CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DA DEFESA DA SAÚDE – CAO-SAÚDE DE JUSTIÇA RUA DIAS ADORNO, 367 – SANTO AGOSTINHO – BELO HORIZONTE/MG – CEP 30190-100 TELEFONE: 3330-8399 – EMAIL: [email protected] Ministério Público-MG PARECER TÉCNICO MÉDICO nº 004/2012 Assunto: Dengue. Febre hemorrágica da dengue. Apuração dos fatos que resultaram no falecimento de Jéssica Maria Oliveira. Provável omissão e/ou erro médico. 1. Dengue – Definição A dengue é a infecção viral transmitida por mosquito mais freqüente no planeta. No Brasil a incidência vem aumentando em sucessivas epidemias, com uma proporção crescente de casos graves. A qualidade da assistência prestada influencia diretamente o prognóstico da doença. Estas recomendações apresentam o manejo das formas graves de dengue, incluindo o reconhecimento de sinais de alerta, o tratamento visando o pronto re-estabelecimento da euvolemia e a avaliação e cuidado das potenciais complicações, no intuito de reduzir a morbi-mortalidade de crianças e adultos infectados. 1 Verdeal JCR, Costa Filho R, Vanzillotta C, Macedo GL, Bozza FA, Toscano L et al. Guidelines for the management of patients with severe forms of Dengue. Rev Bras Ter Intensiva. 2011; 23(2):125-133. 1 1 A identificação precoce dos casos de dengue é de vital importância para a tomada de decisões e a implementação de medidas de maneira oportuna, visando principalmente ao controle da doença. A organização dos serviços de saúde, tanto na área de vigilância epidemiológica quanto na prestação de assistência médica, é essencial para reduzir a letalidade das formas graves e conhecer o comportamento da dengue, sobretudo em períodos de epidemia. Nessas situações, é mandatória a efetivação de um plano de contingência que contemple as necessidades de recursos humanos e financeiros e a identificação de unidades de referência. A classificação da dengue, segundo a Organização Mundial de Saúde, é retrospectiva e depende de critérios clínicos e laboratoriais que nem sempre estão disponíveis precocemente, sobretudo para os casos de dengue clássica com complicações. Esses critérios não permitem o reconhecimento de formas potencialmente graves, para as quais é crucial a instituição precoce de tratamento. A infecção por dengue causa uma doença cujo espectro inclui desde formas clinicamente inaparentes até quadros graves de hemorragia e choque, podendo evoluir para o óbito. 2 Fonte: Dengue: Diagnóstico e Manejo Clínico (MS, 2005). Dengue clássica: a primeira manifestação é a febre, geralmente alta (39ºC a 40ºC), de início abrupto, associada a cefaléia, prostração, mialgia, artralgia, dor retroorbitária, exantema maculopapular acompanhado ou não de prurido. Anorexia, náuseas, vômitos e diarréia podem ser observados. No final do período febril, podem surgir manifestações hemorrágicas como epistaxe, petéquias, gengivorragia, metrorragia e outros. Em casos mais raros, podem existir sangramentos maiores como hematêmese, melena ou hematúria. A presença de manifestações hemorrágicas não é exclusiva da febre hemorrágica da dengue, e quadros com plaquetopenia (<100.000/mm3) podem ser observados, com ou sem essas manifestações. É importante diferenciar esses casos de dengue clássica com manifestações hemorrágicas e/ou plaquetopenia dos casos de febre hemorrágica da dengue. A dengue na criança, na maioria das vezes, apresenta-se como uma síndrome febril com sinais e sintomas inespecíficos: apatia ou sonolência, recusa da 3 alimentação, vômitos, diarréia ou fezes amolecidas. Nos menores de dois anos de idade, os sintomas cefaléia, mialgia e artralgia podem manifestar-se por choro persistente, adinamia e irritabilidade, geralmente com ausência de manifestações respiratórias. As formas graves sobrevêm geralmente após o terceiro dia de doença, quando a febre começa a ceder. Em crianças menores de cinco anos, o início da doença pode passar despercebido e o quadro grave ser identificado como a primeira manifestação clínica. Observa-se, inclusive, a recusa de líquidos, podendo agravar seu estado clínico subitamente, diferente do adulto, no qual a piora é gradual. O exantema, quando presente, é maculopapular, podendo apresentar- se sob todas as formas (pleomorfismo), com ou sem prurido, precoce ou tardiamente.2 2. Etiologia e fisiopatologia da doença A dengue é causada por quatro sorotipos diferentes de vírus pertencentes ao gênero Flavivirus, família flaviviridae (DENV I a IV). Sua transmissão ocorre através de picadas de mosquitos do gênero Aedes, majoritariamente Aedes aegypti. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a dengue a infecção viral transmitida por artrópodes que mais rapidamente se alastra no mundo. A transmissão ocorre de forma endêmica em mais de 100 paises, onde anualmente são notificados de cinquenta a cem milhões de casos, causando pelo menos vinte e quatro mil óbitos. Na América do Sul entre 2001-2007, 64% dos casos de dengue foram diagnosticados em países do cone-sul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), dos quais 98% no Brasil, que apresenta a maior taxa de letalidade da sub região.3 - Brasil. Ministério da Gestão.Dengue: diagnóstico Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretoria Técnica de e manejo clínico / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Diretoria Técnica de Gestão. – 2. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2005. 24 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). 3 Zambrini DAB. Neglected lessons from the 2009 dengue epidemic in Argentina. Rev Saúde Pública 2011;45(2):428-31. 2 4 Febre hemorrágica da dengue (FHD) As manifestações clínicas iniciais da dengue hemorrágica são as mesmas descritas para a dengue clássica, até que ocorra a defervescência da febre, entre o terceiro e o sétimo dia, e a síndrome se instale. Evidencia-se o surgimento de manifestações hemorrágicas espontâneas ou provocadas, trombocitopenia (plaquetas <100.000/mm3) e perda de plasma para o terceiro espaço. Dengue com complicações É todo caso que não se enquadra nos critérios de FHD e quando a classificação de dengue clássica é insatisfatória, dado o potencial de risco. Nessa situação, a presença de um dos itens a seguir caracteriza o quadro: alterações neurológicas; disfunção cardiorrespiratória; insuficiência hepática; plaquetopenia igual ou inferior a 50.000/mm3; hemorragia digestiva; derrames cavitários; leucometria global igual ou inferior a 1.000/ mm3; óbito. Manifestações clínicas menos freqüentes incluem as neurológicas e psíquicas, tanto em adultos como em crianças, caracterizadas por delírio, sonolência, coma, depressão, irritabilidade, psicose maníaca, demência, amnésia e outros sinais meníngeos, paresias, paralisias (polineuropatias, síndrome de Reye, síndrome de Guillain-Barré) e encefalite. Surgem no decorrer do período febril ou mais tardiamente, na convalescença. 3. Diagnóstico, Aspectos Clínicos e Tratamento É o caso de dengue confirmado laboratorialmente e com todos os critérios presentes a seguir: a) febre ou história de febre recente de sete dias; b) trombocitopenia (<=100.000/mm3 ou menos); 5 c) tendências hemorrágicas evidenciadas por um ou mais dos seguintes sinais: prova do laço positiva, petéquias, equimoses ou púrpuras, sangramentos de mucosas do trato gastrointestinal e outros; d) extravasamento de plasma devido ao aumento de permeabilidade capilar, manifestado por: - hematócrito apresentando um aumento de 20% sobre o basal na admissão ou queda do hematócrito em 20%, após o tratamento; - presença de derrame pleural, ascite e hipoproteinemia. A dengue hemorrágica pode ser classificada de acordo com a sua gravidade em: a) grau I – febre acompanhada de sintomas inespecíficos, em que a única manifestação hemorrágica é a prova do laço positiva; b) grau II – além das manifestações do grau I, hemorragias espontâneas leves (sangramento de pele, epistaxe, gengivorragia e outros); c) grau III – colapso circulatório com pulso fraco e rápido, estreitamento da pressão arterial ou hipotensão, pele pegajosa e fria e inquietação; d) grau IV – Síndrome do Choque da Dengue (SCD), ou seja, choque profundo com ausência de pressão arterial e pressão de pulso imperceptível. Nos pacientes com manifestações clínicas da infecção pelo vírus da dengue pode-se distinguir três fases de evolução da doença: febril, crítica e recuperação (Figura 1). 6 As formas clínicas de dengue são classificadas classicamente em febre da dengue, febre hemorrágica da dengue e síndrome do choque da dengue.(3-6) A OMS propõe, baseada nos resultados do estudo multicêntrico “DENCO” (DENgue COntrol), uma classificação simplificada com maior aplicabilidade prática baseada na avaliação clínica e de exames laboratoriais amplamente disponíveis. O novo sistema divide os 7 casos de dengue em duas categorias de gravidade: 1) dengue (com ou sem sinais de alerta) e 2) dengue grave (Figura 2).4 A dengue é uma doença dinâmica, o que permite que o paciente evolua de um estágio a outro rapidamente. O manejo adequado depende do reconhecimento precoce de sinais de alerta, do contínuo monitoramento e re-estadiamento dos casos e da pronta tomada de condutas que garantam a estabilidade hemodinâmica e ventilatória dos pacientes, além das medidas de suporte aos eventuais comprometimentos orgânicos. Verdeal JCR, Costa Filho R, Vanzillotta C, Macedo GL, Bozza FA, Toscano L et al. Guidelines for the management of patients with severe forms of Dengue. Rev Bras Ter Intensiva. 2011; 23(2):125-133. 4 8 Diagnóstico Diferencial Considerando-se que a dengue tem um amplo espectro clínico, as principais doenças que fazem diagnóstico diferencial são: influenza, enteroviroses, sarampo, rubéola, parvovirose, eritema infeccioso, mononucleose infecciosa, exantema súbito, e outras doenças exantemáticas, hepatite infecciosa, hantavirose, febre amarela, escarlatina, sepse, meningococcemia, leptospirose, malária, riquetsioses, síndromes purpúricas (síndrome de Henoch-Schonlein, doença de Kawasaki, púrpura autoimune), farmacodermias e alergias cutâneas, abdome agudo na criança. Outros agravos podem ser considerados conforme a situação epidemiológica da região. A doença meningocócica (DM) persiste em todo o mundo sob formas de surtos, epidemias ou casos esporádicos, apresentando considerável letalidade e seqüelas. Formas clínicas clássicas são agrupadas como meningite e/ou meningoencefalite sem e com septicemia, e como septicemia sem acometimento do sistema nervoso central. Meningite e septicemia são acometimentos muito diferentes, com fisiopatogenia, tratamentos e desfechos distintos. E, a própria septicemia apresenta letalidade variável, entre 20 a 80%, na dependência de múltiplos fatores, desde o acesso ao tratamento e qualidade deste até o tipo e a intensidade da resposta do paciente à endotoxina bacteriana, entre outros. A meningite meningocócica e a meningococcemia são infecções raras, porém graves, causadas pela bactéria Neisseria meningitidis, também chamada meningococo. A meningite meningocócica é uma infecção das meninges (revestimento do cérebro e da medula espinhal), e a meningococcemia é uma infecção generalizada. Ambas infecções são consideradas emergências médicas. Além de causar doenças, o meningococo é encontrado (sem causar doença) no nariz e na garganta de 10% a 25% da população. Quem carrega a bactéria nessas regiões é chamado "portador assintomático". A maioria dos portadores não adoece, mas pode transmitir essa infecção potencialmente fatal a outras pessoas 9 através de secreções respiratórias, da saliva expelida ao tossir e espirrar, ou outras formas de contato próximo. A meningite é uma doença contagiosa causada pela bactéria Neisseria meningitidis em que o revestimento do cérebro e da medula espinhal é infectado. A bactéria também causa meningococcemia (também chamada sepse meningocócica), que é uma infecção do sangue. São doenças que progridem rápido. Embora os primeiros sintomas pareçam com os de uma gripe, elas podem matar em 24 a 48 horas após as primeiras manifestações. A meningite meningocócica e a meningococcemia podem ser difíceis de identificar, e às vezes são diagnosticadas tarde demais. Mesmo com tratamento adequado, cerca de 1 em 10 pessoas com meningite meningocócica ou meningococcemia morre.4 E os pacientes que sobrevivem podem sofrer consequências graves.5 4. Referências - Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretoria Técnica de Gestão.Dengue: diagnóstico e manejo clínico / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Diretoria Técnica de Gestão. – 2. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2005. 24 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos). - Schall VT et al. Household dengue prevention. Rev Saúde Pública 2009;43(5):895-7. - Zambrini DAB. Neglected lessons from the 2009 dengue epidemic in Argentina. Rev Saúde Pública 2011;45(2):428-31. Fonte: http://www.meningitis.com/Brasil/o-que-e-meningite/index.shtml. Acesso em 10 de setembro de 2012. 5 10 - Teixeira, MG e cols. E o dengue continua desafiando e causando perplexidade. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 27(5):828-829, mai, 2011. - Verdeal JCR, Costa Filho R, Vanzillotta C, Macedo GL, Bozza FA, Toscano L et al. Guidelines for the management of patients with severe forms of Dengue. Rev Bras Ter Intensiva. 2011; 23(2):125-133. - Prefeitura de Belo Horizonte. PROTOCOLO DE ATENDIMENTO AOS PACIENTES COM SUSPEITA DE DENGUE. Belo Horizonte, 2011. - STELLA-SILVA, Nádia; OLIVEIRA, Solange Artimos; MARZOCHI, Keyla Belízia Feldman. Doença meningocócica: comparação entre formas clínicas. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., Uberaba, v. 40, n. 3, June 2007. 5. Conclusão (a) Após análise detalhada dos documentos médicos, exames complementares, laudos médico periciais e literatura técnica, científica e indexada, conclui-se que a paciente J.M.O.M. apresentou quadro compatível com a febre hemorrágica da dengue, que culminou em óbito. 11 (b) Os procedimentos adotados e condutas médicas, conforme documentos juntados ao PAAF número 0024.12.003721-3, foram realizados conforme os preceitos técnicos da Medicina. (c) Esta perita análise detalhada dos documentos médicos, exames complementares, laudos médico periciais e literatura técnica, científica e indexada, ratifica os termos do Exame de Corpo de Delito Indireto elaborado e Laudo ao Ministério pelo médico legista Dr. Harleu Welbert Lasmar, CRMMG 38.064. É o presente Parecer Técnico Médico. Belo Horizonte, 10 de setembro de 2012. FLÁVIA PEREIRA COSTA Analista do Ministério Público MAMP: 4886 GILMAR DE ASSIS Promotor de Justiça Coordenador CAO-SAUDE 12