perón, na Argentina e Vargas, no Brasil. A nacionalização do petróleo e o investimento
industrial foram importantes pautas deste amplo movimento. Na Colômbia, entretanto, o
grande poder da ala conservadora, alinhada com o expansionismo estadunidense, impediu que
reformas progressistas tivessem lugar.
Em 1948, a situação de ingerência externa por parte de multinacionais chega a tal ponto,
que os ditos "liberais", aliados aos pequenos grupos socialistas de então, iniciam uma guerra
civil contra o governo conservador. As primeiras etapas deste conflito armado podem ser
conhecidas através do realismo fantástico da grande obra de Gabriel García Marques "Cem
Anos de Solidão".
Após 16 anos de luta guerrilheira e a conquista de algumas reivindicações políticas, os liberais
tentam frear os avanços políticos, ao perceber o avanço das forças aliadas socialistas que se
acelerava além do esperado sob a influência do triunfo revolucionário cubano. Traem, então,
o acordo com as esquerdas, passando para o lado conservador.
Em 27 de maio de 1964, dezenas de milhares de soldados são enviados para o povoado de
Marquetália para reprimir 48 camponeses comunistas rebelados, que fogem para as selvas e
montanhas. Esta data é tida como a fundação da maior e mais antiga guerrilha da América, as
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Em 40 anos, aquela meia centena de
revoltosos comandados por Manuel Marulanda – o histórico líder máximo conhecido como Tiro
Certo – se transformou em um grupo político armado com quase 30 mil homens, divididos em
60 frentes guerrilheiras e agindo em todo o território nacional.
Em julho do mesmo ano, é realizada uma assembléia de guerrilheiros, em que se define um
programa agrário que daria a primeira bandeira para os revolucionários, que deixam de ser
apenas combatentes camponeses para pregar, sob uma visão mais ampla, a luta pelo poder
político para todo o povo.
Neste contexto de repressão total, ainda em 1964 surgem outros grupos revolucionários com
distintas formas de organização e diferentes concepções ideológicas, como o Exército de
Libertação Nacional (ELN), de orientação guevarista, e o Exército Popular de Libertação
(EPL), com origem nas concepções da Revolução Chinesa.
É também desta época o aparecimento de bandos oriundos da desestruturação das guerrilhas
liberais, que já sem razão para existir e lutar passam a praticar a pilhagem da população
civil. Algum tempo depois, estas quadrilhas são recrutadas por poderosos coronéis
latifundiários da região, dando início aos primeiros grupos paramilitares. Os chamados
"paracos" atualmente prestam serviços também às corporações multinacionais e aos cartéis do
narcotráfico.
Desde há alguns anos atrás, com a intervenção estadunidense batizada de Plano Colômbia, as
possibilidades de paz no país se tornaram muito distantes. Após várias tentativas de
negociações por parte do anterior governo liberal de Pastrana, o atual presidente Uribe,
ligado às elites agrárias e íntimo aliado do grande Império do Norte, busca no confronto
sangrento a solução para exterminar os grupos revolucionários comunistas, sem atentar à
triste realidade social do país, com mais de 60% da população afundada na pobreza. Cartazes
espalhados pelo país explicitam o trágico vivido: "Plan Colombia, los gringos ponen las armas,
Colombia pone los muertos".
O interior da nação andina é hoje uma terra sem lei, onde predomina o medo e o mistério.
Freqüentemente, milícias paramilitares efetuam emboscadas e genocídios em estradas e
povoados rurais. E apesar da violência destes grupos fascistas, ao fim de 2003, Uribe fechou
um acordo bastante suspeito, de rendição e anistia, com o maior grupo paramilitar do país, as
Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), que possui cerca de 5.000 mercenários. Segundo
informações que obtive no boca a boca entre o povo, os soldados deste grupo são os mesmos
do exército, disfarçados apenas por um broche com a insígnia da AUC.
Sequer mudam de uniforme. Desta forma, o governo fica mais à vontade para executar
tarefas pouco populares – como o massacre de povoados inteiros e a eliminação de supostos
"amigos" dos guerrilheiros.
O recente acordo de anistia total aos paramilitares parece referendar não apenas esta
estranha ligação com o exército regular, mas também as acusações que ligam Uribe
diretamente ao comando destes mercenários de extrema direita.
Ao que parece, com o forte apoio econômico-militar estadunidense e a propaganda massiva
– que classificam as FARC como partícipes do dito "eixo do mal" perante à simplória opinião
pública – as táticas de guerra puderam ficar mais abertas e agressivas.
Além das dificuldades impostas pelo terror paramilitar e de Estado, àquele que se queira
conhecer de perto a situação na Colômbia, há também o problema dos bandoleiros,
quadrilhas armadas que se aproveitam do conflito generalizado para efetuar assaltos nas
ermas estradas do país. Isto tudo dificulta o deslocamento, a estadia e a conseqüente
obtenção de notícias acerca da realidade atual colombiana.
Ainda que possamos conhecer algo através dos jornais, em geral as informações que nos
chegam são parciais e superficiais, já que estão comprometidas ideologicamente com os
detentores do grande capital do país – como se passa em geral com a grande imprensa suja.
Desta forma, não lhes é interessante de tratar dos motivos que levam um povo à insurgência.
Esta mesma desinformação leviana pode ser observada nos noticiários acerca de quaisquer
conflitos subversivos, tais como o MST ou o EZLN.
Após o ataque às Torres Gêmeas, o mundo foi ainda mais polarizado. Qualquer contestação ao
regime fundamentalista neoliberal passou a ser vista como grave afronta. Classificando a
subversão de terrorismo, ficou mais fácil vender a imagem do "bom colonizador" que
bombardeia, invade e assassina em nome do deus "correto".
No início deste ano, o fracassado Plano Colômbia, posto em prática em nome da suposta
erradicação do plantio de coca, ganhou seu substituto moderno, o Plano Patriota. Na prática,
o plano é semelhante ao anterior, agora reforçado com alguns bilhões de dólares a mais.
Consiste em uma intervenção militar ostensiva em pleno coração da Amazônia sul-americana,
com claros fins políticos, econômicos e territoriais. A região é abastada em água potável,
petróleo, minérios preciosos e grande biodiversidade, entre outras riquezas.
O governo oficial é apoiado pelos EUA com armas, dinheiro, helicópteros, treinamento militar
e até mesmo com o despejo de substâncias químicas nas selvas do país, regiões onde se
ocultam os guerrilheiros. Já circulam pela internete fotos de camponeses deformados
atingidos pelos venenos das fumigações. Vale dizer que estes rios contaminados nascem nos
Andes e vêm desaguar na Amazônia brasileira. Deste modo, uma catástrofe ecológica já pode
ser prevista em curto prazo, caso não se enfrente diretamente o uso de armas químicas por
parte do grande irmão.
De outro lado, as FARC se defendem e não deixam de fustigar o inimigo. Apesar do
megainvestimento estadunidense, no ano de 2003 houve uma média de 12 combates por dia,
onde morreram mais de 5.000 militares, policiais e paramilitares, enquanto as baixas da
guerrilha somaram cerca de 700 homens, entre guerrilheiros e milicianos civis apoiadores,
segundo dados de organizações não-governamentais.
As FARC, além do grupo guerrilheiro armado, são compostas por mais três grupos. Uma milícia
civil armada apóia os insurgentes em ações secretas de inteligência, no interior do país. Nas
capitais as ações revolucionárias de guerra estão por conta do Partido Comunista Clandestino
Colombiano. E nos mais diversos rincões do país existem os grupos de simpatizantes, civis
desarmados e idealistas que apóiam o abastecimento alimentício, por exemplo.
Grande parte dos guerrilheiros farianos é composta de camponeses pobres cuja miséria lhes
levou às fileiras rebeldes. Lá aprenderam a ler e a lutar.
Outros, com mais formação, vêem nas FARC a única chance de mudanças políticas no país.
Estes preparam-se para os cargos de comando, estudando tanto a Política, como a Psicologia
e a Economia. Inclusive, fator de grandes elucubrações atualmente, é o financiamento das
FARC. Segundo as palavras do próprio Comandante do Secretariado Geral das FARC, Raúl
Reyes:
"as FARC são um exército do povo que se nutre da economia do país, que é o petróleo, o café,
as esmeraldas, o gado, o algodão, a coca e a papoula. Assim as FARC cobram um imposto
àqueles capitalistas que tenham mais de um milhão de dólares, independentemente da
proveniência de seus capitais. Não perguntamos ao empresário das transportadoras se seus
caminhões foram comprados com dinheiro do narcotráfico. As FARC não têm cultivos, não
negociam com narcóticos, não vendem favores aos narcotraficantes. As FARC subsistem da
economia do país, apesar da campanha encabeçada pelos EUA que tem por fim desacreditarnos, mostrar-nos não como uma organização revolucionária, mas como narcotraficantes,
agora narcoterroristas. Mas é normal que os EUA façam isso, pois são nossos inimigos e,
portanto, fazem o que devem fazer".
E embora os EUA tenham cogitado a intervenção direta no território sul-americano, ainda não
tiveram forças políticas para executá-la, graças talvez ao despreparo e barbáries deste atual
governo. Contudo, o candidato Kerry já acenou com o perigo, afirmando em campanha que
Bush "se preocupa demais com o Oriente Médio" e que "mal conhece a América Latina". Que a
ignorância geográfica presidencial estadunidense perdure tanto quanto a humana.
Yuri Martins Fontes é filósofo e engenheiro. Publicado na revista Reportagem , da Oficina
de Informações, no mês de julho de 2004.
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