ALAIC 2000–SANTIAGO – CHILE – Univesidad Diego Portales GT – Estudios de RecepciónCoordinador: Guilhermo Orozco Gómez RESUMO 1 Título: Lixo, cidadania e prática comunicativa O processo de comunicação e mobilização em projetos interinstitucionais que visam erradicar o trabalho infantil nos lixões do Brasil Ana Maria Azevedo Trata-se de um estudo que privilegia a relação comunicação e meio ambiente, na perspectiva das intervenções interinstitucionais que tratam o lixo como uma questão de cidadania. A intenção é construir uma noção mais apropriada de prática comunicacional, observando as mediações a partir da análise crítica do discurso pela via da interpretação. Pretende também conhecer os modos específicos de produção, distribuição e consumo de textos. A visão teórico medodológica permite a vinculação de significados discursivos e sentidos sociais sem dicotomizá-los ou pressupô-los de imediato. A investigação foi iniciada pela descrição da cena social e discursiva dos atores que promovem a intervenção no Projeto Meio Ambiente e Cidadania em Olinda, Brasil, indicando as diversas instâncias institucionais, suas políticas de linguagem em defesa do meio ambiente e seus instrumentos de comunicação, aqui entendida como a negociação de sentidos. Hoje, a prática interdisciplinar para erradicação do trabalho infantil em Olinda foi um dos estímulos para a criação do Fórum Nacional Lixo e Cidadania e de projetos intermunicipais. Iniciativas que ampliam o estudo iniciado em 98 1, incorporando as seguintes questões: Ao se tratar com categorias de excluídos, qual o sentido de qualidade de vida ? Como os catadores de lixo percebem as questões ambientais e como se relacionam com os promotores de projetos que defendem o meio ambiente e a cidadania ? Quais são as imagens construídas dos vários atores sociais ? Construídas por quem ? Por que meios ? Como essas imagens influem sobre os sentidos circulantes ? Como os atores estão percebendo o processo do qual participam ? Quais são as condições de produção e os contextos que possibilitam as estratégias e formas de expressão ? Como a prática comunicativa possibilita ou molda a inserção de uma ação de mobilização num contexto de pobreza ? O tema central portanto, é conhecer como a sociedade interage com os excluídos no processo de conquista da cidadania. Seguindo Orozco Gómes (1992) busca-se desenvolver um marco conceitual que dê conta da intermediação de diversos elementos, graus de participação e regras. Pressuponho que Professora de Sociologia da Comunicação, Planejamento e Redação IV na Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP, mestra em sociologia, jornalista e consultora de organizações comunitárias e ONGs. Participação da aluna Suzana Mont Álverne- 4 períodoJor.- bolsista PIBIC Unicap. 1 Apresentado no Alaic 98-Recife- sob o titulo Reeditando a Cidadania e o Meio Ambiente em Olinda.GT Comunicacão e Meio Ambiente 2 há um processo complexo, multidimensional e multidirecional em vários momentos, cenários e negociações que transcendem os eventos comunicativos. Título: LIXO, CIDADANIA E PRÁTICA COMUNICATIVA O processo de comunicação e mobilização em projetos interinstitucionais que visam erradicar o trabalho infantil nos lixões do Brasil. Ana Maria Azevedo Universidade Católica de Pernambuco-Unicap Professora assistente, mestre em Sociologia da Comunicação Resumo 2 Estudo inicial sobre o processo de comunicação e mobilização em projetos de intervenção social, estimulados por políticas públicas de meio ambiente e erradicação do trabalho infantil. Observa interlocutores em suas formas de reedição das idéias de transformação de lixões em espaços de defesa da cidadania, buscando vincular significados discursivos e sentidos sociais . Introdução O lixo As preocupações com o lixo fazem parte do cotidiano das cidades, bem como a noção de cidadania e o interesse pela prática comunicativa. Reunir os três temas resulta de uma experiência pessoal, na busca de construções teórico-metodológicas que pudessem contribuir na formulação e implementação de projetos interinstitucionais de proteção do meio ambiente e defesa da cidadania dos que vivem no e do lixo urbano. Projetos que são apoiados pela cooperação internacional e governos, baseados na idéia de transformar a realidade social a partir das reivindicações de determinadas comunidades e da constatação técnica de problemas ambientais e sociais. Para alcançá-los é necessário todo um investimento em informação e nas relações sociais que privilegiem novos hábitos de uso e tratamento dos resíduos sólidos, observada a perspectiva do lixo como uma questão de cidadania. Lixo e cidadania A cidadania nem sempre é considerada na relação das grandes cidades com seu lixo. Normalmente, as sociedades urbanas tratam os seus resíduos como questão de engenharia, cabendo aos engenheiros e profissionais afins a solução técnica para a coleta, depósito e 2 3 tratamento. Há uma rede de organizações públicas e privadas, especialistas em resíduos, como também existem outras que fazem e discutem a educação ambiental, como forma de aproveitamento dos materiais recicláveis e preservação da natureza. Em torno dessas redes gravitam os problemas ambientais estimulados pelo consumo, pela desordem dos espaços e da vida urbana. Alguns estudos buscam fornecer um suporte analítico para estratégias de melhoria do meio ambiente urbano, como o que aborda os problemas das cidades de São Paulo (Brasil), Jakarta ( Ghana)e Accra ( Indonésia) ( Jabobi,1999). Na visão da “engenharia do lixo” é necessário investir na limpeza pública, congregar esforços para erradicar os espaços de depósito irregular e transformá-los em aterros sanitários ou de outro tipo, de forma controlada. Além disso, aperfeiçoar sistemas de coleta domiciliar, industrial e das vias públicas. Ações de alto custo, em que empresas se especializam para realizar serviços que serão pagos por verbas públicas , logo, de todos os cidadãos. Considerando a conjuntura social das nossas cidades, evidente que, no processo, há os que se beneficiam mais, gerando novos problemas sócio-ambientais. Entre eles, o das populações que sobrevivem da catação do lixo. Na prática, no momento de organizar os espaços de descarrego, essas pessoas são afastadas do local, no Brasil, geralmente conhecido como lixão. Aterros os substituem e os que catavam o lixo são estimulados pelos governos municipais a mudar seu modo de vida. Alguns conseguem voltar ao mercado de trabalho, outros passam a catar lixo nas ruas. Mas há também experiências de organização do trabalho coletivo que visam manter a renda dos catadores de lixo. Aí se investe na capacitação para o associativismo, no ordenamento das tarefas com o uso de equipamentos de proteção individual e máquinas de seleção e beneficiamento dos resíduos e em relações diretas de comércio com as empresas recicladoras. Na última perspectiva trata-se o lixo como uma questão de cidadania. Isto requer novas formulações em comunicação para mobilizar pessoas em torno da saúde, limpeza urbana, educação, geração de renda e meio ambiente. A complexidade das relações por si só, justifica novas abordagens, tendo na transdisciplinaridade uma maneira de ” dar conta da multiplicidade de arranjos discursivos ou de combinatórias, de efeitos de sentido, de regimes figurativos e aleatórios que proliferam no mundo atual “(Rodrigues,1997:19). A comunicação 3 4 Um estudo sobre a comunicação requer portanto, não as visões tradicionais de comunicação, que apenas privilegiam as mensagens dos emissores, mas os avanços dos estudos de recepção e do discurso que entendem a prática comunicativa como processual, realizada em diversas instâncias por diversos sujeitos, que produzem e atualizam suas relações de forças . Cada instituição usa estratégias para procurar intervir a seu modo em determinada realidade. E, considerando a pessoas não apenas como consumidoras mas também produtoras de sentidos em um dado processo de conhecimento, podemos perceber que cada um ocupa lugares de fala, centrais ou periféricos, e que todos exercem o seu lugar, nas diversas situações em que tenha que usar um poder. Há pluralidade, diversidade e dissenso. Neste texto, desenvolvo as idéias que norteiam o primeiro caso em estudo 2 – o projeto Meio ambiente e Cidadania em Olinda, Pernambuco - indicando a visão latino-americana de mobilização que privilegia a organização da macro-intencionalidade da ação comunicativa. Em seguida, tento observar como a metodologia proposta contribui para a teoria da recepção, destacando algumas estratégias de intervenção e a prática comunicativa das comunidades discursivas envolvidas nas suas mediações culturais. As questões a serem estudadas surgem da noção de qualidade de vida, buscando conhecer como categorias de excluídos a percebem e identificam questões ambientais para manter um relacionamento com os produtores sociais 3. Também interessa conhecer como os atores sociais ( interlocutores) estão percebendo o processo de comunicação que vivenciam, identificando as condições de produção e os contextos que possibilitam as estratégias e formas de expressão. Interessa observar quais são as imagens construídas pelos vários atores, os meios e a influência delas sobre os sentidos circulantes. Por fim, analisar como a prática comunicativa possibilita ou molda a inserção de uma ação de mobilização num contexto de pobreza. Com essas indagações, objetiva-se conhecer como a sociedade interage com os excluídos no processo de conquista da cidadania. O caso Olinda 2 Este estudo faz parte de um projeto de doutorado em fase de aceitação final pelo Programa de Pós Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo- Procam-USP. A minha participação no projeto de Olinda desde 1997 e a repercussão que a sua metodologia obteve no Brasil justificam a seleção como primeiro caso a ser estudado. Entre as experiências de interesse estão a de São Bernardo, em São Paulo e a de Belo Horizonte, Minas Gerais. 3 Produtor social é o termo usado por Toro para indicar aqueles que têm a idéia da mobilização, organizam as equipes técnicas, finanças e selecionam os atores, além de imprimir um sentido a um imaginário específico ( p.35) 4 5 Cidade patrimônio histórico e cultural da humanidade, título conferido pela Unesco, com cerca de 380 mil habitantes4, possui todos os problemas das regiões metropolitanas: violência, desemprego, falta de habitação, educação excludente e sem qualidade, atendimento na área de saúde precária, saneamento e coleta de lixo insuficientes, entre outros. A ausência de alternativas para solução dos mesmos repercute no tipo de ocupação das famílias que, para gerar renda se valem de todos os seus membros, incluindo crianças e adolescentes. Em 1997, viviam no lixão de Aguazinha, um dos bairros mais populosos de Olinda, 578 pessoas 5, totalizando 113 famílias. Desse total, 271 eram crianças na faixa de 0 a 15 anos ( 47,7 %),de 18 a 21 ( 13,6 % ), o que caracterizava uma população muito jovem, sem outra condição de vida exceto catar e comer lixo. Para subsistir, idosos, adultos e jovens, amontoados e sem quaisquer condições de proteção, disputavam o lixo. Catavam restos de comida para sua própria alimentação ou, materiais recicláveis para vender aos atravessadores, pessoas que levavam papelão, vidro, plástico para as fábricas. Evidente que essa última etapa, gerava o maior lucro. Aqueles que faziam o trabalho da catação pouco recebiam em dinheiro, além do fato de estarem envolvidos com os “donos do negócio” por dívidas e pequenos favores, normais nesse tipo de sobrevivência. O cenário sócio-econômico degradante levou um grupo de técnicos a pensar numa proposta de sócio-ambiental para transformar a vida daquelas famílias. De 95 a 96 foi delineada a intervenção envolvendo governo municipal, estadual , organizações não-governamentais e negociado o apoio do Unicef. Algumas negociações entre prefeitura e governo do Estado são feitas para transformar o lixão em aterro sanitário, além da elaboração de um plano habitacional para as famílias. O grupo original, composto por servidores públicos, técnicos de organizações não governamentais e alguns representantes da comunidade, elabora uma proposta de intervenção e inicia algumas atividades educativas junto à população do lixão, incluindo recreação para as crianças. Em 1997, o município muda de gestor mas o projeto é mantido, contando com o apoio na ampliação da equipe e abertura para a retirada das crianças do local e fortalecimento da organização das famílias pelo associativismo. Hoje o projeto atende cerca de 300 crianças e adolescentes, de 0 a 18 anos, com serviços de creche, pré-escolar, ensino fundamental e complementar, além de oficinas profissionalizantes.6 Em terreno doado, 120 famílias construíram suas casas e hoje ninguém 4 O Recenseamento brasileiro de 1991 indica uma população de 360 mil ( IBGE) Em janeiro de 1997 foi realizado um censo dos moradores do entorno do lixão de Aguazinha que totalizou 578 pessoas, sendo 288 do sexo masculino e 290 do feminino. Vale considerar que há catadores que vivem em bairros próximos e não participaram do censo, realizado pelo Ceas-Urbano. 6 35 jovens participam de oficinas de produção artesanal; metade deles já comercializa e tem renda individual de cerca de 50 dólares mensais. 5 5 6 mora mais no aterro. Foram criadas duas associações com cerca de 100 pessoas produzindo diretamente para fábricas de reciclagens. A renda das famílias aumentou em 30 % ( no censo 1997, 60 % das famílias declarava ganhar menos que 76 dólares mês para despesas com uma média de 5 pessoas ). Mas há outros 100 recicladores que resistem ao associativismo, preso que estão aos atravessadores por dívidas e favores assistencialistas. E também existe toda uma população, de outros segmentos sociais, que não responde aos apelos para cuidar do lixo com responsabilidade cidadã. Há professores capacitados em educação ambiental que aplicam novas formas de comunicação e inúmeros que resistem a transformar hábitos irresponsáveis com o lixo em separação seletiva. Mas há um processo de comunicação e mobilização social que repercutiu em outras cidades, estimulando um fórum de debates denominado Lixo e Cidadania, lançado em Brasília ( junho 1998 ). A campanha Criança no Lixo Nunca Mais, iniciada em outubro 1999, provocou iniciativas governamentais de erradicação do trabalho infantil, tratando as crianças dos lixões como de extremo risco social, com direito a novos planos de assistência. 7 Em todo o Brasil ocorre um processo de mobilização que compreende um complexo de relações entre órgãos públicos e entidades privadas em torno de novas políticas públicas de defesa do meio ambiente e da cidadania. Esta pesquisa busca conhecer como é a prática comunicativa entre interlocutores de tão diversos segmentos, partindo das questões acima apresentadas. Caminhos teóricos identificados Este estudo inicia no primeiro estágio de implantação do projeto (1997) quando estimulamos uma discussão sobre sua política de comunicação. Para a equipe não se tratava de política, mas de investir em campanhas comunitárias, baseadas em cartilhas, folhetos, exposição oral nas escolas e dramatização. Considerando os amplos objetivos e articulações da proposta fiz ver, como única pessoa da área, que era preciso buscar uma concepção de comunicação. À época, o Unicef divulgara um caderno sobre um ciclo de palestras e debates de temas de comunicação e mobilização na Universidade de Brasília. Nele identificamos uma nova visão conceitual, apresentada pela Fundação Bogotá que parte da construção de imaginários e da 7 Olinda participa de dois novos projetos para ampliar a ação do projeto original: o primeiro envolve cinco prefeituras na visão de que “criança e lixo não combinam; e o segundo é um experimento na área de saúde com os jovens atuando como reeditores. Tem a denominação Oh! Linda Juventude sem AIDS e é financiado pelo ministério da Saúde, com apoio técnico do Unicef. 6 7 participação de reeditores no processo de coletivização, sendo a mobilização definida como “convocar voluntários a um propósito, com interpretações e sentidos compartilhados” ( Toro, 1996:26)8. Seis pessoas do grupo de técnicos, de diversas especialidades, decidiram iniciar discussões sobre o processo de comunicação. O primeiro estágio foi definir o conceito, partindo da proposta de Fausto Neto (1995) e seguindo os caminhos traçados por Araújo (1998), Canclini ( 1998 ), Martin-Barbero (1997),Orozco (1996), Peruzzo (1998), Jacobi (1999) e Rodrigues (1997 ) ,entre outros autores.9 Em Fausto Neto vimos um conceito de processo de comunicação que se coadunava com os pressupostos da transciplinaridade do projeto, vendo-o além da dimensão auxiliar, como dinâmico e potencializado por diferentes sujeitos. Interlocutores que constituem e esclarecem novas estratégias de sentidos, vivendo um fenômeno comunicativo, não apenas como meio, mas como constituinte do próprio processo sociocultural. Com Inesita Araújo identificamos a contribuição da Semiologia dos Discursos Sociais, observando as possibilidades de estudar as vozes dos diversos interlocutores da causa meio ambiente e cidadania. Seus discursos têm origem diversas, mas se consideramos os sentidos, permanecem similares. Estabelecendo uma matriz das relações simbólicas que travam organismos públicos e privados, buscamos conhecer as primeiras trocas de uma prática competitiva. Há indícios de que as percepções sobre o lixo dos catadores e moradores da periferia julgam ser a ação governamental o principal ator. Se ainda não da forma comprovada por Jacobi (1999:157), vimos que a predominância dos órgãos estatais refletem a ausência dos cidadãos enquanto defensores dos seus direitos. Neste estudo, uma das hipóteses é que a interlocução nasce da cobrança de serviços urbanos ( coleta do lixo e água, por exemplo), e não da percepção do próprio papel na solução de problemas ambientais. Há, inclusive entre os catadores de lixo, uma visão imediatista vinculada às necessidades e garantias do trabalho propiciadas pelas condições ambientais. A partir das discussões sobre o popular trazidas por Canclini (1997:258) passamos a observar o desenvolvimento de novas matrizes simbólicas, “nas quais nem os meios de comunicação, nem a cultura massiva operam isoladamente, nem sua eficácia pode ser avaliada pelo número de receptores, mas como Ver artigo citado no resumo, apresentado no Alaic 1998 – Reeditando a cidadania e o meio ambiente em Olinda. 9 O grupo de pesquisa não mais existe, mas acompanha o desenvolvimento desta pesquisa acadêmica enquanto participantes do projeto. 8 7 8 partes de uma recomposição do sentido social que transcende os modos prévios de massificação.” Sabemos por esse autor e por Martin Barbero que há necessidade de termos conceitos e instrumentos metodológicos que dêem conta do consumo, da transformação que os setores populares realizam com as comunicações, passando da visão de meios para a das mediações. Daí o investimento no contato direto, seguindo as microinterações concretizadas em reuniões, conversas e visitas. 10 da vida cotidiana, A idéia, contudo, não é isolar o estudo no pequeno grupo de famílias que vivem do lixo, mas propiciar um mesmo tratamento técnico aos grandes constituintes do processo de mobilização – o Estado, a indústria cultural e as organizações não governamentais. Daí a importância de acompanhar o fórum nacional Lixo e Cidadania, a repercussão na mídia dos problemas da criança com o lixo e as iniciativas de mudança. Existe a mídia e uma política burocratizada fundamentais ao processo de transformação desejado, imaginado. As tentativas de transformação da realidade adversa estimulam mediações na prática comunicativa. Considerando a importância do conceito de mediações e as dificuldades em defini-lo, recorro ao estudo de Signates (1999) para categorizar aspectos a partir da análise de Orozco Gómes. Uma análise que mesmo fixada na audiência de TV nos leva às “fontes de mediação”, conceito que julgamos extrapolar as dicotomias tradicionais e conduz ao entendimento de processos de comunicação. No contexto do caso Olinda ou nas novas relações do fórum Lixo e Cidadania, observo “múltiplas mediações”, cujas fontes são várias, como diz Signates: cultura, política, economia, classe social, gênero, idade, etnicidade, meios, condições situacionais e contextuais, instituições e movimentos sociais. Dentre os 4 grupos apontados por Orozco Gómes identifico o individual, conhecendo as histórias de vida dos catadores; o situacional, identificando o contexto sócio-econômico-cultural e as negociações e, o institucional, para conhecer as instâncias das organizações públicas e privadas que intervém no cenário dos lixões. Poucas respostas existem para as questões iniciais. Há muito a saber sobre o individual, o situacional e o institucional de diversos sujeitos. Ao lidar diretamente com o processo, observo que os sentidos de qualidade de vida para os catadores estão em construção, prevalecendo a necessidade do ganho econômico imediato. Por outro lado, as grandes questões ambientais presentes nos discurso dos produtores sociais não são sequer identificadas como um problema 8 9 da população. O que repercute nas relações com os técnicos, ainda pautadas na garantia do trabalho e serviços de saúde e educação e distante do sentido maior do associativismo. A entidade criada pelos catadores de Aguazinha, por exemplo, já está pela terceira vez sem um dirigente, num período de quase dois anos de fundação. Há uma grande expectativa pelo emprego fixo, já identificada no Censo 97 como de 62 % das pessoas que vivem do lixo. Mas há também o resultado concreto da comercialização, demonstrando que é possível aumentar a renda, desde que seguido o caminho da organização. Pouco a pouco, novos sócios se incorporam e tornam visível o ganho coletivo. Em dezembro 99, por exemplo, 70 associados conseguiram vender às indústrias quase 13 mil reais ( US$ 7.344,) o que dá uma renda individual de 185 reais US$ 104,5). Percebe-se que a informalidade do serviço os prende a uma cadeia produtiva em que os dejetos da sociedade de consumo são extraídos, geram benefícios ambientais, mas que eles ainda representam a ponta mais frágil. Em termos dos estudos de recepção, como acompanhar todo o processo ? Caminhos metodológicos O que estamos desenvolvendo é uma busca das combinações específicas das mediações, observando seus resultados. Com a população dos recicladores, primeiro realizamos um estudo sobre suas histórias de vida, identificando interesses pelo trabalho coletivo e suas práticas comunicativas. Do contato com a equipe, através da observação participante, estamos conhecendo a socialidade existente, a partir das interações estruturadas para ver como se apropriam das novas formas de trabalho. O que é negociado no cotidiano entre eles e o poder instituído ( no caso, a prefeitura e suas regras de serviço para a permanência das famílias enquanto coletoras de materiais, ou mesmo, com os comerciantes que disciplinam os preços). No plano mais amplo, também buscamos os sentidos que dão às matérias veiculadas pela mídia, quando essa trata a situação de miséria apenas expondo o contato com o lixo e nunca a visão do trabalho. Em entrevista, muitos recicladores demonstram rejeição ao dito pelos jornais e televisão, declarando que não são “bichos que comem lixo” mas trabalhadores que chegam a ficar no serviço por mais de 10 horas diárias. Nas suas falas é possível perceber que desacreditam da mídia, principalmente quando se tornam sujeitos das matérias e podem observar as omissões das suas próprias falas. Já catalogamos mais de 20 matérias de jornais sobre o “lixão” de Aguazinha e, a cada publicação, entrevistamos 2 a 3 pessoas. A televisão local também costuma registrar a “vida no lixo”, sempre mostrando os aspectos degradantes. 10 Todo o processo segue a visão antropológica de observação dos eventos comunicativos, com diário de campo e registros fotográficos. O registro em vídeo foi pensado, mas vimos que provoca inibição das falas e/ou uma certa dramatização. 9 10 Observamos a repercussão das matérias e os comentários que provocam. No caso, prevalece a dimensão afetiva/emocional estimulando as falas sobre quem “apareceu melhor” e comentários sobre as falas dos repórteres que não “disseram tudo”. Para o estudo, seguindo Orlandi (1988), a observação da repercussão da mídia permite reorganizar o trabalho intelectual dos atores sociais e faz circular interpretações, inclusive sobre a iniciativa nacional Lixo e Cidadania. Ao ser notícia, a iniciativa estimula novos atores que se mobilizam para conhecer as questões dos resíduos sólidos urbanos e os problemas que provoca, principalmente quando usados os seguintes apelos: “ Criança feliz na escola”, “Criança no lixo nunca mais” ; Criança e lixo não combinam “. Daí acompanhamos o interesse de instituições ou pessoas e a sua inserção enquanto “reeditores” da proposta de mudança. Primeiro identificamos os textos que circulam na Internet, seguindo o debate “on-line”, relatórios e documentos produzidos. Neles já é possível identificar as contribuições de outros segmentos sociais, como a os bancários, que se articulam para a doação de bolsa-escola às crianças11, ou de pessoas anônimas que buscam se inserir em pequenas ações ambientais após um curto período de estudo sobre meio ambiente. Algumas “brigadas ecológicas” agem na periferia urbana para cuidar de ruas, árvores e do lixo, a partir da idéia de reciclagem. O resultado inicial é um quadro das organizações envolvidas e suas ações, cabendo ainda um mapeamento dos eventos comunicativos promovidos, antes da análise das negociações por eles estimuladas. Ao seguir a trajetória dos “reeditores”, seus públicos e suas formas de articulação estamos buscando conhecer os diferentes mecanismos interpretativos que ocorrem na relação com as diversas linguagens e distintas posições dos sujeitos. A interpretação passa a ser, pela análise do discurso, um gesto necessário que liga os textos 12 ao contexto histórico na produção dos sentidos, vistas na dimensão do sujeito, na sociedade e nas suas instituições. Desta forma, talvez, conheceremos as vozes dos diversos interlocutores da causa meio ambiente e cidadania. Entre aqueles que apenas vêem os resíduos sólidos , materiais, e aqueles que buscam resolver os problemas pela ótica do desenvolvimento humano sustentável há uma prática competitiva. Entre os que separam do lixo o que é reciclável e dele vivem, e os que apresentam técnicas de organização do trabalho é também mantida uma relação simbólica sempre negociada, revelando cobranças, interesses diversos, desejos pela proteção dos órgãos públicos e os resquícios do assistencialismo, ainda praticado por membros de entidades religiosas, líderes comunitários e pessoas que se comovem com a miséria e se expressam através da 11 É o caso dos funcionários da Caixa Econômica e do Banco do Brasil que estão organizando um fundo de contribuição para doação de auxílio aos menores que trabalham. 12 Texto visto não como unidade fechada, mas também com suas condições de produção e sua exterioridade constitutiva ( o interdiscurso). 10 11 doação de roupas e alimentos. O que compete essencialmente, com o imaginário e a prática do projeto Meio ambiente e Cidadania, baseada na construção de conhecimentos pela ação continuada, sustentável. Mas, por mecanismos diversos, os que dele participam chegam a direcionar informações distantes da realidade da população que vive do lixo. Por exemplo, a não permissão do trabalho infantil no lixão provoca reações dos pais, cuja lógica tradicional é ensinar o filho a ganhar dinheiro o mais cedo possível, sendo a escola menos importante na escala de valores, mesmo reconhecendo as condições insalubres e as doenças que provocam. Instala-se um processo de conquista, atraindo as crianças para atividades de arte-educação e, ao mesmo tempo, provocando conflitos. Medidas paliativas para manter a renda, como um pequeno auxílio em dinheiro, são pouco a pouco instaladas, gerando mais competição e novas estratégias de negociações no cotidiano do lixão. Finalizando Para finalizar este texto, destacamos que tudo o que foi dito revela intenções de contribuir com a discussão sobre recepção, trazendo: 1- um público diferenciado, tido como de “extremo risco social “ pelos órgãos públicos e sociedade civil organizada; 2 – uma rede de articulações de organizações jurídicas, executivas, entidades privadas e da cooperação humanitária; 3 – a tentativa de testar uma concepção de mobilização social latino-americana e, 4 – a construção de um caminho teórico-metodológico que possibilita conhecer a recomposição do sentido da relação lixo e cidadania pelas mediações dos setores populares, recorrendo à concepção transdisciplinar para dar conta dos múltiplos arranjos discursivos. Evidente que ainda são intenções, com poucas observações sistemáticas. No entanto, elas começam a ser qualificadas no sentido da transformação pelos próprios receptores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Inesita 1998. 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